Livros

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domingo, 29 de novembro de 2020


 


 


 

A cada um o seu mundo


 

Entrou em casa, ainda carregada de dia, o barulho dos sacos de plástico incessante, demasiado pesados para as forças de hoje, mas o seu conteúdo tão aquém do frigorífico, o filho com os assuntos da escola, e também a apontar para uma caderneta recém-estreada, à volta dela, ainda mais audível que os sacos, que o trânsito em ecos oceânicos no seu interior, a filha, mais velha, na mudez estridente de dedos e teclas, absorta, sempre, com o telemóvel, a mãe Não me queres dar uma mãozinha a arrumar as compras? A filha tarda na resposta, ainda o telemóvel, um abanar de cabeça, o ecrã ilumina-se, ela a sorrir, polegar e teclas em uníssono, imparáveis, a mãe, de novo, Ouviste o que eu disse? A filha, Sim, vou já! Mas ainda o telemóvel, o filho, por seu lado, a assegurar o futuro, já três colegas fazem aquela colecção, a mãe anuía, com a cabeça dentro do frigorífico, a contar mantimentos, a filha longe daquele horizonte de azulejos, frigorífico, e panelas, por fim, ecoa um Estou a ir! Contudo, o telemóvel, de novo, iluminado, ela de regresso àquele diminuto horizonte rectangular, polegar já em riste, o filho persiste na apologia da caderneta, a mãe ainda com os sacos, ouve-se a campainha, dirige-se para a porta, o filho à sua volta, a assegurar, com abnegação, um amanhã de novas cadernetas, a filha talvez não ouvisse a porta, afinal, agora abanava a cabeça, de novo, polegar e teclas, a mãe, à porta, aguardava o elevador, a porta abre-se e surge-lhe a sogra, agora é ela em suspiros e cabeça em horizontalidades. A sogra em sorrisos e com uma voz a recordar-lhe o trânsito. A sogra Espero não incomodar… A mãe sob o manto da educação, a sogra já dentro de casa, com aquele, porventura uma impressão, olhar detectivesco, como se buscasse o indício de uma dona de casa falhada, talvez depois para o filho Bem te avisei! O neto abraçado à avó, esta em segredos, a mãe a observar esta cumplicidade da outra margem, na impotência de ecos (sim, de novo, o trânsito, uma noite mal dormida, cada vez mais secretárias vazias lá no escritório…), de repente, a filha a segurar a carteira da idosa, solícita, a convidá-la a sentar-se, nem vislumbres de um rectângulo iluminado, talvez no bolso, votado, por instantes, ao silêncio, sim, deve estar algures por aí. A mãe acompanha a cena, balizada por secretárias vazias e por uma solicitude dos seus nunca sentida, a sogra olha-a deste pódio, compreende o embaraço da nora, os netos a ladeá-la, prontos a ouvi-la, e a serem ouvidos, claro, a mãe regressa à cozinha, antes: Quer jantar cá? Mais por educação, nem se apercebeu de proferir a questão, secretárias vazias diante de si, cada vez mais, nem ouve a resposta, depois das compras arrumadas, de uma sopa a aquecer, regressa à sala, a sogra já de pé, prestes a sair, findo o diálogo intergeracional, sempre as similitudes entre amanheceres e entardeceres, os filhos com o rosto em sorriso, a sogra a olhá-la, apreensiva, antes de sair, Ainda hoje ligo para conversarmos, o elevador, a porta a fechar-se, o filho interrompe a caderneta graças aos trabalhos escolares, a filha ocupa-se a pôr a mesa para o jantar, talvez, sim, talvez, um dos bolsos povoados pelo telemóvel, de novo, a campainha, agora é o pai. Regressa, também, a olhar chão. Entra em casa com um sorriso de arames. Cumprimentam-se. O filho, após olhar ambos, decide que as suas investidas, após os deveres, por uma caderneta a cheirar a amanhã, serão pelo lado materno. A filha de novo no seu mundo, de porta fechada, o rectângulo agora do computador, mas o telemóvel ao lado, não vá o polegar enciumar-se, ocupada com a linguagem do seu tempo: uma fala sem rostos… Após o jantar, pautado pelo desvelar superficial da circunstância de cada um, o filho deita-se já com a promessa materna da caderneta, a filha novamente com um ecrã (o rosto destes dias), o pai, sentado, folheia o jornal oferecido pelo porteiro, e ela, deitada no sofá, com a sua telenovela. Enquanto acompanha aquelas vidas de outros, distancia-se de si. Ao menos, não ouve sacos de plástico, nem vê secretárias vazias à sua volta. Por fim, o cansaço. Sente alguém a tapá-la, com a colcha daquelas ocasiões. Talvez o filho, depois da caderneta, num abraço lhe relembrasse sentir, talvez a filha se sentasse, diante dela, para se dar a conhecer um pouco, e talvez, não, isto é certo, alguém se levantou para tapá-la, e, apesar do cansaço destes dias, que nos arrasta o olhar pelas calçadas, acaricia-lhe o rosto com um gesto, beija-lhe a face com um sabor a lar. Ela retribui num sorrir. Sim, por muitas secretárias vazias à sua volta, sabe que há sempre um sofá e uma colcha de ocasião à sua espera. E isto é mais que o suficiente. Há quem lhe chame regresso.

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Quando já somos uma fotografia


Terminado o almoço, como se aquilo fosse uma refeição, uma sandes engolida a custo com um refrigerante, sempre com demasiado gás, em pé, a colega, à sua frente, não uma, mas duas sandes, que não lhe interrompem o monólogo, sim, engolia sem cessar a catarse emocional, ela representava, numa performance extasiante, a boa ouvinte, as duas ali, num desses intitulados restaurantes de comer rápido, que se multiplicam numa cadência monótona, como se, de certa forma, esta incessante visão do mesmo nos anunciasse um fim: o da esperança. Não há lugar à novidade no horizonte cansado de hoje. Por melhores palavras: o horizonte é que perdeu o seu lugar; foi destituído pela repetição. E ninguém estranha. Afinal, o que são os dias presentes se não uma cuidada repetição de si mesmos? Ela a disfarçar o gás, a colega prossegue o debitar de angústias, analisa, de forma cuidada, diga-se, o actual momento das três novelas que segue, com beatífica devoção, tudo sob o ritmo inclemente do mastigar, cansada da repetição, daquele mastigar despudorado, de assuntos de ontem (há, cada vez menos, diálogos e assuntos de amanhã), olha para além do vidro, àquela hora, um vai e vem de gente, ouve risos demasiado altos para a sinceridade, observa gestos demasiado teatrais para o assunto, roupas demasiado pensadas para a ocasião, tudo num excesso de ser. Findo o mastigar e o repertório de temáticas, deambulam um pouco por lojas, roupas, mais roupas, e roupas, a colega Esta camisola fica-me mesmo bem! Não achas? Ela a ponderar uma resposta, sim, de certa forma, disfarça-lhe uma cintura em franca expansão, a cor (um discreto azul-escuro) também concorre para esse fim, é comprida, serve de dique àquelas nádegas invernosas, acaba por comprar a camisola, mais uma. Deixam a loja, a colega de saco na mão e sorriso no rosto, ela há muito deixara de sorrir por sacos e roupas, agora a escada rolante, desciam, em sentido contrário sentiu o calor de um olhar, uma familiaridade com a sua geografia, olhos que se encontram, ela a descer, ele a subir, a colega na distância de um saco e de uma camisola azul-escura, barragem de mastigares, naquele instante de um olhar, em que passado se sobrepõe a presente, o mundo imóvel, ambos sabiam, por voz desconhecida, que não ia haver cumprimentos, o passado diante deles, de repente, ela no fim da escada, ele, não, não vai olhar para trás, o regresso ao escritório, pelo caminho, a antevisão, pormenorizada, do serão novelesco, reconciliações, lágrimas, zangas, chegadas ao escritório, a colega a antever o lanche, talvez amanhã compre uma camisola ainda mais escura e um número acima, mas isto de analisar conteúdos tão complexos é de grande desgaste calórico, daí a fome, mas já não a ouve, permanece numa escada imóvel a olhar uma janela para o passado. 

Nessa noite, chegada a casa, abriu caixas de cartão cheias de ontem. À medida que regressava, suspirou, entristeceu-se, sorriu, por fim, encontrou. Estavam numa moldura, de plástico transparente, ligeiramente rachada no canto inferior esquerdo, encostados a uma árvore. Apenas os ombros se tocavam, mas era o bastante para se saberem um. Nenhum deles sorria. Era natural, sabiam o que partilhavam. Era demasiado sério para risos imbecilizados. Uma certeza não origina risos. Talvez pelo seu carácter de permanência. É curioso: apesar da idade, não havia naqueles rostos vislumbre do sonho. Como se soubessem esgotados. Sim, de novo a certeza. A convicção de um sentir ímpar, surgido na manhã da vida. Apenas um ligeiro aproximar de ombros, e eles na certeza de um beijo abraçado além-tempo. Não havia espaço entre eles. A forma como os ombros se tocam. Suspira, de novo. Ela, hoje, não o viu. Apenas o sentir. Diluiu-se escada acima. Abandona a fotografia. Recoloca-a nos despojos de ontem e fecha a caixa. Estava a esvaziar-se, perante aquele instante de tempo. Porque, no fundo, perante uma fotografia, opõem-se duas circunstâncias. Ele a afastar-se, naquele momento da tarde, em direcção contrária. Ela talvez tenha olhado para trás. Ou não. Por fim, arruma a caixa. Encosta-se a uma parede. E pousa uma mão no ombro. Ao de leve. De olhos fechados, mas pensar aberto, sorri, porque, sim, foi verdade.

 

sábado, 14 de novembro de 2020

Um balouço chora ao vento


 

Hoje chove lá fora. É daqueles dias em que o mundo nos vira as costas. Sem direito a porquês. Como se não tivéssemos importância. E, de facto, não temos. Porque, na realidade, só somos insubstituíveis para nós mesmos. O mundo sempre ali esteve, antes de o olharmos, e estará, quando já não o vermos. No fundo, somos a circunstância de nós mesmos. Nada mais. Agora, olho o mundo pelo quadrado envidraçado de uma qualquer divisão desta casa. Quantas casas cabem numa vida? Talvez um dia as compreenda. A chuva pinta o mundo de um cinzento demasiado cinzento, e eu grato, ali, da janela, a compreender o conceito de lar, a agradecer-lhe, pela janela, pelo calor, por me ensinar a chuva. Lá em baixo, na rua, poucos vultos, numa pressa cautelosa, para não caírem, uma mulher procura harmonizar um saco, demasiado pesado, com o guarda-chuva, a inclinar-se teimosamente com o vento, ela a avançar, num esforço de conquista, com passadas reflectidas, como se obedecessem a um escrutínio criterioso, mas as pernas arqueadas, o saco quase a roçar o chão, hoje aquoso, a carteira que lhe obriga o ombro a subir, tardam a glória deste heróico regresso ao lar. Mas, de onde estou, leio-lhe abnegação no rosto, estes chegam ao destino, não importa a velocidade. A chuva intensifica o seu canto. Talvez se lavem pecados no mundo dos homens. Que horas são? Não sei, perdi o tempo. O mundo, lá fora, escurecido pelas lágrimas das alturas. Aqui e ali, ainda carros. Ouço o telefone algures pela casa. Com o seu toque demasiado insistente, quase imperativo, mas resisto-lhe, nada me demove desta vigília, em mim demasiadas lágrimas, e este canto das alturas ecoa nas minhas raízes. Lá fora, cada vez menos carros, os passeios vazios, nem vestígios de um saco demasiado pesado e de umas pernas arqueadas, talvez um sorriso esconda uma abnegação cansada na chegada ao lar, que se reveste de uma alegria cumprida com o seu regresso, porventura um sentir de sentido perpasse nos corações que a recebem, nos lábios que a beijam, nos braços que a aconchegam, e também ela compreenda lar. Mas há muito que o sabe, daí a passada reflectida: só caminha assim quem conhece a importância do destino. Agora, nem a luz dos carros risca o negrume exterior. De novo, o telefone, insistente, no interior vazio da casa. Permaneço à janela. Convocou-me primeiro. Os candeeiros já iluminados. O meu olhar naquele espaço, lá em baixo, de risos e brincadeiras. A vê-lo assim, a suportar as mágoas dos homens, parece-me que brincadeiras e risos só noutra existência. O balouço num abandono de orfandade. Talvez amanhã, pelo meio da tarde, se cumpra. Gotículas amontoam-se nos cabos vagamente oscilantes. Move-se timidamente, como se retraísse uma tristeza vinda de uma lembrança. Sim, talvez seja isso, certamente, numa longínqua tarde ensolarada, um miúdo, depois de um infindável vai e vem, entre risos, brincadeiras, jogos, lhe tenha confiado um sonho. O balouço continua num oscilar tímido. Acompanho-o com a ternura espontânea do instante. Como se irrompesse do momento e nos sufocasse com um abraço sem amanhã. Sim, é verdade, há quanto tempo viajamos juntos? Uma vez mais, o telefone. Desta vez, não lhe resisto, e corro, casa adentro, à sua procura, talvez o balouço me queira relembrar um sonho depositado no tempo.


domingo, 8 de novembro de 2020

Uma nuvem branca suspensa no azul do horizonte


Hoje ela saiu inquieta de casa. Qual a fonte desta inquietude? O que lhe terá provocado aquele andar pensante, a mão irmanada ao peito, o olhar raso? Cumprimenta os conhecidos, à medida que os vê, rua abaixo, com uma expressão elucidativa de aquém-verbo. Ao contrário de dias recentes, não pára nas sombras para lhes saborear a frescura, observar os passeantes, e olhar o céu. Como gostava daquela pureza azul! As alturas, e ela cada vez mais próxima da terra. Sabia-o. Hoje fazia anos que lhe partira o marido. Daí este desregulado sentir que lhe emigrou a razão para longe de si. Quantos anos de casamento? Os suficientes para se fugir à aritmética, e para saberem a vida. Desde então, uma existência pintada de noite. Não se importa. Se bem que… Sim, talvez por isso, aquela lassidão que a domina naquele olhar vertical em busca de um azul pontuado pela brancura sonhada das viajantes celestes. E ela, um desamparado ser da terra, coberta de noite, a sentir distância. O tempo distancia-nos do mundo. É verdade, começa por nos subtrair rostos, de seguida, demora-nos o movimento, por fim, lembra o passado, mas elimina-nos o futuro. Assim, o mundo torna-se a distância. E se ela não pode chegar à distância horizontal, a dos homens, perde-se nas alturas. Talvez aí seja a casa das virtudes. Prossegue a sua marcha arrastada. Talvez caminhe ao sabor das lembranças. Como ele ultimamente estava magro, a idade já lhe mudara o algarismo da esquerda, mas este sentir sabe a ontem, já não se levantava, amarelecido, a cor da doença, no fundo, é quando a vida começa a fazer a mala, pairava um adeus naquele quarto, até que, uma manhã, já não houve aquele olhar falante, sim, para ela bastava, sem poder mais, extenuado da guerra da vida, por fim, vencido, ele apenas lhe queria dizer, nem que fosse com o olhar que, sim, que… Sem problema, ela compreendia, e retribuía-lhe no singular de um beijo na face. É curioso, com a idade reaprendemos as subtilezas do pudor. Por outras palavras: aprendemos a harmonia do sentir: que requer lentidão, paciência, e simplicidade. Uma vida para isto. Ao menos que o ocaso da vida nos ilumine as evidências… Ela, por fim, desagua no largo central. Os habituais sentados nos bancos, com a vista ávida de novidades (nunca chegadas), a comentar parangonas de crises cansadas de tanto serem, transeuntes a cirandar num imperativo incógnito, alguns de jornal debaixo do braço, como se de um sinal de actualidade se tratasse, pombos pululam mais no chão do que nos ares, numa coabitação pacífica, assente em migalhas e símbolos de epifania. De onde está, avista o edifício de pedra com uma cruz ao alto, onde, num certo dia, entrara vestida de viajante celeste, pela mão do pai, para sair de mão dada com o destino. O destino na forma de um homem que a olhou sempre da mesma maneira. Ela regressa ao templo. Agora só. Lá dentro, dois ou três vultos, curvados, numa súplica de dores muito subterrâneas. Senta-se num banco próximo da porta. Inspira. De certo modo, ali sente uma paz. Talvez pelo silêncio reinante. Talvez pelos quadros em volta, que, na sua maioria, apontam para uma verticalidade que lhe é tão próxima. Nasce em si uma súplica: que se lhe permita beijar, de novo, uma face, e reencontrar um olhar falante, e dizer-lhe, de novo, que sim, num além-verbo, na linguagem do sentir, talvez se ela, agora, olhar para cima, veja uma mão estendida, que aguarda pela sua, a leve em direcção à porta, a noite ficara para trás, ela envolta em alvura, como as viajantes dos céus, deixam o templo, de mão dada, chove-lhes felicidade sob a forma de grãos de vida, nisto, uns lábios aproximam-se, para lhe murmurarem: Eu amo-te. 

terça-feira, 3 de novembro de 2020


 
... a brisa vespertina não enlevou somente o virar de páginas sob frondosas ramagens, aproximou lábios sedentos, e foi inteiro em cada gesto, em cada palavra, no fundo, condensou o universo no seu sentir...

in Deslumbramento

domingo, 1 de novembro de 2020

O que murmura uma parede de caliça numa tarde de Verão?


 

Ainda é cedo. Sim, veem-se poucos carros a circular. E os que se vêem denunciam um sono inconcluso. Talvez mais um sonho: sempre interrompido no limiar de um qualquer oásis. Já de mochila às costas, lancheira numa das mãos, sai para a manhã, acompanhado do pai. Corre para o carro, ainda coberto de noite, sob a sentida vigilância paterna. Leva na mochila o pecúlio do último aniversário para, no intervalo maior, a imaginação soltar-se, e então haverá cavalos, cavaleiros, castelos, princesas, e, quem sabe, algo esquecido no travesseiro abandonado. Senta-se no banco de trás, ainda adormecido, daí o frio, e olha o despertar do mundo, o início de um movimento com o sabor do tempo. Bebe, na sede de um viajante recém-chegado, cada rosto, cada esquina, o aroma a café, as cores expostas na mercearia, a luz infantil e risonha da manhã, e o seu olhar, num espanto sincero, transparece a emoção que o habita.

Regressa a casa para almoçar. Leva os livros na mão. Um passo arrastado, que indicia o enfado interior. Será que lhe correu mal a escola? Não será bem isso. Talvez uma outra coisa. Anda cansado. Coube-lhe um papel tão difícil nesta existência: o de actor. Sim, de facto, é esse o seu papel. Aceitou-o sem reservas, sem questionar, como se tratasse de uma inevitabilidade. Triste fado, o seu, pensava, enquanto pontapeava as pedras que se lhe insurgiam no caminho. É tão complexa esta arte de representar! O público exigia-lhe uma personagem confiante, de certezas inabaláveis, mas só o habitam dúvidas. E ele sofre, porque as questões o soterram, mas o público é inflexível. Ainda há aquela colega, onde se demora o seu olhar, sobretudo na aula de Inglês, porque nessa altura o sol nos seus cabelos, nesse ponto deixa de haver tempo, e ele apenas queria comunicar este sentir. Nada mais. Talvez o público seja uma criação sua. Talvez em casa anseiem por um sinal deste sentir. Mas ele permanece em palco, e, desse modo, soma distância.

Sai ao entardecer para as compras. Leva a lista, elaborada pela mulher, no bolso. Já sente o cansaço do palco, mas, ainda assim, não o abandonou. Sente, no fundo, que jamais o abandonará. O passo decidido e fluente. Mas, em certos aspectos, denota-se uma desilusão de artista. Isto acontece quando a indiferença se sobrepõe aos aplausos. Entra no supermercado, tira um carrinho, e começa a preenchê-lo. Hoje habitam-no dúvidas de outra ordem. Mais de cariz matemático. Não menos lancinantes que as anteriores. Já tem com quem partilhar o sentir, se bem que seja apologista de certos recatos. Uma das queixas frequentes da sua mulher. O tempo é um inclemente devorador, e, na sua memória, cada vez mais raramente, lhe surge a imagem, numa longínqua aula de Inglês, de uns cabelos alumiados: essa memória derrota o tempo. A isso chama-se viver.

Após o jantar, sai para passear o cão. E não só. Também lhe facilita a digestão. Ela permanece diante do televisor (grita-lhe um: Vai com cuidado! Lembra-te da tua bacia!), e ele resmunga, na surdez de lábios fechados, por este desvelo das suas fraquezas. Talvez ainda um pouco de si no palco. Sim, há promessas que cumprimos. Talvez as mais oportunas. O cão na ânsia de rua, a puxá-lo, ele a tentar refrear os ímpetos do animal, uma luta diária e repetitiva, por fim, a porta abre-se, saem ambos para a noite, e, aí chegados, cada um, de certa forma, saboreia aquele resquício de liberdade. Ele, cada vez mais afastado dos palcos, compreende aquele instintivo anseio do cão. É apenas a natureza a cumprir-se: o animal com a lonjura. Se tivesse descido há mais tempo do palco, talvez… Sim, talvez, tivesse derrotado mais vezes o tempo. E tivesse aberto mais portas na vida. Agora é tarde. A compreensão só nos bate à porta, após a partida do ilusório. Já não ostenta no olhar um espanto sincero. Apenas um cansaço acumulado por uma teimosia vinda do desconhecido. Já não se revolta. Apenas encolhe os ombros. Compreende, agora, a condução cautelosa do pai. Àquela hora da manhã, talvez, parte dele, ainda povoasse o travesseiro. O pai sempre preferiu a frescura das sombras à inclemência quente da luz. Talvez, por isso, sorrisse com mais facilidade. É curioso: nunca lhe perguntou o porquê de uma mochila tão cheia.