Livros

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terça-feira, 23 de abril de 2024

Onde o ar se torna mais leve que o pensar…

 


Do que eu ali mais gostava, era de ir à varanda e me esquecer de tudo a olhar o mar, até de me esquecer, ouvir aquele rumor líquido, incessante, como se nos chamasse para um abraço sempre final, eu limitava-me a fechar os olhos, a ouvir aquele apelo, e sonhava-me, quando me chamavam, para a refeição, arrumar algo, ou qualquer outra coisa, aquele rumor líquido seguia-me os passos casa adentro, sabê-lo ali, à distância de uma varanda, era-me suficiente, ainda me lembro, quando, certa noite, estávamos os quatro à mesa, o jantar quase findo, e o meu pai Este Sábado, vamos ver a nossa futura casa, pelo jeito da minha mãe pousar os talheres, percebi-lhe a surpresa e a indignação, pediu, em voz baixa e pausada, que eu e a minha irmã fôssemos para o quarto e fechássemos a porta, não precisou de repetir, levantámo-nos de imediato e cumprimos a ordem, deitei-me na cama a pensar o amanhã de então, a minha irmã, três anos mais velha, foi para a secretária debruçar-se sobre os livros, sempre assim foi, ela debruçada sobre os livros, eu deitada a olhar sonhos, pouco falávamos, apenas o essencial de partilharmos lar e família, não podíamos ser mais distantes, ou talvez tudo fosse uma perspectiva de então, no fundo, cada um busca o sonho como sabe, ouvimos frases gritadas, mais por parte de minha mãe, de facto, meu pai nunca gostou de gritos, provenientes da cozinha, Agora, vais ver casas e nem dizes nada? Mas que brincadeira é esta? Quem tu pensas que és? Por acaso, és só tu a ganhar? E, já agora, quem te disse que eu quero sair daqui? Que dizes? Que eu sempre me queixei da pequenez desta casa? E da poluição do centro da cidade? Fica tu sabendo, que já me habituei. E quem vive com pouco, a isso se habitua. Sonhos?! Pelo amor de Deus, homem, ainda não cresceste? Os sonhos são para quem tem tempo para dormir. E, há muito, que eu deixei de ter tempo para tal. Esquece isso! Não, não vou ver casa nenhuma! E não se fala mais nisso… O quê? Pensa mas é em juntar dinheiro, não tarda nada a nossa mais velha está na faculdade… E vai precisar que lhe compremos os livros. Mal ou bem, esta casa até fica mais perto dos nossos empregos e das faculdades. A velhice… A olhar o mar… Pelos vistos, agora deste em poeta! Só me faltava mais esta… Voltamos aos sonhos… Não, não me esqueci… Sabes, ando tão cansada… Acho que foi a última coisa que ouvi de minha mãe naquela noite, certo é que, Sábado à tarde, sentou-se, no carro, à frente, ao lado do meu pai, e foi ver a casa, era um prédio de três andares, em frente à praia, estava quase pronto a habitar, faltavam uns pormenores, no contexto de obras, falta sempre qualquer coisa, era uma tarde ensolarada, propícia a passeios, denotei cordialidade nos gestos de minha mãe, longe daquele azedume, demasiado céptico, da noite de gritos, há dois dias, na cozinha, a sala e um dos quartos eram voltados a Oeste, dali em diante, só o mar, assim que assomámos à varanda, eu, pelo menos, deixei de ouvir o vendedor, creio que minha mãe também, em mim entrava aquele rumor marítimo para jamais me abandonar, se me perguntarem pelos passos de minha irmã, nessa tarde, confesso que não me lembro, em mim, apenas o eco de um rumor líquido, quem o sabe ouvir, guarda-o na alma, foi o que meu pai fez, como o compreendo, após a visita, os gestos de minha mãe mais serenos, a voz, um fiozito de anuências, percebi que, à sua maneira, redescobrira o apelo do sonho, demorou o seu tempo, que se me afigurou sempre excessivo, mas mudámo-nos, fomos dos primeiros a habitar o prédio, o meu pai escolheu o último andar, como não podia deixar de ser, do que eu ali mais gostava, era de ir à varanda e me esquecer de tudo a olhar o mar, até de me esquecer, ouvir aquele rumor líquido, incessante, como se nos chamasse para um abraço sempre final, creio que ele também, o centro da cidade ficava a cerca de trinta minutos de camioneta, rapidamente nos habituámos a este trajecto, até gostávamos, regressar a casa, ir para a varanda, e ouvir aquele cântico imemorial, qualquer agrura do dia era logo relativizada, como se um mero objecto fora do lugar, certa manhã, percebemos movimentação no terreno livre ao lado do nosso prédio, quando demos conta, tínhamos um prédio ao lado, em verdade, nem nos importámos muito, ao lado não nos subtraíam, em nada, a vista daquele rumor líquido incessante, até vimos a coisa pelo lado positivo, mais gente, mais iluminação, logo mais segurança, e o vendedor, ainda na primeira visita, assegurara que… O tempo passou, de facto, tudo passa menos o tempo, que continua até um dia, que sempre nos apanha desprevenidos no quotidiano a que chamamos mundo, minha irmã estava no terceiro ano da faculdade, em letras, começava a perceber-lhe a fonte dos sonhos, pois é, cada um tem a sua forma de os buscar, eu indecisa quanto ao curso a seguir, sempre gostei de contemplar amanhãs deitada, meu pai, nesse dia, regressava a casa com uma certeza impressa num papel, minha mãe, à entrada do prédio, com uma derrota impronunciada, via movimentações no terreno em frente, sim, o que fica a Oeste, desde então, todas as noites após o jantar, os meus pais permaneciam na varanda, sentados lado a lado, de porta fechada, a ouvir aquele imemorial cântico líquido, afinal, ao contrário do que proferira naquela noite, minha mãe redescobriu o tempo do sonho, nunca mais se elevaram vozes em nossa casa, demorei o necessário até perceber que meu pai amarelecia ao mesmo tempo que se elevava aquela derrota cinzenta diante de nós, certa noite, uma ambulância teve de o vir buscar, não conseguia disfarçar mais, minha mãe pôs-nos ao corrente da certeza impressa que ele trouxera, há uns tempos, para casa, eu e minha irmã questionámos e questionámos o teor daquelas análises, tudo em vão, há veredictos que nascem demasiado frios, este foi um deles, no dia em que concluíram o terceiro piso da derrota cinzenta diante de nós, meu pai partiu, só minha mãe estava com ele, de mão dada, ouvi as enfermeiras dizer que a viram abrir a janela, sentar-se, e olhar para os lados lá do mar…

domingo, 14 de abril de 2024

Uncas


 

- Sim, tinha nome de índio: Uncas! Uma das personagens do filme da minha vida, quando se colocou a questão do nome, eu nem hesitei: Uncas! E como o nome tão bem lhe assentou, há, de facto, coisas espantosas, talvez por ter tropeçado numa fotografia dele, há uns dias dei comigo consumido em saudades, sabes bem o porquê da sua entrada na minha vida, não vou repeti-lo, como dizia, há uns dias dei comigo consumido em saudades, sinto-lhe mais a falta do que a de muitos ditos humanos que para aqui andam ou já partiram, a verdade é esta, por conseguinte, assumo-a, vejo-o com todas as idades: de cachorro a um cão velhinho e quase cego, teve um fim natural – nem glorioso (como se um fim pudesse, alguma vez, ser glorioso), nem trágico –, partiu nos meus braços, de noite, ainda hoje creio que soube ser a sua hora, foi sereno, à sua volta, entre nós, que assistimos, incrédulos, à sua partida, apenas o vazio e a resignação, desculpa, estou a perder-me, não posso falar do Uncas partindo do fim, a sua essência está no início: era Alegria materializada, ninguém ficava indiferente àquele cão, todo o bairro o conhecia, sinto-lhe mais a falta do que a de muitos ditos humanos que para aqui andam ou já partiram, a verdade é esta, com o Uncas por perto, vazio era um conceito longínquo, talvez por tanto nos dar, não fosse o vazio o resultado da subtracção daquilo que nos legaram, podia contar-te tantas e tantas histórias suas, raras vezes, nos meus passos pelo aqui, senti-me tão compreendido num olhar, porém, bastava os seus expressivos olhos em mim, o abanar da cauda, os passos hesitantes ou em corrida na minha direcção, para logo me ser restituída a fé no mundo, certa noite, numa das suas idas à rua, fugiu, o seu nome gritado, desespero, imagina, quando me ocorreu uma possibilidade: liguei para casa dos meus pais, e, claro, adivinha quem lá estava? Era uma distância de aproximadamente oitocentos metros, porém, o bicho nunca a percorrera a pé, quanto mais sozinho e de noite! E lá estava ele, feliz da vida, ainda eram domínios seus, por ali os seus direitos prevaleciam sobre os deveres, basta relembrar que não havia casotas, dormia, como qualquer outro elemento da família, numa cama, não comia em tijelas, petiscava, sempre a generosa mão de meu pai, que, durante anos, afirmara não querer cão ou gato, mas não resistiu a Uncas, em verdade, quem lhe resistia? Só mesmo quem não possuísse o símbolo do amor a bater dentro do seu peito, houve até quem adquirisse cães, numa ansiada busca por um protagonismo jamais seu, até os baptizaram com nomes fajutos, Fungas, por exemplo, mais deprimente é impossível, bem o sei, só me suscitou bocejos e indulgência, nada mais, nos primeiros anos, quando vinha da rua, era vê-lo em corridas alucinantes pela casa, parecia percorrer um circuito, uma, duas, três, quatro, sala, sofá acima, cozinha, um dos quartos, de novo, sala, sofá acima, cozinha, um dos quartos, terminava invariavelmente debaixo da mesa da sala agarrado à sua… Bolinha! Quando se lhe soletrava bo-li-nha, as orelhas em sentido, a cabeça inclinada e o mundo em suspenso, acreditava, e acredito, que efectivamente a realidade se suspendia à espera da sua corrida em busca da bo-li-nha, aprendeu rapidamente as elementares regras de higiene, a sentar, dar a pata, o que é a rua, sem aquela pedagogia básica da recompensa, é natural, o Uncas não era básico, felizmente anos-luz de tal conceito, outro dos episódios que te posso relatar, para perceberes a sua singularidade, foi aquando de uma ida aos correios, de repente, os céus resolvem limpar da terra os pecados do homem, ao regressarmos ao carro, no meio daquele dilúvio, julgámos que não saíra, chegados a casa, Uncas, Uncas,  Uncas, nada, uma vez mais, o seu nome gritado, desespero, imagina, quando me ocorreu uma possibilidade: regressar ao estacionamento dos correios: ali estava o bicho, sob aquela chuva inclemente, reconheceu, de imediato, o carro, a cauda em velozes saudações, até hoje ainda não encontrei tamanha fé num denominado ser-humano! Aquele cão, naquela tristonha tarde de chuva, iluminou o mundo com um acto de fé singular: sabia que os seus donos (sim, isso mesmo, donos, na minha prosa a estupidez e cretinice do hoje jamais têm porta de entrada!) regressariam para o buscar, se, de dentro do carro, o visses, sentado, imóvel, estaria ali, pelo menos, há hora e meia, a olhar para o fundo da rua, não encontro palavras para ilustrar devidamente esta cena, às vezes questiono-me quantos carros por ali não teriam passado, no entanto, ali se manteve, impassível, sabia bem quem eram os seus, o verdadeiro amor: uma soma de: abnegação, esperança e fidelidade… Continuo-o  a vê-lo com todas as idades: de cachorro a um cão velhinho: sinto-lhe mais a falta do que a de muitos ditos humanos que para aqui andam ou  já partiram… Se subtraía tempo de vida para o rever? Alguma dúvida?! O que eu não dava para sentir aquela Alegria a correr na minha direcção! Sabes uma coisa? Há palavras que não mais repeti. Quais? Bo-li-nha, por exemplo! Pertencia-lhe. Há coisas que definitivamente pertencem ao contexto, devias saber isso, fora dali soam a absurdo, havia um filme, da minha infância, com um título muito curioso: “Todos os cães merecem o céu”; isto descansa-me, acredito que esteja num bom lugar e à nossa espera, para quando chegar a nossa hora, do outro lado ser recebido por uns expressivos olhos, o abanar da cauda, os passos hesitantes ou em corrida na minha direcção, para logo me ser restituída a fé no mundo e, por fim, afirmar que valeu a pena cada pegada deixada para trás.

 


 


 


 

domingo, 7 de abril de 2024

E quando dei por mim, o chão cobria-se de folhas

 


Antes o Verão era mais longo, antes tudo demorava mais, um pouco como se as coisas caminhassem em passos de minhoca, num precário equilíbrio, sobre um caule numa demasia oblíqua, de facto, antes tudo demorava mais, sobretudo o Verão, acordava-se e havia uma compreensão, após inspirar a manhã, que diante de nós, aquele dia, seria a eternidade, não se percebia que as sombras mudavam de lugar, que a luz se ia alaranjando com o decorrer das horas, a sucessão das refeições, quando a voz da minha avó, proveniente da cozinha com aroma a lareira, preenchia os ares, a chamar para o almoço, uma pausa no reino do brincar, a tomada do castelo adiada por um pouco, ou o assalto ao forte pela tribo índia, em verdade, de estômago vazio não convém abraçar este tipo de empreitadas, uma pausa na eternidade, a corrida obediente, o aroma a lareira a intensificar-se, o banco retirado de debaixo da mesa com o pé, logo as regras a descerem sobre mim, um chefe índio, Por acaso, já lavaste as mãos? Eu a pensar, repito, somente a pensar, Por acaso, sabe que se está a dirigir a um chefe índio? Lavar as mãos? Para quê, se ainda tenho uma batalha pela frente? Enquanto pensava, repito, somente pensava, já as minhas mãos, cobertas de sabonete, debaixo de água fria, como sabia bem nesses dias que ensinavam, num além-dicionário, o significado da palavra calor, que jorrava abundantemente da torneira, e naquele mundo, uma casa aqui, outra acolá, verde a separá-las, na distância, o rio, uma questão nascia-me Onde nasce o rio? A resposta eivada de uma pertinência cerimoniosa Provém das alturas, a princípio, eu soterrado de imagens e de ainda mais questões, até que, num compasso teatral, a luz final, Nasce na serra, além, na distância, seguia o gesto, materializado no braço magro, a mão ossuda, mas elegante, por fim, o indicador levantado, quase tangia a serra, que preenchia o horizonte a leste, insistia, Estás a ver? Eu, perante aquela explicação, nada via, porque tudo sentia, senti-me transportado para a génese pétrea daquelas águas, tantos anos depois, ainda não encontrei melhor lição de Geografia, Estás a ver? Meu Deus, como podia não ver? Ainda hoje, quando me perco nos, cada vez mais, enviesados caminhos do mundo, olho esperançado que um braço magro, uma mão ossuda, mas elegante, com o indicador levantado, me diga Estás a ver? E eu respondo, na humildade de quem se perdeu, DesculpeComo podia não ver? Após lavar as mãos, as panelas, ainda ao lume, aguardavam pela chegada do meu avô, eu serenamente sentado à mesa (Há quanto tempo não me sento serenamente à mesa? Ou em qualquer outro lugar?), a pensar numa forma de derrubar o forte, na tarde que, antes de chegar, já se espreguiçava na indolência do estio, hoje só compreendo a tarde quando já me acena amanhãs, e nunca mais vi panelas ao lume a aguardarem a chegada do meu avô, talvez, por isso mesmo, eu nunca mais tenha visto panelas ao lume, também nunca mais me disseram, antes das refeições, Por acaso, já lavaste as mãos? E como lhe sinto a falta, logo eu que tão distraído sou, talvez se, num qualquer lado do hoje, reencontrasse uma água fria que tão bem sabia naqueles dias que ensinavam, num além-dicionário, o significado da palavra calor, que jorrasse abundantemente da torneira, talvez aí, eu me sentasse a uma mesa com serenidade, no entanto, percebo-me hoje mais inquieto, o amanhã ainda não veio, mas entra-nos sucessivamente o seu receio, assim, já não há pausas e menos ainda reinos de brincar, por todo o lado, insistentes sombras de inquietantes nuvens, para onde quer que olhemos, a verdade é que antes o Verão era mais longo, antes tudo demorava mais, percebo-me, cada vez mais, um habitante da dúvida, e, não sei porquê, volta e meia, dou por mim a olhar para leste, não sei se de manhã ou de tarde, mas o horizonte longe, tão longe, de serras e de alturas, se ao menos, perto de mim, um braço magro, uma mão ossuda, mas elegante, com o indicador levantado, me dissesse, uma vez mais, Estás a ver? Talvez aí eu tangesse serenidade.


 


 

domingo, 31 de março de 2024

O futuro é um lugar lá atrás

 


Estás mais gordinha… Embora a frase tenha alguns dias, continua a ouvi-la com uma nitidez de presente, antes de se deitarem, ela ainda em esforços para apimentar o casamento, ele já deitado, de portátil no colo, a trocar de roupa numa lentidão gritada para o seu olhar, que, a dada altura, apenas numa observação seca Estás mais gordinha, a princípio, ficou incrédula com a observação, é o que sempre acontece quando os nossos ouvidos estão sentados com o nosso pensar, depois olhou-se ao espelho, olhou-o, olhou-se de novo, por fim, após a congestão desta frase, optou, pelo menos, em tentar ferir-lhe o ego Deixa lá que tu estás muito bem… Se passares diante de uma maternidade, ainda te metem numa marquesa, para seu descontentamento, compreende que ele nem uma sílaba reteve, no fundo, a sua observação (Estás mais gordinha) foi genuína, imbuída, até, de uma certa preocupação, não sabe se, por isso mesmo, os seus esforços de lentidão, na troca de roupa, condenados ao malogro, o olhar dele avidamente com o ecrã, pousado no colo, por vezes, ela ainda O que é que tu tanto aí vês? A resposta não tardava muito Porquê? Estou aqui, não estou? De repente, ela a pensar que, demasiadas vezes, estamos tão longe, se alguma vez sonhava que ele, um dia, Estás mais gordinha, teria de fazer qualquer coisa, sempre que se aproximava para lhe ver o ecrã, ou fechava a tampa ou um dedo mais rápido que a decisão dela logo fazia surgir uma qualquer banalidade, como se a meteorologia ou uma qualquer perpétua crise, neste ou em qualquer outro país, fosse motivo para lhe reter a atenção por mais que escassos segundos, tempo suficiente para carregar num botão e ir em busca de um qualquer interesse seu, não, não podia ser, tinha de mudar algo, num lugar muito seu, sabia que ele não mentira, até fora, de certa forma, polido, não por acaso o diminutivo, mas ao feminino custa sempre ouvir (Estás mais gordinha), polida ou grosseiramente dito, o feminino nasceu para ser cantado, é da sua essência, quem não percebe isto, não percebe a vida, aproveitou a hora de almoço e entrou numa loja de desporto próxima do trabalho, a princípio, a medo, no desejo de uma certa invisibilidade que logo lhe foi cortada quando, um dos empregados, um rapaz com idade para seu filho, lhe anunciou num tom que se lhe afigurou obscenamente alto Se precisar de ajuda, disponha, ela a pensar que só precisava de silêncio e discrição, somente disso, no entanto, algo latejava em si, e não queria, de forma alguma, voltar a ouvir Estás mais gordinha, claro que podia argumentar com os dois filhos, com o facto de já não ser nenhuma miúda, o emprego, a casa, mesmo assim, quem dera a muitas, contudo, num lugar muito seu, não obstante o diminutivo, sabia que ele não mentira, assim sendo, virou-se para o rapaz, do tom obsceno, e disse-lhe Sim, preciso muito da sua ajuda. Não percebo nada disto, tenho a carteira curta, as formas em crescendo, o que me aconselha, de roupa e calçado, para não me sentir deslocada num ginásio? Entre provas e contas, demorou mais que a hora de almoço, mas saiu com dois sacos na mão, faltava o último passo, no final dessa tarde, inscreveu-se no ginásio que havia relativamente perto de sua casa, andavam lá duas vizinhas há algum tempo, mas, como eram domésticas, iam durante a manhã, resoluta, anunciou ao que vinha, preencheu os inevitáveis papéis, a habitual rapariga da recepção, com voz melosa e sorriso postiço, Quando é que a senhora quer começar? Ela, sem lugar a réplica, Hoje! Surpreendeu-se, pela prontidão, pela firmeza, por não esperar pelo pensar, foi conduzida ao balneário, por outra rapariga de voz melosa e sorriso postiço, um clone da primeira, que lhe explicou a mecânica de balneários, cacifos, cartões, e demais, olhou-a e percebeu que ela podia estar a debitar algo acerca de uma qualquer crise agrícola ao longo da história, ou da crescente infertilidade no mundo ocidental, que a expressão não se lhe ia alterar, trajada com o conteúdo dos dois sacos que lhe levaram a hora de almoço, entrou numa sala com ressonâncias de arena secular, ampla para o olhar, mas exígua para o movimento, de um lado, havia gente a arfar em cima de bicicletas, uns mais genuinamente, é certo, outros numa teatralidade mais para o interior do que para a envolvência, aquela, tal como a bicicleta onde estão sentados, que nunca irá alterar a paisagem do existir, do outro lado, sujeitos urravam agarrados a barras e halteres, assim que os pousavam, com um estrépito desmesurado, corriam para o espelho mais próximo como se afogados por oxigénio, aí chegados, em poses de uma artificialidade vizinha do absurdo, olhavam-se embevecidos, como se a imagem reflectida fosse o brinquedo ansiado, é curioso, não trocavam grandes impressões entre si, pelo contrário, tudo se concertava numa síntese de esgares, ruidosas expirações, e dos tais urros que atingiam, por vezes, um esplendor operático, após algum tempo, uma rapariga, também com idade para ser sua filha, acabou por vir ter com ela, não sabe porquê, talvez fosse uma impressão errónea, mas sentiu que a olhava como se fosse mais uma efémera passageira, talvez pela cassete monocórdica, talvez pelo cansaço que lhe percebeu nos gestos e no rosto, depois de um questionário escrito, hábitos, estado geral de saúde, outros aspectos que considerou estarem nos antípodas de uma sala com ressonâncias de arena secular, perguntou-lhe Muito bem! Para já, o que pretende? Nesse momento, pensou-se, procurou um ponto indeterminado, para não ter que sustentar o olhar da rapariga, e disse baixinho Não quero que me digam que estou mais gordinha…

quinta-feira, 28 de março de 2024


 ... vivemos a era onde mais se comunica e menos se dialoga...

in O lento esvoaçar das cortinas pela manhã

domingo, 24 de março de 2024

 


Morrer talvez seja fechar os olhos e esperar por um sonho…

in O lento esvoaçar das cortinas pela manhã

segunda-feira, 18 de março de 2024

Pois é…

 


O que fica do ontem? Andava ele com esta pergunta dentro de si, um pouco como aquelas melodias que não nos largam, por muito que queiramos, quando decide regressar àquele lugar, no fundo, não interessa qual, porque todos temos um lugar nesta vida, em certo momento, é inevitável, temos de nos apear da viagem e fechar os olhos para que o sonho possa esticar as pernas, como dizia, retorna a um espelho entretanto anoitecido, um banco à beira-rio, nem uma brisa a relembrar outras paragens naquele final de tarde, tudo num estatismo condizente com a desesperança que há muito aportara no horizonte da indizível mágoa do seu olhar, sentado a um banco, a olhar a vazante, que levanta aquele típico aroma a lodo e desolação, em baixo, igualmente sentado, também a olhar a vazante, como se numa expectativa muda, a companhia que lhe resta, por outras palavras, o seu último amigo, ambos olham os passeantes que ali chegam com o Verão, sem nunca perder do horizonte a vazante, famílias de estrangeiros com aspecto de camarão, a falarem a sua língua com a naturalidade de quem não parece ter-se feito à estrada, entre gelados numa mão e cervejas na outra, casais de cá, a sentir a leveza dos bolsos – sinal de que outros indevidamente ficam pesados –, num esforço patético de transparecer um relaxamento, a cada passada, que roça o ridículo pela artificialidade, acrescente-se a este quadro as indumentárias, não só pelo anacronismo como pelo desajuste com as formas que pretensamente deviam cobrir, pais que tentam recuperar, naqueles escassos dias, em esforços inglórios, a cumplicidade dos filhos, é vê-los com gestos mais rasgados, a voz mais expansiva, a chutar uma bola, percebe-se, ao primeiro toque, como o objecto lhes é estranho, os filhos, regra geral, transparecem um primeiro sinal daquela intromissão, mas a flagrante cegueira dos pais associada à inabitual ociosidade, proporcionada por estes dias de Verão, concorrem para cimentar um muro geracional, uma história deveras cansada de tão repetida, as mães, por seu turno, concorrem com as filhas em decotes e na escalada das saias, daí ao ridículo, em alguns casos, nem um salto, pois a flacidez ameaça irromper por todos os lados e precipitar-se até à calçada, a gravidade sempre foi uma coisa tramada, no entanto, elas sentem-se rejuvenescidas (que fazer?), e lá vão no seu trajecto, julgando que os olhares mais gulosos lhes são dirigidos, em certas alturas, tudo serve para acariciar o ego, quando, em verdade, caso lhes sobrasse um pouco de atenção, perceberiam a direcção da gula ocular, centrada na jovem que caminha a seu lado (que fazer?), outras famílias, se assim se pode chamar a um conjunto de indivíduos que partilha grande parte do mesmo espaço de existir, passam diante deles com olhares e gestos vertidos para um rectângulo iluminado, volta e meia param, vociferam impropérios, geralmente com a voz elevada, onde duas palavras se repetem numa cadência obstinada, rede e perda, é curioso, há neles uma nítida consciência de que não são ouvidos, no sentido de alguém os entender, mas insistem, enquanto rede e perda lhes sai naquela cadência obstinada, em olhar à sua volta, como se súbitos desalojados por ordem de razão desconhecida, subitamente, o vociferar impropérios cessa, rede e perda pertencem ao passado, retomam o passo enquanto olhares e gestos se vertem, de novo, para um rectângulo iluminado, ele, sentado no banco, percebe que caminham na direcção da vazante, olha-os e sabe que é tão difícil sentarmo-nos diante de alguém e dizermos quem somos, não aquilo que a sociedade nos destinou, porque isso, em verdade, é sempre a última coisa que somos, em certa medida, compreende a invenção do rectângulo iluminado, é a máscara do hoje, sempre foi mais fácil escondermo-nos, olhar o outro nos olhos, por momentos, despir as palavras, outra máscara, e dizermo-nos, requer saber e paciência, tão longe de rede e perda, aproximava-se a hora de regressar, sabia-o quando a brisa de Oeste lhe sussurrava madrugada na face direita, a companhia que lhe resta, por outras palavras, o seu último amigo, já se levantara da calçada, antes de se erguer do banco passa-lhe a mão pela cabeça, Tu não tens problemas desses, não é? De te esconderes? Onde estiveres, estás por inteiro… Nisto, o seu olhar com a vazante, um ramo de flores na mão, nem lhes sabia as cores, por dentro afogava-se em amor, mas por fora sabe que é tão difícil sentarmo-nos diante de alguém e dizermos quem somos, ela dera sinais de cansaço em pequenos nadas que sempre são o tudo, ele percebera-o, no entanto, por dentro afogava-se em amor, mas por fora sabe que é tão difícil sentarmo-nos diante de alguém e dizermos quem somos, por fim, levanta-se, a companhia que lhe resta, por outras palavras, o seu último amigo, à sua frente, toma a direcção do lar, ele segue-o, mas sempre a olhar a vazante…

sábado, 9 de março de 2024

Da Indignação


 

E que dizes da incessante repetição dos dias? Levantar à pressa, calar o despertador, pequeno-almoço ritmado pelos ponteiros do relógio, segue-se o trânsito ou os transportes-públicos, quantos anos não se esvaem nesse pesadelo materializado, trabalho ou lá o que essas tarefas impostas para garantir a sobrevivência se chamem, almoço ritmado pelos ponteiros do relógio, mais uma tarde de trabalho ou lá o que essas tarefas impostas para garantir a sobrevivência se chamem, de novo, agora para o regresso a casa ou lá como lhe queiram chamar, o trânsito ou os transportes-públicos, quantos anos não se esvaem nesse pesadelo materializado, jantar cadenciado por bocejos e um pânico calado, num canto de nós, por se vislumbrar o negrume do dia seguinte, um decalque deste, mulher ou filhos, se os houver, em tentativas de apelar a atenção, paciência falecida (que fazer?), o sofá como porto-de-abrigo após o jantar, assiste-se a uma qualquer boçalidade, apesar das ameaças de queda devido ao sono, após um dia assim ninguém quer coisas que obriguem a pensar muito (não é verdade?), a boçalidade sempre distrai e, no fundo, todos gostam, ao menos, nesses instantes, a mulher em silêncio, por fim, a cama, não se pode esquecer dos comprimidos que abrem a porta ao sono, de outra forma, só o revirar-se indefinidamente, a mulher a seu lado, entre eles apenas um sumido “Até amanhã!”, quando, há uns anos, não tantos assim, tardes e tardes de êxtase, um arrebatamento até ao infinito da vertigem, os lençóis como testemunha de que ali se cumpriu paixão, hoje apenas um sumido “Até amanhã!”, costas voltadas, a espera pelo sono, e o terror por tudo se reiniciar, os fins-de-semana, dois dias que passam entre um descer e subir de pálpebras, numa deriva, não há ânimo para mais, a energia rareia, entre compras, um café ali, outro acolá, de vez em quando, ao passar por um lugar ou ouvir certa melodia, o passado a irromper pelo pensar, a saudade da felicidade, e o hoje é isto, entre  murmúrios (“Não, não foi uma ilusão, eu vivi aquilo e tão feliz fui… Ao menos tenho, em mim, essa certeza!”), o lar não convém sair do horizonte, pois a fadiga é muita, muito, muito, a custo, lá chegam as férias, a inevitável discussão pela escolha do destino, a calculadora entra ao serviço, lá surge outro pesadelo materializado, o aeroporto, a inexplicável imposição de chegar com três horas de antecedência, quantos anos por ali não se esvaem, espera, mais espera, ainda mais espera, bichas e bichas, malas e malas, pega agora, carrega para ali, vai para acolá, saca da carteira, mais à frente, de novo a carteira, um cartão com o teu nome e foto, como se aquilo fosses tu, inpeccionam-no com olhar cirúrgico e desconfiado, olhos no cartão e em ti, cartão de novo e em ti, “Pode passar”, corredores infinitos, as rodas da mala, se as tiver, a chiar canseira, chegas a um ponto em que tudo tens de beber e comer, ordens de rosto sempre velado assim o impuseram, o problema é não teres fome nem sede, no entanto, o desperdício salta-te à vista, e os escrúpulos pela fome deste lado das coisas, assim bebes sem sede e engoles sem fome, de novo a carteira, um cartão com o teu nome e foto, como se aquilo fosses tu, inpeccionam-no com olhar cirúrgico e desconfiado, olhos no cartão e em ti, cartão de novo e em ti, “Pode passar”, por umas janelas numa demasia oblíqua espreitas o pouco de mundo oferecido, a asfixia daquela artificialidade faz-se sentir, olhas com ânsia cada cilindro com asas e pensas qual te vai levar para o sonho comprado, todavia segue-se mais espera, uma oração para que não haja atrasos, já lhes conheceste o fel, por fim, chegou a hora, antes, porém, tens de ouvir oficializar a coisa por uma voz, nada, só silêncio, o tempo continua, entraste ali precisamente há mais de cinco horas, lá surge alguém a anunciar o óbvio e tão ansiosamente esperado, o lugar onde agora estás, a porta que se vai abrir para o cilindro com asas, bichas, mais bichas, os bilhetes, um cartão com o teu nome e foto, como se aquilo fosses tu, inpeccionam-no com olhar cirúrgico e desconfiado, olhos no cartão e em ti, cartão de novo e em ti, “Pode passar”, o tão ansiado cilindro revela-se um lugar acanhado, turvo, à volta só gente a levantar malas para enfiar nos compartimentos superiores, um infindável barulho das portinholas a abrir e fechar, abrir e fechar, finalmente sentam-se, até os dedos se entrelaçam, trocam olhares que segredam “Cá vamos nós rumo ao paraíso”, entretanto, uma certeza nasce: o desconforto dos assentos; lá se contorcem nos lugares, na procura de uma posição que mitigue dores antigas, quando, um pouco à frente, no corredor, veem a hospedeira-de-bordo numa mímica, cansada e ridícula, a ilustrar uma extenuada mensagem, emitida por uma tão impessoal voz, subitamente o pânico, as costas do assento da frente quase de encontro ao seu rosto, o anafado que lá se sentara resolveu espreguiçar-se, incidentes, pois, incidentes, a aterragem, a espera pelas malas e malas, pegar, levar, entregar, o autocarro para o hotel, a certeza de que dispõem de poucas horas até ao amanhecer, mas não se pode desperdiçar o pequeno-almoço, o fatídico despertador, uma exclamação impronunciada pelo pensar (Até nas férias! Até no tal paraíso!), sob o domínio do sono encaminham-se lentamente para a sala-de-refeições, à sua espera a caos, um vai-e-vem de gente com pratos, sem pratos, todo à volta de largas mesas com diminutas quantidades para um potencial pequeno-almoço, e, claro, bichas e bichas, uma prece para que o tempo lhes permita a sonhada praia, de repente, chegou o dia de regresso (“Mas como? Já?! E gastámos a totalidade dos subsídios! Pois foi… Mas valeu a pena, não achas? Confesso que não sei… Passou tão rápido! Parece que chegámos ontem e hoje estamos a ir embora… Estivemos uma semana, mas pareceu um dia…”), e lá vêm eles, tudo de novo, o aeroporto, as horas infindas perdidas, as malas, tira cartão, arruma cartão na carteira, o desconforto dos assentos, a ridícula mímica da hospedeira-de-bordo a ilustrar uma extenuada mensagem, emitida por uma tão impessoal voz, agora no sentido contrário, rumo ao seu quotidiano, uma questão demasiado subterrânea a levantar-se-lhes, ela logo a silencia, ele talvez não, uma vez que no seu horizonte já vislumbra um pesadelo materializado, trabalho ou lá o que essas tarefas impostas para garantir a sobrevivência se chamem, e enquanto se remexe, no desconforto daquele assento, na procura de uma posição que mitigue dores antigas, as palavras chegam-lhe ao penar, ordenam-se na forma de uma questão: “O que ando aqui a fazer?”

terça-feira, 5 de março de 2024

NASCER


 

PEDRO DE SÁ



NASCER

 

 

Just a perfect day
You made me forget myself
I thought I was someone else
Someone good

 

Lou Reed (Perfect Day)



ÍNDICE


 

 


Perder………………………………………………………………………….

Procurar……………………………………………………………………….

Encontrar?…………………………………………………………………….

Epílogo…………………………………………………………………………


Perder


Pensei em escrever-te uma carta-de-amor, mas não sei para onde enviá-la, procurei-te nas possíveis formas do hoje e nada, até ajuda pedi, sabias? E nada! Uma das frases que mais tenho repetido ultimamente (“Vivemos tempos estranhos!”) regressa-me, parecemos estar tão próximos, ao alcance de um écran rectangular que levamos no bolso, porém nunca estivemos tão distantes, desta verdade ninguém me demove, e eu não te encontro, quando a realidade vira costas aos nossos desejos, só resta recriá-la, aprendi há muito, lembra-te da minha primeira frase (“Pensei em escrever-te uma carta-de-amor, mas não sei para onde enviá-la”), compreendi, recentemente, que te tenho procurado de todas as formas possíveis, um dia talvez te conte, como demorei a chegar a esta conclusão, e os equívocos, meu Deus! Os equívocos! A orfandade que me regressava, a orfandade de ti! Tenho tanto para te dizer, que nem sei por onde começar, espera, lembrei-me, vou falar de arrependimentos, há quem ouse afirmar de nada se arrepender, pois, não pode haver burro maior, logo eu que me vergo ao peso dos meus arrependimentos, e tu és o maior deles, por numa certa madrugada… É sobre isso que te quero falar, há uns tempos disseram-me que tenho uma alma anoitecida, como podia ser de outra forma, se não sei por onde andas, e não falo de saudades, mas de Viver, hoje vamos regressar àquela madrugada, se há momentos que definem o rumo de uma existência esse figura  entre os principais da minha, e da tua, espero, aqui chegados, assumo toda a responsabilidade pela minha enormíssima estupidez! Não concebo outra forma de agir, sem ser a assumpção do erro! Não te peço desculpa, escrevo-te uma carta-de-amor, como dizia, numa existência há quatro ou cinco momentos que definem o seu rumo, eu intuí, nessa madrugada, que vivia um deles, algo em mim, muito subterraneamente, alertava-me para esse facto, porém, eu relativizei, o lugar do ontem é o amanhã - que verdade mais dolorosa! Deixei-te à porta do teu prédio e corri para o meu, mochila, roupa, o suficiente para gasolina e comer, já reparaste: esta é uma das delícias do ontem: basta pouco para sermos felizes, no fundo, basta sermos, como, a dado momento do nosso trajecto, trocamos o ser pelo parecer? Hoje, aquando de uma viagem, logo uma panóplia de utensílios designados de imprescindíveis, submergimos nas correntes e, na maioria das vezes, nem nos apercebemos, basta atentar naquele peculiar rectângulo onde tantas almas se aprisionam, há somente duas décadas nem vislumbres de tão triste realidade, nessa noite, enquanto deambulava por casa, com receio de me esquecer de alguma coisa, uma questão levantou-se-me: quantas vidas pode conter uma existência? Encosto-me à parede e rumino a pergunta, de facto, cedo me vi perante as questões essenciais desta coisa de nome viver, vi-me a descer, a correr em direcção ao teu prédio, do outro lado da rotunda, a madrugada chamava-nos, há coisa mais bela que o apelo da madrugada? Mas também me vi a sentar na cama, a telefonar-te, com a sofrível desculpa de um fraco  que prefere a segurança de um amanhã sabido à incerteza do apelo da madrugada, contudo, resolvi materializar o pensamento: vou escrever-te uma carta-de-amor; após juntar o necessário numa mochila, adeus aos pais, desço, fico, durante um pouco, a sentir a noite, talvez por ser uma criatura diurna, este fascínio, agora, pelo desvelar dos encantos nocturnos, um silêncio descido sobre as coisas do mundo, como se este não fosse o lugar do sofrimento, meu Deus, este é o seu habitat natural, enfim, de vez em quando, uma viatura ao longe, logo se me levantam as habituais questões (De onde vem? Para onde irá?), como se uma decorrência natural, olho as janelas iluminadas em volta, desde miúdo um irreversível enlevo, talvez pelas possibilidades silenciadas (Quem seria eu se ali tivesse nascido? Será que por aí mora a felicidade? Haverá menos silêncios entre aquelas paredes?  Moram ali as minhas vidas sonhadas?), inspiro a madrugada, vou ao teu encontro, sim, repito, vou até ao encontro, não fosse esta uma carta-de-amor que ficou por escrever, enquanto caminho, compreendo que, neste espaço do existir, podíamos ter sido tantos (bastava um olhar mais demorado ali, muito menos estupidez acolá, saber ouvir os silêncios gritados entre gestos e olhares), é uma análise dolorosa, sem dúvida, porém, necessária, a dignidade nasce da assumpção do erro, e só não erra quem não respira, olho o mundo como uma imensa manhã, há poucas sensações que se lhe igualem, o mundo como uma imensa manhã, a meio da rotunda, vislumbro a tua silhueta em contraluz, já me aguardavas, de capacete na mão, o mundo como uma imensa manhã (Há coisa melhor?), acelero o passo, simultaneamente a alma também me amanhece, para disfarçar o meu notório entusiasmo pergunto-te  (“Estás pronta?”), respondes com o teu característico sorriso rasgado (“Sabes que sim.”), há quanto não ouço uma  resposta que se aproxime (“Sabes que sim.”), agora que penso nisto, curioso, há quanto não me perguntam (“És feliz?”), uma questão simples, curta, objectiva, porém, ninguém a coloca, em verdade, nunca me colocaram, pelo menos a minha memória não alcança tal (“És feliz?”), por  que será? Questiona-se tanta coisa, no entanto, descura-se a essência: És feliz? Antes do capacete, inspiro, não por acaso, tinha deixado a moto no teu prédio, não, desta vez não ia telefonar-te, com a sofrível desculpa de um fraco que troca a incerteza do apelo da madrugada pela segurança de um amanhã sabido, subo, tu a seguir, ajustamos as mochilas, uma vez disseste-me que adoravas andar de moto comigo, sabes, sempre foi a ti que eu adorei ter-me abraçada, denotava-te entusiasmo, afinal, íamos para longe das nossas agruras, descemos até à bomba-de-gasolina, a meio daquela cansada avenida, embora naquela noite se nos afigurasse tudo menos cansada, parecia uma pauta-musical prestes a iluminar-se, afinal, íamos para longe das nossas agruras, era a segunda vez que atestava o depósito daquela moto,  também desceste e retiraste o capacete, aproveitaste para esticar as pernas antes da viagem e ajeitar os cabelos, fascinava-me esse ritual, o elástico entre os dentes, enquanto reorganizavas os cabelos, embora aquela teimosa madeixa escapasse sempre, nem sonhas o quão encantado ficava, parecias conhecer o desfecho, daí a tua resignação, lá a ajeitavas para trás da orelha, mas tarde ou cedo precipitar-se-ia para te encobrir parte do rosto, nunca comentei isto contigo, quem se fascina não verbaliza, compreendes, não é? Nessa madrugada, quem estava de serviço era aquele brasileiro excêntrico, recordas-te dele, certo? Falava tão pausadamente, ficávamos na dúvida se seria lento de raciocínio ou na fala, repetia tudo o que se lhe dissesse, eu “É para atestar o depósito”, como se um eco “Atestar o depósito… Ora, muito bem, atestar o depósito…”, o que nos ríamos, lembras-te? E anuía enquanto falava, o que lhe conferia um ar de boneco-de-corda vindo de um qualquer sótão longínquo, o penteado anacrónico, em escova para a frente, reforçava essa impressão, porém, denotei-lhe espanto ao ver-nos àquela hora, as mochilas volumosas, inesperadamente pedes dois cafés, logo eu que, até então, lhe desconhecia o gosto, “É melhor! Olha as horas, a distância…”, não precisaste de argumentar muito, logo te sorri, e cada um bebeu o seu café, enquanto o brasileiro nos observava intrigado, pela hora, as mochilas volumosas, o seu insistente olhar questionava (“Para onde vão a estas horas?”), não sei se reparaste, uma das coisas que mais me encantava em ti era essa tua altivez, como se, depois de tão magoada, tivesses resolvido virar costas ao mundo, talvez por isso não reparasses no insistente  olhar que questionava (“Para onde vão a estas horas?”), terminado o café, efectuado o pagamento, saímos, de novo, antes do capacete, inspirei fundo, tu, uma vez mais, de elástico na boca, cumprias com o ritual do cabelo, claro que me imobilizei a olhar-te, mesmo após colocares o capacete, denotei a teimosa madeixa sobre o teu rosto,  como estava feliz por seres tu, neste momento,  comigo, e também orgulhoso, não consigo transparecer por palavras o porquê desse orgulho, sabes,  intuía que a nossa ligação provinha de um ontem há tanto ido, como amava estar a teu lado, sempre foste o espelho que mais extensão deu de mim, o brasileiro persistia, atrás do vidro, a olhar-nos, acenei-lhe adeus, ele retribuiu com entusiasmo, não mais iríamos vê-lo,  já pensaste nisso? Ainda te lembras dele? Nessa mesma noite, quando pediste os dois cafés, ele “Ora são dois cafés… Dois cafés… Dois cafés…”, o que ríamos, e ríamos porque éramos felizes juntos, ambos sabíamos, só não o admitimos para o outro, havia tantos escolhos entre nós, mas quando partíamos para longe, tudo se diluía como se uma mera ficção, premi o pé para baixo, a primeira estava metida, antes de acelerar, olhei para trás, aninhavas-te nas minhas costas, a estrada deserta, a madrugada, a mulher que amo abraçada a mim, que mais podia pedir? Uma vertigem de felicidade assolou-me, temia esses momentos, o brasileiro continuava a acenar adeus por detrás do vidro, acelerei ao mesmo tempo que largava, com suavidade, a embraiagem pelo manípulo esquerdo, senti mais o teu calor, rumávamos a Norte, tanto que falámos nisto, viseiras para baixo, blusões-de-penas fechados até cima, embora não estivesse frio, só pela distância, a cidade aparentava dormir, à medida que nos íamos distanciando do quotidiano, descia sobre nós uma leveza, demorei tanto a compreender-te, como pude ser tão burro! Despojo de um primeiro casamento fracassado no lar do segundo, com dois meios-irmãos, o padrasto zelava para que a luz recaísse sobre estes, a tua mãe deixava-se ir na corrente, prometeu que não voltaria a falhar, neste ponto tu eras o espelho da relação fracassada, pois, o despojo, volta e meia ausentavas-te do bairro, só percebi depois, tão depois, ias visitar o teu pai, no seu novo lar, também refizera a vida, num bairro mais humilde, ainda estávamos a assistir aos primeiros passos da destruição do núcleo familiar, foste mais uma vítima deste processo, apenas e só, não por acaso eras das poucas que navegava entre dois arquipélagos, não gostavas de te dar a conhecer, sobretudo com quem não tinhas confiança, não sabíamos onde dormir, era irrelevante, arranjar-se-ia lugar, apenas quisemos partir, depressa, juntos, há coisa melhor?  Foi a única vez onde tal me sucedeu, o seu carácter singular, como se vê, perdura até hoje, a noite estava luminosa, não há luar como o de ontem, perfumada, felizmente pouco trânsito, descontraía-me a condução, embora acelerador no máximo, a tua mão insistente na minha cintura para abrandar, apontaste o horizonte do lado direito, reduzi e parei na berma, agora, à nossa frente, um longo vale onde se espraiava o rio imenso que, a esta hora, reflectia o luar, mota no segurador, avançamos até ao possível do penhasco, extasiados com o cenário, com o momento, o silêncio, talvez com tudo, retirámos os capacetes e ficámos a contemplar aquele vasto curso de prata a iluminar o mundo em volta, sentei-me numa rocha, tu permaneceste de pé, lembro-me de me descer a ideia, perante aquele cenário, de possivelmente existir uma ordem-das-coisas, tudo no mundo estar no seu lugar, hoje rio-me destas minhas elucubrações, como era inocente, porém, naquele momento não podia inferir outra coisa, se o eu do hoje lá regressasse, retirava a mesmíssima ilacção, e o silêncio,  apenas rompido, volta e meia, pelo canto de um pássaro, talvez uma coruja por ali, desejei regressar de dia, embora agradecesse a bênção da perspectiva nocturna, o vale teria bem mais de uma dezena de quilómetros, na margem de cá havia uma povoação, pela dimensão talvez uma vila, do outro lado do rio apenas a obra de Deus, hoje coroada de prata, lembras-te do que me disseste? “Com a distância, os nossos problemas ficam menores”, no fundo, reflectias em voz-alta, apreciei o facto, cumpria um dos meus desígnios, mitigar-te os temores, relativizá-los, davas os primeiros passos nesse sentido, tal como o teu silêncio enquanto contemplávamos aquele deslumbrante cenário, no fundo, em momentos assim, as palavras tornam-se obscenas, intuías este facto, o verbo pode eternizar  ou destruir uma circunstância, ficámos o necessário, fui eu a relembrar caminho, a fazer-te regressar ao aqui, disfarçaste com o teu peculiar sorriso, é a primeira imagem quando o teu nome: o sorriso solar: esperança e luz: e tanta noite trazias no coração! Sabes quando me entraste no peito? Outra questão essencial e tão pouco verbalizada, dever-se-ia colocar a todos os casais, para aferir quantos já a realizaram, a insignificância do resultado seria elucidativa, de facto, hoje cala-se a essência e privilegia-se o acessório, mas regresso ao essencial: Sabes quando me entraste no peito? Foi numa daquelas tardes onde começava a vislumbrar o abismo de mim, a vertigem de tudo isto, a carência de um Sentido para o desfile inextinguível dos dias, de facto foi muito prematura esta minha intuição, claro que a procurei silenciar, atirar para bem longe, soterrá-la, como pude, porém já se alojara em mim, não me recordo como, vi-me a desaguar à tua campainha, logo eu que sempre fui gabado pela capacidade de trazer o ontem ao hoje, porém, a verdade é que não me recordo como, andava para aqui e para ali em tentativas vãs de calar este prenúncio de loucura, quando a tua imagem se me iluminou no pensar, logo a campainha, quando me disseste “Sobe”, percebi como era bem-vindo, andavas também à volta com os teus demónios, no fundo, salvámo-nos um ao outro, pelo menos nesse dia, também noutros por nascer e hoje tão idos, quando entrei, ouvias uma canção tão minha, a partir desse momento, tão nossa, como é raro, no espaço do viver, encontrarmos uma alma que se delicie com os mesmos acordes, sim, foi nessa tarde que te alojaste no meu peito, por me salvares, pela honra de possibilitares que também te salvasse, pela canção onde tanto me revi, por subitamente compreender que a nossa história há muito tinha começado – para lá da vã compreensão -, creio que por tudo, desde então, aqui perduras, lembras-te do resto desse dia? Perguntei se querias sair, tu grata, olhámo-nos e compreendemos que, só juntos, calaríamos os demónios que nos habitavam, como se não encontrassem forma de entrar no halo por nós formado, demorei tanto a compreender-te, talvez demasiado, como pude ser tão Burro! Não me canso de repetir! Lembro-me de a tua mãe e padrasto chegarem com os teus irmãos, ainda pequeninos, pois, isto foi num ontem, a surpresa pela minha presença, mas pressenti alegria e alívio, sobretudo na tua mãe, ela sabia dos teus demónios, como podia desconhecer? Ainda, em mim, a sua gentileza, amabilidade, simpatizei logo, e sabes bem que nunca fui de simpatias à primeira, a certa altura olhei à minha volta e entrevi a possibilidade de uma outra existência, há coisa melhor? Fomos jantar fora e cinema, antes de sairmos, despedi-me, estavas a meu lado, o semblante da tua mãe amanheceu com a possibilidade de nós, como eu gostava quando tu a meu lado, não foi só o seu rosto em manhãs, o nosso também, encantava-me a tua pequena cicatriz perto do sobrolho esquerdo, enquanto o elevador descia perdi-me a olhá-la, não vou desvelar aqui a sua génese, isso fica entre nós, uma carta-de-amor pode ser transviada, nunca se sabe, por conseguinte, não posso aqui expor tudo, mas, como te dizia, foi, nessa tarde, quando, da entrada, aquela canção, de repente o Sentido, com o tempo creio que me virou costas, há tanto não o encontro, alojaste-te no meu peito e não mais partiste, respondes “Eu sei qual era a canção!”, já repeti que desta existência perduram quatro ou cinco momentos, este será um deles (...)

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Que hora será esta amanhã?

 


Bate ao de leve, como se negasse, a cada toque, exercido com o nó, do dedo médio, na porta, escurecida e fria, apesar de alva na sua génese, naquele desiludido corredor, sem janelas, o desejo de ali entrar, nisto Faz favor, o eco humano, proveniente do interior, bastou-lhe, rodou a maçaneta, era um gabinete para o rectangular, deparou-se com uma mulher, teria já dobrado os cinquenta, sentada a uma secretária, de bata branca, como era expectável, por trás dela, a única janela ilustrava o cinzento de mais um dia sem substância (De quantos assim não se faz uma vida? Talvez demasiados…), Sente-se, por favor, a voz, de novo, a trazê-la para o lado daqui das coisas, o eco humano, uma vez mais, a agradar-lhe, talvez, quem sabe, a possibilidade de uma ponte, depois de percorrer aquele desiludido corredor, sem janelas, após sentar-se, percebeu preocupação pela face e gestos da mulher, de bata branca, que já teria dobrado os cinquenta, sentada, diante de si, a atenção para uma folha, retirada de um envelope abandonado, sobre o tampo da secretária, percebeu, não sabe bem porquê, que o conteúdo da folha não era estranho à mão que a segurava, como se houvesse necessidade de uma última verificação, e de uma outra, quem sabe se de mais uma, após esta, sinal de que, por ali, mais desiludidos corredores, sem janelas, a mulher, da bata branca, pousou a folha, pousar não é o termo correcto, se nos demorássemos no seu gesto, percebíamos que, de facto, ela abandonou a folha que se precipitou numa enleante lentidão até tanger, como se um beijo tímido nuns lábios expectantes, o tampo da mesa, Pois… Isto não está fácil… Sabe que está a caminho do terceiro mês de gestação? Ouve-a como se de uma outra margem, a distância torna tanta coisa incompreensível (Pois… Isto não está fácil… Sabe que está a caminho do terceiro mês de gestação?), E depois?, pensou, por fim, algo bom floresce dentro de si, de repente, a mulher, de bata branca, levanta-se, vira-se para a janela, e como se pensasse em voz alta Há muito que não tinha um caso assim… Em verdade, nunca tive nada igual… Por uns momentos, permanece a olhar aquele cinzento de mais um dia sem substância, como se daí adviesse alguma resposta às suas inquietações, ela permanece sentada, agarrada à doçura daquele pensamento, por fim, algo bom floresce dentro de si, era um pensamento apaziguante, como se constituísse, em si próprio, uma composição melódica de feixes de luz derramados em águas estivais, até que a voz de mulher, de bata branca, se sobrepôs a tudo Repare! Você tem vida e morte a crescer dentro de si! Algo terá de ser feito… E sentou-se, ela continuou agarrada àquela composição melódica de feixes de luz derramados em águas estivais, nem ouvia a caneta furiosa que, com toda a certeza, preenchia impressos para análises, exames, mais exames, outras análises, uns testes quaisquer, assim que a caneta se deteve, um suspiro preencheu aquele espaço rectangular, desta vez, percebeu emoção nas expressões e gestos da mulher, de bata branca, Eu percebo que, para si, a escolha esteja feita há muito… Mas, enquanto sua médica, e da vida que agora carrega, há muitas variáveis… Suspender o tratamento? Persistir e prejudicar o… Ela levanta-se, de mão no ventre, não sabe porquê, olha a mulher, de bata branca, agora sentada, Tantas perguntas… Sabe, a vida é uma subtracção constante. Neste momento, parece que se enganou. Finalmente, adicionou-me algo. E isto, para mim, é o tudo. A mulher, de bata branca, resolve também levantar-se, não se coíbe de um conselho Cuidado com a esperança. Aponta sempre para as alturas, com renovada calma, antes de sair, ela responde Não se preocupe. Se cair, pelo menos, conheço bem demais o chão do mundo, fechou a porta e saiu, desceu as escadas, à entrada sorriu à telefonista cega que se entretinha a saborear o cheiro de uma flor, não se recorda a cor, lá fora, no céu, a Oeste, uma fenda luminosa anunciava romper o hermetismo cinzento de mais um dia sem substância, olhou para trás e gravou na sua memória a cor que a telefonista cega segurava com afeição entre os dedos.

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

domingo, 18 de fevereiro de 2024


 "... em verdade, o tempo nada cura, nós é que vamos ensurdecendo para os gritos que nos habitam..."

in Da Dor

Da dor…

 


Teria feito alguma coisa diferente? Ainda ouvia a pergunta, como se há pouco, admirou-se na altura, não sabe bem se pela pergunta, se pelo momento, se pela entoação, se por tudo, no fundo, era um convite a reiniciar-se, a princípio, ela pensou em dizer um rotundo Não, mas foram tantas as quedas, algumas tão dolorosas, e como é indelével a memória da dor, ela sorri no silêncio de si, apenas, quando lhe surge aquele popular adágio de que o tempo tudo cura, no seu caso, o tempo só acentua, em verdade, o tempo nada cura, nós é que vamos ensurdecendo para os gritos que nos habitam, por nos pertencerem, por uma capitulação consciente, por o amanhã ser um outro hoje, e chegada a noite, em cada canto de nós, uma dor no lugar de uma voz, de novo, Teria feito alguma coisa diferente? Agradou-lhe a questão, parecia-lhe, de repente, que a vida a convidara a sentar e a pensar-se, o rotundo Não, quase emitido, teria sido bastante idiota, neste momento, na suavidade da distância, compreende-o, porque viver é cair, só quem não percebe esta singeleza é que reafirma apenas a queda, e a consequente incompreensão da dor, como se ao negar silenciasse todos os gritos que ecoam em si, tolice, naqueles momentos que precedem o abandono diário, em que o mundo anoitecido amplia os passos do próprio pensar, quantos gritos em cada um de nós? Quanta dor sob o palco imemorial do sonho? Teria feito alguma coisa diferente? Um sonoro Sim não tardou muito, alguma coisa, não, mas sim tanta e tanta coisa, quantas vezes o Não cederia lugar ao Sim, e vice-versa, noutras ocasiões, um pouco mais de paciência para aquela voz que deixámos de ouvir, e pedia tão pouco, só que a escutássemos, hoje apenas uma ténue memória, um fiozito melancólico que insiste em nos apontar a direcção dos passos no amanhã, se lhe seguisse as indicações, meu Deus, tanta dor evitada, quantas manhãs não teria vivido se costas à preguiça, se um pouco de atenção àqueles sinais, e são tantos, que a vida sempre nos dá, mas a nossa flagrante desatenção, a estupidez de insistirmos no mesmo caminho, nas mesmas vozes, naquele aparente seguro recreio onde somente construímos ilusões, tantas vozes em nós adormecidas, se, um dia, num acaso do caminho, se cruzam connosco, o que por vezes sucede, primeiro, claro, a educação, depois, já pouco sobra, o embaraço pela escassez de verbo, ambos o compreendemos, recuamos, em preces, para que passe despercebido, o outro felizmente também o faz, é a única sintonia daquele instante, por fim, respiramo-nos, e percebemos que já não há nada, a voracidade alimentada do hoje logo nos faz regressar ao instante, nem paramos para questionar o porquê de recuos, em preces, diante daquele rosto que frequentava o mesmo aparente seguro recreio, onde, de facto, somente construíamos ilusões, se um pouco de atenção àqueles sinais, e são tantos, que a vida sempre nos dá, tudo isso ruiria, diante dos nossos olhos, bem mais cedo, esse é o nosso pecado, a desatenção, e ao não assumi-lo, persiste, em nós, uma sublimada procura por um aparente seguro recreio, em verdade, olhamos a voz de ontem como alguém que decidiu abandonar o nosso recreio, nada mais, arranjamos, claro, argumentos que oscilam entre o trivial e o intrincado para justificar aquela obscura atmosfera que por ali se instalou, ao ponto de não haver frases, nem sequer de algibeira, para a troca, quando, no ontem, se perdiam tardes ou noites a fio, a confidenciar sonhos e sentires, é sabido que se partilha sonhos com muito poucos, talvez por o sonho falar numa outra língua, e não são muitos que a percebem, contudo, a luz do hoje é tão estranha, visto daqui, há qualquer coisa de irreal naquele aparente seguro recreio, como em tudo que nos trouxe a este ponto do caminho, talvez por isso, de vez em quando, uma voz desperta em nós, para questionar se teria feito alguma coisa diferente? Por vezes, dou por mim a regressar a certos momentos, a ter a atitude que, vista daqui, parece mais certa, e a esperar o desenrolar da história… Acho que esta é a melhor resposta. Uma frase que se cala, um olhar desviado, um gesto por se cumprir, o todo, de facto, na aparente insignificância, e tudo seria uma outra coisa, se é tarde neste ponto do caminho? Se teria feito alguma coisa diferente? Como não? Esperem aqui um pouco, só vou ali atrás, ter a atitude correcta, e esperar pelo desenrolar de uma certa história…