Livros

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quarta-feira, 31 de agosto de 2022

segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Como é que é, Brother?


 

Alguém só nos morre, por inteiro, quando deixa de habitar na memória, nem por acaso, hoje iluminou-se-me, nesse espaço que traz o ontem ao hoje, um vulto singular que, do seu jeito, deixou uma marca indelével sob a forma de uma frase, mais concretamente de uma interrogação, mas já lá vamos, conheci-o por frequentarmos o mesmo ginásio, quando alguém entra num espaço, pela primeira vez, de forma natural suscita curiosidade, neste caso foi amplificada por características deveras particulares, entrou com um ar desconfiado, semblante carregado, a olhar os próprios passos, um gorro na cabeça que lhe conferia uma aura simultaneamente anacrónica e descontextualizada, como se, algures no seu caminho, perdesse a direcção, um presídio norte-americano ou uma plataforma no Alasca ser-lhe-ia o destino indicado, porém, ali estava ele, à minha frente, a tirar o supracitado gorro, um sobretudo que se arrastava pelo chão, deixou-os a um canto da sala, como se não houvesse balneários para o efeito, talvez nem conhecesse o conceito, também não era eu a explicar-lhe, ali só o treino me interessava, nem sabia se falava Português, ou qualquer outro idioma, os demais presentes também se mantiveram focados nos exercícios, ninguém interrompeu a sua actividade por causa de um gorro e sobretudo a mais na sala, reparei que o rabo-de-cavalo, naquele caso, talvez pela baixa-estatura, tez morena, lhe conferia aspecto de médio-Oriente, sim, algures por aí, um Aladino rebelde que resolveu alistar-se nos talibã, olhou à sua volta com familiaridade, apesar dos passos-arrastados, postura-curvada, a olhar o chão, ia decidido para uma máquina, ao passar por mim, proferiu, quase em surdina, sob a forma de um nítido cumprimento, uma frase que iria alterar, irreversivelmente, a minha mundividência, foi, para mim, como se uma epifania, estava quase a ladear-me, repito, no seu passo arrastado, a olhar o chão, quando ouço, como se um eco vindo de uma galeria cavernosa, “Como é que é, Brother?”, de início, repito, pareceu-me um longínquo eco, proveniente de um qualquer subterrâneo, demorei a processar a informação, até porque não tinha um rosto a olhar-me para devolver o inusitado cumprimento, contudo, a frase continuava, nesse momento, a ecoar em todos os cantos do meu ser “Como é que é, Brother?”, pois, o emissor só podia ser o recém-chegado, o imperativo da educação obrigava-me a devolver o cumprimento, olhei-o, apesar do passo-arrastado, só apanhei as costas, não obstante este facto, devolvi a saudação “Como é que é?”, deixei cair o anglicismo, neste ponto outros valores levantaram-se-me, felizmente ainda perduram, assim teve início a nossa comunicação, de forma lenta, desconfiada, contida, mas nenhuma grande história começa com fogo-de-artifício, não é verdade? Vinha sempre à mesma hora, a postura não se lhe alterou um milímetro, passo-arrastado, olhar centrado no chão, semblante desconfiado, porém, sempre que se aproximava, “Como é que é, Brother?”, nem todos se podem gabar, nesta vida, de receber uma saudação vinda de uma galeria cavernosa, foi mais ou menos por volta da terceira semana desta intensa troca de informações que me colocou, de forma original, uma das mais antigas questões da humanidade, aqui ressalve-se o seu espírito-criativo, nesse princípio de tarde, ao contrário do habitual, denotei-lhe os gestos ligeiramente mais nervosos, olhou-me, após o inevitável e tão desejado “Como é que é, Brother?”, prontamente acrescentou “Conheces alguma fêmea?”, é sabido que a Filosofia nasce do espanto, talvez esteja aqui a génese do meu percurso académico nesta nobre área, logo uma resposta formou-se-me para aquietar a questão suspensa “Conheces alguma fêmea?”, “Não me digas que estás na época do cio?!”, a verdade é que esta figura se esfumou do meu horizonte, ressalvo a minha mágoa, o ar não ficava mais pesado com a sua presença, isso é bom, muito bom, dizem as más-línguas, não sei se é verdade ou mentira, que, certa tarde, se sentiu mal e quase teve de ser reanimado, devido ao seu estado, acharam por bem tirar-lhe a camisola, mas havia mais uma, e outra, outra ainda, e, afinal, restava uma, não, duas, perceberam não estar perante um homem, mas sim uma autêntica cebola, este episódio potenciou a maledicência, conceberam-se as mais rebuscadas teses para explanar o sucedido, que usava muitas camisolas para parecer maior, que era para suar mais e assim ficar seco rapidamente, teses paradoxais, enfim, também houve quem proclamasse bem-alto que a causa do seu mal-estar se deveu a alguma substância que ingeria para obter resultados de forma célere, o certo é que não mais apareceu, nos dias seguintes ainda olhei para aquele canto-da-sala a ver se por lá estavam depositados um gorro e um sobretudo, tudo em vão, nada, dele só restou a inusitada saudação “Como é que é, Brother?”, peço-vos que a divulguem em sua homenagem, quem sabe se, este nosso “Brother”, no dia seguinte ao episódio da cebola, conheceu a fêmea da sua vida, talvez seja esse o motivo da sua ausência até hoje – conhecem razão melhor?

(29/08/22)


sexta-feira, 26 de agosto de 2022

A princesa da TAP



 

Uma das questões essenciais que nos devíamos imperativamente colocar é: Será que as nossas palavras interessam aos outros? À luz desta premissa, a sua imagem levantou-se-me no pensar, conheci-a por frequentarmos um espaço-comum, educada, polida, cheia de ressalvas, “Agora, só regresso para a semana, como a minha irmã faz anos amanhã, vamos passar estes dias fora; Estive a manhã toda no cabeleireiro, nota-se bem, não é? Confesso que tenho andado um bocadinho preguiçosa, para semana compenso; Então, como vai o nosso Benfica? Eu vi o jogo, lembrei-me logo de si, dos seus nervos, mas felizmente lá ganhámos… Estive para lhe mandar mensagem, mas não quis alimentar mal-entendidos! Já sabe como sou, não gosto nada de histórias mal-contadas!” Pois, de facto, será que as nossas palavras interessam aos outros? A noite já lhe entrara na existência, apesar de uma energia incomum para a idade, e de se mobilizar com o auxílio de duas bengalas, o que, à distância, lhe conferia um ar de aracnídeo, a sua baixa-estatura robustecia o quadro, as frases saíam-lhe  numa velocidade inversamente proporcional aos passos, contudo, mantinha a sua auto-estima, um aspecto muito positivo, porque efectivamente só nós a podemos devidamente alimentar, “Sabe, não tenha dúvidas, quando era mais nova, chamavam-me a princesa da TAP! Assim fiquei conhecida por lá. Era muito elegante, de parar o trânsito”, confesso, para remissão dos meus pecados, que, nesse momento, o meu olhar resvalou para os acessórios de locomoção, se a referência a parar o trânsito se devia à sua notória lentidão, mas foi por escassíssimos segundos, “Custa-lhe a acreditar? Agora vê uma velha, mas acredite, em nova fui a coqueluche das hospedeiras-de-bordo, em todos os voos queriam a princesa da TAP!” Como é óbvio, procurei enaltecer as qualidades do hoje, uma tarefa árdua, porém, nunca gostei de desafios fáceis, enalteci a sua nobre postura, invulgar simpatia, as idas ao cabeleireiro, a crescente boa-forma física, pelo menos atravessava a porta do ginásio de vez em quando, muitos nem isso, enfim, quase que, com uma lanterna, procurava iluminar o possível de  verbo, longe, muito longe, dos vislumbres com lentos aracnídeos a atravessar estradas, “Sim, é verdade, ainda aqui estou para as curvas. Tomara muitas chegarem-me aos calcanhares. Estou plenamente de acordo consigo naquele aspecto: o nosso amigo precisava de uma mulher mais madura! Parabéns: analisou muito bem a questão. Devia ter, a seu lado, uma mulher com outra experiência, mais estabilidade-emocional, mais confiança em si mesma, que não andasse a brincar aos joguinhos de ciúmes, não acha? É um profundo disparate! Por isso, evito contactá-lo aos fins-de-semana, já viu se a outra ainda faz uma cena de ciúmes?”, de facto, era uma possibilidade evidente, quem não teria ciúmes da princesa da TAP? Argumentei que os homens são eternas crianças, onde já se viu alguém trocar a princesa da TAP por qualquer outra mulher à face da terra?! Vivemos a era do Absurdo, acrescentei resignado, quando chegava a hora do adeus, os vislumbres com lentos aracnídeos a atravessar estradas materializavam-se para nosso terror, “Então, onde vai almoçar hoje?”, um passo, lá respondia, “Gosta mesmo desse restaurante! Olhe, no Domingo, fui com a minha irmã e o meu cunhado a um, muito bom, em Cascais, deixe-me ver se recordo o nome”, outro passo, até à porta faltavam uns trinta, àquela velocidade, talvez daqui a dois dias, como sempre fui generoso, desculpei-me com uma urgência e parti, ainda acredito em finais-felizes, por conseguinte, deixei esta princesa com o seu destinado príncipe, podiam pôr a conversa-em-dia sobre o seu Benfica, talvez, quem sabe, sob aquela lenta cadência, o príncipe encontrasse a almejada estabilidade-emocional enquanto os seus olhares refectiam sonhos por sonhar. 

domingo, 21 de agosto de 2022

Ouço, em mim, um cemitério de palavras


 

Denota-se-lhe uma passada, àquela hora de jantares e famílias, de quem se sabe não ser esperada. Sempre tempo para mais um cigarro, agora à porta do prédio, mas não entra (para quê?), ainda lhe falta o pão, assim retarda, por mais um pouco, a evidência da derrota, quantas vezes, quase como cartão-de-visita, anunciara, Sabe, eu tenho muitos amigos, perante isto, os outros fitavam-na entre a perplexidade e o espanto, ela insistia, Sabe, eu tenho muitos amigos, como resposta, ombros encolhiam-se e ela ficava a contemplar costas que se afastavam, mas, nesses tempos, sempre tinha com quem se sentar a uma mesa, a partilhar cafés e cigarros, hoje nem isso, apesar do esmero antes de sair de casa persistir, um livro debaixo do braço, volumoso o suficiente para captar olhares e suscitar admirações, de vez em quando, alguém mais incauto questiona-a acerca daquelas páginas, logo, ela assume uma expressão reflexiva e debita o que julga serem profundidades, o resto da indumentária também não é deixada ao acaso, percebe-se-lhe um latente antagonismo com o inverno da sua face, no passado, parecia filha da pressa, como se, de facto, a esperassem em múltiplos lugares simultaneamente, o passo também era outro, mais leve, mais decidido na sua representação, hoje o (seu) mundo outro, a filha no exterior (Quando partira?), primeiro, há alguns anos, juntara-se com um namorado, talvez o seu terceiro, que tinha uma loja de produtos para animais, ela grata pela saída da filha, mais espaço, sempre aquela competição velada, mãe/ filha, pelo olhar masculino da casa, marido/ pai, alugaram um apartamentozito relativamente perto, a filha encantada por trabalhar com animais, várias vezes o afirmou, de forma bem audível, o pai em silêncios, talvez já houvesse demasiado barulho à sua volta, os namoros da filha, as múltiplas amizades da mulher, era um lar já bastante movimentado, ela reticente com a escolha da filha, não apreciava o olhar rasteiro do rapaz, vária vezes avisou Minha filha, minha filha, ele vive do momento, nunca há-de pensar o amanhã, mas surdez e juventude viajam na mesma carruagem, uma tarde, as malas reentram em silêncio, a filha de óculos escuros elucidativos, afinal, os olhares do rapaz eram ainda mais subterrâneos que o vaticínio materno, quem se habitua a enjaular seres vivos, e a comercializá-los, dificilmente muda de perspectiva, de novo, por ali, vozes a elevarem-se, mãe e filha sempre em lados opostos, certa noite, ao regressar do café, luzes de alarme à porta do prédio, uma maca a ser transportada, o coração a sussurrar-lhe ao ouvido, ela a compreender, mas a optar pela surdez, o marido sempre com África, desde o regresso, virara costas ao sorrir, o frio, as gentes daqui, pequenas como os seus horizontes, os inúmeros trabalhos que fora coleccionando, nem todos desaprendem de mandar, a partir de certa altura, preferiu o passado, aí vivia, escudado por fotos,  discos, copos e memórias, mantinham-se à tona apenas com o ordenado dela, há dias em que a evidência nos atira contra uma parede, com uma frieza inclemente, talvez o inopinado regresso da filha, talvez os envelopes das contas amontoados na mesa de entrada, talvez um cansaço, jamais pronunciado, pelo facto de a mulher ter optado pela representação, talvez um excessivo frio exterior, hoje não revisitou memórias emolduradas, nem ouviu melodias quentes, não, hoje resolveu outra coisa, encontraram lamelas vazias ao lado de um copo outrora cheio, não chegou a conhecer o hospital, sim, a meio do caminho, abraçou outra viagem, a derradeira, ela nunca aceitou esta decisão, de certa forma, sentiu-se traída, como se uma derrota, a filha, neste particular, seguiu os passos do sentir materno, o embaraço presidiu aos gestos do adeus, contudo, só em surdina se ouviu falar de lamelas vazias ao lado de um copo outrora cheio, certa manhã, o calendário a relembrar os anos que passaram desde as luzes de alarme à porta do prédio, quando o coração lhe sussurrou ao ouvido, ela a compreender, mas a optar pela surdez, sobre a mesa-de-cabeceira, um envelope com uma paisagem suíça, era da filha, partira para lá com outro namorado, talvez o quarto, entra no café, àquela hora pouca gente, apenas duas ou três mesas ocupadas, pede o pão, enquanto aguarda, repara numa revista abandonada sobre uma mesa, a capa dividida por duas paisagens, uma de montanha a outra de savana, recebe o pão, já frio, entrega as moedas, preparava-se para sair, mas volta atrás, pega na revista, durante uma indefinição de tempo talvez a olhe, e, sem saber muito bem porquê, hoje, ao caminhar para casa, sentiu-se esperada.

terça-feira, 16 de agosto de 2022


 
O acto criativo jamais pode ser dissociado de uma alma repleta de sombras.

in Nascer

domingo, 14 de agosto de 2022

Quando os sonhos não cabem em mim


 

Quando realmente irei acordar? Talvez não hoje. O despertador, aquele som sempre numa demasia ritmada, os pontos vermelhos a piscar, num vermelho ostensivo devido à escuridão do quarto, a procura da tecla do silêncio, por fim o indicador a encontrá-la, de novo, paz, a cabeça, uma vez mais, apoiada, como se um retorno, ainda bem, talvez assim os problemas flutuem por mais um pouco, dela, neste momento, apenas o ombro, mesmo assim, opta por cobri-lo, não dera pelo despertador, tal como em todas as manhãs pretéritas, valia-se da paciente insistência dele, para assim correr pelo pão diário, ele tinha gosto nisso, afinal, só a reencontrava, como sempre em cada regresso, sob a fluorescência da cozinha, entre o fogão do jantar e a porta aberta da máquina da roupa, numa demonstração de ubiquidade digna de qualquer ilustre taumaturgo, ele, da porta, assistia num fascínio mudo àquela multiplicidade de gestos, que brotavam de uma harmonia inata ao continente feminino, sempre a margem e o fascínio, levanta-se, o ombro na mesma posição, embora tapado, após o café, que bebia sempre naquela chávena amarelada, com uma lasca na pega, duas torradas, a manteiga derretida que lhe acabava em cascata nos dedos, regressa ao ombro adormecido, palavras sussurradas, uma mão sai do lençol para lhe passear pelo rosto, de seguida, o autocarro, sempre aquele instante do arranque, a relembrá-lo da importância de um amparo (talvez de um ombro), à sua volta, apenas vestígios de sono, não de sonhos, ele sempre em estranhezas, afinal, quantos sonhos enterrara em si? A marcha a prosseguir enquanto o espaço, em redor, se subtrai numa cadência de vaga tumultuosa, os pés procuram firmar a sua individualidade, como árvore em floresta, mas a corrente a arrastá-lo, assim que a paragem (talvez a sua?) imobiliza o autocarro, até que desce os degraus, em esforços de equilíbrio, a manhã ainda não se erguera, e um gesto, cansado e multiplicado, num absurdo diário, a confirmar a sua entrada, na testemunha de um cartão, dirige-se ao seu cacifo, aí deposita os pertences da sua outra vida, veste uma bata ainda azul, ilhas de óleo em vários pontos a manifestar um arquipélago de labor, caminha para o seu lugar, já é um outro, uma parte daquele tentacular todo, ao seu lado, mais batas azuis, com iguais arquipélagos, ouve frases de golos e penáltis, mas sempre aquém destas temáticas, a manhã em passos de idoso, enquanto o cansaço em galope por ele (quantas vezes já levara a mão à testa?), de vez em quando, à sua frente, a casa da aldeia, o aroma a frutos da brisa do entardecer, o olhar a correr pelo possível do horizonte, o som do ontem murmurado entre as ramagens, contudo, um estrépito metálico fá-lo regressar à sua circunstância, aos arquipélagos, à mão pela testa, a passos de idoso e a galopes indesejados, a discussões circulares por apitos e mais penáltis, o som de uma sirene fá-los baixar os braços, passa pelo cacifo, retira de lá o possível de um almoço, e vai sentar-se debaixo do enorme castanheiro, duas sandes, uma de ovo e outra de presunto, opta por comer primeiro a de presunto, recosta-se no tronco, como sempre fazia, mastiga devagar, talvez assim se multiplique qualquer coisa, e, na mesma proporção, se subtraia a necessidade, de novo, à sua frente, talvez murmurado pelas ramagens, talvez desenterrado de si, a casa da aldeia, o aroma a frutos da brisa do entardecer, o olhar a correr pelo possível do horizonte, caminha na sua direcção, agora, nem vestígios de mãos pela testa, de arquipélagos, de passos de idoso ou de galopes indesejados, tudo já com a distância, à espera que a maré da madrugada venha recolher, de repente, a três passos da porta, pára, sim, é verdade, pareceu-lhe ver um ombro a passear por uma das janelas.


sexta-feira, 12 de agosto de 2022


 ... pelo caminho, víamos as casas dos outros irmãos, a todos eles o pai legara um pedaço de terra, é comum a quem herda estas benesses ser pródigo em juízos-de-valor...

in Nascer


quinta-feira, 11 de agosto de 2022

Um pouco como aqueles trocos de fundo de algibeira

 


Retirou os três envelopes da caixa-de-correio e meteu-os no bolso direito do casaco. Entrou no elevador e carregou no número do seu andar. A idade avança numa proporcionalidade exacta à diminuição de certas faculdades. E, de facto, ele não se ajeitava com a modernice da actual chave, daí a campainha, numa demora bastante, para exorcizar a frustração com o insondável mecanismo da chave, o passo dela também se familiarizava com outras proporções, a abrir-lhe a porta e uma expressão silenciosa e elucidativa do seu desagrado face aos contínuos exorcismos de frustrações, ele a entrar, a percorrer-lhe o braço com a mão (e um gesto engole tantos dicionários!), a retirar do bolso apenas dois envelopes, coloca-os na mesa-de-entrada, ela Ainda nada? Mas já devia ter chegado…, nem se vira, limita-se a subir os ombros, já de costas para ela, mas sempre a insistência, agora eivada de um notório nervosismo, Tens a certeza de que ainda nada…?, após depositar o casaco nas costas de uma cadeira, na sala-de-jantar, encaminha-se para a cozinha, não lhe responde, ela numa distância de continentes em relação ao bolso direito do casaco, no fundo, não há maior distância que o desconhecimento, verifica os outros dois envelopes, são sempre os mesmos, todos os meses a verificarem se ainda estamos vivos, sim, aqueles que nos apelam ao bolso, da cozinha, neste momento, barulho de pratos, ele a pôr a mesa, apesar do tempo, e da extenuada repetição, ela sempre a enternecer-se com certos gestos, e ele que sempre os realizou com um ar desassombrado, desde muito cedo, como se cumprisse um acto natural do existir, observa-o da porta, repara que hoje, de uma forma muito particular, aquele sulco da testa mais profundo, como se por ali um longo e penoso inverno chegado, os movimentos distantes do pensar, como se na sombra de algo maior que o ocupasse, de novo, Tens a certeza de que ainda nada…?, ele a olhá-la, agora parado, quatro talheres na mão direita, a reconhecer-lhe aquela expressão apreensiva, sim, a maternidade pertence-lhes, sempre afirmara para quem o quisesse ouvir Nasci de uma mulher, e quero morrer nos braços de uma, tudo começou naquele dia de manhã, ou talvez não, quando é que de facto as coisas começam? É tão difícil determinar, mas, naquela manhã ida, recorda-se bem, o alívio da noite por cumprir, o que era tão espontâneo antes, agora com a distância, e a dor, como se fogo por ali, apesar disso, ele a puxar o autoclismo, como se algo, pelo menos em parte, em si se cumprisse, silenciou este peso durante uns dias, por fim, numa deslocação de carro, por talvez aí não a olhar de frente, partilhou com ela, logo a leveza a desceu sobre si, e uma questão óbvia levantou-se Não achas que me devias ter contado há mais tempo? Mas o medo, a vergonha, o tal exame ignominioso, a espera de um amanhã que cumprisse o alívio nocturno, tudo adicionou razões ao seu silêncio, mas a lógica dela nascia de outras regras, e subtraiu-lhe as razões antes do próximo semáforo, contrariado, embora rendido, obedeceu aos preceitos médicos, ainda argumentou com o tal exame ignominioso, mas na vida há cálices que temos de sorver de uma vez só, desde então, a espera por um resultado, ela vira-lhe costas, deixa a ombreira da porta e encaminha-se para a sala, ele segue-a, a mão dela desce sobre o bolso direito do casaco, os seus dedos encontram o envelope há tanto esperado, retira-o de lá, ele já a seu lado, com uma expressão de medo disfarçado, não o recrimina, jamais o faria, afinal, ele não mentiu, apenas não quis enfrentar uma sentença, quem o poderia censurar? Sentam-se no sofá. De novo, lado a lado. Ela pergunta-lhe Queres ser tu a abrir? Ele recusa. Apenas lhe pede que o abrace, não vá o relógio ter-se adiantado.

sexta-feira, 5 de agosto de 2022


 

... demorei a compreender o universo de distância entre a ideia e a realidade.

in Nascer

quinta-feira, 4 de agosto de 2022

Veritas liberat


 

Há uns dias, numa rua deste outrora país, vejo uma série de carros com as rodas bloqueadas, à volta dos vidros uma fita demasiado fluorescente, prudentemente seguro pelo limpa pára-brisas, no vidro da frente, um envelope-branco, pois, não seria nenhuma tímida declaração de amor, tão-só a coima, pena ser um texto, se fosse oralmente usaria a peculiar pronúncia inerente aos monos, dia de semana, final de tarde, seriam uns seis ou sete carros, perante este grotesco cenário, uma questão regressou-me, já me assola há muito, confesso, como pode este povinho falar de liberdade?! Onde está a materialização deste conceito?! Não me vou alongar em considerações sobre o amaldiçoado dia de Abril do fatídico ano de setenta e quatro, não, não vale a pena, quem quiser a Verdade que a procure, desde então ser-me-ia fácil elencar as três bancarrotas, a marginalidade galopante, o dizimar das florestas (até entrou no léxico a “época dos incêndios”), Entre-os-Rios, Pedrógão-Grande, ex-presidiários à frente de autarquias ou pedófilos noutros lugares de relevo, enfim, o caos reina, fronteiras esboroadas, tudo entra, a segurança tornou-se uma utopia, o povinho vive num marasmo, alimentado a ansiolíticos, acrítico, analfabeto sem precedentes, agora até conseguiram que cada um compre a sua própria coleira na forma de um rectângulo, ficam a saber onde está, com quem fala, os seus gostos, convicções (se as tiver…), fraquezas, a janela da privacidade esfumou-se, porém, lá seguem inclinados para aquilo, quem diria que, num dado momento da história da humanidade, cada um iria comprar o seu cárcere? E numa altura em que a ciência tanto evoluiu! O homem e os seus paradoxos, também foi por estes dias que acenaram com o medo, sob a forma de um hipotético vírus, logo quase tudo, em pânico, a cobrir a boquinha e o nariz com um trapito, o meu espanto maior foi ver gente com estudos, alguns que até considerava inteligentes, a cair neste logro, dei por mim a concluir que, afinal, ainda não saímos das cavernas, de novo, Platão a caminhar a meu lado, em verdade, nunca o deixou de fazer, assisti (assisto ainda) a espectáculos do mais deprimente possível, com gentinha a besuntar as mãozinhas em álcool-gel, como se investidos de uma designação divina, o trapito omnipresente a cobrir do queixo até aos olhitos amedrontados, nalguns casos até foi positivo, a fealdade lá se ocultava, pois, afinal, ainda não saímos das cavernas, foi vê-los dentro dos carros com a focinheira, sozinhos na rua, a injectar dose atrás de dose da sopa-verde que lhes concedia o salvo-conduto do vírus-espinhoso, confesso o meu espanto pelo índice da estupidez humana no século XXI, quem arquitectou esse logro, cujo objectivo ainda se mantém, por enquanto, nebuloso, a não ser que se restrinja aos astronómicos lucros de farmacêuticas e respectivos laboratórios, conhece bem o índice da estupidez humana, caro leitor, pense comigo, se quisesse controlar um grupo de indivíduos, de forma gratuita, como fazê-lo? Pois é, pô-los a controlarem-se entre si! Daqui surgiu o tirano do “Politicamente Correcto” – com todas as suas derivações, até ao nível linguístico! Fica mal dizer isto, não se deve dizer aquilo, pensa-se, mas jamais se ousa verbalizar, usa-se como arma-de-arremesso caso se queira eliminar um concorrente em determinada área-social, tornámo-nos censor do outro, sem convite para tal, como pode este povinho falar de liberdade?! Onde está a materialização deste conceito?! Porém, todas as manifestações absurdas, com o cognome de “orgulho”, são potenciadas em nome da tal liberdade, é ver o desfile diário de aberrações, será que ninguém pára e questiona: “A quem interessa isto? Quem, de facto, promove este circo?” Há uns dezasseis anos, ouvi o relato de um conhecido, professor, que foi parar a uma escola num contexto-social razoável, ficou, desde logo, impressionado com a dentadura da directora dessa escola (antes denominavam-se presidentes do conselho-directivo, depois passou a conselho-executivo, por fim, o regime guindou-os a directores, na sua maioria não são mais que delegados deste funesto regime), uma figura-tétrica com uma dentição similar à de um Tubarão-Branco, ressalvo, desde já, acreditar piamente na sua descrição, denotou, desde logo, que o foco do processo ensino/aprendizagem se centrava no discente, algo se deteriorava, certa tarde, no final de uma reunião, foi interpelado por uma colega mais velha que lhe disse, numa voz suave: “Atenção: esta turma é constituída por filhos de gente muito importante…”, só pôde sorrir perante tal alarvidade, respondeu-lhe: “Gente importante é a que mora aqui!”, e apontou para o seu peito, ainda hoje, não sei porquê, creio que essa velha não tenha captado o real alcance das suas palavras, outra figura-tétrica que por ali deambulava era uma psicóloga-de-pacotilha, com uma anacrónica permanente do tempo das Doce, um focinho amargo que dava dó, cuja a única função era fomentar uma das premissas deste maldito regime: a destruição da família! Não por acaso, essa figura-tétrica já assistira à destruição do seu núcleo-familiar, desde suicídios a outras tragédias, daí manifestamente ser uma psicóloga-de-pacotilha, mas são, de facto, estas monstruosidades os agentes ideais do regime, como frustrados infelizes tudo farão para que os outros também não luzam, repito, isto foi-me relatado há dezasseis-anos, tirando o Tubarão-Branco que encostou de decrepitude, também nunca conheceu o alvor, o resto por ali continua, até uma gorda que, devido à psoríase, andava sempre de mangas-compridas, este relato fez-me questionar: “A quem interessa isto? Quem, de facto, promove este circo?” Felizmente as respostas não tardaram, embora, durante os anos de faculdade, tentassem, de forma sublimada, alertar-me para os factos, é sempre dolorosa a compreensão de que fomos enganados, por esta razão, a maioria nem intenta um esforço neste sentido, a balsâmica ilusão da mentira, de novo, Platão a caminhar a meu lado, em verdade, nunca o deixou de fazer, concluir que se é governado por uma seita-secreta (Quem, com um pingo de dignidade, entra numa seita-secreta que usa um avental? Cuja base está no vocábulo: trolha, do francês: maçon=pedreiro); cujo o único fito é a promoção do caos-social, dele se alimentam, nele se promovem, como um cancro; daí Salazar sabiamente os ter proibido e expropriado, não foi o único felizmente a tomar esta medida, “Mas a história é escrita por quem enterra os heróis”, assim reza uma frase medieva, e no amaldiçoado ano de setenta e quatro esta seita viu os seus bens imobiliários e não só serem-lhe devolvidos, confesso desconhecer se os aventais também foram confiscados, e aí estão à solta, a destruir insaciavelmente todo e qualquer Valor-Digno, daí a educação ser uma área tão importante, para formatar as já débeis mentes da juventude, alimentadas a álcool, fumos, telemóvel e festivais de Verão, assim são criados os tais programas das disciplinas, tudo embrulhado sob o espectro do “Politicamente-Correcto”, e eis o resultado: cidadãos acríticos, incapazes de descodificar quatro linhas, a defender escroques do piorio e a insultar vultos de uma nobreza ímpar; os trolhas, nestes últimos tempos, têm estendido os seus ataques à essência de uma nação: as suas história e língua; a invasão de anglicismos, mais concretamente americanismos, no dia-dia, já grassa o insuportável; repetindo-me: gente com estudos, alguns que até considerava inteligentes, a cair neste logro, dei por mim a concluir que, afinal, ainda não saímos das cavernas, de novo, Platão a caminhar a meu lado, em verdade, nunca o deixou de fazer, a concluir frases com pérolas assim: “… depois dá-me feed-back…”; e outras tantas que, por uma questão de decoro, me recuso a enunciar, a nobre história dos descobrimentos portugueses, por exemplo, tem vindo a ser denegrida por figuras-decadentes a soldo deste regime, os símbolos desta seita pululam por todo o lado, a maioria construídos à custa do erário-público, ninguém se insurge porque poucos se apercebem destes factos, “E a vista vai-se habituando…”, outro aspecto deste regime prende-se com as denominadas figuras-públicas, desconheço, na essência, este conceito, “Gente importante é a que mora aqui!”, e apontou ao seu peito, são colocadas precisamente para darem o seu contributo a este amaldiçoado ideário, nada mais, daí, a um olhar mais atento, vê-los a prestar, através de símbolos, vassalagem aos seus donos, como as mãozinhas-juntas a formar o “olho que tudo vê”, tão caro aos trolhas, ou pensam que lá estão por mérito? Da música à literatura, do cinema ao teatro? Não há filme ou série onde não haja, desde há uns tempos, um casal homossexual. Como se houvesse algum elementar orgulho nisso! E onde fica a privacidade de cada um? A sexualidade, por acaso, é uma bandeira para ser hasteada e jogada na cara do outro? Não, jamais irei por aí, o facto de gostar de mulheres só a mim diz respeito. Ainda no que concerne ao utópico horizonte da meritocracia, há uns anos, enviei um romance para uma editora, pensava eu, recebi como resposta uma questão: “Vem da parte de quem?” Laconicamente respondi: “Venho da minha parte!” Desde esse dia, nunca mais comprei um livro.

Pedro de Sá

(04/08/22)