Livros

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terça-feira, 23 de fevereiro de 2021


 


 

E quando partires?


Naquela casa só restavam eles. Viviam num silêncio de anuências. Não precisavam de mais. Uma casa que se foi despindo de presenças. Primeiro, a do pai. A doença, sempre África, no sangue, no verbo, e também no olhar inconformado com horizontes de marquises, por fim, confinado a uma incómoda horizontalidade de dor, até que, numa manhã chuvosa de Novembro, partiu. No fundo, terá regressado às lonjuras que alimentam o sonho do olhar. Por aí deve andar, à espera que cada um deles regresse. Seguiu-se a irmã. Também não gostava de marquises. Talvez por isso, certas noites fora. De ocasionais, passaram a frequentes. A mãe insurgia-se, as vozes elevavam-se, ele em silêncio no quarto, afinal, já havia ruído suficiente, até que, certa noite, Vou morar com o meu namorado, a mãe esmagada, Mas, filha, mal o conhecemos…, uma frase hesitante, como se encerrasse, pela entoação, uma miríade de significações só possíveis a uma voz materna, como se a mãe entoasse: Tens a certeza? Já pensaste bem? Não te vais arrepender? Achas que ele te merece? E os estudos? Vão viver de quê? Mas a filha só presente, a mãe passado e futuro, daí o eterno desencontro de gerações, obstinada em virar costas às marquises, mas por horizontes distintos dos paternos, bastava-lhe o relvado da vivenda dos pais do namorado, Sempre foste ambiciosa pelo pior lado!, atirou-lhe a mãe, ela já de costas, a volumosa mala numa mão, a outra a abrir a porta do elevador, nem um Adeus! Assim que ela elevador adentro, o ruído sempre demasiado mecânico, agora da descida, a sombra da mãe estendida nos azulejos da entrada, a contemplar o átrio agora escurecido, nem notara as luzes apagarem-se, a sua última frase ainda reverberava em si: Sempre foste ambiciosa pelo pior lado! Por fim, mas de cabeça no tapete de entrada, fechou a porta. O filho saíra do quarto, assim que estranhou o retorno do silêncio. A partir dali, só os dois. As paredes da casa expiravam demoradamente por aquela calma agradecida. Quando saíam à rua, caminhavam de uma forma curiosa, pareciam incomunicáveis ao mundo passante, como se ovelhas entre lobos, numa ânsia de regresso reflectida em cada gesto. No fundo, bengalas de uma mesma dor. As noites passadas em frente ao televisor, após uma ceia económica, condizente com a leveza da bolsa, sempre naquele silêncio de anuências, nem um comentário para colorir, ele, como sempre, deitava-se mais cedo, antes um beijo na testa da mãe, ela Deus te abençoe, meu filho!, e um sorriso agradecido à vista do seu rosto. Assim que ele se afastava, ela só com o pensar, o inclemente companheiro da solidão. De novo, a dor pela gaguez do filho. Talvez se não isso, a vida outra. Uma mulher, um lar… Aquela sua protecção, também exagerada, dos golpes do mundo. Sempre O meu menino… Ele a murchar a seu lado, num existir de estufa, mas ao menos o pão na mesa, assim se amenizava aquela consciência. A certa altura, a possibilidade da caixa da mercearia do bairro. A mãe ainda hesitou, de novo, a gaguez, embora ele fosse de cálculo rápido, no entanto, o filho antecipou-se-lhe, e, na manhã seguinte, já registava vendas e retribuía trocos. Ela, de certa forma, orgulhosa. Numa tarde, a campainha demasiado insistente. Surgiu-lhe a filha, distante, Ainda tenho, por aqui, algumas coisas, a mãe a emudecer de questões, uma mão ainda se levantou, porém, a filha contornou-a, como se de um infeliz escolho se tratasse, percorreu, várias vezes, a casa, de novo, uma mala volumosa na mão, antes do elevador, Então, até a um dia destes, a mãe, da porta, desta vez, em silêncio, embora uma frase, em si, Sempre foste ambiciosa pelo pior lado! Nessa noite, o filho compreendeu-lhe a derrota. Sentou-se a seu lado. Apenas isso. Ela agradeceu sem o dizer. Talvez a gaguez o impedisse de pronunciar marquise.

 

domingo, 14 de fevereiro de 2021

Um beijo lento numa face agradecida


 

O passado em cima de uma mesa, na forma de instantes emoldurados, mais longe, mais perto, mas sempre ido. Uma vez por semana, pelo menos, recebia a visita de um pano alaranjado de flanela. E de suspiros. Sim, ela sentava-se num banquito redondo, de plástico, e revisitava, um a um, demoradamente, cada instante, como se não mais no banco, mas, de novo, ali, sob aquele céu, a sentir aquela brisa (Da manhã? Do entardecer?), a olhar a eternidade diante de si. O pano alaranjado de flanela, de semana para semana, mais demorado na visita a cada instante. Os suspiros também mais longos. De vez em quando, uma gota salgada sobre a superfície envidraçada que perpetua um momento. O pano apressa-se a disfarçá-la em movimentos circulares. Ela ainda permanece, durante mais algum tempo, sobre o banquito redondo, de plástico, em silêncio, como se não sei bem onde, aqueles estados em que não estamos em parte nenhuma, como se descansássemos de nós, sim, quem não precisa do repouso de si? No fundo, somos o nosso maior fardo, e ela, que já começava a abraçar a terra, carecia, cada vez mais, de se abandonar. Regressava ao leme de si no desconforto de sempre. Como se o nosso molde fosse de outra matéria. E o nosso ser de outro lugar. A casa num silêncio de ecos. Sim, as ausências não mais que ecos adormecidos. Ela ainda com as vozes em si, mas os rostos apenas em cima da mesa. Por vezes, em ânsias de os relembrar, apenas traços difusos, como se carecessem da nitidez de uma outra existência, logo, no seu lugar, surgia o som, sempre próximo, da voz, ela em sorrisos àquela melodia de uma vida, sempre familiar com o açúcar do sentimento. À medida que o pensar deambulava, em si, no seu passo vadio, sem se aperceber, ela movia o rosto em movimentos verticais, como se anuísse à generosidade da memória. O pano alaranjado de flanela, de novo, em movimentos circulares sobre uma superfície envidraçada. Mas, desta vez, o sal ainda no precipício do seu rosto. Que instante ela detém nas mãos? Talvez o que lhe humedeça a face não se deva ao instante firmado nas mãos, mas ao vazio de agora pelo tanto do ontem. Achou curioso que só se emoldurem sorrisos! Talvez as lágrimas corressem além molduras, e relembrassem a verdade da vida. Mas quem quer o sal da verdade? Sim, é uma possível explicação. Contempla o rosto daquele que respirou a seu lado. Sempre que o olha, mais se sente a abraçar a terra. À vista daquele pedaço de memória, ecoam em si frases, risos, como se, de novo, ali, mas a âncora de hoje retém-lhe a esperança de ontem. E ela pensa: afinal, eu sou tantos! Sim, eu sou tantos! E olha aquela estranha de ontem, que ostenta um destemperado riso solar, e pensa nas noites salgadas que lhe iriam esculpir a alma. Agora, parecia que as sombras se multiplicavam num espreguiçar demasiado indolente. Com o tempo, ela aprendeu a lição do anoitecer. Os outros regressam. As luzes acendem-se. Há mais barulho à sua volta. Aprendeu a perfilhar os sons dos outros. Tranquilizam-na. Sim, à sua volta apenas ecos. Como o incessante andar do grande relógio da sala. Para ela, anda sempre demasiado devagar. Sim, é verdade. Ela anseia por um reencontro. Daí a sua pressa. Talvez, nesse momento, limpe o sal do seu rosto.



 


 

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Deixa-me sonhar, antes de escrever


 

Mas, mas… O olhar inflexível fulminava quaisquer adversativas, apenas um Atenção ao tempo! E ele, de caneta hesitante, a olhar aquele rectângulo de mundo envidraçado, a folha, em cima da mesa, numa obscenidade demasiado branca, como se daí adviesse um insulto desafiante, sim, qualquer coisa que periga a honra, porém, a caneta agora entredentes, um Atenção ao tempo sussurrado agora já noutro canto da sala, ampliado pelo silêncio demasiado artificial para aquela hora do dia, e a questão, que renascia para logo se evolar no sem sentido de si, a inquietá-lo, de novo, vira costas ao mundo com um descair de pálpebras, apenas um eco plástico a tamborilar-lhe nos dentes a relembrá-lo da sua circunstância. O eco, neste momento, a afastar-se, como se permanecesse num qualquer lugar de partida, neste mundo de viagens, ele a olhá-lo da sua carruagem, cada vez mais longe, num galope crescente, para onde vai? Não sabe, ao princípio tudo difuso, vai ao sabor do acaso de si, por dias solares, encontros duradouros, aqueles onde se regressa para um sentido das coisas, no fundo, quando perdemos a bússola e necessitamos de uma nova, sim, um pouco isso, quando contemplamos um rosto e, de súbito, a voz arrasta-se, num contraste gritante com a velocidade do sentir, como se representássemos, mas não, estamos ali por inteiro, apenas a voz em passos de bengala, não, não conseguimos acelerar a palavra, porque o olhar num rosto e o sentir desencontrado do pensar, mas são tão raros os rostos numa vida que provoquem este desencontro! E, sim, já não ouço canetas, apenas o compasso da carruagem que me leva ao país de mim. Quantas vezes não regressamos a nós? Agora, estamos num jardim, sombras convidam-nos à frescura de um espreguiçar sempre lento, proponho-lhe, num verbo arrastado, que nos sentemos naquele banco, debaixo da cascata chorosa de um choupo, para acabarmos o gelado. A saboreada doçura fresca em antítese com o calor das emoções, mal disfarçadas em gestos estéreis e desarmoniosos, de pretenso candidato a artista. Mas o olhar devolve a doçura e frescura saboreadas, ao percorrer um rosto, na sombra de uma tarde de sol, enquanto as palavras se precipitam no esquecimento, apenas subsiste a melodia de uma voz, um entrelaçar de dedos, e um beijo imaginado. A carruagem acelera, a memória da caneta cada vez mais longínqua, agora, após os gelados, a sombra de um banco de jardim, o entrelaçar de dedos, caminhamos na indolência de sorrisos e piadas cúmplices, nisto, uma bola ao nosso encontro, uma criança corre atrás dela, na urgência de retomar o jogo, talvez a vitória próxima, eu já não com o rosto que me demora o olhar, sim, a velocidade da carruagem, eu, com a bola, de regresso ao jogo, olho à minha volta, reconheço cada amigo da rua da minha infância (todos temos uma rua de meninice), as balizas demarcadas por pedras da calçada, mas a abnegação de cada finta, de cada remate, de cada incentivo, de cada reprimenda, continha a genuinidade de uma força irrepetível. Após uma corrida para segurar a bola, uma finta como as da televisão, preparava-me para passar a bola entre as pedras da calçada (que risível sou, e desonesto também, na realidade ia marcar um golaço monumental!), quando uma voz Atenção ao tempo! Como quer que escreva de olhos abertos? As palavras não nascem do olhar. O eco da caneta agora em gritos. Olho o rectângulo envidraçado de mundo. O cinzento lá de fora ecoa no silêncio artificial desta sala. Levanto-me. Como querem que escreva longe de mim? Resolvo entregar. Mas, para espanto meu, a folha preenchida. Que terei escrito? A mão crispada da Atenção ao tempo já no ar para se apoderar da folha. Deixo-a ir. Talvez por lá encontre as marcas de uma carruagem, um banco de jardim sob as lágrimas doces de um choupo, a alegria de um golo, e, por fim, a emoção singular da verdade de um beijo.