Livros

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quarta-feira, 29 de setembro de 2021

domingo, 26 de setembro de 2021

A mulher-a-dias gorda e o oxigenado


Viviam numa praceta dos subúrbios, não chegaram a casar, em verdade, se lhes perguntassem, não conseguiam explicar o porquê de terem acabado juntos, mas ali estavam, ela era mulher-a-dias, tinha quatro ou cinco casas fixas além da escada do prédio, ele mecânico, um taumaturgo do ramo, quilómetros que se evolavam das viaturas, cilindradas alteradas, matrículas trocadas e outras façanhas relevantes para adicionar em qualquer digno currículo de um profissional das oficinas, habitavam o rés-do-chão esquerdo, antes do jantar costumavam estar à janela, a olhar os vizinhos, a exercitar a maledicência e a inveja, o sujeito tinha uma aparência excêntrica, aquando dos primeiros brancos, prontamente resolveu ocultá-los, todavia, terá trocado a cor e agora ostenta um amarelo que lhe confere um aspecto a meio caminho entre um ovo-mole e um canário, ela uma gorda complexada, o horizonte restringido à esfregona, em dias mais luminosos visualiza o pano-do-pó, diz-se na vizinhança que tem por hábito ouvir atrás das portas, para prontamente usar a informação como achar mais conveniente, é bem possível, afinal aquele é um lar com horizontes de rés-do-chão, a gorda nem os pais conheceu, adoptada por uma mulherzinha com um carácter proporcional à capacidade reprodutora, dizia-se lá pela praceta que tivera uma paixão por um vizinho, embora  já vivesse com o ovo-mole da oficina, porém o vizinho, educadamente, ter-lhe-á apontado na direcção da esfregona, pois, aquele é um lar com horizontes de rés-do-chão, e seria impossível a uma mulherzinha com um carácter proporcional à capacidade reprodutora transmitir quaisquer valores dignos à gorda da esfregona, no rés-do-chão direito vivia uma solteirona com umas saias equivalentes à inteligência, costumava vir do trabalho com um colega, denotava-se-lhes familiaridade à distância, embora à noite saísse com outro, apesar de uma similar proximidade, apenas o escasso comprimento da saia subsistia, equivalente à inteligência sublinhe-se, era próxima da gorda da limpeza, como passava muito do tempo no entra-e-sai, carecia de estar informada sobre a vida na praceta e se alguém comentava as suas andanças, por cima do ovo-mole e da gorda da limpeza, no primeiro-esquerdo, vivia uma fulana que se gabava, para quem quisesse ouvir, do facto de lhe terem oferecido a casa, as conversas balizavam-se entre novelas e novelas, talvez tivesse um pensar ainda mais curto que as saias da vizinha do rés-do-chão direito, à sua frente, no primeiro-direito, vivia um sujeito discreto, mal se dava por ele, quase ninguém sabia da sua proximidade com o ovo-mole, convinha-lhe a discrição, tinha muito que esconder, de facto não era um prédio muito recomendável, quase todos os apartamentos eram alugados a um sujeito com aspecto de chulo, baixo, rasca, de gestos e palavras deselegantes, mantinha a renda uniforme a uns quantos para ser informado, de imediato, de possíveis vendas, neste aspecto, quem melhor que a gorda da limpeza? Era visita frequente da solteirona com as saias equivalentes à inteligência, ninguém sabe do que falavam, apesar da gorda da limpeza tanto insistir na lavagem do patamar nesses dias, certo dia, foi o patrão do ovo-mole que lhe veio bater à porta, era mais velho, com uma omnipresente bolsinha à cintura (seria para guardar trocos? Seria para a garrafa de azeite?), tão típica dos subúrbios, havia negócio no horizonte, qualquer coisa ilícita como é habitual nesses contextos, apenas uma frase ressoou da conversa, emitida pelo patrão (“Lembra-te: para isto dar certo, ninguém pode saber da nossa proximidade! Este negócio vai trazer-nos muitos frutos. Não te esqueças: temos de parecer dois quase estranhos!”), mais quilómetros subtraídos, matrículas trocadas, desmontagem de carros roubados, havia movimento no ar, quem os visse, de longe, a conversar, perto da janela, o patrão – os cabelos já nevados, a omnipresente bolsinha à cintura, tão típica dos subúrbios, nos pés usava um calçado de borracha parecido com umas barbatanas, parece que uma vez escorregara em óleo e a queda fora grande, desde então, optara por um calçado de borracha, dos pés à cabeça nada combinava, previsível, embora o azeiteiro transparecesse confiança no modelito – e o ovo-mole, pensasse a assistir a um comovente diálogo entre pai e filho, não obstante a origem do ovo-mole estar no disfarce dos primeiros nevões, tudo ficou acertado, mais um lucrativo negócio na forja, o ovo-mole correu para o primeiro-direito, havia que inteirar o vizinho-cúmplice do papel a desempenhar, convinha-lhe a discrição, tinha muito que esconder, de facto não era um prédio muito recomendável,  havia quem dissesse que o sujeito com aspecto de chulo, baixo, rasca, de gestos e palavras deselegantes, tinha participação nos negócios da oficina, é possível, assim se cumpre mais um entardecer numa praceta dos subúrbios, no primeiro-esquerdo, ao telefone, uma mulherzinha gaba-se de lhe terem oferecido a casa, do rés-do-chão direito uma tipa sai para a noite com uma saia equivalente à inteligência, no rés-do-chão esquerdo uma gorda complexada enfrasca-se em bolachas, de vez em quando olha a esfregona com a fé de lhe subtrair os quilos a mais, pensa em ligar à mulherzinha com um carácter proporcional à capacidade reprodutora que, de forma comovente, trata por “mamã”,  para desabafar por mais  dia de infortúnio, afinal nem o ovo-mole se lembra da sua existência, ocupado que está em ver se tem algum vestígio de neve sobre a testa.

Pedro de Sá

 

domingo, 5 de setembro de 2021

O curral da Peida-Sentada



Num curral algures debaixo do céu deste mundo, um suíno velho, gasto, despedia-se, muito  a contragosto, do seu lugar de líder, reuniu todos os animais da quinta, os seus congéneres porcos, vieram as vacas, as galinhas e perus, os burros, tudo expectante com o sucessor do suíno velho, note-se que poucos se centraram na despedida, quase num gesto de sucessão dinástica, o suíno ergueu uma das patas enlameadas na direcção de uma suína, há muito sua próxima, conhecida como a Peida-Sentada, caracterizava-se por uma extrema discrição, sonsa, muito sonsa, grunhia sempre baixinho, nunca se ouviu, por aqueles lados, um grunhido mais alto, nem antes, nem depois, de facto, mesmo quando lhes atiravam a ração, nunca se viu esta suína em correrias, não se pode falar de uma surpresa por aqueles lados, afinal, tudo se assemelhou a uma sucessão dinástica, ter-se-á alguém questionado “Não houve mais candidatos?”, pois, aparentemente não, assim a suína, conhecida como Peida-Sentada, sonsa, muito sonsa,  ficou à frente do destino dos animais daquela quinta, tratou logo de substituir os ajudantes do suíno velho e gasto, escolheu, para primeiro-ajudante, uma suína mais nova, no focinho ostentava quase sempre um sorriso, um dos velhos provérbios dos porcos diz-nos que “Sorriso no focinho, bolota no escondidinho”, teria igualmente o seu quê de sonsa, quiçá pelo omnipresente e irritante sorriso, pairava à volta da Peida-Sentada como uma nuvem, também não era de grunhidos altos, embora não fosse tão discreta, talvez por ser mais nova, era de passadas mais ligeiras naquele solo povoado de dejectos, escolheu para as relações com as outras espécies uma suína mais velha, deveras macilenta, essa de passadas mais lentas, ocupava-se sobretudo de zelar pela distribuição proporcional nas doses de ração, houve quem questionasse o porquê de ser ela a eleita, afinal bastava olhar aquele focinho macilento para se compreender que a luz ou vislumbre de justiça há muito dali partira, para um observador mais atento, como um mocho sentado num ramo, de onde se via grande parte da vida no curral, o júbilo da Peida-sentada pelo empossamento não passava despercebido, mais de quinze-anos a ladear, como primeira-ajudante, o suíno velho e gasto, naquelas horas de vigília, o mocho apercebeu-se de todas as torpezas que os porcos faziam para ganhar espaço, receberem primeiro a ração, em relação às outras espécies, sem esquecer as rivalidades entre si, a Peida-Sentada, neste particular, há muito familiarizada com este cenário, soube escudar-se  na escolha dos porcos mais próximos  e dos que mantinha alguma distância, sabia, por exemplo, que era observada pelo mocho, daí procurar, por todos os meios, não lhe dar relevância, ninguém gosta de ver ao espelho as suas iniquidades, havia outros animais por lá que a suína também evitava confrontos, uma porca, por exemplo, com os dentes assemelhados a um esquilo, essa grunhia bem-alto, mal de tudo e de todos, sempre que estivessem ausentes, claro está, um dos mistérios daquele curral era que segredos guarda  essa porca para que ninguém a silenciasse, claro que uma suína com dentes de esquilo, já de si, não era agradável à vista, e teria consciência deste facto, os seus horizontes cingiam-se à hora da refeição e a grunhir bem-alto mal de algum ausente, apenas e só, a dada altura, para se compreender melhor quem era a suína conhecida como Peida-Sentada, veio a porca, que partilhava a ração com o suíno velho e gasto, contar-lhe uma coisa, era uma porca gorda, o sonho de muitas empresas salsicheiras, os quadris traseiros dariam para muitas toneladas de enchidos, tal a sua volumetria, claro que a Peida-Sentada a auscultou com a devida atenção (não se tratou tudo de uma sucessão quase dinástica?), disse-lhe que também se ia embora daquele curral, que já tinha sucessor para o seu lugar na enxovia, tinha um plano e o seu executor, a Peida-Sentada ouviu-a e anuiu de imediato, o escolhido  para levar adiante a tramóia, em troca de um lugar mais privilegiado na enxovia, foi um porco de pernas arqueadas, também grunhia alto na ausência dos outros, daí a sua amizade com a porca dos dentes assemelhados a um esquilo, este suíno vivia nos confins da pocilga, almejava um pouco de luz, de atenção, era isso que o movia, as pernas arqueadas não ajudavam a encontrar a luz, baixo, revoltado com os anos nos confins da pocilga, prontificou-se a fazer um trabalho sujo, nada de novo para quem vive atolado na imundície, neste caso com a agravante de ser um porco baixo, a trampa estava-lhe marcada até às orelhas, assim foi, o porco cumpriu com o plano a troco de um melhor lugar na pocilga, a porca gorda partiu com a sede de vingança extinta, nem se preocupou em saber se teria sucesso, e a Peida-Sentada assistiu a tudo, porém, tratando-se de um plano engendrado por porcos, o cheiro chega muito antes deles, e este foi um dos seus erros, assim sendo, há que estar atento aos ventos, por vezes traz-nos o cheiro de currais.

Pedro de Sá