Livros

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terça-feira, 31 de outubro de 2023

Adeus à saudade

 


Via-se, agora, diante de si, pelo vidro anoitecido, à sua volta vultos e vultos, alguns de pé, um cheiro a condensação em volta, do seu lado esquerdo, o barulho do saco-de-plástico ininterrupto, prefere nem olhar, a audição já é suficiente para o iminente liquidar da paciência, uma senhora hirta à sua frente, olhar nos sapatos, caminhava pela idade dos desencantos, a compreensão do adeus aos sonhos, no feminino é sempre mais doloroso, não fossem as fadas mulheres, olhou-a e reparou no anelar despido, só a marca se lhe gravara, e talvez não se diluísse, a biografia reflectida nos dedos, o saco-de-plástico sem dar tréguas, opta por um sonoro suspiro, mas insuficiente para a volumetria do barulho, nisto o regresso de um apelo, por tão familiar voz, “Não vás para lá! Ouve, vais arrepender-te! E a segurança, homem, e a segurança… Um vai-e-vem constante, a falta de espaço… Vais arrepender-te! Mas a decisão é tua!”, como tudo na vida, luz e sombras sucedem-se, de outro modo, agora, aqui, dá razão à tão familiar voz, há dois fins-de-semana, visitou essa e outras vozes, mais de duzentos quilómetros de ida, outros tantos de volta, chegaram por volta da hora de almoço, ela sempre com um pé-atrás na presença da sogra, parecia inato, tal como o ar inquiridor da velha, as crianças, dois rapazinhos, prontamente correram para os braços da avó, ela contemplou a cena ainda dentro do carro, ele já com um pé de fora, antes de cumprimentar a mãe, olhou em volta e inspirou, mas sempre uma tristeza a turvar-lhe a expressão, num canto de si tinha a esperança de se reencontrar, algures, por ali, em correrias, jogos, brincadeiras, a paisagem permanecia inalterada, apenas o ele de ontem fora subtraído, baixou o olhar consciente da derrota, talvez o mundo não sinta tanto assim a nossa falta, já com os dois pés fora do carro, encaminha-se para cumprimentar a mãe, ela com os dois pés ainda dentro do carro, por fim, abre a porta com parcimónia, a velhota mantinha-se de braços-abertos à espera do filho, só os baixou quando viu a nora dirigir-se-lhe, há hostilidades impronunciáveis e de fonte-incógnita, embora perdurem, e com o tempo recrudesçam, “E o pai, onde está?”, “Onde queres que esteja? No lugar do costume, lá em baixo, a tratar das hortas,” a frase ainda não lhe ressoava “… lá em baixo, a tratar das hortas,” com um gesto apontou-lhe para a lonjura, quando, neste momento, via-se, diante de si, pelo vidro anoitecido, à sua volta vultos e vultos, o saco-de-plástico, do seu lado esquerdo, acaba de proclamar tréguas, com as luzes exteriores, o seu rosto dilui-se do horizonte, um som demasiado artificial, portas abrem-se, uns saem numa pressa desmedida, outros entram para os seus lugares, numa cadência similar, o som demasiado artificial repete-se, as portas fecham-se, as luzes exteriores ficam para trás, de novo, , diante de si, pelo vidro anoitecido, o seu rosto, “Vou lá ter com ele!”, “Não queres comer nada antes? Entra, primeiro, um pouco, comes qualquer coisa e já vais ter com o teu pai…”, “Os miúdos entram contigo, devem ter fome, eu vou lá…”, “Eu vou contigo!”, o tom sem permissão para réplicas, a sogra olhou-a de lado, nada verbalizou, ele, de certa forma, aguardava esta frase, lá foram, pelo caminho detiveram-se na figueira onde, certa tarde, de um ontem, celebraram o seu amor, era Verão, a sombra afigurou-se-lhes convidativa, “Lembras-te de que foi aqui…”, “Sim, claro, mas não me arrependo de…”, “Não há um dia, em que não regresse…”, “Não vale  a pena falarmos, uma vez mais, dessa conversa”, “Porquê? Era imperativo irmos viver para a cidade?”, “Não quero discutir!”, “Ninguém está a discutir! Dialogar, para ti, é discutir? Uma boa forma de fugires da questão…”, “Repeti-te, até à exaustão, o único motivo para aqui ficares, era por não conseguires emancipar-te dos teus paizinhos! Repara: sempre que férias, feriados, vimos para aqui a correr! Não conhecemos outra coisa…”, “Sabes bem como está a saúde do meu pai, depois da trombose não foi o mesmo”, “Se não fosse isso, arranjarias outra desculpa”, “Não te bastou termos, por fim, mudado as nossas vidas para a cidade?”, “Eu mudei, tu não! Pensas que não reparo nos teus silêncios nocturnos à janela, que baixas o olhar para não cumprimentar os vizinhos, na expressão de rafeiro-abandonado quando sais e regressas do trabalho? Só alegria pela tua face quando para aqui vimos… Esta aldeola horrorosa perdida no meio do nada!”, olhou com saudade a sombra da figueira, ela não reparou, mas tinha razão num aspecto, o vidro-anoitecido, agora, devolvia-lhe a expressão de um rafeiro-abandonado, embora um tremeluzir no olhar indiciasse saber a direcção do lar, “Só daqui estar mais de uma hora, sinto-me a sufocar… Não há nada para fazer! Isto é um horror! Só moscas, casebres, galinhas, dejectos pelo chão, não compreendo, de todo, como podes achar alguma graça a isto…”, o pai reparou neles à distância, descansou a enxada entre as mãos, secou a testa com o lenço que trazia no bolso, e aguardou-os, ela acenou de uma distância segura, a terra revolvida desaconselhava a sua progressão com os saltos, o filho nem reparou, foi prontamente ao encontro do pai, “Estás infeliz, rapaz!”, nem ousou resposta, também não a conseguia construir, “Estás infeliz, rapaz!”, uma evidência diante de si, pelo vidro anoitecido, “Lembra-te: não foi por falta de aviso! Hoje desaprendeu-se de reparar na direcção do olhar do outro. E como é importante! Quando não se olha na mesma direcção… Chegaste aqui sozinho, e poucos passos faltavam…”, ela permanecia nas faldas daquele reencontro, nenhuma sílaba lhe chegava, também não se importava muito, limitara-se a um breve acenar para o sogro, as suas mãos não largaram a enxada, felizmente ali ainda tinha rede, foi-se recriando com as futilidades potenciadas pelo amo do hoje, o seu rosto dilui-se do horizonte, um som demasiado artificial, portas abrem-se, chegou a sua estação, uns saem numa pressa desmedida, junta-se ao cortejo, nisto o regresso de um conselho, por tão familiar voz, “Se há muito a perder? Sim, sem dúvida, mas nunca te esqueças do essencial: não te percas a ti! Quanto àqueles dois, enquanto tiverem um colo para correr, o mundo será uma Primavera.”

Pedro de Sá

(31/10/23)

sexta-feira, 27 de outubro de 2023


... não fosse o amor um jogo, dos mais traiçoeiros possíveis, onde o controle é uma ilusão e a queda a única realidade...

in Nascer

domingo, 22 de outubro de 2023


 

... sabia que era contra a leitura, por intuição, a resposta corroborou-o, argumentou que não devemos levar a existência a olhar para baixo, mas sim para as alturas, acrescentou que ler significa não viver...

in Nascer

EEEEEEEEiiiiiiiiiiiii


 

Andava no seu quotidiano, entre mesas, a servir, recolher moedas, devolver as necessárias para que boas contas, quando, de repente, ouve um arrastado e quase suplicante A… V… C…, olha o sujeito, sentado, camisa aberta até ao umbigo, de onde saía uma demasiada proeminência abdominal, numa palidez excessiva, sem saber bem porquê, o seu olhar no umbigo dilatado, tão similar ao da sua mulher, nos últimos meses de gravidez, uma circunferência onde cabia perfeitamente a moeda de maior valor em circulação, daquele exacto ponto não se distinguia se uma gravidez, se descuido alimentar, o arrastado e quase suplicante A… V… C… repetiu-se, a aflição tomou conta de si e foi lesto em aproximar-se do indivíduo, “Está tudo bem consigo? Quer que chame uma ambulância? Olhe para mim! Responda, por favor…”, neste ponto, o pânico ameaçava dominá-lo, só lhe faltava mesmo, no seu turno, um cliente falecer, o sujeito repetiu A… V… C… Tive há uns anos…”, no mesmo tom arrastado e quase suplicante, olhou-o com alívio, chegou a respirar fundo, embora a sua expressão não conseguisse maquilhar, por inteiro, a raiva que o susto lhe causara, tanto quanto a sua memória alcançava, seria a primeira vez que, ao tentarem passar-lhe uma informação, tamanho pânico lhe causaram, recuou um passo, olhou, com maior atenção, o indivíduo, já entrara no Inverno da existência, não obstante a camisa desabotoada até ao umbigo, denotava-se ter caminhado, durante anos, talvez décadas, pelas ex-colónias, há uma coloração, nas vestes de quem por lá respirou, muito própria, denotava-se um desmazelo generalizado, das roupas à aparência, a barba de dias, uma boina desbotada em desequilíbrios na cabeça, a camisa desabotoada até ao umbigo transparecia o desarranjo interior, contudo, um olhar mais atento compreenderia que havia sido outro, com laivos de galã, pois, a eterna incógnita do amanhã, temor de deuses e de homens, quem diria que este sujeito, sentado diante dele, de aspecto andrajoso, camisa desabotoada até ao umbigo, a emitir um arrastado e quase suplicante “A… V… C…”, rematado, há pouco, para seu alívio, com “A… V… C… Tive há uns anos…”, tivera ambições de galã? No dia seguinte, à mesma hora, lá entra ele, desta vez, o seu olhar acompanhou-lhe cada passo, compreensível, após o susto vespertino, apoiava-se numa bengala, só agora se apercebia de tal, senta-se numa mesa disponível, e, de imediato, começa a desabotoar a camisa, ele ainda olha interrogativamente para uma colega, que estava ao balcão, como resposta apenas um encolher de ombros, pois, para quê gastar verbo, de repente, entre o desabotoar, solta um EEEEEEEEiiiiiiiiiiiii, só dois ou três clientes olharam na direcção daquela mesa, ele na dúvida se ria ou lá fosse pedir contenção, o barrigão, nesta altura, já começava a despontar, entre o esforço dos botões, uma vez mais ecoa EEEEEEEEiiiiiiiiiiiii, achou que teria de refrear o entusiasmo, dirige-se para lá, a boina desbotada já sobre a mesa, “Ora boa-tarde! Então, é o habitual cafezinho?”, como se ali sozinho estivesse, solta um novo EEEEEEEEiiiiiiiiiiiii, levanta o olhar e diz-lhe: “Você hoje vai dar-me boleia para casa! Sabe, estou muito cansado,” não obstante estas palavras, olhou o indefinido e novo EEEEEEEEiiiiiiiiiiiii, neste ponto, o umbigo já era banhado pela luz do dia, uma vez mais, diante dele, aquela circunferência onde cabia perfeitamente a moeda de maior valor em circulação, tão similar à da sua mulher, nos últimos meses de gravidez, lá teve de anuir ao pedido de boleia, não lhe fosse chegar um arrastado e quase suplicante “A… V… C…”, havia uma questão que não pôde silenciar, “Mora aqui perto?”, presumia que sim, pelo sim, pelo não, os seus cálculos estavam no número de EEEEEEEEiiiiiiiiiiiii, que teria de ouvir até deixá-lo em casa.

Pedro de Sá

(22/10/23)

sábado, 21 de outubro de 2023

A angústia de se saber que amanhã é 2ª feira

 



Pela teimosa fresta do estore, que esperava pela reparação num amanhã de há dois anos, percebia-se uma manhã cinzenta, ele acordara há algum tempo, mas permanece ainda de olhos fechados, a fruir de uma imobilidade em que o mundo não entra no pensar, ela ainda insistia pelos lados do sono, apesar de já ouvir o aqui, por fim, ele levanta-se, o autoclismo ressoa pela casa, regressa à cama, ela a desistir dos lados do sono e a recebê-lo com satisfação no aqui, trocam umas frases codificadas, numa linguagem construída por anos de diálogos sussurrados ou gritados, assim é a vida a dois, um ténue equilíbrio entre faces encontradas ou nucas distantes, sob os lençóis, reencontram, de forma desapaixonada, talvez até mais mecânica, a vertigem dos sentidos, no entanto, o amadurecido compasso do sentir torna tudo mais satisfatório, é a compreensão do presente, após acordar os filhos, têm um casalinho, ele com dez, ela com oito, o pequeno-almoço, a limpeza da casa, o almoço, ele já sintonizado com as notícias da bola, Hoje tenho de estar em casa, o mais tardar, às seis, ela Logo hoje que eu queria ir ver aqueles cortinados! Essa porcaria não pode esperar? Ele prefere não responder, já sabe por onde ela caminha, pelos territórios da provocação, não, não vai ceder, de novo, pela segunda vez nesse dia, a compreensão do presente, é curioso, nem há um par de anos, ter-lhe-ia respondido numa prontidão liminar, hoje vira-se para o filho, como se nem sequer a tivesse ouvido, e questiona-o sobre a tarde de escuteiros, de seguida, vira-se para a filha e pergunta-lhe se está a gostar do almoço, a filha encolhe os ombros e responde-lhe Já tínhamos comido isto ontem ao jantar, ele retribui a espontaneidade da criança com uma festa pelos seus cabelos, afinal, verdade e crianças são velhos companheiros, e, de facto, os rissóis com arroz branco já provinham da refeição vespertina, mas o mês já ia longo, e os preços das coisas sempre a agigantar-se face aos vencimentos deles que permanecem numa estagnação de charco há tanto, ela, felizmente, só tem de atravessar duas ruas para chegar ao cabeleireiro, claro que sonha, um dia, abrir o seu, é curioso, nunca partilhou isto com ninguém, nem com ele, como se houvesse qualquer coisa de obsceno nesta coisa dos desejos, de impróprio, talvez os tempos ditem para que os esqueçamos, como se fosse possível a um pássaro queimar as suas próprias asas, é verdade que muitos se contentam em poder respirar, no entanto, ela pertencia àquele diminuto número que, antes de mais, gosta de escolher a direcção do seu olhar, ele, pelo contrário, tinha de atravessar grande parte da cidade para chegar ao restaurante onde servia à mesa, a ideia de, algum dia, abrir um restaurante seu, nunca se lhe deparou no caminho, não se pode dizer que desgostasse do trabalho, o contrário também seria uma falsidade, em verdade, cumpria com as suas obrigações profissionais num desencanto contido, com uma aura de inevitabilidade, no fundo, respirava, só olhava onde podia chegar e nunca onde ainda não chegou, por aí se faziam os seus dias, depois de almoço o café, ficava mesmo por baixo da casa deles, um primeiro-andar alugado, ela a sentir-se asfixiada entre aquelas paredes, sempre a queixar-se de ouvir o autoclismo dos vizinhos de cima e do lado, e também do aspirador, por vezes, os do lado em discussão, sobretudo aos fins-de-semana, a proximidade sempre a aguçar arestas, a presença do outro, na demasia daqueles dois dias entre a exiguidade de umas paredes, a despertar hostilidades desarrumadas, quando a percebe pelos territórios do queixume, concentra-se ainda mais na bola, afinal, nunca se apercebeu do autoclismo dos vizinhos de cima e do lado, nem do aspirador, tão pouco da habitual discussão, aos fins-de-semana, dos vizinhos laterias, e, se houvesse, não tinha nada que ver com isso, os miúdos acompanhavam-nos para receber uma pastilha, era o suficiente para cada um sorrir, a casa, a essa hora, já em sombras, as três janelas viradas a Norte, e o edifício em frente, com o dobro da altura, a não permitir tréguas de luz para aqueles lados, uma salita, dois quartos que mal dão para uma cama e um guarda-fatos, uma casa-de-banho que mais parecia um depósito de humidade, aquela torneira do lavatório sempre a pingar, quantas vezes ela lhe gritou (Quando é que te decides a arranjar a porcaria da torneira?), ele sempre (Estou à espera que o Zé me devolva a chave-inglesa… Não te preocupes que já a pedi de volta…), mas ela a preocupar-se cada vez mais, porque a fresta do estore aguarda a reparação num amanhã de há dois anos, e o Zé talvez venha a ser enterrado com a chave-inglesa deles, as sombras àquela hora, depois do café, já inundavam toda a casa, ele já de comando na mão, de olhinhos no sofá, antes que, ela numa tentativa salvífica Não queres, ao menos, ir às compras? Assim, já adiantava o almoço de amanhã… Contrariado, Tudo bem, mas vamos rápido, já sabes que… Nem ousa retorquir, ao menos já se levantara, o filho, com o seu orgulhoso traje de escuteiro, a despedir-se, ela a compor-lhe o lenço, num gesto a meio caminho entre o cansaço e o automático, nem vale a pena perguntar-lhe (Não te sabes ver ao espelho? Lavaste a cara? E os dentes?), nada, só quer dali fugir, antes que a bola comece, antes da gritaria, do rádio, da televisão, dos dois ligados simultaneamente, de nem lá fora encontrar um vestígio de sol, do sofá, daquele urro quando, três ou quatro horas depois, ele se tenta reerguer, queixa-se do joelho, do sofá demasiado baixo, da ciática, ela tão cansada daquela monocórdia, a filha contrariada em acompanhá-los (Não vamos demorar, pois não?), já sabia que a questão ecoaria durante todo o caminho, acompanhada, como sempre, da pressa dele pelo sofá, Vamos rápido, já sabes que… Saem para as compras, antes o multibanco, outra melodia extenuada, a contagem das possibilidades, mas amanhã, por esta hora, será ela a não querer levantar-se do sofá, nem dá conta do autoclismo dos vizinhos de cima e do lado, nem do aspirador, nem das discussões laterais, e talvez a casa tenha a luz suficiente, afinal o Norte tem os seus encantos, se a casa-de-banho tem humidade, ainda bem, é porque se toma por ali banho, quanto à torneira, o Zé há-de devolver a chave-inglesa, tem de se ter paciência e não apressar o amigo, e a fresta do estore, que saudades vai deixar, começa o olhar tudo do promontório de uma saudade imensa, até se vira para ele e pergunta Quanto é que ficaram os resultados? Ele pacientemente responde-lhe, enquanto pensa pois é, amanhã já é 2ª feira…


segunda-feira, 16 de outubro de 2023




 Não há relatos de visitas à campa, compreende-se, é no peito que carregamos os mortos.

in Anoiteceu

sábado, 14 de outubro de 2023


 ... embora a paixão não seja mensurável, o amor, num determinado sentido, sim, pode ser mensurável, a paixão não, é como uma febre de que somos acometidos, só há um horizonte, nada mais, o resto do mundo torna-se um acessório inútil...

in Anoiteceu

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

O pároco e a alternadeira


 

Há demasiados anos que o pároco saturninos estava à frente dos destinos daquela paróquia, era um homenzito vulgar, nada tinha que destoasse, indumentária condizente com o estatuto de sacerdote, com o seu quê de naftalina e um vislumbre de moldura sobre um naperon, numa qualquer camilha, de uma tia velha, a única nota dissonante do pároco saturninos estava precisamente no rosto, as feições pareciam o resultado do cruzamento entre um sabujo e um velhaco, falava-se, amiúde, pelas ruas da freguesia, das suas fraquezas pelo feminino, longe, muito longe, dos ditames norteadores da cruz que representa, e, em verdade, nunca houve muita concorrência para aquela diocese, havia também uma característica, no pároco saturninos, que contribuía sobremaneira para que passasse incólume à maioria dos vendavais da existência, falava, com todos, num tom baixo, arrastado, que instava logo concentração e reverência, como se dele proviessem verdades do além, não nos esqueçamos: indumentária condizente com o estatuto de sacerdote, com o seu quê de naftalina e um vislumbre de moldura sobre um naperon, numa qualquer camilha, de uma tia velha; um dos principais atributos do tempo é tudo desarrumar em volta, aquela paróquia não escapou a esta regra, falava-se, há uns bons anos, em cada canto da freguesia, da paixão do pároco saturninos por uma alternadeira de Amarante, a diferença de idades ia muito para além de duas décadas, não obstante todo o falatório, ninguém colocou em causa o seu papel de guia-espiritual daquelas gentes, pois, há fenómenos muito estranhos debaixo do céu do mundo, quem sabe se uma indumentária condizente com o estatuto de sacerdote, com o seu quê de naftalina e um vislumbre de moldura sobre um naperon, numa qualquer camilha, de uma tia velha, ajudasse a serenar dúvidas e a refrear a maledicência, e como era possível, o pároco saturninos, com o seu tom baixo, arrastado, que instava logo concentração e reverência, como se dele proviessem verdades do além, desviar-se, mais de duas décadas, dos ditames norteadores da cruz que representa?! Há, de facto, fenómenos muito estranhos debaixo do céu do mundo, ninguém falava das óbvias fraquezas do pároco saturninos com o feminino, de estar envolvido com uma alternadeira de Amarante, não, nada disso, as conversas centravam-se na diferença de idades ir muito para além de duas décadas, como se o resto fosse aceitável, pouco demorou até que as gentes dali dessem de caras com a alternadeira à frente da tesouraria da paróquia, era uma sujeita baixa, de carnes muito, muito, fartas, um cabelo permanentemente de costas viradas para a escova, uma cara de suína que jamais conseguiria maquilhar um carácter boçal, esta transição do alterne de Amarante para a tesouraria de um edifício encabeçado pela sagrada-cruz ocorreu, para aquelas gentes, com toda a naturalidade, no fundo, como se sempre ali estivesse a boçal-sorridente, ostentava no focinho um omnipresente sorriso, talvez um conselho do pároco saturninos, para facilitar a sua integração por aqueles lados, a única nota dissonante estava no tom de voz, ao contrário do pároco saturninos, com o seu tom baixo, arrastado, que instava logo concentração e reverência, como se dele proviessem verdades do além, a alternadeira simplesmente berrava, por ali se detectava a sua génese, além da indumentária, claro, camisolas largas, de qualidade duvidosa, que apenas lhe acentuavam ainda mais a fartura de carnes, calças de ganga cujo efeito cénico era similar, e uns ténis de linha-branca que somente acentuavam o carácter confrangedor desta personagem, perante o olhar dos outros, jamais se viu uma intimidade entre o pároco saturninos e a alternadeira de Amarante, embora, de noite, ninguém a visse a abandonar a sacristia, nunca se levantou qualquer voz em contrário, as contas da paróquia lá se faziam, o pároco Saturninos também não caminhava para novo, ninguém caminha, precisava, nos Invernos, que alguém lhe aquecesse os pés, e, neste aspecto, a alternadeira de Amarante era de carnes muito, muito, fartas, e, sempre que alguém tinha uma crise espiritual, bastava bater à porta, lá surgia aquele rosto, parecia o resultado do cruzamento entre um sabujo e um velhaco, pronto a dar um conselho num tom baixo, arrastado, que instava logo concentração e reverência, como se dele proviessem verdades do além, se estivesse frio, não tardaria muito, do interior, a ouvir-se um berro: “Vem mas é para dentro que está frio!”

segunda-feira, 9 de outubro de 2023

A consertadora de corações


 

A última vez que a vi, já os candeeiros nos iluminavam os passos, numa ruazita secundária, eu, fora do carro, à espera de um não sei o quê, talvez à espera de mim mesmo, e continuo a aguardar, quando, antes de a ver, ouvi-a, as frases muito ritmadas, percebi que iria passar à minha frente, permaneci imóvel, olhei na direcção da sua voz, umas dezenas de metros mais abaixo, apercebeu-se de mim, por momentos, brevíssimos mesmo, no fundo, a Eternidade, olhou-me, o espanto inicial por ali me encontrar, as dúvidas de como reagir, tudo o seu olhar transpareceu, por fim, o orgulho assumiu o leme, lá seguiu caminho, rua abaixo, permaneci onde estava, embora pensar e sentir num turbilhão demasiado, nada de novo para mim, confesso ter gostado do espanto inicial por ali me encontrar, as dúvidas de como reagir, tudo o seu olhar transpareceu, nem vislumbres de indiferença, também ela não me era indiferente, bem longe disso, em tempos escrevi que não tenho jeito para despedidas, reafirmo-o, talvez pelos vazios derramados no horizonte, em verdade, não é uma arte que almeje: jeito para despedidas! Meses antes de candeeiros que nos iluminavam os passos, numa ruazita secundária, eu, fora do carro, à espera de um não sei o quê, talvez à espera de mim mesmo, e continuo a aguardar, de lhe ouvir a voz, perceber que iria passar à minha frente, de o orgulho assumir o leme, certa tarde ela, no meu carro, quase em desabafo, “Só me saem gajos com o coração lixado!”, retive, de imediato, a frase, nessa altura, de facto, era um gajo com o coração lixado, creio que sempre fui, e, de certa forma, vi nela uma possível consertadora de corações, só alguém com tal desígnio podia emitir uma frase assim, acredito, ainda hoje, que ela ignore o facto de a ter memorizado,  , “Só me saem gajos com o coração lixado!”, gostei do conteúdo (elegâncias de forma não são para aqui chamadas) e da espontaneidade com que a emitiu, por fim, vislumbrava uma possibilidade de conserto para tão vital órgão, e como precisava, uma das frases que ultimamente mais tenho repetido (“Vivemos tempos estranhos… Vivemos tempos estranhos…”) não tardaria a bater-me à porta, e, por acaso, não nutro peculiar júbilo por estar certo antes do tempo, muito pelo contrário, sinal de mau augúrio, assim foi neste caso e, infelizmente, em muitos outros, há muito escrevi, peço desculpa, hoje estou a citar-me muito, uma frase que ilustra os meus passos pelo aqui: “Para onde vou, levo-me comigo”; não gosto de teatralizações, de máscaras, maquinações e afins, como em tudo há vantagens e desvantagens, sem máscaras geramos amor ou ódio (eu também amo ou odeio – deste último lado está o politicamente correcto: a mais sublimada forma de tirania!), não há meia-medida, pois, um notório maniqueísmo, o ontem sempre tão no hoje, são os ditames desta apatetada sociedade, porém, o meu único juiz continua a ser o espelho, se gosto do seu reflexo, sim, gosto, e espero continuar nesta senda, há um imperativo nesta equação: jamais, jamais, abdicar do amor-próprio! Há quem lhe chame orgulho, estejam à-vontade para dar as denominações que bem entenderem, a verdade é que, no fim, só nos resta este desígnio para continuar nesta caminhada de rosto erguido, aqui fica o conselho, não sou muito pródigo neste particular, sempre considerei que cada um deve encontrar o seu caminho, claro que a consertadora de corações se revelou um logro, um pouco como aqueles botecos de bairro onde vamos por falta de opção momentânea, confesso, no entanto, que, como sempre, ali entrei sem máscaras, teatralizações e afins, apenas eu a levar-me comigo, embora, em certa medida, ela tivesse o arrojo de estancar uma hemorragia latente, esta é a verdade, por conseguinte, honra lhe seja feita neste aspecto, quem vê o mundo de uma enorme distância, com a nítida percepção de que este não é o seu lugar, possui necessariamente um coração lacerado, aqui começou o equívoco da consertadora de corações, um coração lixado, num boteco de bairro, resolve-se com uma curita, um coração deveras lacerado exige uma taumaturga das emoções, alguém que igualmente veja o mundo de uma enorme distância, com a nítida percepção de este não ser o seu lugar, aqui chegados, alguns podem questionar se me arrependo, não, é a resposta, porque, no fim, soube, a tempo, pegar no orgulho e restituí-lo ao meu peito, já que no meu rosto não havia máscaras, vivemos, em verdade, no meio de um baile-de-máscaras, uma das frases que ultimamente mais tenho repetido (“Vivemos tempos estranhos… Vivemos tempos estranhos…”), felizmente estou aquém de tais contextos, e, assim que o orgulho me foi restituído ao peito, sem quaisquer laivos de arrogância, fiz as contas, e, de imediato, compreendi quem saiu a perder, não é todos os dias que caminhamos ao lado alguém que vê o mundo de uma enorme distância, com a nítida percepção de que este não é o seu lugar, restam-lhe os ansiados corações lixados para aplicar umas curitas, pouco mais, nada de demorado que envolva a compreensão de não sermos daqui, custa muito depositar uma máscara, imaginemos todas: amor ou ódio, não há meia-medida, pois, um notório maniqueísmo, o ontem sempre tão no hoje, são os ditames desta apatetada sociedade, viver é cair – facto –, não deve haver lamentos nem contas, em verdade, no fim de tudo, basta um rosto levantado a vislumbrar o outro a caminhar rua abaixo, pouco mais, um coração deveras lacerado exige uma taumaturga das emoções, estas aliam o tempo à compreensão, talvez por felizmente saberem o logro de uma curita…

domingo, 8 de outubro de 2023

Grandezas à janela, misérias num desvão empoeirado

 


Àquela hora, a cidade ostenta o rosto de sonhos escondidos, como se a vida tivesse partido para outras paragens, a luz do aqui a ocultar a chama longínqua dos tremeluzentes e dourados suspensos pontos nocturnos, era uma noite de Setembro, no ar um prenúncio de que as sombras se iriam demorar na despedida, no entanto, aqui e ali, uns faróis a trazer substância às coisas, acompanhados daquele eco mecânico que parece caminhar sempre na lonjura, contudo, nesse mesmo instante, ele aporta num lugar de excesso de luzes, se, nesse preciso instante, qualquer um de nós ali estivesse, e se, por um acaso qualquer, detivesse nos seus passos, percebia-lhe a familiaridade, de há muito, com aquele cenário, imobilizou a viatura num recôndito lugar improvisado atrás de uma palmeira, a cerca de oitenta metros da entrada, dirigiu-se, de imediato, para lá, nem se apercebeu da quietude à sua volta, daquela hora que nos contempla com um rosto de sonhos escondidos, como se a vida tivesse partido para outras paragens, nem interiorizou que, naquele momento, a luz do aqui oculta a chama longínqua dos tremeluzentes e dourados suspensos pontos nocturnos, nada disso fazia parte da geografia do seu pensar, o seu olhar fixado na porta, os seus acelerados passos para lá dirigidos, assim que transpôs a entrada, virou à direita, o destino a três ou quatro dezenas de metros, também lhe passou ao lado a expressão cúmplice e acrimoniosa dos porteiros ao verem-no entrar, a vida, por ali, obedecia a outros ponteiros, como se fosse meio-dia numa qualquer praça central de uma cidade de assinalável dimensão, e, apesar do abraço de há muito da noite, nos rostos nem vislumbre daquela resignada cedência ao cansaço de ser, pelo contrário, à sua volta apenas rostos sequiosos, a mesma expressão por si ostentada, encostou-se a um canto na discrição do possível, retirou a carteira do bolso interior do casaco, recontou as possibilidades, como se de munições se tratasse antes da batalha, e avançou, começou logo pela máquina que o ocupava há um trimestre, sempre o necessário aquecimento para o desafio de facto, ali esteve bem mais de uma hora, nunca questionou o porquê de, nos primeiros contactos, ter somado algum pecúlio, desde então, uma espiral derrotista alimentada, curiosamente, não por uma esperança de mitigar perdas, mas sim por uma outra coisa, bem mais antiga, quase infantil, aquele tempo em que não estamos inteiros no mundo, como se caminhássemos com um pé no aqui e outro no lá, só nessa altura é que nos aproximamos de um abismo com um espanto inocente onde o terror não encontra uma janela por onde entrar, e não olhamos um precipício, mas uma nuvem passeante que quase tangemos, de uma outra forma, só se apercebe do abismo quem já caiu (E como este é um mundo de quedas!), por ali, ele desaprendia o cair em voos fugazes, sempre com um preço, aparentes quedas ilusórias para logo se reerguer sob um custo sempre plural, àquela mesma hora, sentada numa teimosa cadeira oscilante, uma mulher com o filho nos braços, procura adormecê-lo, ela, neste momento, também com um pé no aqui e outro no lá, aquele tempo em que não estamos inteiros no mundo, um seio ainda de fora depois de se cumprir, a criança parece ter reencontrado os trilhos do sono, a mulher tacteia por forças para se levantar, enquanto isso, olha a cama à sua frente, vazia, fria, mas desarrumada, o seu olhar turvado de preocupação, frases ressoam nos cantos de si, Não comeces com coisas. Quanto é que já lá ganhei? Não me venhas enumerar o que já perdi! Porque eu recupero isso facilmente! Dá-me uns dias… Não te admito isso! Não estou nada viciado! E não… Nem voltes a repetir isso! Não nos vou levar à miséria! Por acaso, passas fome? Frases curtas, herméticas, sem azo a réplica, em cima de uma mesa-de-cabeceira avoluma-se um molho considerável de cartas, também por aí o seu turvado olhar deambulou, o dele também, do atraso na prestação da casa ao saldo ultrapassado no cartão de crédito, a insistência do telefone à hora de jantar, sabia que a sogra andava preocupada, que ele chegava a inventar doenças para que a mãe... Mas, o que mais lhe doía, era o facto de o compreender, como se no lugar dele a sua volição fosse similar, sempre um pé no aqui e outro no lá, aquele tempo em que não estamos inteiros no mundo (e isto há quanto?), entretanto, ele deixa a máquina e encaminha-se para a outra sala, todos os olhares numa espiral sobre uma mesa, tantos que caem (E como este é um mundo de quedas!) para tão poucos que se erguem, uma vez mais leva a mão ao bolso interior do casaco, pensou àquela hora encontrar mais, talvez se tenha demorado pela máquina, e avança, se, nesse preciso instante, qualquer um de nós ali estivesse, e se, por um acaso qualquer, detivesse no seu olhar, percebia-lhe o fascínio hipnótico por aquela espiral sobre a mesa, a aproximação do abismo, enquanto isso, ela devolve o filho, já adormecido, àquele diminuto leito infantil, tapa-o com um esmero só possível a uma mãe, por um tempo sem tempo detém-se absorta a olhá-lo, felizmente para ela o pensar em tréguas, àquela hora, a cidade ostenta o rosto de sonhos escondidos, como se a vida tivesse partido para outras paragens, uns olham filhos adormecidos, outros perdem-se em espirais sobre mesas, cair, levantar, tudo acontece sob a chama longínqua dos tremeluzentes e dourados suspensos pontos nocturnos…

quarta-feira, 4 de outubro de 2023


... por muito que tentasse, não conseguia vislumbrar por onde o mal ali pudesse entrar, de onde estávamos, tudo parecia estar no seu lugar, como se arrumado harmoniosamente por mão oculta...

 in Nascer

O Tatázinho


 

A primeira vez que ali entrei, lembro-me bem, tinha uma idosa à minha frente, atrás do balcão, absorto num écran, completamente alheado da sua circunstância, lá estava ele, nem, por um segundo, se dignou a olhar-nos, eu com a pressa destes dias, a idosa, creio, foram as cansadas pernas a relembrar-lhe alguma urgência, porém, o olhar não se desvinculava do écran, por momentos, julguei que andasse às voltas com a contabilidade do estabelecimento, entretanto alguém chega em nosso auxílio, uma sujeita baixa, com um rosto vulgar, de onde se destacava um teimoso olho-fugidio, não me escapou a sua expressão de desdém na direcção do écran e questiona a velhota: “Ora boa-tarde! Então, o que vai ser?”, dado o mote, a idosa começa o seu rosário de infortúnios, desde a crescente assimetria entre a sua parca reforma e a galopante inflacção, a dor na anca a anunciar a chegada do tempo frio, a intermitente comunicação com os filhos, e, pasme-se, ainda não dissera ao que vinha, eu, de natureza impaciente, assistia a tudo, dois passos atrás da velhota, em silêncio, apenas por curiosidade de saber quem é e o que estava a fazer ao écran aquele sujeito, a temática entre a empregada do olho-fugidio e a velhota já ia no episódio dessa noite da novela, confesso, neste ponto, que a paciência ameaçava deixar-me, à minha frente duas sujeitas em amena conversa, não obstante sentir-me permanentemente vigiado por aquele olho-divergente, do lado direito um sujeito, sentado, completamente absorvido por um écran, quando, num repente, de forma inopinada, ouve-se um brutal e sonoro “PORRAAAA!!!”, todos olhámos simultaneamente na direcção do écran, parece que, por ali, algo não se encaixou, apesar do brutal e sonoro “PORRAAAA!!!”, persistiu alheado de nós, com toda aquela demora, confesso que nascia em mim a vontade de emitir um brutal e sonoro “PORRAAAA!!!”, pensava em virar costas, quando, também por detrás do balcão, surge um sujeito de óculos, com um anacrónico bigode, de pulôver (ainda hoje, não descobri se uma prenda da mãe ou da mulher, pois, há questões que levamos connosco para o túmulo…) e calças de ganga, a típica indumentária a meio-caminho, quer ser modernaço, mas o garrote do pulôver tudo trai, ainda temos a bigodaça e os óculos numa demasia envidraçada, antes de me atender, reparei no seu olhar a descer pelas costas da empregada do olho-fugidio, perguntou-me o que desejava, prontamente anunciei-lhe, nem uma palavra na direcção do écran, apenas resignação e um suspiro lamuriante, o olho-divergente também deixou o balcão, por fim, a velhota teria dito ao que vinha, assim que virou costas, não sei porquê, o meu olhar seguiu as pegadas do sujeito do pulôver (ainda hoje, não descobri se uma prenda da mãe ou da mulher, pois, há questões que levamos connosco para o túmulo…), confesso que valeu a pena a caminhada, longe, muito longe, de um rosto vulgar, onde se destacava um teimoso olho-fugidio, as idiossincrasias da existência sem dúvida, neste entretanto, de idas e vindas com os nossos pedidos, do lado do écran nem um movimento que não fosse proveniente de dedos no teclado, a curiosidade asfixiava-me, eram demasiadas emoções para tão curto espaço de tempo, sou devolvido à circunstância com “Ora aqui tem!”, enquanto puxo da carteira, tinha de saciar a minha curiosidade com a génese daquele gutural “PORRAAAA!!!”, sabia, há muito, do carácter extrovertido do pulôver, por detrás da demasia envidraçada e da bigodaça-anacrónica escondia-se uma autêntica porteira, o estabelecimento era seu e da mulher, só tinham aquela empregada do olho-divergente, daí a minha estranheza com aquele sujeito colado ao écran, lá me explicou, quase em surdina, ser um primo-direito, que ali estava a pedido dos seus tios, até então, a sua única actividade era descolorir copos madrugada adentro, em bares esconsos de reputação anoitecida, chegava a casa com o amanhecer do mundo, a exibir aquela gutural voz que, há pouco, emitira o extraordinário “PORRAAAA!!!”, mas, pelos vistos, trocara o vidro dos copos pelo do écran, e o álcool pelo jogo, olhei-o com respeito, de facto, estava com uma abnegação, quase religiosa, no jogo, afigurava-se ser de cartas, pois, há pouco, “PORRAAAA!!!”, parece que algo ali não se encaixou, eu, numa certa inocência, ainda questionei se os tios desejavam afastá-lo das más-companhias, o pulôver: “Sim, claro, mas veja bem a peça que aqui me puseram! Sabe, não diga a ninguém, fica só entre nós, há uns dias, estávamos quase a fechar, entraram aqui dois sujeitos a perguntar pelo Tatázinho… Eu respondi logo não conhecer nenhum Tatázinho! Só que depois lá disseram o nome da peça, foi aí que se me fez luz! Veja bem: o Tatázinho!” Achei indigno, chamar Tatázinho àquele vulto que vislumbra, com uma abnegação, quase religiosa, o jogo, no écran, a velhota ainda pediu mais uma ou duas coisas, sempre que o olho-divergente virava costas, o meu olhar e o do pulôver percorriam os mesmos passos costas abaixo da sujeita de rosto-vulgar, de facto, naquela perspectiva traseira nada havia de vulgar, muito pelo contrário, ainda por aqui a imagem de como as calças-de-ganga tão bem lhe assentavam, e nem toda a mulher se pode gabar de ter umas calças-de-ganga que parecem ter sido feitas só para si, por ali nada havia de fugidio ou divergente, talvez por esse motivo, volta e meia, a mulher do pulôver irrompesse para ver como iam as coisas, a única divergência ali permitida era o olhito da empregada, nada mais, denotava-se à distância quem ali mandava, na sua presença o pulôver quase emudecia, nesses momentos, creio, em verdade, que se escondia mesmo atrás das vidraças dos óculos, até a bigodaça diminuía, assim que ela entrou, reparei no seu olhar de desdém na direcção do écran, ouvi-a mesmo  rugir entredentes: “Tatázinho… Tatázinho… Tatázinho… Só me faltava este!”, achei redutor posicionar-se assim face àquele singular vulto que procurava, num écran, resolver os enigmas da humanidade (talvez, por fim, me revelasse se uma prenda da mãe ou da mulher, pois, há questões que não desejamos levar connosco para o túmulo), só teríamos, com um pouco de paciência, aguardar por um segundo “PORRAAAA!!!” – aí, sim, o mundo poderia repousar...

domingo, 1 de outubro de 2023

 

“Sabes, às vezes penso que gostava de recomeçar… Esquecer-me de mim, e apenas recomeçar… Longe de quem fui”, as tuas palavras ecoavam nos pontos mais recônditos do meu ser, como se me ouvisse pela tua voz...

in Nascer