Livros

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domingo, 26 de fevereiro de 2023


 Há algo mais verdadeiro que uma lágrima salgada?

in Deslumbramento

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023


... em breve teríamos de regressar à nossa circunstância, silenciaste-me com um beijo, apontaste o horizonte, uma vez mais os teus dedos pelo rosto, a dúvida se eram lágrimas ou chuva a demarcar-me os contornos, o mundo iluminava-se, pouco mais foi dito, eu estava certa, ambos sabíamos, se tudo pudesse ser uma outra coisa, talvez aí o Ideal e o Ser se encontrassem, e não houvesse lugares neste mundo com tantos sonhos enterrados.

in Deslumbramento

Será que Deus gosta de finais felizes?

 


Então, o que decidiste? A questão saiu-lhe ansiosa, ele percebeu de imediato o erro, as palavras atropelavam-se numa sonoridade acidentada, como se não permitisse réplica, ela, do outro lado, só respiração, passados uns momentos, Não estás mesmo interessado, pois não? Uma resposta tornada questão, um golpe sempre difícil de responder, parece que somos desarmados e, de repente, atacados com as armas que há pouco empunhávamos, ele olha à volta, na esperança de uma ideia que responda, mas, não sabe se pela hora, apenas a monotonia de um cansado cenário que já nem se olha, gente apressada passeio fora, com expressões veladas por um terror silenciado, isto só sucede quando o amanhã tem a cor da noite, a sinfonia mecânica do infatigável vai e vem de viaturas, conduzidas por sombras imóveis, numa aparente indiferença pelas emoções que, algures no caminho, lhes caíram do bolso, lojas vazias que derramam, nos passeios, um contido soluçar pelo ontem, a passada dele, agora, a encontrar o seu pensar, tudo na lentidão de quem espera, num passeio, num cais, numa plataforma ferroviária, num lugar de si, por um regresso, por fim, as palavras a construírem-se tenuemente, Não é bem assim, foi uma grande surpresa, não sei se estou preparado, de novo, a respiração dela audível, a soletrar-lhe desilusão, ele a ouvir e a compreender, desde ontem, ao final do dia, a farmácia ainda de porta aberta, ela ficou na segurança de umas arcadas, a uns bons cinquenta metros, ele avançou, entre o orgulho por um feito de macho e o retardado pânico das consequências, talvez adivinhasse o emergir da cobardia, afinal, não nos desconhecemos tanto assim, a indulgência do farmacêutico ao seu pedido irritou-o, como se não fosse levado a sério, percorreu os cerca de cinquenta metros, até junto dela, com aquilo no bolso, quase coxeava com o peso da dúvida, ela estava sentada, nem se apercebera do seu regresso, uma mão amparava o queixo, enquanto olhava o indefinível que ocupa o pensar, ele opta por também se sentar, nem repara na longa expiração por já ali estar ao lado dela, estende-lhe aquilo que transportara no bolso, é tão estranho, há objectos que são simultaneamente passado, presente e futuro, tudo depende do olhar e de um gesto nosso, ela recolhe-o quase com devoção, algo só possível ao feminino, poucas mais frases trocaram até ao café, escolheram uma mesa que soasse a ilha, beberam algo com o gosto do esquecimento, entreolharam-se o suficiente para lerem um compreendido, mas sempre desiludido, pânico comum, por fim, ela levanta-se, vai até à casa de banho, enquanto isso, ele começa a aprender o tempo, agora é o olhar dele que encontra o indefinível que ocupa o pensar, quando ela regressa as palavras sucumbiram ao olhar, nada se disse, tudo se verbalizara na expressão que ostentava, de quem quer partir, para uma viagem sonhada, sem tempo para um adeus, ele olha-se no desespero de quem sabe não possuir bagagem para tal jornada, ela, nesta altura, apenas com um pé no cais, o outro já se levanta na direcção daquele navio, com uma imemorial rota pela geografia da vida, enquanto isso, ele siderado no cais, os dois pés numa imobilidade pétrea, ao final da tarde, ela insiste, já da amurada do navio, neste momento, a sua imobilidade cedera espaço a um deambular, uma questão norteia os seus passos (Como embarcar sem conhecer o destino? Porém, ela parece tão segura…), de repente, o navio grita a partida, tudo à volta se mobiliza para um último adeus, ele levanta o olhar à altura do rosto que o aguarda, sem esboçar um gesto de despedida, sob a tranquila luz do entardecer, de novo, a questão (Como embarcar sem conhecer o destino? Porém, ela parece tão segura…), uma brisa do acaso levanta-se e passeia-se-lhe pela face, compreende o ontem, olha o amanhã, talvez se uma longa expiração por já ali estar ao lado dela…

terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

 

... como se tudo no mundo encontrasse o Sentido, pelo menos eu encontrara, as estrelas na terra, o deslumbramento, a hora entardecida, o inebriar do teu perfume, o astro a mergulhar nas águas, o meu ressuscitar, afinal, só renasce quem estava morto.

in Deslumbramento

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Se ao menos me tivesses deixado ver a cor da tua alma…

 


Não me lembro de termos discutido por esses dias, não, julgo que não, até andavas calmo, se bem me lembro, então, o que te levou a… Cheguei mais cedo nesse dia, parece que há um fado a ditar uma surpresa sempre que nos antecipamos, é bem verdade, como se desafiássemos, pelo nosso adiantamento, a sequência natural do acontecer, a porta só no trinco, eras tão cioso pela segurança, nunca de esquecias de dar duas voltas, às vezes, já no elevador, voltavas atrás, destrancavas e repetias as duas voltas, sempre em apneia, mas com um esgar vitorioso, eu a reter o elevador, algures entre a preocupação (não sei porquê, mas num canto cá meu, questionava se seria um comportamento inteiramente ajustado) e o orgulho (enchias o peito de ar, como se de um cerimonial se tratasse), às vezes, o vizinho do quarto andar, impaciente pela espera, aos murros à porta do elevador, mas tu não te ficavas Vamos a ter calminha, muita calminha, logo vi que estavas em casa, estranhei pela hora, geralmente, por estes dias, em que o teu horizonte se restringiu a um copo incansavelmente sorvido num balcão esconso, só regressavas ao jantar, e pouco passava das quinze, a casa numa imobilidade de suspense, são aqueles silêncios que aguardam impacientemente pelo seu fim, geralmente na forma de um grito abafado, pousei a carteira na mesinha da entrada, de facto, estranhei o temor que os olhos das coisas me devolviam, não ousei chamar-te, dirigi-me logo para o nosso quarto, a porta estava aberta, de resto, tudo arrumado conforme deixara nessa manhã, antes de sair, a única imagem que retive, ainda hoje me habita, é a de uns pés suspensos, numa palidez indesmentível de que a vida dali partira, há já algum tempo, há qualquer coisa de ridículo nuns pés suspensos, talvez por o seu destino ser fincar a solidez da terra e não a imaterialidade do ar, havia, também, nessa imagem, um pouco da infância na forma de um boneco desarticulado, algures esquecido na sombra de um armário, estes e outros pensamentos sobrepunham-se às emoções, ainda anestesiadas pelo véu do espanto, corri para o telefone de casa, nem me lembrei do telemóvel, o pânico vive longe da modernice, na mesinha da entrada, com a urgência de movimentos, a minha carteira caiu, objectos rolaram pelo soalho, o acelerado galope da minha impaciência a contrastar com a impassibilidade daquela voz, que lançava questões numa cadência exasperante, não me lembro de ter pousado o auscultador, da chegada das urgências, da invasão de minha casa, de quantas vezes me repetirem, também numa cadência exasperante, Sente-se e acalme-se, apenas recordo a passagem dele numa maca, coberto com um lençol, porém, os pés à vista, numa palidez indesmentível de que a vida dali partira, há já algum tempo, enquanto assistia a tudo, de longe, parecia estar sentada no ramo de uma árvore imensa, a contemplar o quintal de uma família alheia, ao mesmo tempo, faziam-me me engolir cilindros coloridos, a goles de água de um copito de plástico branco, que viajava, por mãos alheias, incansavelmente entre a minha boca e a torneira da cozinha, ainda apareceu a polícia, também com mais perguntas, lembro-me de uma voz a sobrepor-se às restantes Desculpem, mas talvez não seja o momento adequado, nesta altura, sentada no ramo de uma árvore imensa, a contemplar o quintal de uma família alheia, sorria para a distância das coisas, uma voz preocupada disse Está a entrar em choque, é melhor levá-la para o hospital, sei que continuei a sorrir, ouvia a melodia das folhas embaladas pela brisa, raras são as que ultrapassam em beleza a harmonia destes sons, a minha casa já não me pertence, é um entra e sai muito para além da insignificância da minha vontade, nisto, alguém se senta a meu lado, no ramo da árvore imensa, Nem te despediste, digo-lhe eu, Fui-me despedindo, um pouco todos os dias… Mas tu na surdez do hoje, respondeu-me ele, Alguém tem de se preocupar em encher o frigorífico, arrependi-me, mas as palavras anteciparam-se-me ao pensar, Não tenho culpa da fábrica se ter mudado para terras distantes, pouso-lhe o indicador nos lábios, Eu sei, eu sei, mas nunca pensei que isso… Parecias, ainda ontem, tão bem-disposto, segura-me a mão, Desculpa-me, mas perdi o meu lugar no mundo, insisto com ele, Anda. Desce comigo, ainda vamos a tempo, sorri-me, Já é tarde. Vai. Desce devagar. Não te esqueças das horas, por causa dos miúdos. Fico aqui à tua espera. Percebo-lhe a convicção, no entanto, com uma voz que o tempo ainda não me silenciara, peço-lhe Antes de ir, deixa-me só pousar, por uns instantes, a cabeça no teu ombro, enquanto ouvimos estes acordes que a brisa embala…

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

Queria um pouco do ontem no hoje


 

Tudo começa no imperceptível que não iluminamos, aquelas coisas que só emergem com a luz do presente feito passado, como aquele dia em particular, ela sempre na pressa (de quê?), emprego, compras, filhos, uma conta esquecida por pagar, a ordem de corte já no segundo aviso, tinha chegado a casa, acho que se lembra deste pormenor, pois voltou a sair na pressa (de quê?), e, já dentro do carro, a chave a demorar-se, ainda se baixou, a ignição sob o alcance do olhar, mas não do gesto, o tempo a esfumar-se, os nervos em crescendo, o olhar cansado de desenhar o gesto, mas a chave a acompanhar as ondas hesitantes da mão, por fim, capitula, sai do carro, regressa a casa, telefona ao marido, não lhe conta o sucedido, apenas lhe relembra uma pressa (de quê) que não pôde cumprir, foi para o quarto, baixou o estore, antes abriu o pequeno armário que destinou aos medicamentos na casa de banho, havia-os para todos os destinos, optou, desta vez, pelo do sono, e assim foi, até o marido lhe relembrar que já passava da hora do jantar, se não se levantasse, nem os filhos via, aguardavam-na, no quarto deles, para se despedirem, não se lembra porquê, mas ocultou aquelas ondas da mão que o olhar alcançava, mas sempre para além do gesto desejado, uns tempos depois (dias? Semanas? Um mês? Dois meses?), é curioso, a partir de certa altura, os dias apenas nos ensinam a perder o tempo, com o marido ao lado, de novo, a mão em ondas de hesitação face à porta de casa, ele com os sacos de compras, a pedir-lhe rapidez, o gesto desenhado na sua mente, mas a mão a contrariá-lo numa sucessão de vagas, foi ele, após pousar os sacos, que acabou por abrir a porta, não atribuiu especial relevo àquelas ondas da mão que o olhar alcançava, mas sempre para além do gesto desejado, atribuiu ao cansaço do dia-a-dia, à pressa (de quê?), emprego, compras, filhos, uma conta esquecida por pagar, a ordem de corte já no segundo aviso, contudo, desta vez, ela já demorava o olhar pelas falanges, olhava os dedos na delicadeza musical de um pianista, foi o marido, desta feita, quem foi ao pequeno armário destinado aos medicamentos na casa de banho, havia-os para todos os destinos, optou, desta vez, também pelo do sono, regressou munido de um copo com água e do respectivo comprimido, disse-lhe que seria melhor repousar, que andava sob um grande stresse (de quê), ela aquiesceu, porém,  a aurora de uma certeza iluminava-se na madrugada interior das suas dúvidas, uma vez mais, fechou o estore do quarto apesar da luz lá fora ainda convidar à vida, só foi ao médico quando, no emprego, perante a obscenidade dos olhares dos colegas, foi-lhe impossível disfarçar a sucessão das vagas, percebeu ali, face à impassibilidade daquelas expressões, um diagnóstico tornado veredicto, o futuro, dessa vez, pertenceu-lhes, foi o médico que o confirmou, após semanas em que o horizonte se restringiu a batas brancas e lâmpadas fluorescentes, nem procurou encetar uma luta cansada de tanto se conhecer o final, não, nunca procurou heroísmos ingénuos, pelo contrário, nessa noite, no quarto, perante o mutismo  condoído do marido, que há muito se sentara a olhar os sapatos, baixou-se, deu-lhe as mãos, e apenas prometeu uma coisa, por segundos, o rosto dele percorrido por passos de luz,  é curioso, a partir de certa altura, os dias apenas nos ensinam a perder o tempo, mas, apesar disso, ela cumpriu esta promessa: sempre que luz lá fora ainda convidar à vida, nunca mais se fechou um estore naquela casa.

domingo, 12 de fevereiro de 2023



Sabes que vivemos as coisas com intensidades diferentes, quando, por acaso, se encontram, chama-se magia.  

in Deslumbramento



 No fim, no fim, se contares dois ou três momentos de felicidade, dá-te por satisfeito.

in Deslumbramento

sábado, 11 de fevereiro de 2023


 ...como era possível um homem e uma mulher, que um dia trocaram juras de amor, tornarem-se duas desilusões naufragadas num sofá...

in Deslumbramento

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

Para onde vou, levo-me comigo

 


Algo me despertou, como se uma urgência, de qualquer coisa, nunca chegada, percebo-lhe a ausência, não sei se do vazio devolvido pelos lençóis, se pela moldura iluminada da porta da casa de banho em frente, procuro as horas nos números vermelhos tremeluzentes da mesa-de-cabeceira, aproxima-se o jantar, ela regressa, aprecio-lhe a silhueta enquanto os seus dedos tacteiam pelo interruptor, anicha-se, de novo, a meu lado, Tens de ir, não é? Não esperava já a questão, pensei que, antes, falasse de qualquer outra coisa, não sei bem o quê, mas a questão persiste, suspensa, entre nós, como se, ao mínimo movimento falso, desabasse, não há qualquer fuga, ela bem o sabia, opto pela temeridade, Sim, não é nada de novo, pois não? Já viste as horas? Percebo-lhe a surpresa pela entoação assertiva, ou talvez por não ter uma resposta pronta para tal, a cada descida das pálpebras uma possibilidade de resposta, por fim, E isto vai durar até quando? Quantas vidas se repetem numa vida, de novo, esta cena extenuada, já lhe conhecia a sequência frásica, as expressões que as acompanhavam, contudo, hoje havia qualquer coisa de diferente, sem dúvida, ela parecia estar numa amurada, as frases advinham-lhe com a distância, cheirava-me a maresia, eu no cais, estarrecido pelas emoções que se agigantam em mim, enquanto as imagens que amo se subtraem diante do meu olhar, só me lembro de Chega! Também quero viver contigo na vertical, assim que se calou, juro, pareceu-me ouvir o canto rouco de um barco, as asas de uma gaivota, o trepar de uma onda pelo cais, ela já se vestia, eu ainda abraçava o calor dos lençóis, embora diminuísse num galope desenfreado, avançou até à única cadeira da divisão, pegou na minha roupa e depositou-ma em cima da colcha, não era de descidas abruptas, sempre lhe apreciei esta característica, mas também sabia quando me encurralavam, levantei-me, nestes momentos, a intimidade torna-se quase obscena, e a roupa resiste a cobrir-nos como se um grito pelas palavras que silenciamos, uma frase escapa-se-me Nunca te menti, ela E depois? Cansei-me… Sabes, nada é mais doloroso que a espera, pelo menos, concedi-lhe parte da razão, mas nada mais podia fazer, àquela hora, como nas restantes que dura a vida de um dia, sabia-a em casa, de olhar faminto na porta, também ela esperava, embora de uma outra forma, ou formas, para ser ainda mais preciso, agora, na sua mobilidade, chocava com as coisas, deixava-as cair, praguejava em surdina, nunca gostou de falar alto, ainda menos de palavrões, sempre lhe apreciei estas características, desde aquela coisa na cabeça, foi num feriado, a seguir ao almoço, queixava-se, há umas semanas, de dores de cabeça, lá se ia safando a analgésicos, pensei que fosse coisa de mulheres, da altura do mês, não liguei, sentou-se no sofá, eu a insistir com o café, ela Deixa-me só estar aqui um bocadinho de olhos fechados, que já vamos, deixei-a estar, de repente, aquele baque que ainda hoje ecoa para me arrefecer, valeu-me ter o telefone à mão, seguiu-se o hospital, e, até hoje, a fisioterapia, mais de meio ano nisto, os médicos asseguram que, se tiver vontade e disciplina, voltará a ser independente, vontade e disciplina, eu acrescentaria sorte, ou talvez outra coisa, uma coisa só minha que procuro quando ela dorme, está na primeira gaveta da minha mesa-de-cabeceira, deu-me a minha avó paterna, uma pagela com um Pai Nosso, e a imagem de Jesus Cristo, guardei-a até hoje, não sei porquê, mas sinto-me melhor depois de lhe pedir que ela deixe a cadeira de rodas, nessas alturas, acredito mesmo que ela vá deixar, custa-me tanto vê-la assim, claro que procuro disfarçar, no entanto, é tão difícil mentir com os olhos, ainda hoje, coitada, não se ajeita com aquilo, a nossa casa também não é grande, não tem sido nada fácil, para nenhum de nós, claro que, por vezes, talvez demasiadas, tem havido discussões, foi aí que comecei a sair mais cedo e a entrar cada vez mais tarde, porém, atenção, nunca passei uma noite fora de casa, conheci a Dora há uns meses, o marido emigrou para lhes preparar uma vida melhor, contudo, há seis meses que não dá notícias, ela também não quis saber do paradeiro, nem tão pouco o chorou, pelo contrário, optou por arregaçar as mangas e foi ajudar os pais na padaria, os pais já sabiam do estado da minha mulher, até se ofereceram para lhe ir levar o pão de todos os dias, assim que eu saísse, são muito boas pessoas, por isso continuo sem compreender as exigências dela (como se pode ter cansado de esperar?), tenho de ir, ela mal consegue chegar ao fogão, bem tenta, que eu já vi, um dia ainda há um acidente sério lá em casa, tenho de ir, antes de abrir a porta, digo-lhe Desculpa, mas há uma coisa bem pior que a espera… É quando já ninguém nos vem abrir uma porta, queria dizer outra coisa, mas a frase saiu-me assim, não sei porquê, fechei a porta e saí, quando entrei em casa, a cadeira, como sempre àquela hora, chocava repetidamente com o fogão, no esforço de cozer o arroz, assim que percebeu a minha chegada, olhou-me, corro em seu auxílio, após o arroz, o jantar, a louça arrumada, vejo o saco do pão sobre a mesa, e, juro, por breves instantes, brevíssimos mesmo, pareceu-me ver a minha pagela depositada a seu lado…

sábado, 4 de fevereiro de 2023


 ... a brisa vespertina não enlevou somente o virar de páginas sob frondosas ramagens, aproximou lábios sedentos, e foi inteiro em cada gesto, em cada palavra, no fundo, condensou o universo no seu sentir, mas o outro é sempre uma construção nossa, ele guindou-a aos céus, das alturas ela devolveu-o à terra...

in Deslumbramento

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Uma omnipresente ausência

 


Há coisas que só se dizem quando o mundo já uma sombra imensa. Não posso afirmar que mo tenham dito directamente, pelo contrário, ouvi-o no acaso de uns passos com outro destino, o de cumprir com os imperativos da natureza, talvez julgassem que a casa já dormisse, daí o emergir de frases com a cor do silêncio, por um sono demasiado, não foi tanto a frase que me imobilizou a atenção, mas sim o tom que a iluminou, regra geral, o que nos detém, perante o abismo do que nos dizem, é a luz das palavras e não os caracteres que lhes dão corpo, foi minha mãe que a proferiu, assim que a sua voz se diluiu, uma porta fechou-se, quantas portas o futuro nos encerra, enquanto nós na vã efemeridade de aprisionar o presente, meu pai não replicou, lembro-me bem deste pormenor, quase os vislumbrava suspensos na luz difusa desta frase que se extinguia, quem sabe se demasiado cedo, como um ocaso invernal, mas tudo tem um tempo para se iluminar, e os passos da luz fariam o seu percurso até esta minha memória, e aí repousariam o tempo necessário… Certa tarde, regresso da faculdade mais cedo, e cruzo-me com o meu irmão, mais novo três anos, à entrada do prédio, vinha a sair na companhia da sua recente namorada, não me escapou o reflexo das luzes da entrada nos cabelos molhados de ambos, saíram de mão dada, em passos sem amanhã, sorri à vista daquela cadência, também já por ali andara, até que alguém se cansou, por acaso, não fui eu, outras vezes nos cruzámos, quando na rua, os cabelos molhados ora espelhavam a Primavera, ou resquícios do Inverno findo, sempre de mão dada, em passos sem amanhã, eu em sorrisos à vista daquela cadência, talvez por já lhe conhecer a distância do mundo, mas nem todos sorriem para o mesmo, sobretudo para dedos que se entrelaçam, certa tarde, uma voz fala-me dos cabelos molhados que reflectem luzes ao lado de meu irmão, sugere-me que já reflectiu luzes noutras companhias, opto por ignorar, acho que é o melhor para a maledicência, não lhe dar o alimento do verbo, tanto assim foi, que o diálogo entrou no crepúsculo, uns dias mais tarde, noutro contexto, uma outra voz chama-me a atenção dos cabelos molhados que reflectem luzes ao lado de meu irmão, de novo, sugere-me que já reflectiu luzes noutras companhias, de novo, opto por ignorar, sem o alimento do verbo, a conversa a extinguir-se, e a vida continuou o seu curso na infatigável sucessão dos dias, desde então, para encontrar meu irmão na sua singularidade, sem dedos entrelaçados ou reflexos de luzes a seu lado, só à noite no seu quarto, mesmo assim, teria de esperar que o telefone não tocasse, claro que nunca lhe falei das maledicências escutadas, apenas comprovei, pelo seu rosto e gestos, o deleite por aqueles passos sem amanhã, qual não foi o meu espanto, quando, certa tarde, à saída da faculdade, o deleite de meu irmão me aguardava, sem qualquer reflexo nos cabelos, e com aquela peculiar expressão que nos transmite vamos ter necessariamente uma conversa séria, desci os degraus, dirigi-me a ela, comprovei as minhas ilações prévias, perguntei-lhe se queria um café para serenar, agradeceu o convite, havia um perto da faculdade propício a diálogos sussurrados, dirigimo-nos a esse, aí chegados, ela tomou as rédeas da conversa, num claro contraste com as hesitações de há pouco, a questão financeira veio várias vezes à mesa, eu ainda aquém dos seus intentos, a certa altura, cansado de tantas divagações, sempre preferi faces desveladas, encosto-a à parede (Desculpa lá, mas o que é que pretendes ao certo?), percebi-lhe um agradecimento suspirado pela minha frontalidade, nesse ponto, falou-me de um atraso, da necessidade de o corrigir, eu a questionar o porquê de me vir falar, ela a argumentar que sou o irmão mais velho, eu a responder que sim, mas que não sou o autor, ela apela ao sentir e a uma ajuda financeira, nisto, ouço os passos da luz em mim, de repente, sentam-se e repousam sobre uma memória que, assim, me surge numa nitidez estival, o acaso de umas passadas, há muito, para cumprir os imperativos da natureza, o mundo já uma sombra imensa, meus pais conversam, de porta entreaberta, julgando-nos norteados pelo sonho, entretanto, minha mãe profere uma frase, como se a dissesse num beco que a devolve a suas mãos num vazio de destinos, relembro-a ali, naquele café, soletro cada sílaba, levanto-me, arrumo a cadeira, pouso as mãos sobre a mesa, sorrio e digo-lhe A natureza negou a paternidade ao meu irmão, talvez um dia, se ele quiser, as leis do homem lhe possibilitem, de imediato, virei-lhe costas e abandonei o café propício a diálogos sussurrados, enquanto caminhava, relembrei o tom que iluminou a frase de minha mãe, naquela noite, como se uma súplica, de facto, o que fazer desta verdade que jaz nas sombras de meu irmão…