Livros

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sexta-feira, 29 de novembro de 2019

A Incessante Efemeridade das Vagas



Num entardecer (seria Verão?) ele regressa a casa pela concorrida estrada litoral. Pelos vidros abertos, entra um apelo marítimo. Não lhe resiste. Pára a viatura, descalça-se, e sente a areia antes de a pisar. Afinal, ver é sentir… No ar respira-se fim. Agora, caminha ao sabor da lentidão do momento. Olha à sua volta. Uma criança corre sob o desvelo materno. Ri o riso da infância: sonoro, espontâneo, vivo. À sua direita, uma jovem mulher sentada olha o mar, numa imobilidade pensante. Um rosto de saudade. Alguém que amou? Sim, talvez isso. As mãos nos joelhos. O olhar absorto no horizonte. Sim, ela está longe. Mas a distância advém do tempo. E essa é sempre a mais longínqua. Agora, ela compõe uma madeixa, no gesto possível do feminino, que a brisa descaíra. Ele memoriza-lhe o rosto. Uma beleza serena. A única que demora a vista. Agora, à sua frente, passam dois sujeitos a correr. O indizível do esforço grita-se-lhes no rosto. Talvez percepcionem que a meta seja distante. 

 O sol, agora, pousa nas águas. Neste momento, ele sente a frescura revigorante líquida sob os pés. Não avança mais. Respira fundo. Fecha os olhos: como se fosse uma exigência do sentir. Não, sentir é uma outra coisa. Só se sente com a distância. Mas ele, neste momento, apenas fruía o instante. O revigorante e contínuo abraço das águas. Algo o despertou. Talvez o apelo do lar. Talvez um grito da criança. Talvez o receio de se perder em si…


sábado, 23 de novembro de 2019

Anoiteceu



Lar? O que é isso de lar? Quando um prenúncio de regresso pelo mundo anoitecido, um sentir de orfandade aloja-se-me no sentir, ou talvez nunca dali tenha partido, como se fosse um conceito que ignorasse (e não ignoro? Lar? O que é isso de lar?), em verdade, nunca houve, debaixo deste céu, um lugar onde me sentisse em casa, onde regressar me apaziguasse o pensamento, vejo, agora, pressa à minha volta, pelas ruas percebemos o turvar dos céus, enquanto os candeeiros procuram contrariar, alumiando o possível, a ordem natural do acontecer, ouço, ainda sentado diante da minha secretária, “Então, até amanhã…” ou “Não vais para casa?” ainda “Vais ficar a fazer serão?”, malas quase arrancadas do chão, luzes apagadas com ferocidade, casacos vestidos sem olhar (não sei porquê, mas afigurou-se-me o oposto, em tempo e parcimónia, do gesto matinal)...

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

LIVROS





“Imperativo? Imperativo é viver a luz que me resta. Sabe, no fim de tudo, basta o sol pela face para nos sentirmos em paz. É estranho, não acha? O sol pela face… E corremos uma vida inteira atrás de tanta estupidez!”

in A estranha ilusão de que vivemos fora do corredor da morte

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

A estranha ilusão de que vivemos fora do corredor da morte



O seu nome pela voz do médico, porta do consultório aberta, com uma folha na mão, lá se levantou, não lhe passou despercebida a crescente dificuldade, tentou disfarçar para o mundo em redor, três ou quatro vultos, pouco mais reteve, há muito deixara de olhar o outro, desde que passou a ver olhos em ecrãs em vez de rostos, foi aí, sem dúvida, que declinou a procura de almas espelhadas em olhares, o médico permaneceu, de folha na mão, sob a ombreira do seu consultório, estendeu-lhe a mão para o cumprimentar e com um afável gesto incitou-o a entrar (…) 

segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Natal rima com Criança



Numa noite ida de província, em vez de pratos, talheres, copos, a mesa povoou-se de cor. Era uma mesa de madeira enegrecida. Talvez pela vizinhança com o lume. Comprida. Mas, nessa noite, era o coração do mundo. A noite estava fria. As mãos estendiam-se para a lareira, enquanto os olhos, ávidos, percorriam o festival de cores sobre a mesa, que encerrava uma indizível promessa de alegria. Adultos cirandavam, numa indiferença inexplicável às cores, falavam e falavam, e ele, teria perto de oito anos, vislumbrava o abismo que o separava daquelas criaturas mais altas, algumas com a cabeça prateada, cheias de certezas, convicções… Tudo uma frágil aparência, porque só o olhar de uma criança apreende o véu desiludido que lhes turva o olhar.

Sente-se na pele que esta é uma noite diferente das outras. Porquê? Sim, não se explica, sente-se. E quando as coisas enveredam pela via dos sentimentos, o verbo torna-se supérfluo, porque compreendemos no outro uma essência irmanada. Mas voltemos à criança. Aos oito anos. Ouve-se o sino. Um sino tem voz de alma. Todos se encaminham para a saída. A mãe veste-lhe o sobretudo. Saem para a noite. O frio arrefece as conversas, mas não o passo. Apesar da crescente distância em relação à mesa, às cores, à promessa de alegria, de mãos nos bolsos, segue os familiares, afinal, ainda havia uma obrigação a cumprir. Em algum lugar de si, sentia que a palavra obrigação era desajustada. Porque cada passo seu proclamava agradecimento (…)


sábado, 2 de novembro de 2019

Crónica ao Johnny Weissmuller


A primeira vez que vi um filme de Tarzan, ainda por cima o verdadeiro, com o supracitado actor que titula esta crónica, foi pela sua mão. Teria uns seis ou sete anos. Irradiava o entusiasmo único da criancice. Ele sorria com benevolência. Foi também a primeira vez que fui ao cinema. Diga-se, em abono da verdade, que entrei nesta arte, dita a sétima, pela porta grande. Nunca, até hoje, uma interpretação me impressionou tanto como a daquela macaca. Aqui lhe deixo a minha homenagem. Ao sairmos, ele disse-me, com um sorriso que só ele podia sorrir: Estavas com sete olhos! Acho que, até hoje, nunca usei esta expressão, de alguma forma sinto que lhe pertence. Não tenho esse direito (Estavas com sete olhos!). Daí à natação nem um pequeno passo foi. Bem sei, que ele queria um filho que nadasse como Johnny Weissmuller (…)