Livros

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segunda-feira, 28 de junho de 2021

Só mais um minutinho, por favor


 

Estou… Sim, olá, está tudo bem? Cá vou andando… Esta perna, com este tempo, já sabes como é. Olha, a que horas chega o miúdo? Não, não preciso nada que me faça umas compras. É para me fazer uma coisa no computador. Sim, já começo a ter alguma familiaridade com o abençoado aparelho. Não, não te preocupes. Mas, afinal, a que horas chega o miúdo? Então, diz-lhe para passar aqui pelo tio. Está bem, obrigado. Sim, está tudo bem com a alimentação. Adeus! Por volta das oito, a campainha. Ele, no seu passo entardecido, a caminho da porta. O sobrinho, apesar da faculdade, sempre de pastilha na boca, um mastigar bovino, que não se interrompe para saudar o tio, Olá, tio. A minha mãe falou-me que precisa de uma cena com o seu pc… Ele no aquém da sua ininteligibilidade, e uma questão a emergir: como comunicar com aquela criatura? Apelou à sua experiência, embora de outros tempos e contextos, e lá conseguiu transmitir-lhe o seu pedido. O rapaz, de início, numa mecânica de autómato, como se a máquina uma extensão de si, lá deu andamento às pretensões do tio, depois, talvez fosse uma mera impressão, mas parecia refrear um sorriso no rosto, por fim, Aqui, neste ponto do texto, no que procura, o que quer que eu escreva? O tio, algures entre o constrangimento e o pudor, lá balbuciou: Terna, sensível e honesta… O rapaz, de novo, com as teclas, agora, sem espaço no semblante para sorrisos jocosos, talvez pelos adjectivos a memória da tia, por fim, levantou-se, Já está! A partir deste momento, atenção ao telemóvel. Hão-de começar a ligar-lhe. Dirigiu-se para a porta, mas ambos sabiam que havia algo por dizer, antes de sair teve a deferência de um compasso de tempo, o tio agradeceu o gesto, lá balbuciou novo desejo: Inventa lá uma coisa para a tua mãe. Uma avaria, enfim, tu lá sabes… É para ela não se preocupar indevidamente. Desde que a tua tia partiu, percebes, não é? O que me custa mais são as noites. Já tens idade para perceber estas coisas, não é verdade? Sabes, ninguém caminha para novo. O sobrinho, de ombros encolhidos, parecia compreender, por fim, Não se preocupe. Algo sorriu nele, afinal, talvez fosse possível vencer a passagem sempre demasiada dos dias. Um dia o telemóvel, uma voz que cumpria, pelo menos, os dois primeiros adjectivos, um jantar para se conhecerem, ele a renascer, porém, um receio indizível, a voz talvez demasiado enérgica, como se da tarde enquanto a dele já no ocaso, mas lá partiu à hora fixada, apesar da perna incómoda, e de um temor omnipresente de realizar figuras quixotescas. Mas já não havia sentir nele, tudo em si ecoava. Sim, desde aquela manhã, em que só ficou um respirar naquela casa. No longe das vozes, percebeu a distância de mais de duas décadas. Mas avançou. Ali chegado, não havia outra coisa a fazer. Pelo menos, por uma noite, ia ouvir outra coisa que não ecos do seu pensar. Depois de estratégias defensivas, há quem lhe chame formalismos, segue-se a fase do desvelo. Ela dizia-se separada há dois anos, sem filhos, não, felizmente, não chegara a casar, o sujeito um possessivo ausente, estranha conjugação, pensava ele, viveram juntos cerca de quatro anos, no início sempre bem, mas depois… Como é estranho! Os inícios sempre tão bons, mas depois… Ele observava-a, não lhe apreciou a dicção, mas havia nela um encanto que o seduzia, sim, era um rosto que não o cansava. Nem todos os rostos detêm este mérito. E ela falou, falou, ele longe, a percorrer-lhe o rosto, a demorar-se no olhar, como se uma fonte que aquieta uma sede muito nossa, após o jantar, um passeio, ele sem saber como, à porta do seu prédio, sentiu-se na obrigação de convidá-la, o pretexto de uma bebida, embora, naquela casa, há muito que garrafas só de água, ela cedeu, para seu espanto e desilusão, sim, outros tempos e contextos, a perna, a esta hora já em descanso, hoje ainda em movimento, a iniciar uma súplica dolorosa por repouso, ele a ignorá-la, assim que entraram, ela solícita Vou preparar qualquer coisinha para bebermos, ele nem a ouviu, sempre com a distância do espanto, como se ali não ele, mas um outro. Reconheceu-se pelo canto insistente do joelho. Estava no sofá, e o dia feria-lhe o rosto pela janela da sala. Ainda demorou a compreender-se. Olhou à volta. Tudo parecia como sempre. Tentou erguer-se, mas traiu-o uma considerável vertigem. Deixou-se estar. De onde estava, começou a perceber ausências. Assim que se pôde erguer, iniciou a contagem das partidas: carteira, objectos da tia, alguns electrodomésticos… Estranhou a demora da ira. Acabou por não aparecer. Apesar de tudo, o serão valeu a pena. Há quanto não se demorava num rosto? Agora, já não tem meio de pedir ao sobrinho que lhe escreva: Terna, sensível e honesta… Os dois primeiros ainda os confirmou, foi pena o último não ter havido tempo. Talvez se, um dia, voltar a pedir ao sobrinho para escrever algo, acrescente: Terna, sensível e honesta… Mas fique mais um minutinho, por favor.



 


 


 


 

quarta-feira, 23 de junho de 2021

Bela porque simples


 

O que é a melancolia? Talvez seja quando fechamos a porta de nós, corremos os estores, e refugiamo-nos numa qualquer divisão nossa, à espera de um apelo, sempre amanhã, do mundo. Há quanto ela e a melancolia? Talvez viajem juntas desde sempre. No início, ainda criança, ela era sorrisos e curiosidades, contudo, numa tarde, naquela peculiar hora de expirações e despedidas, em que tudo se suspende num relembrar de uma saudade indefinível, sim, como se de outros reinos e de outros mundos, no fundo, cada ocaso não é uma despedida, mas uma saudação à finitude, ela corria pela praia, de balde plástico na mão, ora conchas, ora búzios, assim que os elementos se tangeram no horizonte, e os céus e as águas pintados de despedida, ela imobilizou-se numa estranha tristeza, talvez compreendesse a sombra que derramava pela areia. O pai olhou-a, e intuiu que, naquele preciso instante, ela convidara a melancolia a sentar-se a seu lado. Ele também o fizera, há muito, num crepúsculo de campos e árvores. Sorriu. Sabia que ela não teria uma jornada plana, a dor seria sua vizinha, mas, em contrapartida, teria, em si, um lugar recôndito sempre à espera, de onde contemplaria as arestas terrestres de uma distância segura. O pai estava certo. É verdade, os pais, quando olham os filhos, relembram a voz dos seus. Daí a certeza dos prognósticos. Mas regressemos aquela criança, de balde na mão, ora conchas, ora búzios, que se imobilizou numa estranha tristeza a contemplar o abraço último dos elementos. Aquela estranha tristeza que sempre a acompanharia. Olhava os outros como se lhes desvelasse a dor. Alguns incomodavam-se. Achavam-na estranha. Chegavam a dizer à mãe: Olha que a tua Paulinha anda triste… A miúda tem um olhar esquisito. Mas a mãe também conhecia o olhar que adormecia a seu lado, as vezes que falava sozinha, embora insistisse Estás a ouvir-me? Não achas que tenho razão?, e o marido sempre distante, com uma orfandade no olhar, sempre na distância, nem ligava às preocupações alheias, imbuído numa reconstrução das coisas muito sua, talvez olhasse a mulher de uma divisão de si, lá muito longe, ela, apesar de tudo, preferia que a miúda saísse mais ao seu lado. Mas sabia não. Já pisava os corredores da faculdade, quando, certo dia, anuncia em casa Vou casar-me! Os pais, que nem lhe conheciam namoros, atónitos, entreolharam-se, Mas… Que disparate é esse? A filha, desta vez, com um olhar resoluto. Quem é ele? Esta questão não se pôde silenciar. Perceberam tratar-se de um colega. Os gestos dela rápidos. O olhar sempre no aquém da circunstância. Nem vislumbres, por esta altura, da velha companheira de viagem. Agora ela estava com a pressa, e esse é o problema da paixão: só vê a pousada, e descura a viagem… Daí os acidentes. A mãe ainda se indignou, procurou chamá-la à razão, chegou a promover um jantar para conhecer o rapaz e as suas proveniências, o pai sempre com uma distância segura das coisas, não descurava os entardeceres na varanda, só, a sentir a pulsação do mundo, e a dor que cercava a filha. Certa manhã, depois de uma noite de gritos com a mãe, ela saiu de mala na mão. O pai nem palavra. A mãe num pranto de raiva, percebera, nessa noite, que a filha entregara o melhor de si a um ainda estranho, através de uma lamela de comprimidos destinados a reter efeitos indesejáveis, não, a mãe não era retrógrada, longe disso, afirmava-se, num orgulho desmedido, como uma mulher de esquerda, mas aquela era a sua menina, e do indivíduo nem o nome, além disso, havia um curso a meio, há um tempo para tudo, ele ainda um incógnito, se tivesse boas intenções, já se tinha vindo apresentar, não, isso não podia aceitar, e aquele silêncio gritado do marido… Meses depois, souberam que a filha somara um apelido. Uma noção de derrota, muito particular, desceu sobre eles. Porque, no fundo, apenas assistiram a factos, nunca puderam digladiar. Temeram pelos amanhãs dela. Mas o pai sabia que, em breve, a campainha de casa iria soar. Já se haviam familiarizado com o vazio daquele quarto da casa, as refeições de apenas dois pratos, uma crescente diminuição do número de frases pronunciadas, quando, após o almoço, a campainha soou numa timidez receosa. Entreolharam-se num silêncio compreensivo. O pai avançou para a porta. Ela, sobre o tapete, de mala na mão, derrota no olhar, e desespero nos gestos. Nada se disse. Ele limitou-se a deixá-la entrar e a segurar-lhe a mala. Ela refugiou-se no quarto. A mãe ainda tentou o verbo, mas o pai conteve-a. Com os dias, conheceram, através de gestos e intenções, o novo apelido da filha. Oriundo de uma humilde família de caseiros do interior, com um invulgar sentido de oportunidade, alimentou-lhe possibilidades, por outras palavras, sonhos, ela correu atrás, nunca dele, mas do possível… Como censurá-la? Agora, era uma ruína, nem ocasos, balde, ora conchas, ora búzios, o pai aquém espanto, sim, previu que a dor não se esqueceria de visitá-la, por fim, a seu lado, esfumado o possível, havia um lugar para a melancolia. Ainda lhe resistiu, uma longa estrada de efémeras tentativas de partida, a mãe e os receios das manhãs, uma vez mais a angústia de lamelas e frascos vazios, agora por outros motivos, ainda a internaram, um par de anos nisto, por fim, num dia já distante, ela olhou para o lado, contemplou a face da melancolia, sorriu-lhe, e compreendeu o destino.


terça-feira, 22 de junho de 2021