Há algo mais verdadeiro que uma lágrima salgada?
in Deslumbramento
Então, o que decidiste? A questão saiu-lhe ansiosa, ele percebeu de imediato o erro,
as palavras atropelavam-se numa sonoridade acidentada, como se não permitisse
réplica, ela, do outro lado, só respiração, passados uns momentos, Não estás mesmo interessado, pois não? Uma
resposta tornada questão, um golpe sempre difícil de responder, parece que
somos desarmados e, de repente, atacados com as armas que há pouco
empunhávamos, ele olha à volta, na esperança de uma ideia que responda, mas,
não sabe se pela hora, apenas a monotonia de um cansado cenário que já nem se
olha, gente apressada passeio fora, com expressões veladas por um terror
silenciado, isto só sucede quando o amanhã tem a cor da noite, a sinfonia
mecânica do infatigável vai e vem de viaturas, conduzidas por sombras imóveis,
numa aparente indiferença pelas emoções que, algures no caminho, lhes caíram do
bolso, lojas vazias que derramam, nos passeios, um contido soluçar pelo ontem,
a passada dele, agora, a encontrar o seu pensar, tudo na lentidão de quem
espera, num passeio, num cais, numa plataforma ferroviária, num lugar de si,
por um regresso, por fim, as palavras a construírem-se tenuemente, Não é bem assim, foi uma grande surpresa,
não sei se estou preparado, de novo, a respiração dela audível, a
soletrar-lhe desilusão, ele a ouvir e a compreender, desde ontem, ao final do
dia, a farmácia ainda de porta aberta, ela ficou na segurança de umas arcadas,
a uns bons cinquenta metros, ele avançou, entre o orgulho por um feito de macho
e o retardado pânico das consequências, talvez adivinhasse o emergir da
cobardia, afinal, não nos desconhecemos tanto assim, a indulgência do
farmacêutico ao seu pedido irritou-o, como se não fosse levado a sério,
percorreu os cerca de cinquenta metros, até junto dela, com aquilo no bolso,
quase coxeava com o peso da dúvida, ela estava sentada, nem se apercebera do
seu regresso, uma mão amparava o queixo, enquanto olhava o indefinível que
ocupa o pensar, ele opta por também se sentar, nem repara na longa expiração
por já ali estar ao lado dela, estende-lhe aquilo que transportara no bolso, é
tão estranho, há objectos que são simultaneamente passado, presente e futuro,
tudo depende do olhar e de um gesto nosso, ela recolhe-o quase com devoção,
algo só possível ao feminino, poucas mais frases trocaram até ao café,
escolheram uma mesa que soasse a ilha, beberam algo com o gosto do
esquecimento, entreolharam-se o suficiente para lerem um compreendido, mas
sempre desiludido, pânico comum, por fim, ela levanta-se, vai até à casa de
banho, enquanto isso, ele começa a aprender o tempo, agora é o olhar dele que
encontra o indefinível que ocupa o pensar, quando ela regressa as palavras
sucumbiram ao olhar, nada se disse, tudo se verbalizara na expressão que
ostentava, de quem quer partir, para uma viagem sonhada, sem tempo para um
adeus, ele olha-se no desespero de quem sabe não possuir bagagem para tal
jornada, ela, nesta altura, apenas com um pé no cais, o outro já se levanta na
direcção daquele navio, com uma imemorial rota pela geografia da vida, enquanto
isso, ele siderado no cais, os dois pés numa imobilidade pétrea, ao final da
tarde, ela insiste, já da amurada do navio, neste momento, a sua imobilidade
cedera espaço a um deambular, uma questão norteia os seus passos (Como embarcar sem conhecer o destino? Porém,
ela parece tão segura…), de repente, o navio grita a partida, tudo à volta
se mobiliza para um último adeus, ele levanta o olhar à altura do rosto que o
aguarda, sem esboçar um gesto de despedida, sob a tranquila luz do entardecer,
de novo, a questão (Como embarcar sem
conhecer o destino? Porém, ela parece tão segura…), uma brisa do acaso
levanta-se e passeia-se-lhe pela face, compreende o ontem, olha o amanhã,
talvez se uma longa expiração por já ali estar ao lado dela…
Não me lembro de termos discutido por
esses dias, não, julgo que não, até andavas calmo, se bem me lembro, então, o
que te levou a… Cheguei mais cedo nesse dia, parece que há um fado a ditar uma
surpresa sempre que nos antecipamos, é bem verdade, como se desafiássemos, pelo
nosso adiantamento, a sequência natural do acontecer, a porta só no trinco,
eras tão cioso pela segurança, nunca de esquecias de dar duas voltas, às vezes,
já no elevador, voltavas atrás, destrancavas e repetias as duas voltas, sempre em
apneia, mas com um esgar vitorioso, eu a reter o elevador, algures entre a
preocupação (não sei porquê, mas num canto cá meu, questionava se seria um
comportamento inteiramente ajustado) e o orgulho (enchias o peito de ar, como
se de um cerimonial se tratasse), às vezes, o vizinho do quarto andar,
impaciente pela espera, aos murros à porta do elevador, mas tu não te ficavas Vamos a ter calminha, muita calminha,
logo vi que estavas em casa, estranhei pela hora, geralmente, por estes dias,
em que o teu horizonte se restringiu a um copo incansavelmente sorvido num
balcão esconso, só regressavas ao jantar, e pouco passava das quinze, a casa
numa imobilidade de suspense, são aqueles silêncios que aguardam
impacientemente pelo seu fim, geralmente na forma de um grito abafado, pousei a
carteira na mesinha da entrada, de facto, estranhei o temor que os olhos das
coisas me devolviam, não ousei chamar-te, dirigi-me logo para o nosso quarto, a
porta estava aberta, de resto, tudo arrumado conforme deixara nessa manhã, antes
de sair, a única imagem que retive, ainda hoje me habita, é a de uns pés
suspensos, numa palidez indesmentível de que a vida dali partira, há já algum
tempo, há qualquer coisa de ridículo nuns pés suspensos, talvez por o seu
destino ser fincar a solidez da terra e não a imaterialidade do ar, havia,
também, nessa imagem, um pouco da infância na forma de um boneco desarticulado,
algures esquecido na sombra de um armário, estes e outros pensamentos
sobrepunham-se às emoções, ainda anestesiadas pelo véu do espanto, corri para o
telefone de casa, nem me lembrei do telemóvel, o pânico vive longe da
modernice, na mesinha da entrada, com a urgência de movimentos, a minha
carteira caiu, objectos rolaram pelo soalho, o acelerado galope da minha
impaciência a contrastar com a impassibilidade daquela voz, que lançava
questões numa cadência exasperante, não me lembro de ter pousado o auscultador,
da chegada das urgências, da invasão de minha casa, de quantas vezes me
repetirem, também numa cadência exasperante, Sente-se e acalme-se, apenas recordo a passagem dele numa maca,
coberto com um lençol, porém, os pés à vista, numa palidez indesmentível de que
a vida dali partira, há já algum tempo, enquanto assistia a tudo, de longe,
parecia estar sentada no ramo de uma árvore imensa, a contemplar o quintal de
uma família alheia, ao mesmo tempo, faziam-me me engolir cilindros coloridos, a
goles de água de um copito de plástico branco, que viajava, por mãos alheias,
incansavelmente entre a minha boca e a torneira da cozinha, ainda apareceu a
polícia, também com mais perguntas, lembro-me de uma voz a sobrepor-se às
restantes Desculpem, mas talvez não seja
o momento adequado, nesta altura, sentada no ramo de uma árvore imensa, a
contemplar o quintal de uma família alheia, sorria para a distância das coisas,
uma voz preocupada disse Está a entrar em
choque, é melhor levá-la para o hospital, sei que continuei a sorrir, ouvia
a melodia das folhas embaladas pela brisa, raras são as que ultrapassam em
beleza a harmonia destes sons, a minha casa já não me pertence, é um entra e
sai muito para além da insignificância da minha vontade, nisto, alguém se senta
a meu lado, no ramo da árvore imensa, Nem
te despediste, digo-lhe eu, Fui-me
despedindo, um pouco todos os dias… Mas tu na surdez do hoje, respondeu-me
ele, Alguém tem de se preocupar em encher
o frigorífico, arrependi-me, mas as palavras anteciparam-se-me ao pensar, Não tenho culpa da fábrica se ter mudado
para terras distantes, pouso-lhe o indicador nos lábios, Eu sei, eu sei, mas nunca pensei que isso…
Parecias, ainda ontem, tão bem-disposto, segura-me a mão, Desculpa-me, mas perdi o meu lugar no mundo,
insisto com ele, Anda. Desce comigo,
ainda vamos a tempo, sorri-me, Já é
tarde. Vai. Desce devagar. Não te esqueças das horas, por causa dos miúdos.
Fico aqui à tua espera. Percebo-lhe a convicção, no entanto, com uma voz
que o tempo ainda não me silenciara, peço-lhe Antes de ir, deixa-me só pousar, por uns instantes, a cabeça no teu
ombro, enquanto ouvimos estes acordes que a brisa embala…
Tudo começa no imperceptível que não
iluminamos, aquelas coisas que só emergem com a luz do presente feito passado,
como aquele dia em particular, ela sempre na pressa (de quê?), emprego,
compras, filhos, uma conta esquecida por pagar, a ordem de corte já no segundo
aviso, tinha chegado a casa, acho que se lembra deste pormenor, pois voltou a
sair na pressa (de quê?), e, já dentro do carro, a chave a demorar-se, ainda se
baixou, a ignição sob o alcance do olhar, mas não do gesto, o tempo a esfumar-se,
os nervos em crescendo, o olhar cansado de desenhar o gesto, mas a chave a
acompanhar as ondas hesitantes da mão, por fim, capitula, sai do carro,
regressa a casa, telefona ao marido, não lhe conta o sucedido, apenas lhe
relembra uma pressa (de quê) que não pôde cumprir, foi para o quarto, baixou o
estore, antes abriu o pequeno armário que destinou aos medicamentos na casa de
banho, havia-os para todos os destinos, optou, desta vez, pelo do sono, e assim
foi, até o marido lhe relembrar que já passava da hora do jantar, se não se
levantasse, nem os filhos via, aguardavam-na, no quarto deles, para se
despedirem, não se lembra porquê, mas ocultou aquelas ondas da mão que o olhar
alcançava, mas sempre para além do gesto desejado, uns tempos depois (dias?
Semanas? Um mês? Dois meses?), é curioso, a partir de certa altura, os dias
apenas nos ensinam a perder o tempo, com o marido ao lado, de novo, a mão em
ondas de hesitação face à porta de casa, ele com os sacos de compras, a
pedir-lhe rapidez, o gesto desenhado na sua mente, mas a mão a contrariá-lo
numa sucessão de vagas, foi ele, após pousar os sacos, que acabou por abrir a
porta, não atribuiu especial relevo àquelas ondas da mão que o olhar alcançava,
mas sempre para além do gesto desejado, atribuiu ao cansaço do dia-a-dia, à
pressa (de quê?), emprego, compras, filhos, uma conta esquecida por pagar, a
ordem de corte já no segundo aviso, contudo, desta vez, ela já demorava o olhar
pelas falanges, olhava os dedos na delicadeza musical de um pianista, foi o
marido, desta feita, quem foi ao pequeno armário destinado aos medicamentos na
casa de banho, havia-os para todos os destinos, optou, desta vez, também pelo
do sono, regressou munido de um copo com água e do respectivo comprimido,
disse-lhe que seria melhor repousar, que andava sob um grande stresse (de quê),
ela aquiesceu, porém, a aurora de uma
certeza iluminava-se na madrugada interior das suas dúvidas, uma vez mais,
fechou o estore do quarto apesar da luz lá fora ainda convidar à vida, só foi
ao médico quando, no emprego, perante a obscenidade dos olhares dos colegas,
foi-lhe impossível disfarçar a sucessão das vagas, percebeu ali, face à
impassibilidade daquelas expressões, um diagnóstico tornado veredicto, o
futuro, dessa vez, pertenceu-lhes, foi o médico que o confirmou, após semanas
em que o horizonte se restringiu a batas brancas e lâmpadas fluorescentes, nem
procurou encetar uma luta cansada de tanto se conhecer o final, não, nunca
procurou heroísmos ingénuos, pelo contrário, nessa noite, no quarto, perante o
mutismo condoído do marido, que há muito
se sentara a olhar os sapatos, baixou-se, deu-lhe as mãos, e apenas prometeu
uma coisa, por segundos, o rosto dele percorrido por passos de luz, é curioso, a partir de certa altura, os dias
apenas nos ensinam a perder o tempo, mas, apesar disso, ela cumpriu esta
promessa: sempre que luz lá fora ainda convidar à vida, nunca mais se fechou um
estore naquela casa.
Algo me despertou, como se uma
urgência, de qualquer coisa, nunca chegada, percebo-lhe a ausência, não sei se
do vazio devolvido pelos lençóis, se pela moldura iluminada da porta da casa de
banho em frente, procuro as horas nos números vermelhos tremeluzentes da
mesa-de-cabeceira, aproxima-se o jantar, ela regressa, aprecio-lhe a silhueta
enquanto os seus dedos tacteiam pelo interruptor, anicha-se, de novo, a meu
lado, Tens de ir, não é? Não esperava
já a questão, pensei que, antes, falasse de qualquer outra coisa, não sei bem o
quê, mas a questão persiste, suspensa, entre nós, como se, ao mínimo movimento
falso, desabasse, não há qualquer fuga, ela bem o sabia, opto pela temeridade, Sim, não é nada de novo, pois não? Já viste
as horas? Percebo-lhe a surpresa pela entoação assertiva, ou talvez por não
ter uma resposta pronta para tal, a cada descida das pálpebras uma
possibilidade de resposta, por fim, E
isto vai durar até quando? Quantas vidas se repetem numa vida, de novo,
esta cena extenuada, já lhe conhecia a sequência frásica, as expressões que as
acompanhavam, contudo, hoje havia qualquer coisa de diferente, sem dúvida, ela
parecia estar numa amurada, as frases advinham-lhe com a distância, cheirava-me
a maresia, eu no cais, estarrecido pelas emoções que se agigantam em mim,
enquanto as imagens que amo se subtraem diante do meu olhar, só me lembro de Chega! Também quero viver contigo na
vertical, assim que se calou, juro, pareceu-me ouvir o canto rouco de um
barco, as asas de uma gaivota, o trepar de uma onda pelo cais, ela já se
vestia, eu ainda abraçava o calor dos lençóis, embora diminuísse num galope
desenfreado, avançou até à única cadeira da divisão, pegou na minha roupa e
depositou-ma em cima da colcha, não era de descidas abruptas, sempre lhe
apreciei esta característica, mas também sabia quando me encurralavam,
levantei-me, nestes momentos, a intimidade torna-se quase obscena, e a roupa
resiste a cobrir-nos como se um grito pelas palavras que silenciamos, uma frase
escapa-se-me Nunca te menti, ela E depois? Cansei-me… Sabes, nada é mais
doloroso que a espera, pelo menos, concedi-lhe parte da razão, mas nada
mais podia fazer, àquela hora, como nas restantes que dura a vida de um dia,
sabia-a em casa, de olhar faminto na porta, também ela esperava, embora de uma
outra forma, ou formas, para ser ainda mais preciso, agora, na sua mobilidade,
chocava com as coisas, deixava-as cair, praguejava em surdina, nunca gostou de
falar alto, ainda menos de palavrões, sempre lhe apreciei estas
características, desde aquela coisa na cabeça, foi num feriado, a seguir ao
almoço, queixava-se, há umas semanas, de dores de cabeça, lá se ia safando a analgésicos,
pensei que fosse coisa de mulheres, da altura do mês, não liguei, sentou-se no
sofá, eu a insistir com o café, ela Deixa-me
só estar aqui um bocadinho de olhos fechados, que já vamos, deixei-a estar,
de repente, aquele baque que ainda hoje ecoa para me arrefecer, valeu-me ter o
telefone à mão, seguiu-se o hospital, e, até hoje, a fisioterapia, mais de meio
ano nisto, os médicos asseguram que, se tiver vontade e disciplina, voltará a
ser independente, vontade e disciplina, eu acrescentaria sorte, ou talvez outra
coisa, uma coisa só minha que procuro quando ela dorme, está na primeira gaveta
da minha mesa-de-cabeceira, deu-me a minha avó paterna, uma pagela com um Pai Nosso, e a imagem de Jesus Cristo,
guardei-a até hoje, não sei porquê, mas sinto-me melhor depois de lhe pedir que
ela deixe a cadeira de rodas, nessas alturas, acredito mesmo que ela vá deixar,
custa-me tanto vê-la assim, claro que procuro disfarçar, no entanto, é tão
difícil mentir com os olhos, ainda hoje, coitada, não se ajeita com aquilo, a
nossa casa também não é grande, não tem sido nada fácil, para nenhum de nós,
claro que, por vezes, talvez demasiadas, tem havido discussões, foi aí que
comecei a sair mais cedo e a entrar cada vez mais tarde, porém, atenção, nunca
passei uma noite fora de casa, conheci a Dora há uns meses, o marido emigrou
para lhes preparar uma vida melhor, contudo, há seis meses que não dá notícias,
ela também não quis saber do paradeiro, nem tão pouco o chorou, pelo contrário,
optou por arregaçar as mangas e foi ajudar os pais na padaria, os pais já
sabiam do estado da minha mulher, até se ofereceram para lhe ir levar o pão de
todos os dias, assim que eu saísse, são muito boas pessoas, por isso continuo
sem compreender as exigências dela (como se pode ter cansado de esperar?),
tenho de ir, ela mal consegue chegar ao fogão, bem tenta, que eu já vi, um dia
ainda há um acidente sério lá em casa, tenho de ir, antes de abrir a porta,
digo-lhe Desculpa, mas há uma coisa bem
pior que a espera… É quando já ninguém nos vem abrir uma porta, queria
dizer outra coisa, mas a frase saiu-me assim, não sei porquê, fechei a porta e
saí, quando entrei em casa, a cadeira, como sempre àquela hora, chocava
repetidamente com o fogão, no esforço de cozer o arroz, assim que percebeu a minha
chegada, olhou-me, corro em seu auxílio, após o arroz, o jantar, a louça
arrumada, vejo o saco do pão sobre a mesa, e, juro, por breves instantes,
brevíssimos mesmo, pareceu-me ver a minha pagela depositada a seu lado…
in Deslumbramento
Há coisas que só se dizem quando o
mundo já uma sombra imensa. Não posso afirmar que mo tenham dito directamente,
pelo contrário, ouvi-o no acaso de uns passos com outro destino, o de cumprir
com os imperativos da natureza, talvez julgassem que a casa já dormisse, daí o
emergir de frases com a cor do silêncio, por um sono demasiado, não foi tanto a
frase que me imobilizou a atenção, mas sim o tom que a iluminou, regra geral, o
que nos detém, perante o abismo do que nos dizem, é a luz das palavras e não os
caracteres que lhes dão corpo, foi minha mãe que a proferiu, assim que a sua
voz se diluiu, uma porta fechou-se, quantas portas o futuro nos encerra,
enquanto nós na vã efemeridade de aprisionar o presente, meu pai não replicou,
lembro-me bem deste pormenor, quase os vislumbrava suspensos na luz difusa
desta frase que se extinguia, quem sabe se demasiado cedo, como um ocaso
invernal, mas tudo tem um tempo para se iluminar, e os passos da luz fariam o
seu percurso até esta minha memória, e aí repousariam o tempo necessário… Certa
tarde, regresso da faculdade mais cedo, e cruzo-me com o meu irmão, mais novo
três anos, à entrada do prédio, vinha a sair na companhia da sua recente
namorada, não me escapou o reflexo das luzes da entrada nos cabelos molhados de
ambos, saíram de mão dada, em passos sem amanhã, sorri à vista daquela
cadência, também já por ali andara, até que alguém se cansou, por acaso, não
fui eu, outras vezes nos cruzámos, quando na rua, os cabelos molhados ora
espelhavam a Primavera, ou resquícios do Inverno findo, sempre de mão dada, em
passos sem amanhã, eu em sorrisos à vista daquela cadência, talvez por já lhe
conhecer a distância do mundo, mas nem todos sorriem para o mesmo, sobretudo
para dedos que se entrelaçam, certa tarde, uma voz fala-me dos cabelos molhados
que reflectem luzes ao lado de meu irmão, sugere-me que já reflectiu luzes
noutras companhias, opto por ignorar, acho que é o melhor para a maledicência,
não lhe dar o alimento do verbo, tanto assim foi, que o diálogo entrou no
crepúsculo, uns dias mais tarde, noutro contexto, uma outra voz chama-me a
atenção dos cabelos molhados que reflectem luzes ao lado de meu irmão, de novo,
sugere-me que já reflectiu luzes noutras companhias, de novo, opto por ignorar,
sem o alimento do verbo, a conversa a extinguir-se, e a vida continuou o seu
curso na infatigável sucessão dos dias, desde então, para encontrar meu irmão
na sua singularidade, sem dedos entrelaçados ou reflexos de luzes a seu lado,
só à noite no seu quarto, mesmo assim, teria de esperar que o telefone não
tocasse, claro que nunca lhe falei das maledicências escutadas, apenas
comprovei, pelo seu rosto e gestos, o deleite por aqueles passos sem amanhã,
qual não foi o meu espanto, quando, certa tarde, à saída da faculdade, o
deleite de meu irmão me aguardava, sem qualquer reflexo nos cabelos, e com
aquela peculiar expressão que nos transmite vamos
ter necessariamente uma conversa séria, desci os degraus, dirigi-me a ela,
comprovei as minhas ilações prévias, perguntei-lhe se queria um café para
serenar, agradeceu o convite, havia um perto da faculdade propício a diálogos
sussurrados, dirigimo-nos a esse, aí chegados, ela tomou as rédeas da conversa,
num claro contraste com as hesitações de há pouco, a questão financeira veio
várias vezes à mesa, eu ainda aquém dos seus intentos, a certa altura, cansado
de tantas divagações, sempre preferi faces desveladas, encosto-a à parede (Desculpa lá, mas o que é que pretendes ao
certo?), percebi-lhe um agradecimento suspirado pela minha frontalidade,
nesse ponto, falou-me de um atraso, da necessidade de o corrigir, eu a questionar
o porquê de me vir falar, ela a argumentar que sou o irmão mais velho, eu a
responder que sim, mas que não sou o autor, ela apela ao sentir e a uma ajuda
financeira, nisto, ouço os passos da luz em mim, de repente, sentam-se e
repousam sobre uma memória que, assim, me surge numa nitidez estival, o acaso
de umas passadas, há muito, para cumprir os imperativos da natureza, o mundo já
uma sombra imensa, meus pais conversam, de porta entreaberta, julgando-nos
norteados pelo sonho, entretanto, minha mãe profere uma frase, como se a
dissesse num beco que a devolve a suas mãos num vazio de destinos, relembro-a
ali, naquele café, soletro cada sílaba, levanto-me, arrumo a cadeira, pouso as
mãos sobre a mesa, sorrio e digo-lhe A
natureza negou a paternidade ao meu irmão, talvez um dia, se ele quiser, as
leis do homem lhe possibilitem, de imediato, virei-lhe costas e abandonei o
café propício a diálogos sussurrados, enquanto caminhava, relembrei o tom que
iluminou a frase de minha mãe, naquela noite, como se uma súplica, de facto, o
que fazer desta verdade que jaz nas sombras de meu irmão…