Livros

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sábado, 29 de abril de 2023


... reparo que algo me ilumina a palma da mão, talvez um vestígio de alma derramado, a garantir-me que uma manhã sempre se levantará após a noite…


in A distância suaviza o olhar

A distância suaviza o olhar

 


Enquanto ele falava, no fundo, aquilo que há muito sabia, afinal, nunca se espera o que se ignora, eu detinha-me numa qualquer outra coisa, algures entre a janela e o seu ombro, um ponto indeterminado onde pudesse aportar uma angústia que pressentia aproximar-se, ele ainda com questões técnicas, pois, para as outras não havia rasgo, ainda as esperei, em certos aspectos, não sei porquê, continuo a olhar o mundo pela janela da minha Escola Primária, mas, por ali, os esquemas dos compêndios sobrepuseram-se às curvas do sentir, terminada a prelecção, sei que o meu rosto impassível, o dele expectante por uma reacção minha, permaneço algures por aquele ponto indeterminado onde pudesse aportar uma angústia que pressentia aproximar-se, neste momento, uma mão pousa, numa demasiada suavidade, sobre a minha, como se por ela um sentir interrogativo, entretanto ele Compreendeu o que tem de fazer? E eu que há muito desistira da compreensão, percebi que esse não é o caminho, opto por uma saída ligeira, encolho os ombros, ele insiste Repare, não é altura para hesitações. Para si, o amanhã vem com um dia de atraso, a mão, que pousara com demasiada suavidade sobre a minha, a emitir uma interrogação entrecortada (Vais cumprir com o tratamento, não vais?), por ali apenas rasgo para as outras questões, das técnicas nem sinal, sentia-lhe os dedos num frémito de montante longínquo, virei o rosto, detive-me nela, reparei que, pela sua face, nem sinais de adeus, pelo contrário, os dedos inquietos persistem naquele jorrar de alma, de novo, a questão (Vais cumprir com o tratamento, não vais?), neste ponto, ele, do outro lado da secretária, aproveitou para demonstrar algum rasgo, Olhe, acho que devia ouvir a sua mulher, a frase soube-me cinzenta, não sei se pela expressão, havia qualquer coisa de mecânico a olhar motores e níveis de óleo, se pela ausência de gestos, os braços ainda não se haviam descruzado desde a nossa chegada, talvez fosse da assepticidade da divisão, apenas uma janela, atrás dele, encostada à parede, do nosso lado direito, uma marquesa, na outra parede, só um armário, três ou quatro pósteres, a omnipresente e tragicamente anacrónica roda dos alimentos, outro de incentivo à vacinação, e já não me recordo dos outros, no entanto, apesar daquele jorrar de alma pelas minhas falanges, das frases ainda suspensas neste rectângulo desumanizado, eu estou com a janela, percebo-lhe um azul geral, apenas riscado, mais abaixo, por um ramo oscilante, nada mais, por ali, nem os sons do mundo encontravam uma porta de entrada, também não era muito larga, a arquitectura, de então, não privilegiava horizontes, contudo, da cadeira onde estava, era o que se me oferecia, talvez fosse o bastante, um azul geral, apenas riscado, mais abaixo, por um ramo oscilante, havia qualquer coisa de comum entre o jorrar de alma pelas minhas falanges e o ramo oscilante que riscava o azul que nos amanhece o olhar, como se, em ambos, uma voz distante nos apelasse à memória, e nós, perdidos numa noite sem manhãs, permanecêssemos numa surdez flagrante face a um ontem que se quer fazer amanhã, ela não se rende (Vais cumprir com o tratamento, não vais?), desta feita num tom mais veemente, à minha frente, os braços persistem cruzados, nesta altura, compreendo que não devo encolher os ombros, não seria de bom-tom, à vista daquele ramo oscilante, optar pela ligeireza, opto por lhe aquietar as falanges, por fim, levanto-me, peço um pouco para pensar, ela, num repente, já de pé, quase ao mesmo tempo que eu, ele estático, com os braços cruzados, observantes, como se debruçados sobre um motor, nisto, reparo que algo me ilumina a palma da mão, talvez um vestígio de alma derramado, a garantir-me que uma manhã sempre se levantará após a noite…

 

segunda-feira, 24 de abril de 2023


 ... acredito que morrer começa quando perdemos os motivos para aqui continuar, como se fôssemos perdendo a bagagem ao longo da jornada, até nada restar...

in Deslumbramento

domingo, 23 de abril de 2023

 


... ao olhar para trás, perduram, em nós, de forma vívida, quatro ou cinco momentos – aqueles em que, de facto, a vida decidiu contemplar-nos com aquilo a que nos habituámos a ouvir de magia, por outras palavras, de deslumbramento…

in Deslumbramento



 ... e, sempre, no fim de tudo, uma pedra erguida do chão no lugar de sonhos caminhantes...

in O nosso tempo nunca é o tempo dos outros

sábado, 22 de abril de 2023

O nosso tempo nunca é o tempo dos outros

 


Perdi o tempo da viagem, talvez por encontrar o outro tempo, enquanto o retrovisor me espelha curvas, copas e mais copas, muito fugidiamente um vulto, debruçado sobre a terra a semear amanhãs, casas, terras, daquelas que apenas sabemos o nome por ali passarmos, numa inevitabilidade da viagem, mas, em verdade, as terras são todas iguais, olhares que se cruzam, corações que se sorriem, caminhos que se desviam, vozes que se emudecem, costas em vez de rostos, e, sempre, no fim de tudo, uma pedra erguida do chão no lugar de sonhos caminhantes, pouco mais há, uma praça, uma fonte, um miradouro, isto é do ver, o antes é pertença do sentir, e é isto que me faz estar ao volante há horas esquecidas, ela, a meu lado, porém, não sei em que tempo ela, continua a falar-me, desde a primeira curva, há demasiadas horas atrás, ainda não cessou, amiúde, uma frase suspende-se Já viste a alegria da tua mãe com um netinho nos braços… E a minha, coitada, com medo de partir deste mundo, sem esse sonho se cumprir… Nem uma observação para a satisfazer, mantinha aquele ar compenetrado, de quem leva a condução muito a sério, afinal, na estrada, e noutros lados, a segurança é um valor vizinho da existência, fascinava-me a facilidade com que encontrava temáticas, eu sempre falei mais comigo, neste momento, em que regresso a uma outra idade, é curioso, há lugares onde somos sempre plurais, tristes são os lugares onde somos o singular, nesses nem uma janela para se abrir, as sombras das árvores espreguiçam-se, como se quisessem abraçar o momento, no céu, aqui e ali, acende-se um fogo longínquo, como se nos relembrasse que a noite caiu para todos, olho-a para lhe dizer que certamente já não chegamos hoje, de vez em quando, perco aquele ar compenetrado, talvez já me demore a sair de mim, as horas demasiadas a pesar sobre os ombros das pálpebras, ela a sugerir aquele hotel onde, também há muito, nós, certa noite, de novo, uma frase suspende-se, Já viste a alegria da tua mãe com um netinho nos braços… E a minha, coitada, com medo de partir deste mundo, sem esse sonho se cumprir… Sem o escudo do ar compenetrado, da estrada levada a sério, encosto naquele lugar, onde, antes, nós, ela contava-me sonhos, eu sempre na serenidade de uma sombra de Verão, compreendia-lhe os anseios e lançava-os para o futuro, de certa forma, ela agradecia-me o gesto, mas nunca se esqueceu de os recolher à medida que caminhamos juntos, daí a partida para aquele Norte distante, onde o Inverno parece devorar as outras estações, lembro-me, na hora da partida, de sussurrar a meus pais, Compreendam, dizemos adeus ao desemprego, meu pai cansado de tantas compreensões, a sua boca numa horizontalidade calada face ao hoje dos seus filhos, minha mãe, a seu lado, procura, através de gestos vazios, incentivar-nos à estrada, e isto já foi há tanto, mas, para mim, continua a ser há tão pouco, uma vez mais, naquele lugar, onde, antes, nós, ela contava-me sonhos, eu sempre na serenidade de uma sombra de Verão, compreendia-lhe os anseios e lançava-os para o futuro, ela insiste em recolher algo do caminho através de uma frase que se suspende, Já viste a alegria da tua mãe com um netinho nos braços… E a minha, coitada, com medo de partir deste mundo, sem esse sonho se cumprir… Das primeiras vezes, relembrei-lhe o Inverno devorador de outras estações, a incerteza com que levávamos o pão à mesa, o meu bolso alargado pelo dicionário, e o dela também, todavia, hoje, nada tenho para lhe relembrar, no meu rosto vislumbro a linha de uma horizontalidade calada, e eu, ao contrário de meu pai, ainda não me cansei de compreender, naquele lugar, onde, antes, nós, ela contava-me sonhos, eu sempre na serenidade de uma sombra de Verão, compreendia-lhe os anseios e lançava-os para o futuro, repousa o rosto no meu ombro, é verdade, há lugares onde somos sempre plurais, ela recolheu futuro e trouxe-mo na forma de um gesto feito desejo, acompanho o seu olhar às alturas, aqui e ali, acende-se um fogo longínquo, como se nos relembrasse que a noite caiu para todos, talvez não, neste momento, caminhamos por sorrisos, sob um sol de Verão, em busca de uma sombra repousada.

sábado, 15 de abril de 2023


 

- Deixa estar. Tenho de ir. Chega de equívocos! Eu abraço o passado, o teu irmão optou por abraçar o momento, tu só queres abraçar o futuro… Como vês, olhamos em direcções opostas. Tenho de me apressar, alguém lá atrás espera-me, numa madrugada, para reiniciar uma sempre adiada viagem. Não posso adiar mais! Tenho a certeza: foi ali que me perdi de mim.

in Deslumbramento

 

sexta-feira, 14 de abril de 2023



 O amor não é um ideário, mas sim acto, repara: o amor tem cheiro, respira, envelhece… A ideia não. Já viste alguma ideia envelhecida?

in Deslumbramento

quarta-feira, 12 de abril de 2023


 ... chega-se a uma idade em que já ninguém pergunta a razão da partida, parte-se e acabou (cansaço, saudade, desgosto, às vezes, para não enlouquecer, de tanto ouvir a própria voz)...

in Deslumbramento

Uma pedra, uma palavra

 



Estou a vê-lo, neste momento, a estacionar o carro, no lugar do costume, debaixo do candeeiro, sempre com medo dos roubos, não perdeu aquele hábito de retroceder, pelo menos uma vez, para endireitar o carro, agora sai, pousa a carteira no tejadilho, acho-o mais curvado, não sei porquê, afinal, não passou tanto tempo assim, vasculha o interior com o olhar em busca de uma traição da memória, fecha a porta, guarda a carteira, eu, do outro lado da rua, saio do meu carro, chamo-o, não muito alto, ele naquele seu peculiar passo arrastado a caminho do prédio, talvez não me tenha ouvido, resolvo gritar o seu nome, detém-se, por momentos, receio que rosto vou encontrar, todavia, não abrando a passada, faltavam-me cerca de dois metros, quando ele se vira, não sei porquê, mas opto por me imobilizar, o discurso que havia elaborado, com toda uma sequência frásica, a diluir-se perante aquela face, ou talvez pelo horizonte de passado que o seu olhar derramou, eu… eu… bem, eu queria dizer-lhe tanto em tão pouco, geralmente é o que procuramos, mas cansamo-nos tanto a correr atrás das palavras, que, na maioria das vezes, socorremo-nos de uma ideia cansada ou de um gesto vazio, e aquele olhar num gritante contraste com a curvatura pronunciada de há pouco, uma energia alimentada por uma dor que eu bem sei, foi há uns três anos, caminhávamos para onze de casamento, aquela fase em que sabemos a passagem dos dias pela data, como se entre nós e o mundo sempre uma janela, ele trabalhava, e ainda o faz, numa repartição pública, saía todos os dias à mesma hora, chegava a casa, hora e meia de volta do aquário, nem dava pela minha chegada, sempre depois, era balconista, e ainda sou, com muito orgulho, confesso, numa casa de modas, não há chinês que lhe chegue, via-o absorto com aquelas cores flutuantes, chegou mesmo a baptizá-las, nunca lhes quis saber os nomes, mas, surdo para o meu desinteresse, debitava-mos de qualquer maneira, como as diferenças de águas doce e salgada, nessa altura eu, felizmente, já com a novela, e um bocejo aqui e acolá para o afastar, aos fins-de-semana, os miúdos em casa, os pais dele também, de novo, em mim, aquela sensação de entre nós e o mundo sempre uma janela, ele e o pai, nas tardes de Sábado, de volta daquela caixa de vidro, cheia de água, nunca soube se doce ou salgada, com cores flutuantes, ao Domingo, depois de almoço, iam para o café, ao fundo da rua, porque tinha o canal da bola, durante uns tempos ainda me falou para metermos isso cá em casa, mas rapidamente percebeu que, em certos lares, o mês demora mais a passar, isto só sucede quando o porto está sempre um cabo adiante dos desejos do navegador, enquanto isso, o perfume naftalinoso da  minha sogra em cada divisão cá de casa, a insolência dos miúdos crescia sob o manto indulgente dos avós, e eu perdia-me a olhar as cores flutuantes na caixa de vidro, cheia de água, enquanto suplicava, a um grito de mim, que se silenciasse, confesso que não sei quantos fins-de-semana foram, sei que duraram anos e anos, talvez até à trombose do meu sogro, aí mudámo-nos para o hospital, por esta altura,  certa tarde, entra-me pela loja um antigo colega de escola, reconheci-o de imediato, chegámos a trocar uns beijos atrás do pavilhão, era atrevido com as mãos, também me reconheceu, mudara-se há pouco para o bairro, vinha saber onde eram os correios, ofereci-me para o acompanhar, era uma hora de pouco movimento da tarde, pedi à minha colega que olhasse pela loja, lembro-me de cada palavra e olhar que trocámos, é curioso, parecia reaprender a memória do tempo, quando dei por mim, após uns cafés, telefonemas, estava deitada com ele no colchão, sobre o soalho, no quarto ainda despido de móveis, o estore a meio permitia saber as horas, da primeira vez foi na pausa de almoço, ele continuava atrevido com as mãos, eu gostava, e agradecia, finalmente abria-se a janela que me separava do mundo, a certa altura, não conseguia regressar àquele horizonte de costas debruçadas sobre uma caixa uma caixa de vidro, cheia de água, com cores flutuantes lá dentro, apenas os miúdos choraram a minha crescente ausência, a minha sogra, pelo telefone, ainda me gritou um sinónimo corrente de rameira, de certa forma não me admirei desta sua atitude, cheirava-me a naftalina, mas isto foi na altura, quanto a ele, silêncio, a repartição pública, a saída sempre à mesma hora, as costas dobradas sobre uma caixa de vidro, cheia de água, com cores a mover-se lá dentro, os fins-de-semana agora apenas com a mãezinha, o pai, entretanto, partira, os miúdos quiseram ficar com ele, eu compreendi, ao contrário de mim, ele tinha gestos de lar, já não me lembro em que altura foi, mas percebi, muito a custo, confesso, que as mãos eram atrevidas e demasiado irrequietas, certa tarde, também à hora de almoço, em que era para estar na loja, no colchão, ainda sobre o soalho, no ainda quarto despido de móveis, ele e a vizinha do quarto andar, bem mais nova que eu, acho que fazia unhas numa dessas lojas a atirar para um barroco tardio, não me perceberam, talvez pelos gemidos, saí tímida, para não os interromper, tudo o que vestiu aquela casa veio de mim, dos electrodomésticos aos poucos móveis da sala, ele sempre refugiado na conversa de estar entre projectos, à espera dele, pelo menos uma vez por semana, a senha do centro de emprego, a certa altura, começou a falar mais alto (e como eu estava habituada a silêncios!), entre nós, apenas a memória do colchão, sobre o soalho, no quarto ainda despido de móveis, o estore a meio que permitia saber as horas, as mãos, afinal, sempre pluralmente atrevidas, os beijos, noutra vida, atrás do pavilhão, era pouco, talvez fosse nada, era isto que te queria dizer, enquanto por ti, quem sabe, ainda haja a memória do teu nome escrito, pela minha mão, por pedras à beira-mar, naquela praia do Norte, onde tanto gostas de passar as férias grandes, à espera dos teus primos emigrados em França, achava graça ao trejeito que fazias enquanto soletravas cada sílaba sob a luz marítima de Agosto, se pudéssemos subir, e conversar um pouco, talvez eu te ajude a limpar uma caixa de vidro, cheia de água, enquanto memorizo, para sempre, o nome de cada cor flutuante.

segunda-feira, 10 de abril de 2023


 


 

Adeus, Peida-Sentada



Caros leitores, bem sei que, há uns tempos, quis terminar esta série da Peida-Sentada com uma trilogia, porém, acontecimentos recentes e, por sinal, imperativos, obrigam a mais esta crónica, assim sendo, fica a promessa de se finalizar esta série com uma tetralogia, mas uma questão já deve pairar nos espíritos dos leitores: que acontecimentos recentes suscitaram tão imperativa crónica? Bom, aqui chegados, creio que o título seja elucidativo (“Adeus, Peida-Sentada”), aos poucos, naquele curral, a Peida-Sentada foi perpassando, às suínas mais próximas, que estava de partida, iria deixar o curral, até ali seu, ninguém transpareceu desgosto com a novidade, tal facto não passou despercebido ao Mocho, no seu elevado ramo, não vá algum dejecto apanhá-lo, e por ali são tantos, que cogitava: saindo do curral, para onde irá a Peida-Sentada sentar-se? Amiúde e em surdina, porcos e porcas comentavam este facto, várias teorias se levantaram para justificar a saída, houve quem apontasse o esfriar de relações entre a Peida-Sentada e a sua adjunta Peida-Sorrisos, todavia, o porco é um animal de memória-curta, a preocupação centrou-se logo na sucessão da Peida-Sentada, quem iria agora dirigir os destinos do curral? O que seria do confessionário instituído pela Peida-Sentada? E as mordomias das porcas mais próximas? Proximidade, num curral, está longe de rimar com amizade, ressalve-se este facto, quem andava num constante vai-e-vem era a peida-platinada, responsável pela contagem e distribuição das bolotas, já aquando do suíno velho e gasto, antecessor da Peida-Sentada, com resultados muito sofríveis, dizia-se que o suíno era taumaturgo na arte da subtracção, daí a sua precipitada saída, não obstante este facto, a peida-platinada continuou com esta pasta no curral, daí a sua azáfama, até pediu o auxílio de um porco-velho, decrépito, que gostava de ir para o pasto passear com vacas-novas, imagine-se o quadro: um porco-velho, decrépito, num pasto, a passear com uma vaca-nova, pois, pior é difícil… Visão dos infernos! Não era só a peida-platinada que andava em azáfama, outras nossas conhecidas personagens rondavam o confessionário da Peida-Sentada, o porco das pernas-arqueadas, com a marca dos dejectos já nas orelhas, sim, esse mesmo, o tal dos grunhidos pelas costas, até hoje há quem aguarde que grunha de frente, mas um suíno é só isso mesmo, um suíno atolado em trampa, o porco-espanhol (espanhol e porco, pior combinação é impossível) em contactos múltiplos a babar-se por uma promoção, houve quem o avistasse, nas mais recônditas zonas do curral,  em grunhidos baixos com porcas que se perfilavam como putativas candidatas na sucessão da Peida-Sentada, de facto, este porco-espanhol não queria, de forma alguma, largar o confessionário, mas também havia as porcas já instaladas que impassivelmente aguardavam pela sucessão, as nossas conhecidas: porca dos dentes-de-esquilo, tudo igual, imunda das patas à língua, a peida-varizes, uma porca deveras dissimulada, cada vez mais larga, a porca-da-índia, dizem que perdeu  toneladas, embora os intestino continuem próximos da boca, a peida da bata-branca, a tal acéfala que queria ser doutora, onde, num curral, alguém pode almejar uma incólume bata-branca? Pois, só uma suína para tal pretensão, o porco-da-bolsinha, com a desculpa de uma pata ferida, encostou-se a um canto do curral, dizia-se que estava farto da chafurdice, ainda houve o regresso da porca cujos quadris davam para alimentar toda a indústria salsicheira, agora envergava um fato-de-treino, uma porca rotunda de fato-de-treino, outra visão dos infernos, de facto, não havia lugar mais próximo daquele curral, começou a correr o boato de um porco-albino para suceder à Peida-Sentada, embora, por ali, quase todos os porcos fossem castrados, como esse albino, talvez fosse mais um boato, também houve quem afirmasse que a queda da Peida-Sentada se devesse a um notório excesso de tramoias, pois, quem sabe? Recorda-se o leitor da amizade da Peida-Sentada com uma Vaca-Estéril que, para compensar a sua secura, adoptara um casal de porcos-pretos? Mais uma extraordinária combinação: uma Vaca-Estéril com dois porcos-pretos! A verdade é que, passado todo este tempo, a porca-preta deambulava pelo curral da Peida-Sentada como se um domínio seu, embora pertencesse de outro curral, houve quem não ficasse muito agradado, as bolotas já eram escassas, a única coisa ali vasta é a imundície, em verdade, a Peida-Sentada vê-se confrontada com os factos da vida: ninguém irá sentir a sua partida, para alguns, a porca já vai tarde, para outros, nunca devia ter assumido o curral, mas uma lição a suína leva: há portas onde nunca devia ter chegado o seu fedorento focinho!


sábado, 8 de abril de 2023


 



É impossível isso da perfeição dentro do horizonte humano, creio, em certa medida, que nós somos o produto mais inacabado do universo.

in Deslumbramento

quarta-feira, 5 de abril de 2023


... iludem-se também os que, no casamento, julgam dizer sim apenas a quem está a seu lado, no fundo, dizem sim a toda a sua biografia: família, amigos, vivências, sonhos, terrores, anseios, saúde, doenças, sonhos, pesadelos…

in Deslumbramento



... a vida é uma longa descida, até à sepultura, enganam-se, e muito, aqueles que equiparam a vida a uma montanha, nada disso, apenas uma longa, longa, descida, por vezes íngreme, outras mais suave, mas o abismo como destino, só tarde nos apercebemos desta realidade...

in Deslumbramento

terça-feira, 4 de abril de 2023

Quem é aquele, parecido comigo, que me olha do fundo de um copo?

 


Há lugares que, sem sabermos muito bem como, se tornam nossos parentes, talvez por, enquanto caminhamos por essas ruas, uma voz, sussurrante ao ouvido, nos aquietasse angústias, ao mesmo tempo nos relembra que, ao menos, por ali, já desejámos amanhãs, ele, neste momento, encontra-se num desses sítios, sentado a uma mesa, suficientemente afastada da entrada, pelo menos o sol não chega e a lua não relembra lar, sabe que inclina a garrafa pela segunda vez, mas não se lembra da primeira, é curioso, a convicção sem a memória, não olha à sua volta, apenas o copo, e a garrafa, apesar da perspectiva geral da sala, desta vez, o copo mais lentamente, quer saborear aquele gosto crescente da distância das coisas, algo em si se aquieta, subitamente, repara no seu olhar aparecido no fundo, não é a primeira vez que se olha, e se estranha, mas, hoje, há uma qualquer diferença, antes evitava olhar-se, mesmo ao espelho nunca, em verdade, se olhou, afinal, observar não é olhar (o que vê ele, após o desvelo do líquido escarlate?), talvez alguém caído num desamparo de beco, sob uma noite sem auroras profetizadas, não se importa, está naquele momento da vida em que, certas palavras, caem do bolso da sua linguagem, e não se preocupa nada com isso, pelo contrário, tudo resumido a um encolher de ombros, afinal, hoje sabe-se mais rico, pelo menos no léxico, aprendeu que certas palavras sabem a universo, pousa o copo, o seu olhar desvanece-se sob o horizonte reaparecido da sala, baixa o rosto e procura-se de novo naquele vazio envidraçado, roda e roda e roda, numa abnegação autista, aquele agora nada, um náufrago conhecido aproxima-se, não de si, mas da bóia da garrafa, depois dos cumprimentos, os tentáculos do social são demasiado longos, senta-se sem convite, da entrada, um latido, como sempre, o cão acompanhara-o até ao possível, perscruta o interior sentado, à porta, no tapete, o náufrago conhecido levanta-se numa contrariedade evidente, é compreensível, a bóia ao alcance da mão e, de repente, forçado a afastar-se, da entrada, agora, apenas os ganidos do cão, uma cena recorrente, o animal a esquivar-se, passeio fora, aos pontapés, por fim, regressa, ofegante, uma boa desculpa para haver gesto sem verbo, senta-se e enche um copo, entretanto desviado do balcão, o outro continua, numa abnegação autista, a rodar e rodar e rodar, ambos naquela praia desolada, apenas despojos a toda à volta, o náufrago conhecido avança para o segundo copo, a garrafa quase um também vazio envidraçado, cada qual naufraga por motivos distintos, e nem sempre são os que levaram a embarcar, entre eles, tirando os tentáculos do social, apenas vozes emudecidas, é o suficiente, aquele não é um lugar de excessos, para isso, basta-lhes contemplar a vastidão de despojos circundantes, as vagas ameaçam tragá-los, não sabem se seria bom, talvez fosse, esquecerem-se, de vez, de si mesmos, de repente, pára de rodar o copo e, num gesto altruísta, manda vir mais uma garrafa, o náufrago conhecido acompanha-lhe o gesto com feições de uma alegria contida, da entrada, uma vez mais, um latido, o tapete, de novo, ocupado, a garrafa pousa na mesa pela mão da empregada, opta por encher, primeiro, o copo do náufrago conhecido, segue-se o seu, finalmente, face àquele cansado e incessante marulhar, o verbo solta-se, e, cada um, relembra os porquês de ter embarcado, certo dia, naquele navio, ou, quem sabe, talvez por lá deambulasse quando procurou por esses porquês, e, a uma mesa, suficientemente afastada da entrada, onde pelo menos o sol não chega e a lua não relembra lar, ouviram-se duas histórias, de quem ousou olhar o longe, mas, por isto ou aquilo, não encontrou o caminho para lá chegar…

sábado, 1 de abril de 2023


 

 Uns procuram, por uma vida inteira, recuperar o seu rés-do-chão alugado, outros vivem existências de montra, a maioria procura incessantemente engordar a carteira, outros buscam protagonismo onde podem, por regra no trabalho, (...) ainda há os que preenchem o vazio do tempo, uma das mais duras batalhas, estes já possuem outra consciência dos factos, estão acima dos anteriormente elencados, compreenderam o logro do circo social, por fim, há os sonhadores, onde me revejo, um instante da existência justifica o todo, e aí procuram regressar a cada instante.

in Deslumbramento

A emoção espera sempre pelo pensar

 


Quando se apercebeu, já se debruçava sobre o filho, no berço, a seu lado, com esta, talvez a quarta ou quinta vez que, esta noite, o socorria de uma febrezita, quem sabe um dente, os braços dela longos, como ramos a sombrear o viajante que se sabe esgotado, naquele socorro espontâneo, por uma luz que só ela via, talvez por a saber sua, a colher de xarope, o choro, ela numa vertigem de cansaço, pelo canto do olho a procurar as horas no despertador, os números, vermelhos, naquela frieza de uma indiferença surda, passavam uns minutos das quatro da manhã, lá fora, percebeu a camioneta do lixo, as tampas abertas e fechadas como se dia, o pára e arranca da viatura, o esforço metálico de içar o caixote, os urros dos homens, tudo numa sequência orquestral, ela a questionar-se do porquê daquela hora, no fundo, aprendera a familiarizar-se com os sons da madrugada, o xarope silenciara a criança, por quanto tempo, questiona ela, daí a pouco mais de duas horas teria de se levantar, desliga o candeeiro, de novo, um pensamento caminha por si, quando se vira para o lado esquerdo da cama, ainda estende a mão, como que para comprovar o frio dos lençóis, deixa-se estar, assim, já se apercebera de que o sono lhe fugira, talvez fugisse daquele frio irreparável, ainda há uns meses, ele orgulhoso com a barriga dela, fotos e mais fotos, calcorreou todos os clichés possíveis, alguns de gosto duvidoso, desde o clássico beijo na barriga, a fotografar a sombra curvilínea, no relvado ao fundo da rua, tudo irradiava um entusiasmo nascido do excesso, contudo, o excesso habita longe da experiência, ele a procurá-la de noite, ela a afastá-lo numa indiferença mineral, mas ele não lidava bem com o não, talvez por ainda ocupar alguns guarda-fatos da casa paterna, nesta altura, um chorrilho de questões precipitava-se de si (Já não me amas? Sabes há quanto tempo é que não fazemos nada? Mas o que é que se passa? Foi para isto que quiseste ter um filho? E eu? Onde é que fico no meio disto tudo?), ela desejava apenas que não se cumprisse um vómito, daí a súplica pelo silêncio dele, pela pacificação da barriga, que a manhã se apressasse, ouviu-o levantar-se, sair e atirar com a porta do quarto, apesar de, lá fora, a camioneta do lixo, as tampas abertas e fechadas como se dia, o pára e arranca da viatura, o esforço metálico de içar o caixote, os urros dos homens, tudo numa sequência orquestral, numa tradução de fúria, desde aí, sempre que se vira para o lado esquerdo da cama, ainda estende a mão, como que para comprovar o frio dos lençóis, na manhã seguinte, encontrou os lençóis e o cobertor dele dobrados no sofá, trabalhava com o pai na venda de automóveis usados, basicamente tinham o dom da subtracção, qualquer carro que adquirissem, por exemplo, com uns 200.000km passava, miraculosamente, a ostentar pouco mais de 90.000,  havia quem os apelidasse de taumaturgos, é possível, o negócio lá ia, ela conheceu-o no aniversário de uma amiga, há tanta coisa que nos demora os gestos em certos momentos, porém, ela só teve um motivo para ali aportar, esta festa foi há mais de dois anos, hoje, àquela hora da madrugada, virada para o lado esquerdo da cama, ainda estende a mão, como que para comprovar o frio dos lençóis, tem a certeza de que se iria, de novo, demorar nos gestos naquele momento do aniversário, afinal, ela só tinha um motivo para ali aportar, ainda não se familiarizara com os sons da madrugada, com colheres de xarope, e já se ouvia no bairro conversas acerca da nova secretária, também ela perita na arte da subtracção, mais de vestuário que de quilómetros, desde aquela noite que ele não abandonou o sofá, de manhã, os lençóis e o cobertor imaculadamente dobrados, ela fingiu não se importar, se ele um pouco mais de paciência, apesar do vómito, da súplica pelo silêncio, do incómodo da barriga, da pressa  pela manhã, talvez arranjasse disposição para, mas não, optou por um atalho, não é de estranhar, afinal, ainda ocupava alguns guarda-fatos da casa paterna, talvez tenha adormecido com a mão num lugar frio, é possível, ou talvez o cansaço a traísse, como certeza apenas uma respiração penosa a seu lado e um choro em crescendo, levanta-se uma vez mais, estende os seus braços, longos como ramos a sombrear o viajante que se sabe esgotado, naquele socorro espontâneo, por uma luz que só ela vê, talvez por a saber sua, há quem veja a sua luz como o despojo de uma derrota, para esses apenas a nuca, nada mais, compreendera, há pouco tempo, que o destino são as sombras ou luz que o passado derrama no hoje.