Livros

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sábado, 30 de setembro de 2023

O Maqueiro-Barrigudo


 

Há figuras que necessariamente levam tempo a ganhar relevância em nós, não foi o caso em apreço, desde a primeira troca de palavras, compreendi estar perante um singular e eloquente vulto  cultural, a primeira frase que lhe retive foi, no fundo, a sua carta-de-apresentação “Sou maqueiro, sim, sou maqueiro”, assim, lacónico, expressivo, devidamente audível, digno de reflexão, em verdade, até esse momento, por muito que vasculhasse na memória, não me recordo de ter conhecido um maqueiro, muito menos um que tivesse gáudio em sê-lo, foi num contexto, do hoje, onde saúde e vaidade se fundem, que o conheci, saúde e vaidade parecem conceitos antagónicos, no entanto, o hoje é o território da estranheza, por conseguinte, as fronteiras esboroaram-se, a alguém interessa este cenário, voltando à nossa personagem, já dobrara os sessenta, contudo, o seu gritante anacronismo provinha de uma manifesta ruralidade nos modos e palavras, treinava com uns andrajos, as calças próximas de umas ceroulas encontradas na última visita ao sótão, a camisola, inevitavelmente de alças, onde pontificava uma ou duas nódoas, deixemos neste ponto a imaginação adormecida para a génese das mesmas, demasiado justa para a sua volumetria, sobretudo na cintura, onde, para mais, colocava um cinto-de-ginásio – como se um imperativo para quem julga levantar toneladas e toneladas –, não é necessário um apurado poder de dedução para inferir que o papel do cinto seria tão-só, na sua mente, disfarçar o enorme barrigão,  não me recordo do calçado, confesso, as perninhas demasiado aquém da volumetria do tronco, onde se destacava aquela vasta cintura refreada pelo omnipresente cinto-de-ginásio – como se um imperativo de quem julga levantar toneladas e toneladas –, entrava sempre munido de uma garrafa, cheia com um líquido de cor duvidosa, para dar credibilidade à aura que procurava transmitir, era de poucas palavras aos primeiros contactos, por regra, os heróis não são conhecidos pelo seu carácter extrovertido, este também cumpria tal premissa, demonstrava abnegação nos exercícios, durante os períodos de descanso, rondava o aparelho onde estava, com uma expressão a meio-caminho entre um felino e um sentinela, um autêntico durão, daqueles que o cinema já não produz, não lhe peçam velocidade, com aquele barrigão, o mais natural, seria, à segunda ou terceira-passada, cair para a frente, também para solidificar a imagem de duro, muito duro, um autêntico durão, era comum ouvi-lo emitir urros enquanto se esforçava para levantar barras ou halteres, embora, com um pouco mais de atenção, concluíssemos haver um dessintonia entre os urros e os pesos levantados, mas a atenção às coisas está num galopante desuso, esse aspecto ajuda a consolidar os lancinantes urros de figuras como esta, certo dia, alguém resolveu desvendar o mistério do líquido, de cor duvidosa, que preenchia a garrafa, nesta altura, já o Maqueiro-Barrigudo caminhava para o seu primeiro trimestre por ali, assim que o seu olhar no conteúdo da garrafa, o Maqueiro-Barrigudo estaca, levanta-se, vai ao encontro do curioso e pergunta-lhe: “Quer saber o que trago na garrafa?” O curioso prontamente anuiu, os olhos do Maqueiro-Barrigudo brilharam, parecia que, por fim, alguém questionava a origem dos seus super-poderes, como toda a icónica personagem não se fez rogado em desvelar a origem dos seus extraordinários super-poderes, com a devida teatralidade, pegou na garrafa, de plástico, seria daquelas habituais de litro e meio, abanou-a com vigor, numa clara manifestação da sua inesgotável energia, baixou o volume da voz, afinal, ia revelar a origem dos seus extraordinários super-poderes, não convinha ficar do domínio-público, um super-herói, por cidade, é o suficiente, além de que o ginásio só tinha um ou dois cintos, imagine-se uma multidão de titãs atrás dos cintos para ocultar os respectivos barrigões! A dicção do Maqueiro-Barrigudo era sofrível, na sua incessante busca por uma voz áspera, condizente com a ansiada imagem de duro, muito duro, um autêntico durão, acabava por comer sílabas em simultaneamente salivar em demasia, o curioso só reteve: “Sopa… Avó… Agriões… Borrego… Nabo…”; pouco mais, no fim, ainda questionou: “Onde julga que vou buscar força para carregar macas o dia todo?!”, apontou para o braço liposo, numa demasia pálida, onde se visualizava tudo menos os frutos de frequentar um contexto, do hoje, onde saúde e vaidade se fundem, acrescentou: “Não duvide: depois de todo este esforço, vou carregar macas o resto do dia!”, o olhar do curioso, sem querer, desceu à extraordinária proeminência abdominal, talvez o visualizasse a empurrar uma maca, para cima de uma ambulância, com aquele inevitável auxílio, espero, com sinceridade, que nunca precisem de ambulâncias, se infelizmente for necessário, rezem para que seja alguém, munido de uma garrafa, cheia com um líquido de cor duvidosa, aí haverá uma certeza: os super-heróis existem: em vosso socorro veio o Maqueiro-Barrigudo!

quinta-feira, 28 de setembro de 2023

A meninice ocupa sempre mais espaço



Você quer ouvir a minha história? A questão saiu-lhe arrastada, sem qualquer resquício de ansiedade, pelo contrário, como se esperasse, há muito, que aquele estranho ali aportasse, por um qualquer desígnio do destino, o outro, ainda a familiarizar-se com o balcão e a altura do banco, curiosamente não estranhou a questão, sinal de que era veterano por aquelas paragens, balizadas por copos vazios e timbres lamurientos, respondeu-lhe com uma expressão convidativa, mas sempre naquela discrição codificada de desconhecidos náufragos de uma mesma embarcação, que, do outro lado da porta, os abandonara, àquela precisa hora recrudescia numa dissonância de sons e de movimentos antagónicos, entretanto, a questão levantou-se mais uma vez Você quer ouvir a minha história? Desta vez, a expressão convidativa fez-se acompanhar por um gesto incentivador, o empregado apercebera-se do rio de palavras iminente e tratou de colorir os copos, também tinha pouco mais para fazer, além daqueles dois só tinha um casal sentado numa mesa, uma dessas que povoam o canto escurecido de um qualquer estabelecimento, pródigas em sussurros e em rostos sem amanhã, talvez porque sempre de passagem, nunca além da soleira de uma promessa, daí a urgência, a pressa no gesto, sempre a efemeridade da sombra, um ecrã de dimensões consideráveis ilustrava um jogo de paragens longínquas, sem som, uma janela aberta para um horizonte despido de olhares, no balcão, os copos também se despiram de cor, enquanto no canto escurecido era visível que o sujeito se esforçava por clarificar uma mensagem, ela visivelmente recuava, percebia-se, por um indistinto qualquer, que já vivenciara aquelas palavras, de repente, uma mão pousa com estrépito, acompanhada de uma voz arrastada, Tudo bem! Está decidido! Vou contar-lhe a minha história… O que vê quando me olha? Eu respondo-lhe… Você vê sempre o agora, que é o tudo que somos menos… Sabe, já tive aquilo que nos exigem: uma casa apresentável, mulher à espera com um sorriso sempre que chegava do emprego, dois filhos, ele dois anos mais velho que ela, já viu, até nisso tive sorte, acertei logo com um casalinho, aos fins-de-semana almoços com a família, ou com os amigos, no emprego progredia, certo dia, para ser exacto, foi mais numa certa noite, não sei porquê, custava-me a adormecer, tudo à minha volta o eco de gritos meus, pela casa só os ponteiros do grande relógio da cozinha, ela dormia, a meu lado, no seu habitual sono sem sobressaltos, de quem sabe que o seu mundo é um lugar arrumado, os miúdos também no sono da cor da meninice, é curioso, acho que, com a idade, a cor dos sonhos se vai esbatendo… Não concorda? Pois… Como lhe estava a dizer, tudo dormia, como se o facto de dormirem, àquela precisa hora, fosse um imperativo da sua ordem natural no mundo, não sei se me faço entender, de repente, eu percebi que cada hora, do meu dia seguinte, já estaria preenchida, acordaria às sete da manhã, aquele pequeno-almoço, com sabor a pressa, que servia apenas para me despertar a azia, seguiam-se pouco menos de duas horas em que o meu pé direito oscilava entre dois pedais, avançar umas dezenas de metros para logo me imobilizar, até a um destino que nunca me foi perguntado, as mesmas faces de um ontem demasiado, as mesmas frases a ilustrar as mesmas circunstâncias, tudo repetido até uma demência impronunciada, à hora de almoço, aquela sopa, desagradavelmente aquosa, sorvida em pé, acompanhada de uma sandes, fértil em molho, que logo me escorria pelos dedos, de novo a azia a reclamar a sua existência, duplicava o café, apesar da sonolência àquela hora sempre me visitar, as horas da tarde em passos de bengala, o regresso numa desesperada e silenciosa repetição da cadência matinal – pouco menos de duas horas em que o meu pé direito oscilava entre dois pedais, avançar umas dezenas de metros para logo me imobilizar, até a um destino que nunca me foi perguntado –, de facto, não me lembro, nesta vida, de me perguntarem pelo destino, fala-se muito dele, mas nunca vi ninguém agarrá-lo pelos colarinhos e perguntar-lhe o que tem para oferecer, é assim, nessa noite, como quase sempre acontecia, adormeci no sofá, ela com a novela, os miúdos já na cama, tudo no seu lugar, as interrogações banidas para um lugar além-mapas, só que, uma vez mais, quando ela me despertou para nos irmos deitar, custou-me a adormecer, tudo se repetiu: à minha volta o eco de gritos meus, pela casa só os ponteiros do grande relógio da cozinha, ela dormia, a meu lado, no seu habitual sono sem sobressaltos, de quem sabe que o seu mundo é um lugar arrumado, os miúdos também no sono da cor da meninice, é curioso, acho que, com a idade, a cor dos sonhos se vai esbatendo… Não concorda? Pois… Como lhe estava a dizer, tudo dormia, como se o facto de dormirem, àquela precisa hora, fosse um imperativo da sua ordem natural no mundo… Dolorosamente compreendi que o meu mundo é um lugar de gritos desarrumados e de insónias regressadas, nessa noite, quando me percebi, uma vez mais, no mundo, guiava pela madrugada, sabe, é curioso, quando saí, percebi o adeus sentido pronunciado pela porta, parti, apenas isso, andei por aqui e por ali… Se me arrependo? Ontem não sabia que, a esta hora, estaria aqui a falar consigo… Não é suficiente? Cada um procura a sua jangada… Olhe o sujeito ali atrás, implora para que ela o aceite com a sua circunstância, quando, no fundo, ele não quer ser engolido por… Você compreende, não é? Sempre esta necessidade de uma jangada que nos adie o inevitável naufrágio… E agora, fale-me um pouco de si… O que o fez naufragar aqui a esta hora da tarde? Já o agarrou pelos colarinhos e lhe perguntou o que tem para oferecer? Ou o seu mundo é um lugar arrumado…

segunda-feira, 25 de setembro de 2023



 Embora, bem vistas as coisas, o saldo da dor ultrapasse largamente o da felicidade! Isto é um facto! Ao reflectir nisto, repara como todos se desesperam para ocultar esta singularidade: o saldo da dor ultrapassa largamente o da felicidade!

in Nascer

sexta-feira, 22 de setembro de 2023



... a principal actividade da vida deve ser rir-se à nossa custa, se do seu lado o riso, do nosso o sal da dor...

in Nascer


Onde leva essa estrada?



 Ontem não disse nada. Não, não sei por onde anda… Há mais de três dias que não sei nada dele. Estou mais ou menos. O que é que queres que te diga? Claro que lhe sinto a falta. Ainda por cima nesta fase. Dizem que pode acontecer a qualquer altura. Se estou com medo? O que é que achas? É óbvio! Mas não sei bem do quê… Olho-me ao espelho e não me reconheço, até os pés me incharam, nem te falo do ambiente aqui por casa, o meu pai que não me dirige a palavra, sabes, não é tanto isso que me dói, é mais aquele olhar-me não me olhando, como se me tivesse tornado invisível, a minha mãe sempre com aquele timbre dorido, às vezes sinto que os traí, que estupidez, sim, eu sei, mas o que é que queres que te diga? É o que eu sinto. Nunca pensei que as coisas mudassem tão rápido… Até os dias parece que ganharam rodas. Já passaram mais de oito meses, desde que… O meu irmão? Nem sei se sabe, ou se quer saber, também o que queremos do mundo aos nove anos? Talvez o que de melhor o mundo tem para nos oferecer, é pena que depois o esqueçamos… Estou para aqui só a falar de mim, e tu? Não, a sério, conta-me se chegaste a… Estou cansada de falar de mim, e de… Tu sabes… Bem sei que não tem culpa de nada, mas já mudou tanta coisa, nem imaginas, como se anunciasse a sua chegada com tempo e estrondo, é tão estranho, de repente, é como se nos engolisse no seu mundo, nem sequer o conhecemos, e há quanto me habita? Por vezes, parece que sempre me habitou, como se o esperasse desde que nasci, é incrível, não percebi, às vezes deixo de te ouvir tão bem, repete lá, se ele me desiludiu, não sei, talvez não, digo-o a ti, à frente dele diria precisamente o contrário, ainda é tão criança, sempre foi uma coisa que me enterneceu nele, aquele jeito de relativizar tudo, como se cada acção só conhecesse o presente, uma vez aí instalada, daí não saísse, quem sabe se, devido a isso, a sua dificuldade em compreender as consequências duradouras de um acto, sinto falta daquela espontaneidade, desde a forma como me abraçava, fosse onde fosse, levantava-me do chão e rodava duas ou três vezes, fingia vergonha, para não o entusiasmar, mas, nesses momentos, sentia-me única, talvez a primeira e última mulher sobre a terra, é, ele tinha essas coisas, sempre cheio de sonhos, de planos, confesso que desde que…, tu sabes, percebes, não é…, perdi um pouco a paciência para aqueles devaneios, naquele ponto, começamos a viajar em velocidades distintas, daí a diferença de horizontes, e grande parte da viagem realizava-se dentro de mim, acho que em cada mês amadureci dois anos, é curioso, hoje sinto-me outra, se estou arrependida… Não sei o que te responder! Gostava de estar noutra situação, quer dizer, gostava de o esperar de uma outra forma, na minha casa, com os meus meios, com o pai dele a meu lado, com a noção das consequências duradouras de certos actos, mas, acima de tudo, feliz por viver esta espera, sentes uma certa inveja? Espero que vivas este momento como eu gostaria de o ter vivido, pensa que há uma altura para tudo, não vale a pena acelerar o acontecer, primeiro, tens de encontrar aquela pessoa que te preenche o pensar e o sentir, como te disse que ele me fazia sentir, quando me abraçava, fosse onde fosse, levantava-me do chão e rodava duas ou três vezes, fingia vergonha, para não o entusiasmar, mas, nesses momentos, sentia-me única, talvez a primeira e última mulher sobre a terra… Se valeu a pena? Acho que sim. Afinal, não é todos os dias que nos erguem aos céus com juras de amor…

segunda-feira, 18 de setembro de 2023


 ... há feridas, na alma, tão profundas, tão profundas, que acredito levarmos connosco quando daqui partirmos...

in Nascer

A biografia inarticulada do sentir



Àquela hora da tarde, vinda não sabe de onde, sentiu uma pontada subir-lhe pelas costas, só se aquietou no pescoço, ele aproveitou para se endireitar na cadeira, descansar os olhos do ecrã, assim ficou durante o que considerou necessário, fechou os olhos, deixou-se estar, à sua volta apenas dedos em teclas e telefones insistentes, regressou, ninguém se apercebeu, de novo, olhos no ecrã, costas curvadas, e dedos em uníssono com aquela desabrida sinfonia de teclas, quando, lá fora, a escuridão pronunciava a artificial iluminação interna, as secretárias à sua volta a desertificarem-se, volta e meia, Então, até amanhã ou Ainda ficas?, pouco mais, não, não se ia demorar, até porque a dor, de novo, a subir-lhe pelas costas, levantou-se, após desligar a janela do hoje, retirou o casaco do cabide da entrada, e saiu, olhar na calçada, mãos nos bolsos, mais um anónimo a cumprir um destino para poucas memórias, agora tudo no inverso da manhã, autocarro, comboio, e aqueles seiscentos metros, da estação até casa, a pé, ou talvez não, os rostos cansados da manhã ainda mais cansados, aquela desesperança pressentida em cada gesto ainda mais acentuada, a sôfrega atenção consagrada aquele rectângulo avidamente segurado na palma da mão ainda presente apesar do cinzentismo das expressões, quem sabe se, naquelas paragens artificiais, ousassem revestir-se de expressões solares, de gestos largos, de risos suspensos, captados na fugacidade do instante, para logo se precipitarem no abismo voraz de um autocarro somado a um comboio e umas centenas de metros, a pé, até a um qualquer lar num canto do hoje, talvez, nessas paragens artificiais, os risos na proporção dos abismos, é possível, ele nunca calcorreou esses caminhos sem pó, pelo contrário, desde muito cedo sempre apreciou a brisa pelo rosto, a firmeza de um solo, as nuances do pensamento num olhar contemplado, o jorrar musical de um riso, enquanto caminhava os últimos seiscentos metros desse dia, vindo não se sabe de onde, como quase sempre acontece nos trilhos do pensar, surgiu-lhe o rosto do pai, carteiro de profissão, há uns anos decidira entregar a sua última mensagem, nem tristeza nem alegria face ao rosto do pai, apenas saudade, com os anos as costas curvaram-se-lhe, o saco às costas parecia ganhar terreno, é estranho, era-lhe difícil dissociar a figura paterna do saco às costas, e daquela farda de tons cinzentos, não se lembra de ver o pai doente, é possível que nunca tenha faltado, e, apesar disso, nem uma carta em dias de aniversário, nada, aquando da última mensagem, uma cerimónia muito discreta, ele, a mãe, uns vizinhos, não se recorda de mais ninguém, nem os primos do Norte se dignaram a descer, julgaram que o telefonema fugidio seria o suficiente, ainda esperaram um ramo de flores, é possível que nunca tenha faltado, tudo em vão, e o pai que fez aportar tanto sentimento, e contas, é certo, zangas também, quando comprou uma pequena mota em segunda mão, ainda levou uns anos para tal, levou-o com ele, lembra-se tão bem, no primeiro dia de umas férias grandes, aquele tempo em que os dias encerravam uma vida, o alforge, repleto de missivas, de um dos lados, perdeu a conta a quantas portas o pai bateu só naquela manhã, ansiava apenas pelo seu regresso, nem descia do assento, para sentir a brisa pelo rosto, assim que se iniciava a marcha, no entanto, uma certeza, primeiro sob a forma de uma estranha insinuação, crescia nas funduras do seu ser de uma dezena de anos, não queria, no seu amanhã, bater a nenhuma porta, nem andar de costas curvadas sob o peso de um alforge repleto de missivas dos outros, também não queria aportar sentimento, contas, e zangas nos portos alheios, sempre tão no seu mundo, evitava demorar-se nos rostos alheios, somente para as nuances do pensamento num olhar contemplado, ou para o jorrar musical de um riso, de outra forma, receava que por aí ficasse um pouco de si, uma gota fria fê-lo erguer o rosto, um pouco à frente, só faltava atravessar uma rua, o lar, aquele segundo andar iluminado, as cortinas já corridas, mais gotas se seguiram, o pensamento arrefeceu, de repente, uma certeza chegou com o anoitecer, amanhã, àquela hora, estaria naquele exacto ponto (há quanto tempo?), é curioso, percebeu que as costas também um pouco, já poucos passos o separavam daquele segundo andar iluminado, as cortinas já corridas, nisto, apercebeu-se de um olhar indulgente derramado sobre si, de uma figura sentada numa mota, enquanto se esforçava por abrir rapidamente a porta do prédio, entretanto, as alturas desciam à terra, sempre naqueles esforços vãos de limpar e esquecer, achou curioso que aquela mota sob o sol de uma manhã de Verão, reconheceu-o, ali, mas sabia-o em casa à sua espera, nem descia do assento, talvez o esperasse para sentir a brisa pelo rosto, assim que se retomasse a marcha, no entanto, uma certeza, primeiro sob a forma de uma estranha insinuação, crescia nas funduras daquele ser de uma dezena de anos, não queria, também no seu amanhã, abrir nenhuma porta, nem andar de costas curvadas, enquanto as alturas desciam à terra, sempre naqueles esforços vãos de limpar e esquecer, num efémero esforço por rapidez, depois de um autocarro somado a um comboio e umas centenas de metros, a pé, até a um qualquer lar num canto do hoje, e de se saber perdido ao cair de joelhos perante uma questão: há quanto tempo?

sexta-feira, 15 de setembro de 2023

Entre as nuvens e o húmus

 

Não me arranja uma moedinha?, nem sopesava a frase, já nem a ouvia, saía-lhe, apenas isso, a mão estendida atrás de passos apressados, ou temerosos, tudo depois de auxiliar mais um estacionamento, a maior parte das vezes na ilusão de uma necessidade, não para ele, mas para quem se obstina numa arte, como tantas vezes acontece, que jamais será sua, e como é fácil perdermo-nos nos horizontes de nós, Não me arranja uma moedinha? Desde quando esta frase? Talvez há um par de anos, ou mais, embora, se lhe perguntassem, não soubesse o que dizer, como é fácil perdermo-nos nos horizontes de nós, escolheu o entra e sai do supermercado mais próximo, nem se importou se, por ali, rostos de há tanto, talvez assim mais moedinhas, talvez houvesse menos passos temerosos, talvez, afinal, não fosse um estranho, no entanto, ele é que se despedia do ontem com a máscara do hoje, procurava disfarçar os contornos acentuados do rosto com uma barba deslustrada, um pouco como aquela vegetação tímida que apenas acentua a esterilidade de um solo, a pele irremediavelmente escurecida, percebia-se que o clima não fora convidado para este processo, a voz arrastada enfatizava ainda mais a escassez vocabular, apesar de ter conhecido os corredores académicos, de facto, talvez tenha sido aí que se começara a formar uma questão na sua mente (Não me arranja uma moedinha?), nele sempre o gosto por…, mas lá em casa nem se ouvir falar de tal, porém, os olhos maternos traíam, por vezes, este nem se ouvir falar de tal, e traição rimava com compreensão diante do seu olhar, mas o silêncio materno anuía quando se proclamava bem alto nem se ouvir falar de tal, como se outorgasse tal imposição, não se recorda do momento em que ensurdecera para as imposições caseiras, em verdade, poucos o devem recordar, como tudo na vida, vai acontecendo, até que, num repente, olhamos e o dia é, ou já foi, sempre aquela extenuada analogia entre enxada e canudo, cantada entredentes pela voz áspera do pai, a partir de certa altura, quando se avizinhava que estes objectos iam ser introduzidos na conversa, sempre naquele tom profético e irreversível, parecia-lhe sentar-se no cimo de um monte distante, um daqueles pontos onde vemos sem ouvir, daí a distância, daí a elevação, enquanto no vale do acontecer tudo se desenrola como se escrito por uma mão demasiado distante da nossa vontade, certa manhã, o sono a trair-lhe a direcção dos corredores académicos, a voz áspera do pai, sempre naquele tom profético e irreversível, a repetir uma extenuada analogia, por outro lado, havia coisas de que nem queria ouvir falar, como se naquela casa houvesse apenas dois temas de conversa: enxada e canudo; nessa manhã, em verdade, ainda viu o metropolitano diante de si, ainda avançou uns metros, quando as portas se abriram, tão empurrado foi pela desencantada pressa de quem corre pelo pão do dia, ouviu aquele apito arrastado e nada estridente, as portas fecharam-se, partiu, quando se lembrou da sua circunstância, já regressara à superfície, deambulou um pouco durante a manhã, sabia, sem saber muito bem o porquê, que procurava gente de acordares tardios, como tudo neste existir, sabia que teria de enfrentar um rito iniciático, temos sempre uma inclinação a ignorá-los, mas surgem a cada esquina, e assumem tantas formas, uma questão, um olhar, um cumprimento, uma resposta, uma graça, e a reacção do outro dita sempre um destino, acenar-lhes-ia com a carteira e falaria da sua vontade em esquecer o mundo, assim foi, tudo tão depressa, sempre demasiado depressa quando chegamos ao amanhã e compreendemos o contrastante vagar do hoje, de casa apenas a memória dos últimos gritos, e de costas, curioso, já não se lembra dos olhares, apenas das costas, chegou a sentir falta, um pouco antes de, daquela extenuada analogia entre enxada e canudo, cantada entredentes pela voz áspera do pai, como se um cântico de regresso, porém, só a sombra de costas num silêncio que afasta, como é fácil perdermo-nos nos horizontes de nós, dois dias por semana troca o posto no estacionamento do supermercado por outro no semáforo do cruzamento mais abaixo, aí vende uma revista, uma gente simpática, de uma associação qualquer, fez-lhe a cabeça com coisas que sempre soube, mas que não quis saber, pelo menos até hoje, um pouco como a luz da manhã que nos devolve os contornos das coisas, apesar de há muito os sabermos, Isso não é vida, Vai acabar mal, Mudar só depende de si, E da sua vontade, O seu vício só alimenta a riqueza de outros, Já viu a sua idade? Ainda vai a tempo de consertar muita coisa, enquanto lhe diziam estas coisas, nem os ouvia, fascinado que estava com a ausência de costas, vozes e olhares diante si, e passou-lhe pela cabeça, de verdade, talvez pela primeira vez na vida, levantar-se do cimo de um monte distante, um daqueles pontos onde vemos sem ouvir, daí a distância, daí a elevação, e descer ao vale do acontecer, onde tudo se desenrola, para encontrar alguém que o queira ouvir acabar uma frase algures interrompida…

domingo, 10 de setembro de 2023

O que queria ser um pássaro se não o fosse?

 




Pela luz exterior, proveniente no possível do oblíquo, pelo prédio em frente, o outro do lado, pela cortina, sempre corrida, e demasiado opaca, afinal, o prédio sempre em frente, nunca uma folga, ninguém o convidava para sair, talvez um café, quem sabe se, assim, a luz no lugar de uma cortina opaca, percebia-se o adeus da manhã, a cama cheia de roupa, e da mala ainda aberta, ele de um lado para o outro, à volta da cama, com a roupa, e a mala, ela observava-o de uma outra divisão, detinha-se apenas no rosto, nada mais, nem por uma única vez se preocupou com o gesto, nada, apenas a face, ali estava tudo (há quanto aprendera ela isto?), ele ainda por um tempo, sempre demasiado para quem esperava por um olhar, com a mala e as roupas, até que um estalido metálico prenunciou passos ao seu encontro, ali estava, diante dela, a mala numa das mãos, ela pousou, numa pressa indisfarçada, a actividade doméstica na superfície mais à mão, Tens a certeza de que não te esqueces de nada?, ele respondeu olhando-a, as palavras em maré-vazia, ela Senta-te, está quase pronto, com isto, a puxar um banco, ele a hesitar, a mala ainda na mão, o olhar no banco, o olfacto no aroma proveniente do fogão, o sentir num indistinto do tempo, algures entre um estalido metálico e os despojos do verbo, uma questão suspensa (Tens a certeza de que não te esqueces de nada?) e uma resposta olhada, por fim, pousou a mala pudicamente a um canto e sentou-se, ela retirou o tacho do fogão e pousou-o sobre a mesa, ainda deambulou pela cozinha, como se de uma inevitabilidade se tratasse, mais isto e aquilo, tudo sob o eco de uma questão que ainda não partira (Tens a certeza de que não te esqueces de nada?), em verdade, uma questão só parte quando uma resposta ocupa o seu lugar, comeram no mutismo de trivialidades, falaram daqueles pequenos nadas, apenas isso, facturas por chegar, sempre aquelas visitas certas mensais que aportam na caixa-do-correio, sem qualquer resquício de convite para tal, outras já chegadas, mas ainda por pagar, a escola da miúda, ela Passas por lá antes de… Ele Não sei… E se ela reagir mal? Nisto, procurou qualquer coisa onde encostar o olhar, mas a resposta logo Tens de lhe explicar as coisas! Ela já tem idade suficiente para as compreender. Tudo, ali, em suspenso, questões, o tacho já menos fumegante sobre a mesa, as respostas vagas, facturas chegadas e por pagar, uma partida iminente, a mala no recato de um canto, a melodia dissonante do estalido de há pouco ainda pela casa, e a questão ancorada, que vogava inclementemente naquelas consciências, como se um grito sufocado na madrugada por um terror maior, Tens a certeza de que não te esqueces de nada?, assim que os últimos grãos de arroz trocaram a superfície do prato pela instabilidade espaçada do garfo, acelerou os gestos, ela manteve-se na mesma cadência, já ele levantara o prato, dentadas numa maçã enquanto caminhava pela casa, mais correctamente, enquanto se despedia da casa, primeiro, o quarto da filha, sempre aquele delicado do feminino, não sabia explicar muito bem, mas era isso que sentia ali da porta, talvez porque os sonhos do feminino tenham longas raízes, é possível, feminino e lar são velhos caminhantes, de seguida, foi até ao seu, deteve-se apenas no leito, nada mais, afinal, aí se escreve um casal, respirou fundo, como se para compreender o tempo até ao regresso, ou o porquê de partir, antes de virar costas, perdeu-se naquele instante emoldurado sobre a mesa-de-cabeceira do lado dela, os dois, abraçados, rostos de fim-de-semana, olhares de futuro, num jardim, se lhe perguntassem agora em que ano a foto, não saberia precisar, apenas o sabor de que aquele teria sido um bom dia, daqueles em que, antes de adormecer, uma certeza nos engole, Sim, valeu a pena, quando regressa à cozinha, detém-se na silhueta dela de costas, está à janela, percebe-se-lhe uma expectativa desencantada, como se do seu corpo tivessem partido todos os sonhos, sem saber muito bem porquê, o seu olhar deixa-a e precipita-se sobre a mala pudicamente pousada a um canto, como se dali um aviso de que chegara a hora, nesta vida, todas as horas chegam, sempre mais depressa as das partidas do que as das chegadas, esta é uma das veladas amarguras do existir, pegou na mala, aproximou-se hesitante, ela permaneceu de costas, a olhar a tarde do mundo, pareceu ouvi-lo dizer Quem me dera que tudo fosse diferente, deixou-se estar, talvez, antes de partir, ele, num gesto, encontre resposta para uma questão há muito suspensa.

terça-feira, 5 de setembro de 2023



 Se fosse mais fraco, duvidaria da realidade de tudo isto, até de ti…

in Nascer

sexta-feira, 1 de setembro de 2023