Livros

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sábado, 30 de maio de 2020

domingo, 24 de maio de 2020

Quem sou eu?



De repente, a manhã em saudações para a tarde, a questão salta-me ao caminho, de forma inesperada, brusca, com o seu quê desdenhoso, ali fica, diante de mim, a pairar, sabia, de antemão, que não teria resposta para a silenciar, eu, perplexo, confinado a um canto do meu sótão, procurei, com avidez, palavras que permitissem construir uma frase razoável para aquietar o desagradável silêncio instalado na sala após a questão (Afinal, quem é o Pedro?), confesso que fiquei siderado com a pergunta (Afinal, quem é o Pedro?), por muito que procurasse, no chão da minha alma, recolher palavras, nenhuma se me afigurou satisfatória para construir uma frase, porém, nunca gostei de derrotas antecipadas (um vislumbre sobre quem eu sou, quem sabe uma nuvem partira…), de novo, olho o chão da minha alma em busca de escolhos que me permitam reconstruir enquanto ideia, é sabido que, quando não temos resposta pronta, devemos repetir a pergunta para ganharmos tempo, foi a solução de recurso encontrada (“Pois… Boa pergunta! Sem dúvida! Quem sou eu?”), neste ponto, um longo horizonte nocturno, foi a única imagem diante de mim, um longo horizonte nocturno, nem vislumbres de centelhas, aqui e ali, a pontuar essa noite infinda...

sexta-feira, 22 de maio de 2020


Uma lágrima ainda quente, na memória de um rosto



Estacionei o carro e saímos. Caminhámos, em nós, passos do entardecer, em direcção ao restaurante. Ela um pouco mais à frente, ou mais atrás, já não me lembro, mas nunca a meu lado. Sim, disso tenho memória. Quantas vezes, na vida, não olhamos para o lado? Pois é, as grandes viagens não se fazem com a solidão. Trocámos três ou quatro frases, antes do restaurante. Ela longe, eu a olhar em volta, mas nada me acudia. Pelo contrário, tudo me virava o rosto. Num ignorar obstinado. Em que estação estávamos? Pelo vestuário, e entardecer precoce, estávamos na estação sem sombras. A noite empurra o dia, sem nos permitir um adeus. Ela continua no seu caminhar de interiores, ora mais à frente, ora mais atrás, e eu a olhar o futuro num desamparo crescente. De súbito, uma luz, que julguei fundida, acende-se no meu sótão. Desconhecia este recanto. Olho-o no espanto de primeira vez. Agora tenho de sair e descer a escada a correr, estamos à porta do restaurante. Ela entra primeiro, claro. Numa altivez que começava a desencantar, um pouco como aquelas piadas que à segunda ou terceira vez apenas merecem o pudor sob a forma de um sorriso amarelado. Escolhi uma mesa propícia a sussurros e a gestos sonhados. Ela, primeiro, tirou o casaco e depois sentou-se. Sentei-me, de seguida. Nisto, antes de qualquer frase trocada, ela levanta-se e retira o cachecol do pescoço, num movimento indefinível, numa harmonia entre mão e cabelos, como se de fotogramas se tratasse, de repente, os cabelos estáticos no ar, algo do cachecol ainda no pescoço, e eu bebia cada frémito na avidez do viajante… Por fim, ela diante de mim. Eu a perder-me naquele rosto… Quantas vezes perdemos a bússola de nós ao viajar pelos caminhos de um rosto? Mas, cada passo tinha um sabor aporético. E eu a regressar a mim, sim, a bússola reencontrada naquele silêncio. Ela de acordo com a estação. Num hermetismo férreo. O cansaço a dominar o leme da minha vontade. Subitamente, o meu olhar no cachecol pendurado nas costas da sua cadeira. Pareceu-me uma lágrima num rosto. Quase tocava o chão. Pareceu-me vê-lo numa oscilação leve. O meu ver por ali ficou. Desde o espaldar até àquele quase mover sem tocar. Tinha uma cor triste, condizente com a estação. E, de uma forma muito própria, ilustrava-nos. Uma lágrima por cumprir. Um adeus por dizer. É isso. Compreendi o malogro. Quantos paludes não erigimos com as próprias mãos? E eu já não nela, mas no meu sótão, preocupado em descobrir as velharias que esta nova luz me apresentou. Ela, lá muito longe, disse qualquer coisa acerca do repasto. Corro para uma janela e respondo: Sim, pode ser isso…

domingo, 17 de maio de 2020

quarta-feira, 13 de maio de 2020

Vazios



Um das mais vívidas memórias da minha infância é de viajar, de facto, houve uma altura onde o mundo se apresentou através do vidro passante do carro, meu pai ao volante, minha mãe a seu lado, eu, no banco de trás, na fé da infância, sem dúvida a mais pura, ainda ecos da voz de Deus, achava que meus pais estavam ao leme do destino, como é enternecedor o olhar de uma criança (os pais ao leme do destino), que ilusão, talvez envelhecer seja a compreensão de que nunca houve lemes, apenas destino, daí tanta amargura sobre a terra, apenas cada um às voltas com o seu fado, há uns dias, não sei bem porquê, dou comigo às voltas com um antigo álbum de fotos, enquanto virava as páginas, o olhar turvou-se-me, quantos já não partiram…

quinta-feira, 7 de maio de 2020

A doce lonjura de uma manhã de férias



Cedo percebi que, nos adultos, havia aqueles que se contentavam com a sua circunstância e os outros, os permanentemente insatisfeitos, apesar de, nessa altura, a minha idade ainda não precisar de dois algarismos para se ilustrar, estaria no quase, compreendi a fatalidade de nitidamente pertencer ao segundo grupo, nem vislumbres de hesitações, estava fadado a caminhar pelo trilho da inquietude, compreendi quão íngreme seria o meu caminho, em casa tinha os dois exemplos: meu pai, um resignado caminhante pelo contexto de cada momento, e, diametralmente oposta, minha mãe, as suas infindáveis querelas interiores transpareciam até ao matinal olhar da criança que ontem fui, embora ainda por aqui esteja, um estado de insatisfação constante, nada lhe retirava, do rosto, um vincado traço de azedume, como se o mundo tivesse para com ela uma impagável dívida, só a presença de alguns familiares ou até estranhos esbatiam, por escassos segundos, esse negrume da sua face, lembro-me tão bem, apesar de parecer ter sido noutra existência, de facto, já fui tantos, embora neste particular de existências, não me considere o resultado de quaisquer somas anteriores, hoje, felizmente, sou o que decidi ser, não sei se muitos se podem orgulhar de tal, não quero com isto dizer que tenha a vida que desejava, longe disso, mas esta distância advém de fatalmente pertencer aos que caminham pelo trilho da inquietude (…)

quarta-feira, 6 de maio de 2020

Quem compreende o Comboio, sobe homem, mas desce menino




Hoje celebrei um rito, adormecido algures no tempo de mim. Sim, como estava a dizer, hoje fui andar de comboio. Sem motivo de relevo. Apenas uma decisão nascida do instante. E, como é sabido, a duração do instante depende da cor da memória. Àquela hora, o movimento tinha a luz de meio da manhã. Por outras palavras, espreguiçava-se. Como cheguei à estação? Já não me lembro. Fui de carro? Apanhei boleia de alguém? Autocarro? Afinal, para onde ia? Não me recordo. Porque o instante pertencia, no seu todo, ao comboio. É a memória mais vívida em mim. Paguei o bilhete com moedas, subi para a plataforma, inspirei aquele singular aroma a carris e viagens – não, não é um cheiro de poluição! A poluição é um beco, nunca um horizonte. Ainda assim, muitos quiseram assistir ao meu rito. A plataforma preencheu-se. De repente, os carris a sibilar, e um apito, de pais legítimos, cantou pelos ares. Aproximo-me da borda, e olho à minha esquerda. Lá vinha ele, sim, confesso, percebi que estava feliz pelo reencontro, eu também, como já vos disse, assim que se imobilizou, no esforço singular de quem foi criado para o movimento, eu entrei num amplexo sentido, e, como sempre, só assim o rito tinha sentido, nunca podia ser de outra forma, sentei-me à janela. À minha frente, uma senhora de idade, a seu lado, um sujeito na casa dos quarenta, e, do meu lado esquerdo, sentou-se uma adolescente. Subitamente, um ressoar metálico, de novo o apito, um ligeiro desequilíbrio, e o destino cumpria-se. A nitidez esmorecia nas janelas, enquanto eu fechava os olhos para sentir, melhor, aquele navegar, indiscritível, sobre correntes paralelas metálicas. E o ritmo cadenciado, como pulsação fosse, ou vaga vencida deixada pelo caminho. De repente, uma curva, e olho as carruagens mais à frente. Sim, pois, a vida. Todos havemos de lá chegar. Compreendo. A marcha, agora, abranda. O apito (desculpem, a nota musical, afinal, trata-se do som de um sonho de meninice. Que nome dar aos sons dos sonhos?), a nitidez ressurge, e a imobilidade torna-se presente. As portas abrem-se. Há agitação. Uns apressam-se a sair, numa urgência além compreensão. Outros procuram entrar, numa sofreguidão similar, como se receassem a perda de um papel sem substituto. Pois, a vida. Quantos saíram? Quantos não olhei? E estes, agora, nascidos do nada, ali, diante de mim, numa exigência de olhar, além-verbo, como se uma presença fosse comunicável, e eu comigo, a suspirar por um apito, e a desejar a derrota de mais vagas metálicas, sob o compasso de um balançar com aroma de horizonte (…)

sábado, 2 de maio de 2020

Uma mesa, duas cadeiras



No silêncio desta madrugada, uma ideia senta-se-me no pensar, vinda de um lugar incógnito, no fundo, de onde brotam as ideias que se nos demoram no pensar, pressenti que esta, de facto, pousara as malas: algum dia iremos terminar as conversas interrompidas? De costas para a janela da sala, olho a mesa, as cadeiras, de novo, algum dia iremos terminar as conversas interrompidas? Nem teria de ser por aqui, podia ser do outro lado, onde a cada respirar mais nos aproximamos, tantas palavras reprimidas, silenciadas por, na altura, não terem encontrado a voz, atropelam-se num ponto difuso de nós, levantam dias idos onde, se tudo numa outra direcção, talvez as conversas terminadas, aqui estou, de costas para a janela da sala, a olhar a mesa, as cadeiras, a reflectir se, neste momento da vida, estou onde de facto deveria estar, se tudo não poderia ser uma outra coisa, na tragédia de só podermos viver, pelo menos de cada vez, uma existência, pois, algum dia iremos terminar as conversas interrompidas? Agora surge-me a imagem da dona Maria do Céu, mora no prédio em frente, no segundo-andar, nunca casou, viveu sempre com a mãe, acompanhou-a até à sua última expiração...