Livros

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quinta-feira, 30 de novembro de 2023

O pântano da alternadeira


Já ouvi, em tempos, alguém afirmar que as rameiras ajudam à sobrevivência de muitos casamentos, pois, é possível, à luz desta premissa, hoje vamos falar de “O Pântano”, uma conhecida casa-de-alterne, gerida, como é natural nestes contextos, por uma hábil alternadeira, dizem as más-línguas que, há uns anos, soube ardilosamente envolver-se com um velho, de carácter deveras manhoso, dizia-se, por aquelas bandas, que a preparou cuidadosamente para o cargo, era uma mulher baixa, com umas ancas de égua, um rosto de suína deveras desagradável, o cabelo, se assim se podia denominar, uns fios sebosos num constante desalinho, quanto à indumentária, o normal de uma alternadeira, uma efémera tentativa de parecer o que não é, dos pés à cabeça nada lhe assentava condignamente, a rotunda volumetria apenas um desafio para as costuras, não havia dia em que o velho, de carácter deveras manhoso, não fosse visto a entrar na casa-de-alterne, apenas ia para contabilizar os proveitos, há muito que a natureza lhe vedara outras possibilidades, embora, pelo focinho manhoso, não se adivinhasse, por ali, alguém capaz de levar uma mulher às estrelas, gestos contidos, uma indumentária de sacristão-arrependido, embora aquele focinho-manhoso olhasse de soslaio tudo ao seu redor, era habitual ver as alternadeiras-fumadoras à porta, houve uma que rapidamente escalou na hierarquia do “Pântano”, já caminhava pelo Outono do viver, estranha esta ligação entre o alterne e o ocaso da existência, o imperativo cabelo pintado de louro, talvez acredite em mitos associados ao masculino, os incisivos-centrais escurecidos, quiçá do excesso de tabaco, o rosto assemelhava-se a um possível campo de arqueologia, tal a ruína e desolação gritantes, a expressão quotidiana também não trazia vestígios de luz ao quadro, o ar resignado de quem compreendeu, há tempo suficiente, que só lhe resta caminhar pelos subterrâneos do viver, tornou-se próxima de uma lésbica que lá aportou no departamento comercial, encarregada dos livros, todo o negócio, para prosperar, carece de um bom contabilista, diziam que esta era uma taumaturga das contas, como a maioria da sua espécie, cabelo-curto, sempre dá um ar másculo à coisa, também caminhava há muito pelo Outono da existência, uns óculos anacrónicos, convém para dar credibilidade a quem está próximo dos livros, pelo menos passa por entendida ao olhar dos outros, do pescoço para baixo passava por homem, o que muito lhe agradava, sublinhe-se, afinal gostava do mesmo que qualquer macho digno desse epíteto, do pescoço para cima, com aquela escassa neve em cima da cabeça, e rapada quase à militar na nuca, só lhe acentuava a inclinação, como já referido, tornou-se muito próxima da alternadeira dos incisivos-escurecidos, era vê-las, durante o dia, alterne quase sempre rima com noite, em longas conversas, vá-se lá saber porquê, apesar de os dentes-podres parecerem gostar do sexo-oposto, embora daí só colhessem desilusões, não por acaso o rosto assemelhar-se a um possível campo de arqueologia, talvez fosse o facto de o cabelo-curto estar encarregado dos livros, todo o final do mês era vê-la a correr para aquela nuca rapada quase à militar a perguntar-lhe pela percentagem que lhe cabia, mas nada se passava no “Pântano” sem o aval e o conhecimento do velho, de focinho-manhoso, quando a natureza subtrai a alegria essencial de um homem, embora, pelo focinho-manhoso, não se adivinhasse, por ali, alguém capaz de levar uma mulher às estrelas, gestos contidos, uma indumentária de sacristão-arrependido, os medíocres viram-se para o vil-metal e para a tentativa de logo asfixiar qualquer vislumbre de luz, alterne quase sempre rima com noite, e como o “Pântano” recrudescia com as primeiras sombras derramadas nos passeios pelos candeeiros iluminados, apesar do controle do focinho-manhoso, a hábil-alternadeira, com um rosto de suína deveras desagradável, o cabelo, se assim se podia denominar, uns fios sebosos num constante desalinho, geria a casa com um aparente à-vontade, foi ideia sua a de colocar o cabelo-curto, sempre dá um ar másculo à coisa, próxima dos livros, diziam ser uma taumaturga das contas, o focinho-manhoso não se opôs, só lhe interessava o avolumar da conta, já que o resto de si era uma subtracção galopante – temos, neste particular, de apartar a crescente volumetria da sua alternadeira, claro –, e sufocar qualquer vestígio de luz emergente, talvez um dia a luz irrompa pelo “Pântano” e o focinho-manhoso, com as suas alternadeiras, nem a memória cheguem…

 

segunda-feira, 27 de novembro de 2023

O Lou Ferrigno do Areal


Fui eu, confesso, que o apelidei de Lou Ferrigno, não por acaso, era a antítese paradigmática deste culturista, o aspecto, logo ao primeiro contacto, que dele ressaltava eram as gigantescas favolas, os incisivos-centrais conferiam-lhe uma indesmentível aura de Bugs-Bunny, não me recordo de o ver de boca-fechada, era-lhe, de facto, uma impossibilidade congénita, não sei porquê, mas agora que escrevo estas linhas sobre esta personagem, havia nele uma silenciada ansiedade que lhe estendêssemos uma ou mais cenouras, para logo materializar o porquê daquelas proeminências dentárias, tratava todos por senhor ou senhora, só depois o nome, um aspecto de ruralidade enternecedor, vestígios indeléveis das suas origens, os pais tinham um café, um eufemismo, em larguíssima percentagem, para tasca, era este o caso, é facílimo aferir se estamos perante um café ou uma tasca, se entrarmos, basta atender ao aspecto dos clientes em volta, para quem lá trabalha, se o número de cervejas, ou jolas, conforme o contexto, for o dobro, triplo ou quádruplo, superior ao de cafés, a resposta é elucidativa, fatalmente o nosso protagonista lá desaguou para trabalhar, quem não tem arte para desbravar o seu caminho, lá termina por seguir as pisadas paternas, a certa altura, resolveu melhorar algo em si, a magreza aliada à baixa-estatura só lhe acentuavam as gigantescas favolas, já que não as podia limar, nem aumentar a estatura, inscreveu-se num ginásio, foi vê-lo com a inevitável camisola-de-alças, uns ténis de linha-branca que gritavam mau-gosto à distância, e umas calças de pijama, ainda hoje penso não fugir à verdade, o pormenor de surgir de luvas postas também não pode ser descurado, como mais à frente veremos, peço, agora, ao leitor, um exercício de imaginação: um sujeito baixo, magríssimo, pálido, com umas favolas que, a qualquer momento, ameaçavam tocar no chão, um cabelo a suplicar por champô, tal a sua oleosidade, de camisola-de-alças, na vez de braços, surgiam dois palititos, calças-de-pijama coçadas, uns ténis a gritar azeite, e as luvas postas, já me esquecia, como se uma convicção calada: “Vamos a isto! Vamos lá levantar ferro!”; tudo na vida lá se cumpre, bem ou mal, desse modo, fez o seu percurso, assente numa premissa muito simples: a subserviência; assim se foi enturmando, arranjava, quer dizer, vendia filmes ainda por estrear, rapidamente granjeou uma razoável carteira-de-clientes, era vê-lo, pelos cantos do ginásio, em diálogos murmurados, a receber encomendas ou a realizar entregas, nesta altura, um negócio deveras escuso, veja-se bem: filmes ainda por estrear, que patifaria! Quanto ao objectivo de ali se ter inscrito, enfim, não se lhe podia exigir mais, com o tempo lá terá percebido que o seu desejo de aumento muscular, para mitigar as desmesuradas favolas, não se iria materializar, embora, cada vez que descalçava as luvas, a nuvem tóxica dali emanada atingisse violentamente o olfacto dos próximos, de tal forma que, entre o imperativo passo-atrás, para recuperar o equilíbrio, tal a brutalidade do golpe nas narinas, a procura de um ponto-de-fuga, o refrear do vómito, tudo se passava diante do seu apatetado-olhar que, claro, nada descortinava, certo dia, chegou com um ar-sonhador, felizmente para a humanidade as luvas já postas, e veio pedir um conselho: andava a trocar mensagens com uma brasileira, há umas semanas, e combinaram encontrar-se dentro de dias, queria saber se considerávamos seguro; eu assumi a dianteira e, em nome de todos, garanti que sim, era seguro, podia ir ao encontro da brasileira, num canto de mim, algo me dizia que aquelas dentuças, com o seu quê de mamute, intimidariam a mais rebuscada mente-criminosa, ficou feliz com o nosso aval ao seu encontro, antes desta temática encerrar, acrescentou: “Sabem como ela me chama agora? Meu cachorrão… Já viram? É a primeira vez que alguém me chama de cachorrão!” Estava visivelmente emocionado neste relato, imagino estas frases proferidas, por uma voz feminina, com aquele sotaque açucarado e quente, o cachorrão, sempre de boca aberta, salivava só de imaginar o encontro, ocorreu-me alertá-lo para não ousar ir de luvas-postas, muito menos retirá-las, se tal acontecesse, era ver a brasileira, entre o imperativo passo-atrás, para recuperar o equilíbrio, tal a brutalidade do golpe nas narinas, a procura de um ponto-de-fuga, o refrear do vómito, e um cachorrão, abandonado, de boca-aberta, no meio da rua, a assistir à morte de mais um sonho.

(28/11/23)


quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Gostaria de não cair no vazio da monotonia


 

Há muito que não passava por aquela janela, sem saber muito bem como, hoje fui lá dar, ali fiquei, parado, a olhá-la, por não sei quanto, ainda bem, gosto de desaprender o tempo, cada vez mais, talvez não seja bem isso, porque só se desaprende o tempo quando pousamos a mala do existir, e a janela, hoje, não sei porquê, parece-me mais longe, embora eu no mesmo ponto de antes, a olhá-la, por não sei quanto, de fora, tudo igual, ou talvez não, mas por dentro, de certeza que diferente da minha memória, a janela também hoje uma outra, porque o olhar, de antes, já tão longe, e a distância fê-lo outro, nem sei em que ponto se perdeu, sempre que nos apeamos no caminho, lá vem, despercebidamente, aquela questão, como se os seus passos sob o silêncio de sombras (E se tudo uma outra coisa?), é uma pergunta recorrente (E se tudo uma outra coisa?), não lhe sei responder, persisto na janela, nisto, um candeeiro da rua relembra-me noite, a janela, no entanto, ainda por iluminar, de repente, o lar chama-me por um dos bolsos, deixo-o tocar, aquele toque monocromático soou mais uma vez, mas eu, agora, só com a janela, e há quanto aqui não vinha, lentamente cedo aos apelos da memória, que começa a submergir-me naquele caudal caprichoso, de facto, há lugares onde regressamos para um pouco de calor, de uma outra forma, é bom quando olhamos as coisas com saudade, pelo menos, soubemo-nos vivos, sei que ela casou e, algum tempo depois, se divorciou, não estranhei o divórcio, no fundo, alegrei-me com isso, quando me contaram, claro que me revesti daquela expressão séria e condoída, é isso que esperam de nós, confesso que aprendi a representar tarde, mas agora, cá me vou arranjando com a principal ferramenta da vida em sociedade, ao contrário de mim, ela teve o engenho de não ter filhos, nunca a imaginei a protagonizar o difícil papel de mãe, há mulheres assim, como se pairassem sobre o nosso pensar, sei que, neste momento, vive sozinha, não é de espantar que saiba tanto, é o bom de encontrar rostos do tempo, falamos sempre virados para o que foi, se encontramos rostos do agora, falamos do amanhã, acho que é tão raro falar-se do momento, sempre preferi falar do que passou, talvez por não gostar de errar muito, é curioso, agora que penso nisso, lembro-me de que, numa certa madrugada, ela, num tom sonhador, a dizer-me que gostaria de não cair no vazio da monotonia, eu ouvia-a enquanto os meus dedos se perdiam pelos seus cabelos, quase a percebo aqui a meu lado a dizer-me, de novo, que gostaria de não cair no vazio da monotonia, se a tivesse percebido, talvez o hoje um outro, como é flagrante a nossa surdez e cegueira quando podemos escolher a direcção, parece que, teimosamente, deixamos que as correntes decidam a direcção do leme, sempre a cobardia de assumir um destino, daí que, bem mais tarde, regressemos a lugares como este, para levantar memórias com sabor a se, eu que também nunca gostei do vazio da monotonia, no entanto, quando ela, num tom sonhador, numa madrugada de Verão sem o ser, disse gostaria de não cair no vazio da monotonia, eu aquém do sentido, tantos passos atrás, lembro-me bem, não lhe respondi, continuei a perder-me com os seus cabelos, ela levantou-se, devagar, e foi até à madrugada, abriu a janela e inspirou, observei-a num espanto calado, por ela, pelo momento, pela madrugada que se insinuava no enlevo das cortinas, por, muito subterraneamente, saber que nos despedíamos, naquele instante, ela apresentara-me o futuro, eu, ignorante, permaneci nas faldas do conhecido, hoje, naquela janela, já não há cortinas enlevadas que permitem a passagem da madrugada, em verdade, nem sei quem lá mora, ela partiu anos depois daquela madrugada de Verão sem o ser, o suicídio do pai precipitou as coisas, os ventos dos negócios sopraram noutras direcções, a mãe teve de se despedir de coisas para viver com uma dignidade possível, mesmo assim, providenciou-lhe universidade, ela, sabiamente, nada desperdiçou, admiro-a por isso, e por muito mais, de repente, a noite entrou-lhe na vida e ela teve a paciência de esperar a manhã, talvez nisto resida o saber da existência, mas acredito que algo permaneça desarrumado em si, de novo, aquele toque monocromático, desta vez, atendo, Sim, filho, estou um pouco atrasado. Não, não esperem por mim para jantar. Diz à mãe que estou só a terminar aqui uma coisa… Tudo bem! Até já! Suspiro assim que as luzes do aparelho se diluem, como dizia, acredito que algo permaneça desarrumado nela, duvido que alguém tenha respondido àquela questão da madrugada gostaria de não cair no vazio da monotonia, um desejo impronunciável (ou seria um temor?), que ela verbalizou, num tom de sonho, pela madrugada que se insinuava no enlevo das cortinas, ligo o carro, ainda a janela, desço um pouco os vidros, sempre gostei do cheiro da noite, relembra-me que há sonhos pelo ar, retomo o caminho de casa, e se, ali chegado, dissesse à minha mulher gostaria de não cair no vazio da monotonia, disparate, seria ridículo, há pensamentos que pertencem a certas vozes, resta-me um se que se iluminará a cada madrugada, e eu, num espanto calado, limito-me a regressar a uma cansada questão: E se tudo uma outra coisa?

sábado, 18 de novembro de 2023

Que pena uma folha conter duas páginas…

 



Do que me lembro melhor, é do quarto, com as duas camas, a da minha mãe do lado da janela, quase sempre com a cortina corrida, em verdade, não me lembro, nem por uma só vez, de abrirmos a janela, só lá ia quando uma ambulância acordava o mundo com a sua dor, de resto, permanecia fechada, quase sempre com a cortina corrida, não sei por quanto tempo ali estive, talvez uns dois anos, talvez uns três, ou mais, não posso precisar, mas foi há tanto, há tanto que minha mãe ainda viva, sei que o prédio tinha três andares, ficava numa dessas ruas de Lisboa que apenas conhecem a sombra, seja manhã ou tarde, o elevador, que tinha uma armação metálica, com porta, bastante trabalhada, em cada andar, nunca o vi funcionar, acho que adormecera entre o segundo e o terceiro andares, restava-nos a escada, é curioso, a minha mãe jamais questionou a senhora velhota, a quem pagava o quarto, pelo adormecimento do elevador, acho que por, de vez em quando, se atrasar com as contas, a tal senhora também não tinha um rosto que suscitasse esse tipo de reclamações, ostentava, sempre, um avental próprio de quem se especializou em lides domésticas, regra geral, sobre o ombro direito, um pano de flanela, nas mãos, uma vassoura ou uma esfregona, assim que a minha mãe se aproximava, olhava de lado num mutismo desconfiado, como se, desde logo, impossibilitasse quaisquer pedidos, nem aquando do pagamento, a sua expressão se alterava, pegava nas amarrotadas notas para logo as enfiar num saquito de plástico transparente, que retirava, com sofreguidão, de um bolso que nunca percebi qual, a rapidez dos seus gestos contrastante com o peso do seu olhar, era viúva, mas, curiosamente, não sei bem porquê, percebia-se-lhe uma familiaridade com os gumes da vida, pois, sempre o ontem teimosamente a entrar por cada fresta do hoje, neste caso, talvez pelos gestos e por uma expressão para quem as vidas, nas margens dos passeios, nada escondem, quem sabe se por ali tenha andado, não sei, quem sabe, no entanto, hoje é dona de uma pensão, três andares, acho que uma dezena de quartos por piso, percebo que os outros hóspedes também familiarizados com as margens dos passeios, alguns vi por ali caídos, na altura pensei que dormissem, a minha mãe e as outras mulheres só trabalhavam de noite, antes de sair todo um ritual para se arranjar, quando o frio gritava por cobertores e aquecedor, eu muito espantada por ela sair como se fosse encontrar Verão, parecia imune ao correr das estações, as horas diante do espelho, os lábios e também o rosto com um excesso de cor, num todo que ditava qualquer coisa de carnavalesco, nunca lho disse, claro, aprendi a calar a voz que em mim pensava, os saltos dos sapatos a apelar a equilíbrios, a saia a exibir-lhe as carnes, tudo num excesso de ser, um ser caído, antes de sair, um cigarro nervoso, acredito que muitos outros se seguiriam, só me dizia Não demores a dormir, a tal voz que em mim pensava, embora aprendera a calar, pedia-lhe que, pelo menos, me passasse a mão pelo rosto, para me saber viva, mas tudo terminava com o baque irreversível da porta, só pedia a mão pelo rosto, nada mais, anos depois, aprendi a ternura de um beijo maternal, a minha face desconhecia tal coisa, e como ficou agradecida, porém, naquele quarto de pensão, numa dessas ruas de Lisboa que apenas conhecem a sombra, seja manhã ou tarde, bastava-me uma mão pelo rosto, era tudo o que tinha visto para traduzir aquilo a que chamavam coração, às vezes, a minha mãe chegava magoada, cheguei a ver-lhe a saia rasgada e os joelhos em sangue, tal como o rosto, de um dos lados, inchado, quando isso acontecia, saía do quarto, custava-me muito vê-la naquele estado, as pinturas carnavalescas deformadas pelas lágrimas acentuavam-lhe a queda, e também a idade, nunca lhe perguntei quem a magoara, talvez por, nessa altura, não lhe perguntar o que fazia, embora, numa zona de mim, algo me sussurrasse que não fosse uma coisa muito correcta, saía de noite, chegava de manhã, dormia o dia quase todo, após um copo de leite e umas bolachas, eu saía do quarto, juntava-me aos filhos das colegas da minha mãe, que também viviam na pensão, éramos, ao todo, uns seis, brincávamos o dia todo na rua, à espera que elas acordassem, de vez em quando, uma velhota, dos prédios em volta, chamava-nos para almoçar, achava curioso que não nos fazia quaisquer perguntas sem ser Querem mais? Está boa, a comida? Gostam? Antes de regressarmos aos nossos jogos na rua, onde outros já nem a alma procuravam, enchia-nos os bolsos de rebuçados, e dizia-nos Não os comam todos de uma vez… Olhem os dentes! Para mim, tudo isto era uma novidade, creio que para os outros também, da minha mãe, só ouvia Faz pouco barulho! Vai brincar para a rua… Sempre naquele tom ensonado, a voz arrastada, parecia, sinceramente, que arrastava móveis dentro de si, talvez se soubesse demasiado desarrumada, certo dia, um gato desaguou à porta da pensão, não sei porquê, mas aquele miar ecoou por mim, parecia pedir-me que lhe estendesse a mão, levei-o para o quarto, dividi o meu leite do pequeno-almoço, no fundo, a minha única refeição durante tantos e tantos dias, a minha mãe nem deu pelo gato, lembro-me de que numa manhã, não sei se fazia frio, se fazia calor, a sua cama, do lado da janela, vazia, não consigo explicar, mas dentro de mim um Inverno irreprimível, mais tarde, nesse dia, a polícia, vozes sussurradas e a compaixão a olhar-me, o calor do gato, ainda não lhe dera um nome, que agarrava com as poucas forças que reunia, a segurar-me a este lado do mundo, levaram-me para um sítio onde havia muitos miúdos da minha idade, nunca me perguntaram se para ali queria ir, em verdade, nunca me perguntaram nada, nem respostas me deram, a única coisa que lhes ouvi A tua mãe foi para o céu, ainda hoje não sei se foi para o céu, é possível que lá não gostem de pinturas carnavalescas e de carnes à mostra, é possível, antes de me levarem para o sítio onde havia muitos miúdos da minha idade, disseram-me que tinha de me despedir do meu gato, fechei-me no quarto, enchi-lhe o prato de leite, acho que ainda havia um resto, quando não nos ensinam as coisas, esquecemo-nos de que elas existem, isso também acontece com o comer, e abri-lhe a janela, após sorver pela última vez do prato, ele subiu para o parapeito, virou a cabeça na minha direcção, e não me lembro de mais, ainda hoje trago comigo aquele calor que me segurou a este lado do mundo, se houver um céu, sei quem por lá deve andar a esta hora…

domingo, 12 de novembro de 2023

Subterfúgio


 

Há uns tempos escrevi que o tempo não existe, a melhor prova disso é a memória, num repente, levanta-se-nos um momento ido, e ali estamos, como se nunca tivéssemos partido, mudado, daí o constrangimento quando nos cruzamos com rostos do passado, esta verdade em nós (ali estamos, como se nunca tivéssemos partido), mas jamais assumida (o tempo não existe), e, do nada, surgem-nos ao caminho episódios que julgávamos idos no rio do esquecimento, há uns dias deparei-me com um, da perplexidade inicial até um sorriso ainda demorou o seu devido tempo (ali estamos, como se nunca tivéssemos partido), andei, durante esse período, a matutar no título desta crónica, primeiramente pensei: “O carro-preto”, já lá iremos; como segunda hipótese: “Ruas desertas na madrugada”; andava pela feliz altura onde o horizonte se povoava de brinquedos, por outras palavras, de sonhos, quem troca um horizonte de sonhos por um de problemas? Pois, o mundo dos adultos é muito aborrecido, já o afirmava em criança, e como tinha razão, duas vezes por semana, uma amiga de família desaguava lá ao serão, o marido chegava mais tarde do trabalho, assim sempre tinha companhia no visionamento da novela, e não é de somenos um interlocutor para debater o rumo de tão pertinente história, eu pelo chão construía as minhas histórias, os meus universos, os adultos, no sofá, sorviam avidamente histórias e universos pré-fabricados por um écran, uma vez mais, achava aquilo aborrecidíssimo, olhava-os com genuíno terror e questionava-me se, algum dia, tornar-me-ia em algo semelhante… Que terror! Andava eu pensativo, pelo chão, no rumo a dar às minhas histórias, aos meus universos, quando ouço, no sofá, apreensão pelo atraso da amiga que ali desaguava duas vezes por semana ao serão, “Já devia ter chegado”, “Deve-se ter atrasado com qualquer coisa… Não tarda nada, está aí a tocar”, “Sim, tens razão, deve ser isso,” as agulhas num incessante tricotar enquanto o olhar sorvia cada instante da novela, ele com o jornal, embora as pálpebras ameaçassem um precipitar iminente, de repente, a campainha, as pálpebras recompõem-se, as agulhas persistem no seu incessante tricotar, eu abandono, por instantes, as minhas histórias, os meus universos, para abrir a porta, não sei porquê, mas sempre que olhava o esforço e sacrifício dos adultos em sair do sofá, a imagem de um guindaste povoava-me, a amiga surgiu-me, à porta, menos efusiva, até lhe denotei uma certa palidez, cumprimentou-me com a habitual festa pelos cabelos, que tanto me irritava, entrou, não tardou muito a sentar-se ao lado das incessantes agulhas, o jornal estava numa poltrona, eu prestes a regressar às minhas histórias, aos meus universos, entretanto ouço “Sim, um carro-preto seguiu-me até aqui”, as agulhas, desta vez, imobilizaram-se, as pálpebras subiram, embora se mantivessem em silêncio, só as agulhas “Tem a certeza? Não estará a fazer confusão? Quer, antes de mais, um copo-de-água para se acalmar?”, fiquei logo alerta com esta questão, pois, a imagem de um guindaste povoava-me, “Obrigado, não é preciso… Claro que tenho a certeza! Não há ninguém, a esta hora, pelas ruas… Seguiu-me com as luzes desligadas, muito devagarinho, e, vendo bem as coisas, não deve ter sido a primeira vez, porque sabia muito bem o meu percurso… Seguiu-me, vejam bem, até à entrada da vossa praceta!”, o jornal permaneceu em silêncio, talvez compreendesse ser aquele um drama feminino, as agulhas agudizavam a sua desconfiança para tal enredo, embora refreassem perante o olhar da visita, eu opto pela prática, vou até à janela em busca do misterioso carro-preto, pelas ruas apenas o silêncio da madrugada, a ideia de que tudo no mundo está no seu lugar,  como é enganador o silêncio da madrugada, nem um vulto no horizonte dali avistado, muito menos vestígios de ameaçadores carros-pretos, de luzes apagadas, em rondas persecutórias, ninguém se apercebera dos meus passos, também não o desejei, afinal era um assunto debatido no sofá, longe, muito longe, de um horizonte povoado de brinquedos, “Não quer ligar para a polícia?”, “Acha que vale a pena?”, pouco depois, lá veio, também do sofá, a funesta sentença para me deitar, intuí, desde logo, que não assistiria ao desfecho da história do “Carro-Preto”, não posso, aqui chegado, por um imperativo-de-consciência, deixar os leitores em suspenso, como agora é tão comum em filmes de qualidade duvidosa, o dia seguinte resolveu amanhecer sem tréguas para as sombras, com uma luz assim, carros-pretos, de luzes apagadas, a perseguir incautas velhotas, só no domínio do fantástico, como as circunstâncias mudam o nosso olhar sobre as coisas,  antes de entrar na cozinha, ouvi as agulhas, agora totalmente imóveis, virarem-se para o jornal, agora depositado em cima da mesa, “Sinceramente, onde já se viu isto?! A ser perseguida por um carro-preto! Quem se daria ao trabalho de a perseguir?! Isso queria ela! Ontem, nem sei como, lá consegui conter o riso…”, era uma conversa de sofá, ainda hoje desconhecem que a ouvi, peço-vos que fique entre nós, não quero, doravante, ir de castigo para a cama mais cedo.

(12/11/23)

segunda-feira, 6 de novembro de 2023

sábado, 4 de novembro de 2023

O sentido das coisas

 



Há perguntas que sempre o irritaram. Mas nenhuma supera aquela que o obriga a pensar-se (se está bem, como anda, o que tem feito), talvez porque obrigue a regressar, numa demasiada rapidez, ao agora, exactamente de onde ele parte sempre que possível, todos os dias, antes de regressar a casa, de mãos nos bolsos, passeio fora, lá vai, naquela passada que proclama um indisfarçável fastio pelas coisas do mundo, aquela frase que lhe ouviu há tanto, há tanto que lhe parece numa outra vida, e nós que tantas vezes morremos nesta para regressarmos sempre tão subtraídos, embora uns afirmem que regressamos sempre fortalecidos, tolos, apenas isso, a frase dela Eu não durmo com amigos, tão reveladora, lúcida, transparente, porém, na altura, ele aquém destas inferências, a levar as coisas para bem longe, sinal de que ela era séria, de confiança, responsável, felizmente com princípios e valores, isso é bom, muito bom, Eu não durmo com amigos, ainda hoje ressoa por ele, mas se, por um acaso, tivesse concedido o devido tempo à reflexão, talvez as coisas fossem numa outra direcção, como quase sempre acontece, aquela mania de pintarmos o mundo com as cores do nosso pensar, é possível que o Eu não durmo com amigos, em vez da colecção de qualidades que lhe procurou atribuir, significasse simplesmente que ele lhe provocava o sentir morno da amizade, apenas e só, longe em demasia dos mares encapelados e trovoados da paixão, apesar disso insistiu, Tudo bem. Eu compreendo…Mas podemos sair como amigos, certo? Se me deres tempo, talvez… Ela cedeu-lhe o tempo, e ele percebeu o alcance das palavras, de facto, só podiam provir de uma náufraga de mares deveras encapelados, naquela fase da vida em que, num repente, viramos costas à criança do ontem, para sermos uma qualquer coisa ainda por definir, ela depositou o seu coração nas mãos que lhe seguravam o olhar, quatro a cinco anos de namoro, lá por casa os pais encantados, rapaz de boas famílias, cursava Direito, o futuro à distância de uma esquina, casaram, ela com vinte anos, ele com mais quatro, percebia-se-lhes a chama em cada gesto, curiosamente, nas fotos desse dia sempre singular a harmonia ainda não encontrara uma porta, é compreensível, afinal é a passageira do tempo, dois anos depois, uma filha, as sombras, em redor da chama, a esmorecer, em verdade, a harmonia, por ali, nunca encontrou uma porta de entrada, o tempo a passar, ele sempre precisou de uma chama que lhe alimentasse os gestos, quando ela se apercebeu dessa faceta, já ele fins-de-semana sucessivos ausentes, alugara uma casa, nem sequer muito longe do lar original, ela recém-formada, também nos labirintos da justiça, como não podia deixar de ser, apesar da filha, teria nesta altura cerca de quatro anos, da casa, de toda uma forma de ver o mundo ao lado dele, de o seu nome lhe nascer nos lábios contrariando o pensar, avançou com o divórcio, para sua surpresa, foram os pais que a conduziram nessas diligências, sem muitas palavras direccionaram-lhe o olhar para o amanhã, de facto, resgataram-na para a vida, mas algo ficara soterrado para sempre nos escombros do ido, ela nunca partilhou isto, fez questão de guardar para si esta ideia que pairava no seu espírito à espera de uma forma, no fundo, é aquilo a que nós chamamos certeza, jamais voltaria a depositar o seu coração em quaisquer mãos, por muito que lhe tentassem segurar o olhar, em verdade, ela aprendera a olhar o amanhã, mas o seu coração jazia, para sempre, numa estrada poeirenta do ontem, foram uns amigos comuns que os apresentaram, desde então, ela sentou-se-lhe no pensar, dali não queria sair, nem ele queria que saísse, não se pode falar de uma simpatia à primeira vista, antes de um respeito, primeiro, por posições antagónicas face ao redor, ele de raízes profundas, ela conhecedora dos caprichos do vento, de certa forma, ele compreendeu-lhe o cansaço na face, soube-lhe, depois, a causa, a princípio, amigos, como quase sempre acontece, embora, para ele, fosse o início de um trajecto, após certa tarde de cinema, Não quer vir jantar a minha casa? Ela estacou, olhou-o demoradamente, o cansaço pela face tão visível àquela tão jovem hora nocturna, e a resposta Eu não durmo com amigos, lacónica, sem lugar a réplica, nesse momento, ele percebeu que o coração de uma mulher tem um lugar que só é ocupado uma vez, mesmo assim, não desistiu, ele estava a ficar fora de prazo, achava graça àquelas ideias que ela debitava tão contrárias às suas, soube ser paciente, a idade ensinara-lhe o tempo, certa manhã, surpreendera-a preenchendo-lhe o anelar, emudecida, beijou-lhe carinhosamente a face e pediu tempo, por esta altura, a filha perto da faculdade, o espelho cada vez mais uma sombra cinzenta, os passos mais desenhados, meses depois, aceitou, desta vez, a harmonia entrou pela porta da frente em cada fotografia, nem sinal de um resquício flamejante, de mãos nos bolsos, passeio fora, lá vai, naquela passada que proclama um indisfarçável fastio pelas coisas do mundo, a matutar naquela ideia: o coração de uma mulher tem um lugar que só é ocupado uma vez, sabia disso, mas insistiu, talvez consiga, no espaço que lhe coube, que ela, um dia, por lá se sente a seu lado a ver o mundo…