Livros

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segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Carta sem Selo

 


Ele senta-se a seu lado. Ela permanece impassível, a olhar em frente, de vez em quando a cabeça oscila, como se uma idade de meses, mas não, talvez poucos meses para deixar de ter uma idade, e apenas duas datas, ele olha-a com um carinho preocupado, recosta-se no sofá, pega no jornal, ela com a televisão, mas talvez num qualquer outro lugar, o gato insinua-se pela porta da sala, num silêncio suave aproxima-se, salta para o colo dela, mas sempre a televisão, talvez nem isso, uma qualquer outra coisa, o gato, com o movimento, a descair-lhe a colcha do colo, ele pousa o jornal, antes tem o cuidado de o dobrar, levanta-se, apanha a colcha, e, na ternura singular de um gesto, devolve-a ao seu regaço, regressa ao lugar, a televisão a debitar anúncios, há muito que ele desistira daquele rectângulo hipnotizante, costumava dizer-lhe, antes de ela ser uma ilha, Dali nada de bom… Ao menos o jornal forçava-o a decifrar símbolos linguísticos, sempre era um exercício, de vez em quando, vira-se e diz-lhe Lembras-te de quando… por uma notícia, uma fotografia, uma simples alusão, afinal, a memória é uma velha fonte do verbo, mas ela permanece de olhar vítreo de quem não vê, mas se olha. Quando se tornou numa ilha? Demorou o seu tempo. O tempo das águas a cercarem… Ele, de início, aquém deste dilúvio. Tudo começou, apesar da anunciada tempestade, numa manhã de Verão, ao sair do café lá do bairro, ela a ir contra a porta de vidro, ele a censurar-lhe a distracção, apesar do ferimento evidente, a ampará-la até casa, tudo a suceder demasiado depressa, sim, num repente, o curso da vida leva-nos sem lugar a questões, ele a atribuir a apatia posterior ao embate, depois ela regressou, embora as mãos a traíssem, naquela altura já uma península, ele a não entender o avanço irreversível das águas, talvez por ainda circular, apesar da exiguidade do acesso, até ao seu encontro, certo serão, após as notícias, surgiu-lhe o primeiro vislumbre de água no caminho, indignava-se ele com mais um extenuado aumento de qualquer complemento ao existir, olhava-a enquanto suspendia a questão Sabes do que é que estes tipos precisavam?, e, neste preciso instante, algo se fragmentou no seu interior, ao contemplar aquele olhar estranho, a seu lado, de quem não vê, mas se olha. Ainda insistiu Mas, estás a ouvir-me? balbuciado num terror espantado de quem percebe, de repente, a alteração da geografia a seus pés. No final da viagem, ele teve de aprender a nova passada da sua companheira, enquanto, simultaneamente, a guiava até à pousada final. Demorou pouco até, por fim, se formar uma ilha. Da margem em frente, ele passou a gritar para a insularidade: Lembras-te de quando… O vento, apesar do eco, apenas um silêncio cantado de paragens longínquas. Agora, no rectângulo iluminado, a luz por entre folhas, como se quisesse pousar na terra com uma mensagem da distância. As ramagens a dificultar-lhe o caminho, mas compreende-se a obstinação de cada veio luminoso. Como se fosse da sua essência tanger o solo dos homens. Ele a olhá-la, a sentir-lhe a serenidade no rosto face àquelas imagens, talvez… Ele dobra o jornal, levanta-se, o gato deixa-a, num salto mudo, de novo a manta no chão, senta-se a seu lado, olha-a num sorriso, enquanto lhe afasta uma madeixa caída, sim, há sempre ramagens no caminho…


 


 

quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

 

Uma fotografia é um relógio sem ponteiros



Chegou o dia. Afinal, tudo acaba por chegar. O tempo é um rio sem barragens. Mesmo quando já não o esperamos, algo aporta na margem de nós. Por regra, sempre um escolho do passado, que olhamos num anacronismo indisfarçável, como se uma peça de vestuário que há muito já não nos serve. Esta é uma das ironias da vida: na praia da nossa desolação apenas despojos anacrónicos do que fomos… Sempre o passado. Nunca uma luz a anunciar o amanhã. Ele a olhar o calendário, numa incredulidade singular. Agora, a levantar-se, uma mão, encostada à parede, a firmar o pensamento, por fim, decide-se, não há muito mais que fazer, sim, é isso, terá que optar por aí, que outras possibilidades lhe restam? Fecha a porta decididamente, e estuga o passo rumo ao destino do seu pensar. Àquela hora da manhã, a circulação é ligeira nos corredores largos, ele a empurrar um veículo metálico, de quatro rodas, que teima, numa estranha obstinação, em ir de encontro às prateleiras, como se lhe fosse interdita uma marcha frontal, apenas a ser depósito de sobrevivências, dois litros de leite, duas latas de atum, uma lata de feijão-frade, um dia do calendário vencido, por fim, o corredor que o fizera sair de casa, olha apenas os frascos, nem perde tempo com os números, que desaprendera de contar, à medida que se subtraiam jantares, despensa com horizontes de enlatados, as filas mensais por um carimbo, onde revia os ex-colegas, sempre num pudor de gestos e saudações, porque o contexto outro, ali impressos, desenrosca, um a um, a tampa, sente-lhes a fragrância, por fim, decide-se, num equilíbrio entre a beleza externa e o aroma interior, encaminha-se para a caixa, antes, despe o casaco de forma a obnubilar um aroma de outras paragens, sente que a rapariga da caixa lança um olhar compassivo à vista daqueles oásis, personificados em dois litros de leite, duas latas de atum, uma lata de feijão-frade, perdidos naquele emaranhado metálico deserto, retira, numa lentidão demasiado teatral, os oásis, avança, o casaco ali depositado afigura-se-lhe de uma obscenidade gritante, nem ouve o Bom dia cansado da rapariga, nem repara naqueles gestos demasiado mecânicos para provirem de um ser-humano, talvez ela nem reparasse no casaco, talvez estivesse demasiado ensonada, por uma noite de estudo, certamente quer recuperar a sua humanidade, ou talvez uma maternidade indesejada, uma noite de cólicas e gritos, o sono um horizonte longínquo, ou talvez reparasse no casaco, mas, ao mesmo tempo, compreendesse, quantos casacos não serviram para lhe calar aquela voz faminta? Resolve, com um sorriso, aquietar aquele olhar assustado. Ele incrédulo, perante a serenidade da rapariga. Ela anuncia-lhe o valor a pagar, ele a revirar os bolsos, bastava-lhe moedas, há muito que se familiarizara com estas. Afasta-se, mas antes retribui um sorriso à rapariga, como se de um agradecimento se tratasse, não houve mais palavras, sim, eram, de todo, excedentárias. Quando regressou a casa, já de casaco vestido, ela já havia chegado. Estava na cozinha, a arrumar os pratos no armário de cima. Não se apercebera que ele entrara. Pelos seus gestos, percebeu-lhe o cansaço. Não tanto pelos gestos. Foi mais pela postura dos ombros, havia um grito contido de uma capitulação iminente… Permaneceu, por uns instantes, que sempre demasiado tarde percebemos escassos, a observá-la. A graciosidade de gestos de outrora cedeu lugar a uma eficácia sapiente, no fundo, talvez a existência seja isso: a aprendizagem da lentidão… Ela também lhe faz companhia na fila mensal por um carimbo. Trocara uma máquina de escrever por uma esfregona e panos do pó. E como lhes agradece! Lamenta ainda só ter acumulado a limpeza de três lares. Felizmente todos nas redondezas. Hoje, da parte da tarde, vai renovar o seu anúncio no supermercado. Mas, antes de tudo isso, ele tem de lhe dizer algo. Aproxima-se dela, coloca-lhe as mãos nos ombros, ela sorri, há muito que lhe notara a presença – não fosse a mulher a mãe do homem –, e diz-lhe, num murmúrio, Parabéns, enquanto lhe deposita um aroma de outras paragens nas mãos. O olhar dela oscila entre a frágil delicadeza daquele frasco e as cores demasiado ostensivas dos enlatados. Vira-se para ele. Durante uns segundos, com aroma a eternidade, olham-se. Uma vez mais, e pela segunda vez nesse dia, ele compreende o carácter excedentário das palavras. Por fim, ela abraça-o de uma forma que só ela é capaz de fazer – um abraço que o compreende. Nada foi dito. Mais tarde, nesse dia, ele apercebeu-se de que uma lágrima ficara depositada no ombro do seu casaco. Admirou-lhe o equilíbrio entre a beleza externa e o aroma interior. Nessa noite, saíram para passear de mão dada. Há muito que não o faziam. Ele estava feliz. Ela também. Tinha a certeza disso. Voltaria a fazer tudo de novo. Sim, sem dúvida. Quantas vezes a vida oferece-nos uma certeza eivada com uma fragrância de outras paragens?



 


 

sábado, 27 de novembro de 2021


 ... se há batalha desleal é sempre com os mortos, um duelo votado ao malogro, o morto adiciona a ideia à saudade, há soma mais poderosa?

in Anoiteceu

sexta-feira, 19 de novembro de 2021


 

Todo o ocaso é um melancólico espelho da nossa finitude.

in Olhei para trás e sorri...

quarta-feira, 17 de novembro de 2021

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

Não te esqueças de regressar


 

Chegou aquela hora, que sempre queremos adiar, com mais um copo, uma palavra, um vislumbre, rápido ou demorado, um qualquer passo, de nos sabermos irreversivelmente sós. É, de facto, da nossa essência, esta orfandade devidamente silenciada pelos ululantes gritos do mundo. Ela ainda na cozinha, pano da louça na mão, sempre algo fora do sítio, como se as coisas resistissem, de forma obstinada, a uma arrumação sentenciada. A casa já em silêncio. Apenas um murmúrio visual proveniente da televisão da sala. Não chega para lhe perturbar a corrente do pensar. Mais um garfo, um prato, um copo, aquele banco que insiste em fugir de debaixo da mesa, a porta do armário da louça que não fecha, desliza num lamento infantil, por fim, ela a sós com o pano, nada fora do sítio, talvez ela sem um lugar, ou tê-lo-á perdido? Olha pela janela. O candeeiro, que brota do passeio, não chega para disfarçar a noite. De vez em quando, o som de um carro, um latido de abandono, passos, vozes, a televisão de cima sempre demasiado alta, de novo um carro, ela, agora, com a pano pelo ombro direito, como se um despojo de qualquer coisa de que se afastou, dali vê a estação, sim, dali vê aquilo, embora já veja numa saudade da dor, porque, enquanto a dor gritava mais alto que a sua voz, ele, de certa forma, ainda vivia em si, agora socorria-se daqueles vestígios de tempo perpetuados em rectângulos plásticos depositados em camilhas e prateleiras de armários, para relembrar que o tempo, por vezes, corre ao contrário. Na plataforma da estação começa a haver um ajuntamento de pontos vermelhos tremeluzentes, que vagueiam numa indolência de amanhãs distantes, aproxima-se, neste momento, um resfolgar metálico personificado numa luz ímpar que rompe a noite para anunciar movimento. Ela fecha a janela num repente. Vira-lhe as costas. Retira o pano do ombro, deixa-o sobre a mesa, vai até à sala, o marido dorme, no sofá, enlevado pelo murmúrio visual de uma qualquer esterilidade diária, o jornal a cobrir-lhe as pernas, a boca ligeiramente aberta, como se lhe comunicasse o porquê de silêncios, ela inveja-lhe o sono, a quietude, ela abre mais os olhos do que os fecha, desde aquela tarde, era Verão, há quanto? Sempre há demasiado… Sempre há tão pouco. Daquela tarde, apenas rectângulos de momentos, desta vez, não depositados em camilhas ou prateleiras de armários, mas no seu pensar. E aquele som, como se um grito de fim… Estava naquela precisa janela, a plataforma da estação colorida de um ar marítimo, debruçava-se para o estendal, povoado de vestígios de areia e mar, ouve aquela voz que se alterava ligeiramente sempre que pronunciava mãe, ou talvez fosse do seu sentir, como se repousasse para inspirar, sim, a mãe é sempre uma margem, ela em sorrisos àquela voz, ia sair de novo, um telefonema daquela rapariga, sim, aquela com que se demorava, há já algum tempo, duas ruas acima, ainda não a apresentara, talvez por pudor de um sentir não confessado, mas mãe nunca precisou de confessionário, antes de sair, Até já (Será este o tempo da Eternidade?), capacete branco na mão, ela ainda a completar o puzzle do estendal, a vê-lo lá em baixo, a subir para aquela montada do hoje, um grito nervoso a ecoar pela rua, uma mão que se levanta ao mesmo tempo que um olhar, como se Até já, ela retribui do estendal, num sorriso orgulhoso e comovido pelo seu cavaleiro da contemporaneidade, o puzzle já completo, ela a regressar para dentro, o grito nervoso afasta-se, antes da sala, antes de abandonar, por completo, a cozinha, algo a imobiliza, como se compreendesse o precipício constante de nome vida, ecoou terror daquela estação, pelos ares cálidos do entardecer estival, ela siderada pelo abismo revelado, tiveram de vir buscá-la, dispensou o verbo alheio, o vazio de expressões desconexas e gastas como os paralelos de uma cidade sempre cinzenta. Durante esses tempos, viajou com a surdez. Talvez por isso, ainda viva. Tanto foi dito… A pressa de chegar duas ruas acima, talvez quem se demore num olhar se esqueça do mundo, houve quem falasse da lentidão, sempre demasiada, das cancelas ao descer, mas, quantas vezes transpôs ele aquela barreira? Porventura, demasiadas… Daí o cansaço. Só saiu de si, por essa altura, quando, dias depois, uma mão depositou algo no seu bolso, numa manhã de olhares baixos e terra revolvida. A mão deixara-lhe dois rostos, sorridentes, como se acariciados por uma brisa tépida vinda de um país de nome futuro. Antes de partir, aquela mão ainda apertou a sua. Há lugares onde as palavras não entram.



 


 


 

quinta-feira, 11 de novembro de 2021


... jamais a palavra saberá distinguir o doce ou amargo de uma lágrima...


in Anoiteceu
 

segunda-feira, 25 de outubro de 2021


 ... quando temos um livro aberto, há sempre uma multidão entre nós e o mundo...

in Anoiteceu