Livros

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sábado, 27 de maio de 2023

 

Mas os adultos perdem algures a essência: são crianças esquecidas de brincar.

in Deslumbramento

Só o sol para ensinar a sombra

 


Os seus passos, agora lentos, mas não menos decididos, naquela cadência muito própria de quem ainda procura um apeadeiro, onde talvez apenas o vento, pelas mãos aquelas pedras de súplica, os lábios a conferir-lhes um sentido, tudo numa singular discrição, afinal, a oração sempre é um caminho, o destino, agora, a uns passos, sobe os degraus daquela forma infantil, ainda se lembra, é verdade, tudo é regressar, àquela hora ainda o silêncio, e como ela o apreciava, há lugares que nos elevam, talvez não muitos, mas a igreja da sua terra era um deles, poucos vultos por ali estavam, pelo xaile dizia-lhes os nomes, deixou-se ficar perto da porta, ali queria estar por inteiro, olhar aqueles quadros com ressonâncias das alturas, perder-se no precioso brilho emanado por cada vela, aquele frágil equilíbrio que se derruba a cada brisa, mas que se reergue num milagre aparente para iluminar e, quem sabe, guiar passos alheios, e, sim, o silêncio, a amplificar os gritos que há muito soterrara, permanecia sentada, as pedras a rolar por entre os dedos sob a cadência dos lábios, afinal, a oração sempre é um caminho, os joelhos já não lhe permitiam mais, chegou a dizer bem alto, uma manhã, após a eucaristia, Ajoelhem-se os jovens, esses é que precisam de aprender a humildade, houve xailes a anuir, nunca soube bem porquê, mas ali dentro parecia que o mal não encontrava porta, e não se cansava de olhar, olhar, e olhar, aquele corpo flagelado que pendia de uma cruz, como se cada chaga nos aquietasse uma lágrima da memória, o rosto pendente a olhar a terra, no fundo, a olhar-nos, do seu lado esquerdo, aquela concha de pedra onde se gravou o nome aos três filhos, foi há tanto, e há tão pouco, parece que ontem, chega a uma altura em que tudo é um ontem, e nós já não pertencemos ao amanhã, os seus passos acelerados, agora a descer a escada, e a pergunta ansiosa O senhor doutor não vem esta semana?, a mãe a levantar-lhe uma sobrancelha, Porquê essa ansiedade pelo senhor doutor?, ela a disfarçar, uma mão pelo cabelo, o olhar pela janela, Por nada, por nada, apenas curiosidade, porém, há muito que a mãe elevara a sobrancelha, desde que o senhor doutor se hospedara  num dos quartos, lá em casa, que o olhar da filha seguia por trilhos além-janela, todos os meses ficava, pelo menos, uma semana, uma bênção para gente de tão remotas paragens, num ontem há tanto ido, a presença do médico, em certos espíritos médico rima com vida, talvez isso inquietasse em demasia a sobrancelha materna, às horas da refeição percebia-lhes os olhares, a prontidão com que ele ia ajudá-la a trazer água do poço, os risos, os vizinhos procuravam baixar a sobrancelha materna, Ó mulher, sempre é o senhor doutor!  Não há doença que vos pegue, e, de facto, sempre que a semana findava, e ele partia para a freguesia próxima, deixava as oferendas como pagamento pela estadia, coelhos, vagens, galinhas, alheiras, e tudo o mais que os braços pudessem arrancar à terra, com o tempo, a ansiedade numa questão cresceu O senhor doutor não vem esta semana?, era demasiado evidente, a partir daí as duas sobrancelhas maternas elevadas, o senhor doutor tratava os doentes de fora, enquanto ali refreava o calor de um olhar e a sede de uns lábios entreabertos, razão tinham certos espíritos, de facto, médico rima com vida, quando soube da notícia, pelas duas sobrancelhas elevadas, o senhor doutor assumiu todas as responsabilidades, a gente da povoação intercedeu pelo senhor doutor, houve, naquela casa, mais coelhos, vagens, galinhas, alheiras, e tudo o mais que os braços pudessem arrancar à terra, a criança recebeu o apelido paterno, as sobrancelhas, para sempre elevadas, ainda falaram do rito em falta, o senhor doutor desculpou-se com os pais no Porto, o trabalho infindável nas outras freguesias, a filha saciava-se com aquela semana por mês, com o tempo, houve mais dois filhos, também herdaram o apelido paterno, talvez um dia, quando a compreensão lhes iluminar o passado, o rejeitem, talvez, o ontem foi-se aproximando do horizonte, as sobrancelhas, para sempre elevadas, conheceram a terra, o senhor doutor não pôde comparecer, andava por outras freguesias, soube-se, mais tarde, que, noutros lados, também refreava o calor de um olhar e a sede de uns lábios entreabertos, aquela semana ainda persistiu um pouco no tempo, e, sempre que ele se aproximava da porta, os seus passos acelerados, tudo há tanto, e, no entanto, sempre no ontem, nunca houve censuras, afinal, era o senhor doutor, hoje, ali sentada, num daqueles lugares que nos elevam, a olhar aquele corpo flagelado que pendia de uma cruz, como se cada chaga nos aquietasse uma lágrima da memória, o rosto pendente a olhar a terra, no fundo, a olhar-nos, compreende-se, isto só acontece quando o arrependimento não nos fecha a janela do ontem.


 

domingo, 21 de maio de 2023




Algo me diz que estamos algures por aí, perdidos no deslumbramento que fomos, num tempo onde o sono se harmonizava com o sonho, nós éramos futuro, não uma memória.

in Deslumbramento

A compreensão do Inverno

 


Uma dor algures na cabeça, logo em todo lado de si e à sua volta, a luz, de novo, a piscar, o auscultador, antes da primeira sílaba, fecha os olhos, talvez uma súplica para que a dor o esqueça por uns instantes, agora a voz sai-lhe naquele tom que tão bem conhece, afinal uma criação sua, mas que não é o seu, do outro lado, a voz de uma mulher jovem, percebe-lhe urgência pela velocidade das palavras, a questão cansada (E pretende o crédito para…), não tardou a resposta cosmética (Para obras…), a mensagem, agora, a sair-lhe destituída de qualquer sentir, como se emitida por uma voz demasiado distante da sua, Vou precisar do número do seu B. I. e do número do seu NIF. Tem-nos aí à mão? Há questões, de tão repetidas, que se sabe o tempo da resposta, assim que o NIF a chegar-lhe pelo auscultador, logo os seus dedos a iluminar o ecrã, o BI era apenas um pretexto, nunca o chegava a apontar, por ali, nada de novo, mais alguém que perdeu a corrida com os números, de novo, como se emitida por uma voz demasiado distante da sua, a frase já no mundo, Lamento informá-la, mas não nos vai ser possível conceder-lhe qualquer crédito… Tem aqui vencido…, ela já desligara, pareceu ouvir-lhe uma longa expiração, talvez fosse só uma impressão sua, talvez, no início, ainda procurava confortar, contudo, os começos têm urgência na memória, daí a sua rapidez, deixou de se interessar, também ele fora ultrapassado, há quem lhe chame incompreensão, é possível, olhou o ecrã, uma vida reduzida a números – a biografia numérica –, daquela voz, de mulher jovem, a urgência pela velocidade das palavras, apenas escolhos na forma de algarismos, ele a pensar (em que momento fora ela ultrapassada pelos números?), tudo ali diante da sua atenção, o electrodoméstico novo, umas férias em cenário de postal, o carrito em segunda mão, mas jeitosinho, por sinal, aqui e ali uns atrasos, sempre o tal crédito vencido, mas nada de significativo, até àquela data, devidamente sublinhada, desde então, os únicos números que cresceram foram os que ela tem a pagar, como se fossem acometidos de uma qualquer vertigem, tanta estrada para tão curtas pernas, pareceu-lhe ouvir uma longa expiração, entre números, colunas, somas, subtracções, percentagens, nem um recanto para se ouvir uma longa expiração, ou a alegria contida pelo electrodoméstico novo, os beijos com sabor a manhã sob o céu daquele cenário de postal, os passeios a Sintra, ao fim-de-semana, no carrito em segunda mão, mas jeitosinho, por sinal, à sua frente, e apesar da atenção dispensada ao ecrã, apenas números, colunas, somas, subtracções, percentagens, nem um recanto para se ouvir uma longa expiração, ainda se deteve, por uns instantes, em busca de uma saída naquele labirinto de colunas, mas o olhar da filha, na moldura à sua frente, a relembrar-lhe os passos do lar, olha-o do colo da mãe, uma fotografia que ele tirou, há cerca de um ano, a sua mão acaba sempre por ali pousar, como se seguisse os passos do olhar, é curioso, após certos telefonemas, como este último, pensa-se, assim fica durante o necessário, de costas para os ponteiros, em sua casa, ainda não houve como para electrodomésticos novos, tudo já lavou em demasia sob outros tectos, os beijos trocados foram sempre longe de cenários de postal, porém, nunca precisaram de tais horizontes para saberem a manhãs, os passeios de fim-de-semana entre a espera de um autocarro e a pressa do comboio, nem para um seguro lhes chegava, talvez por isso continuassem à frente dos números, numa corrida sem vencedores, pousou a moldura, desligou o ecrã, levantou-se, saiu, de repente, apeteceu-lhe saborear a manhã, talvez para silenciar uma expiração que se avizinha…

sexta-feira, 19 de maio de 2023



Nasce-me uma questão: Haverá ruas diferentes desta? Não me parece, morei em tantas e todas me pareceram a mesma. Que diferenças pode haver entre ruas se a essência que as habita é a mesma? Todas as ruas deviam ter o mesmo nome: Rua dos Sonhos Sepultados.

in Deslumbramento

terça-feira, 16 de maio de 2023

Um repente pode durar a vida

 


Uma qualquer falha, no passeio, fê-la regressar ao momento, quase o tornozelo cedia, parou, esperou a dor, veredicto de imobilidade prolongada certa, felizmente apenas uma impressão, nada mais, talvez o carrinho, onde o filho, de meio ano, dormia, ajudasse ao equilíbrio, retomou a marcha, o carrinho, de novo, aos estremeções, passeio fora, pouco depois, avistava o destino, do outro lado da rua, àquela hora, já uma fila considerável, atravessou, os travões de um carro, que se imobilizou numa evidente contrariedade, alarmaram-na, olhou o condutor com uma indisfarçável repulsa, este devolveu com a máscara do desprezo, como se ela não fosse bem-vinda a este lado do existir, afinal, mais um escravo dos ponteiros de um qualquer relógio, talvez os segundos ali subtraídos demasiado preciosos, não se deteve, por muito mais, a olhá-lo, seguiu para a cauda da bicha, que entretanto se avolumara, o carro arrancou numa sonoridade, de pneus guinchantes, desajustada, todos os olhares convergiram para aquele deplorável espectáculo, gentilmente o sujeito à sua frente deixou-a passar, via-se, pelo rosto, que era daquelas pessoas que equilibrara o sabor e o conhecer da vida, tão difícil, tão raro, ela agradeceu num movimento vertical de rosto, contudo, por ali ficou, apesar da criança, do carrinho, da hora matinal, agora, à sua frente, uma mulher, fingia não ter reparado que, atrás de si, uma criança, um carrinho, a hora matinal, obstinava-se com o rectângulo do hoje, como se da sua atenção, e destreza de dedos, dependessem muitos futuros, pela indumentária adivinhava-se difícil descortinar a ocupação, ali também não ia trabalhar, mas o cabelo, enciclopedicamente arrumado, denotava público no seu contexto laboral, lamentava-se, isso sim, que tantos lados seus estivessem votados a um tão grande desalinho, de repente, a porta de vidro abre-se, como se o tiro de partida, tudo se precipita para o interior, uns para a esquerda, outros para a direita, ela ia para o andar de cima, tinha de aguardar o elevador, o carrinho, agora, a retardar-lhe a marcha, mas era por ele que ali estava, após uma noite debruçada para as suas insondáveis dores, tudo, ainda num aquém verbo, reduzido a gemidos e choro, de vez em quando, uma pálpebra a traí-la pelo cansaço, porém, os braços, como se ramos no abrigo do viajante, sempre derramados para o interior do berço, assim fora a sua madrugada, e muitas anteriores, só quando o elevador se imobiliza no primeiro andar e as portas se abrem, é que ela relembra aquele cheiro, característico deste lugar e de outros, onde se procura uma fuga da doença, no fundo, um cheiro a fim, um pouco isso, remédios somados a um cinzentismo das coisas (rostos, expressões, gestos, esperanças…), aguardou, pelo seu nome, numa sala, deficientemente iluminada, em pouco tempo, nem vislumbre de lugar, ela ainda foi a tempo, à sua volta, tosse, espirros, dores silenciadas, olhares caídos, reparou num casal idoso que se amparava numa marcha sem relógio, mas gloriosa, é curioso, por ali não havia vestígios de pneus guinchantes, de máscaras de desprezo, de escravos dos ponteiros de um qualquer relógio, pelo contrário, tudo provinha do possível de cada um, talvez antes os ponteiros caminhassem, em vez da vertigem do agora, daí esta aprendizagem, era por ele que ali estavam, do lugar onde se sentara, percebeu-lhe aquela expressão de quem partira de si mesmo, tão estranho, pensou ela, partir e ficar simultaneamente, a mulher, a seu lado, persiste naquele amparo incondicional, ele acompanha-lhe os passos, irmanado, a boca descaída, como se capitulasse de insistir com o mundo, ela ainda os acompanhou por uns instantes, partir e ficar simultaneamente, tão estranho, insistiu nesta ideia, talvez tudo se resuma a isto, daí tantos equívocos, entretanto, chamaram por um nome que lhe era bem familiar, levantou-se, de novo, o carrinho, começou a debitar com licenças, cruzou-se com o sujeito que a deixara passar, na fila, lá fora, uma daquelas pessoas que equilibrara o sabor e o conhecer da vida, tão difícil,  tão raro, mais uma vez, à vista daquele rosto, aquela ideia a atravessar-lhe o pensar,  partir e ficar simultaneamente, tão estranho, sorriu-lhe, também se cruzou com a mulher do cabelo enciclopedicamente arrumado, persistia com o rectângulo do hoje, como se da sua atenção, e destreza de dedos, dependessem muitos futuros, antes de entrar, a porta do gabinete entretanto aberta, de novo, um nome que lhe era bem familiar ecoou pelo espaço circundante, olhou à sua volta, tudo permanecia como até então, o carrinho agora em silêncio, ela lá foi, naquela marcha desamparada, sem vestígios de glória, partir e ficar simultaneamente, compreendeu, afinal, há quantas madrugadas é que os seus desamparados braços, como se ramos no abrigo do viajante, se derramam para o interior de um berço?

sábado, 13 de maio de 2023


 


... nos alvores do amor encontramo-nos mais no outro do que em nós...

 in Deslumbramento

Uma janela que se fecha, uma voz que se cala

 


Há quanto tempo aquela janela fechada? O estore para baixo, tal como pálpebras a ocultar almas, perdi a conta aos dias desde que… Antes (há quanto?), logo pela manhã, bem cedo, o dia a passear-se pelo interior em passos alumiados, parecia que toda a casa cantava, ela, de quando em vez, na janela, ora a lavar vidros, ora a arejar tapetes, só muito raramente em olhares de ociosidade, no fundo, não se detinha em nenhum ponto específico, o seu olhar vagabundeava no acaso de uma sede por uma distância sempre escassa, a meio da manhã, saía para as compras, alternava entre a mercearia, na praceta em frente, e a praça, um pouco mais longe, ficava ao lado da igreja, à hora do almoço, o marido em casa, saudava-a sempre com um beijo na testa, a princípio, ela achou graça, mas, com o tempo, o peso do gesto a acentuar-se, isto só sucede quando o ontem nos irrompe alma adentro, ela a procurar o momento em que os lábios dele partiram dos seus para se elevarem ao pudor da testa, como se um beijo paternal, em verdade, nunca lhe censurou este gesto, talvez não houvesse uma qualquer razão obscura na sua génese, ou desinteresse, bem, neste aspecto, as coisas já foram melhores, nela ainda perduram os aromas a fruta derramados pelas sombras estivais, aquando dos piqueniques, lá na província, onde se conheceram, eram da mesma aldeia, ela, em verdade, só reparou nele quando, num certo baile, a meio de uma dança, ele lhe confidenciou que, no dia seguinte, ia para a capital, queria ser polícia, sem saber muito bem porquê, ela aproximou os seus lábios dos dele, é curioso, nesse momento, ainda pensou em beijar-lhe a testa, contudo, por pudor, declinou esta possibilidade, afigurava-se-lhe demasiado maternal, desde então, entre cartas de prosa sentida, reencontravam-se aos fins-de-semana, e nas férias, num Domingo de manhã, ele a demorar-se com o pai dela, a porta da sala fechada, por fim, ambos saíram com expressões de acordo, chamou-a à parte, desembrulhou um anel, envolto em papel vegetal, com alguma dificuldade, os dedos grossos e ansiosos a retardar delicadezas, por fim, o objecto desvelado, à vista daquele símbolo de uma vida partilhada, a emoção a embaciar-lhe o mundo, a voz a esconder-se-lhe, no entanto, percebeu nele um qualquer orgulho por um dever cumprido, mais tarde, haveria de reencontrar esta peculiar expressão, ainda a atribuiu à sua vocação profissional, mas não, nada como tecto e tempo para pousarmos os artefactos com que nos escondemos do mundo, e foi, também, na intimidade que lhe reencontrou-lhe aquela peculiar expressão de um qualquer orgulho por um dever cumprido, era muito subtil, nesse momento, ele nada verbalizava, como se ficasse na varanda de si a contemplar-se, foi este o seu percurso com os anos, caminhar do mundo para si, ela não o sabia, não o adivinhava, houve quem a acusasse de falta de chão quando o ajudou a desembrulhar o papel vegetal, refutava estas acusações, em certa medida tinha a sua razão, afinal, nada como tecto e tempo para pousarmos os artefactos com que nos escondemos do mundo, após o almoço, ele regressava à esquadra, ainda não tinham conseguido juntar para um carro, ela ficava, da janela, a vê-lo afastar-se, antes da escadinha que precede a esquina do prédio em frente, ele virava-se, de mão no ar, para um último adeus, ela retribuía, ao final do dia, o filho de volta da escola, depois regressava ele, o serão, os afazeres despercebidos de tanto repetidos serem, até que desaguavam no sofá, e naquele ecrã que os fazia esquecerem-se, ele em esforços para não adormecer, chegava mesmo a levantar-se e a molhar o rosto, umas gotas esquecidas na face denunciavam-lhe o gesto, de certa forma, ela apreciava-lhe o esforço, nesses momentos, percebia-lhe no rosto, uma vez mais, aquela peculiar expressão de um qualquer orgulho por um dever cumprido, o dia seguinte diferenciava-se apenas pelo número no calendário, certa tarde, já o filho quase a terminar a faculdade, ele a regressar da esquadra, ainda a pé, houve dinheiro para um carrito, mas como trabalhava perto, os fins-de-semana serviam para descansar, ela nunca se opôs a poupar, apesar de a ter ouvido comentar, variadíssimas vezes, os passeios dos vizinhos, contudo, os dias sucederam-se, e hoje, com as notícias alarmantes do número de acidentes, seria um completo disparate, estranhou a janela fechada, o estore corrido como pálpebras a ocultar almas, parou um instante após subir a escadinha que precede a esquina do prédio em frente, antes de entrar em casa já a chamava, abriu a porta, e sem saber muito bem o porquê, o seu olhar incidiu numa folha, na vertical, encostada à jarra, sobre a mesinha de entrada, com a letra dela, nem se lembra de lhe ter pegado, naquelas linhas, ela falava de regressos, de lugares onde perduram os aromas a fruta derramados pelas sombras estivais, aquando dos piqueniques, dizia-lhe que o esperava, com uma toalha estendida sobre a relva, ele pousou a carta, desde então, nada mais se soube deles, há pouco tempo, uma placa Vende-se, com a cara de uma senhora, coloriu ligeiramente a janela fechada, certa vez, não sei se é verdade, houve quem jurasse tê-los visto, de novo, a desembrulhar papel vegetal sob uma sombra de Verão.

domingo, 7 de maio de 2023


 ... pois, tempos estranhos estes, onde vale bem mais o parecer que o ser...

in Deslumbramento

sábado, 6 de maio de 2023


 ... acho que não há dia em que não me visite para relembrar que o arrependimento nos inclina para a terra...

in O passado dura sempre um dia

sexta-feira, 5 de maio de 2023

O passado dura sempre um dia

 


Sim, é você novamente… Já lhe disse que não vale a pena insistir. Não, não vá por aí. Quem você pensa que é para julgar os outros? Sabe, um dos seus problemas foi sempre ficar à superfície das coisas. Não, já lhe disse que não abdico do tratamento na terceira pessoa. Veja onde nos conduziram as familiaridades. Como estava a dizer, você fica sempre à superfície das coisas, centra-se nas acções, mas não se preocupa com as causas, e, quantas vezes, aí a compreensão de tudo, lembra-se daquela vizinha que, certa tarde, um grande alarido lá pelo bairro, o Abílio da mercearia a segurá-la por um braço, à porta do estabelecimento, a abusar, propositadamente, daquele seu vozeirão, ela, coitada, com a alma chovida por entre as pedras da calçada, exposta aos passeios e às marquises em redor, nós, não sei se lembra, a regressar a casa, não foram os impropérios trovoados do Abílio que me imobilizaram, mas sim aquela desesperança cujo rosto ainda hoje ignoro, os cabelos como um xaile, a ocultar a face, derramados para o chão do mundo, você, logo, Estas ladras, ainda lhe gritou, Chame as autoridades, senhor Abílio, de certa forma, ele grato pelo reforço, nisto, eu atravesso o passeio, pergunto-lhe o que ela não pagou, estendo-lhe a respectiva nota, ainda lhe digo para ficar com o troco, mas que a largasse de imediato, e, acima de tudo, devolvesse silêncio aos passeios e marquises em redor, no entanto, e em dívida com a verdade, não saí de mim, permaneci onde estava, a seu lado, você (lembra-se?) ainda por duas vezes gritou Chame as autoridades, senhor Abílio, desejei tanto que se calasse, confesso que me apeteceu emprestar trovoada à voz e gritar-lhe Cale-se, há coisas que se nos somam à sombra, aquela desesperança cujo rosto ainda hoje ignoro, os cabelos como um xaile, a ocultar a face, derramados para o chão do mundo, é uma delas, acho que não há dia em que não me visite para me relembrar que o arrependimento nos inclina para a terra, segui para casa, você a meu lado, mas sempre a olhar para trás, os dias seguintes povoaram-se de versões do sucedido, nenhuma me interessou, prefiro a que senti naquele momento, ainda hoje, quando vou à janela, procuro, por entre as pedras da calçada, uma alma que se derramou, você sempre com a versão da ladra, e daí não se demoveu, ainda tentei que naquela casa talvez o pão aquém das bocas, mas a resposta não tardava, E o trabalhinho que é bom, ah, e o trabalhinho, recordei-lhe os números das portas que se fecham a cada dia, talvez nem o devesse fazer, afinal, quando a conheci, você bem que percebia essa realidade, às vezes, duvido da sua memória (ou será da minha?), houve uma altura em que os meus dias sentado a olhar-lhe o rosto, sobretudo naquela foto que lhe tirei junto à macieira no quintal dos pais, para jamais o esquecer, pelo menos a voz continuo a ouvir, como se ela ainda aqui a meu lado, a recordar-me, no fundo, quem eu sou, certa tarde, julgo que pouco antes do Natal, a porta do prédio aberta, sempre os inquilinos de ocasião, nada perdura nestes dias, na dificuldade da descida, um pé a atraiçoar-me o equilíbrio, o Inverno já se apresentara aos degraus, só me lembro de vozes à minha volta, pesarosas, aquando do meu regresso, se é que já não partira de vez, à sombra de uma macieira, você a oferecer os seus préstimos, na altura, confesso a minha gratidão, afinal, uma das pernas com mais ferros que osso, embora logo acertássemos valores, habituei-me à sua presença, ou foi-me habituando, talvez isso, mas nunca às suas opiniões, certa noite, enquanto se festejavam santos nas ruas, você a deitar-se a meu lado, coitada, pensei eu, vem ao engano, nesta fase, só se for mesmo pela companhia, você ainda se esforçou, porém, tudo tem um tempo, e o meu à sombra de uma macieira, daí aos códigos dos cartões não tardou muito, confesso que dava jeito, para as compras e demais carências, pois um osso não dói tanto como um ferro, na altura, não lhe disse nada, não sei porquê, desconfio que as dores nos familiarizam com o silêncio, no entanto, quando você arrumou as fotos, naquele gavetão, na sala de estar, sem sequer uma palavra, começou a distância, sabe, e voltando aquela desesperança cujo rosto ainda hoje ignoro, os cabelos como um xaile, a ocultar a face, derramados para o chão do mundo, se eu, nesse momento, tivesse, a meu lado, um perfume de macieira, de certeza que atravessava o passeio, perguntava-lhe o que ela não pagou, estendia-lhe a respectiva nota, ainda lhe dizia para ficar com o troco, mas que a largasse de imediato, e, acima de tudo, devolvesse silêncio aos passeios e marquises em redor, talvez assim, evitasse o derramar de uma alma  por entre as pedras da calçada.