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sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Será que Deus gosta de finais felizes?

 


Então, o que decidiste? A questão saiu-lhe ansiosa, ele percebeu de imediato o erro, as palavras atropelavam-se numa sonoridade acidentada, como se não permitisse réplica, ela, do outro lado, só respiração, passados uns momentos, Não estás mesmo interessado, pois não? Uma resposta tornada questão, um golpe sempre difícil de responder, parece que somos desarmados e, de repente, atacados com as armas que há pouco empunhávamos, ele olha à volta, na esperança de uma ideia que responda, mas, não sabe se pela hora, apenas a monotonia de um cansado cenário que já nem se olha, gente apressada passeio fora, com expressões veladas por um terror silenciado, isto só sucede quando o amanhã tem a cor da noite, a sinfonia mecânica do infatigável vai e vem de viaturas, conduzidas por sombras imóveis, numa aparente indiferença pelas emoções que, algures no caminho, lhes caíram do bolso, lojas vazias que derramam, nos passeios, um contido soluçar pelo ontem, a passada dele, agora, a encontrar o seu pensar, tudo na lentidão de quem espera, num passeio, num cais, numa plataforma ferroviária, num lugar de si, por um regresso, por fim, as palavras a construírem-se tenuemente, Não é bem assim, foi uma grande surpresa, não sei se estou preparado, de novo, a respiração dela audível, a soletrar-lhe desilusão, ele a ouvir e a compreender, desde ontem, ao final do dia, a farmácia ainda de porta aberta, ela ficou na segurança de umas arcadas, a uns bons cinquenta metros, ele avançou, entre o orgulho por um feito de macho e o retardado pânico das consequências, talvez adivinhasse o emergir da cobardia, afinal, não nos desconhecemos tanto assim, a indulgência do farmacêutico ao seu pedido irritou-o, como se não fosse levado a sério, percorreu os cerca de cinquenta metros, até junto dela, com aquilo no bolso, quase coxeava com o peso da dúvida, ela estava sentada, nem se apercebera do seu regresso, uma mão amparava o queixo, enquanto olhava o indefinível que ocupa o pensar, ele opta por também se sentar, nem repara na longa expiração por já ali estar ao lado dela, estende-lhe aquilo que transportara no bolso, é tão estranho, há objectos que são simultaneamente passado, presente e futuro, tudo depende do olhar e de um gesto nosso, ela recolhe-o quase com devoção, algo só possível ao feminino, poucas mais frases trocaram até ao café, escolheram uma mesa que soasse a ilha, beberam algo com o gosto do esquecimento, entreolharam-se o suficiente para lerem um compreendido, mas sempre desiludido, pânico comum, por fim, ela levanta-se, vai até à casa de banho, enquanto isso, ele começa a aprender o tempo, agora é o olhar dele que encontra o indefinível que ocupa o pensar, quando ela regressa as palavras sucumbiram ao olhar, nada se disse, tudo se verbalizara na expressão que ostentava, de quem quer partir, para uma viagem sonhada, sem tempo para um adeus, ele olha-se no desespero de quem sabe não possuir bagagem para tal jornada, ela, nesta altura, apenas com um pé no cais, o outro já se levanta na direcção daquele navio, com uma imemorial rota pela geografia da vida, enquanto isso, ele siderado no cais, os dois pés numa imobilidade pétrea, ao final da tarde, ela insiste, já da amurada do navio, neste momento, a sua imobilidade cedera espaço a um deambular, uma questão norteia os seus passos (Como embarcar sem conhecer o destino? Porém, ela parece tão segura…), de repente, o navio grita a partida, tudo à volta se mobiliza para um último adeus, ele levanta o olhar à altura do rosto que o aguarda, sem esboçar um gesto de despedida, sob a tranquila luz do entardecer, de novo, a questão (Como embarcar sem conhecer o destino? Porém, ela parece tão segura…), uma brisa do acaso levanta-se e passeia-se-lhe pela face, compreende o ontem, olha o amanhã, talvez se uma longa expiração por já ali estar ao lado dela…

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