Há questões que a vida demora a responder, ou talvez seja o inverso, nós não aceitemos a resposta.
in Nascer
Hoje, não sei bem porquê, lembrei-me do
Rofty, claro que todos sabem quem é o Rofty, se não souberem, nem vale a pena
continuar a leitura, quem não se recorda do mítico cavalo do D´Artacão não me
merece qualquer estima, mas de onde se me levantou a memória do Rofty? Chega àquele
espaço ainda com a farda-do-trabalho, o necessário fato e gravata, devido à
altura, as peúgas espreitam quase sempre o exterior, enfim, aqueles aspectos ternurentos
que ninguém pode levar a mal, arrasta os pés como se recém-chegado de uma
longuíssima e extenuante jornada, pousa o saco, com a muda, em cima do balcão e
solta um longo e sonoro suspiro, havia que anunciar a sua entrada, puxa um
banco com o pé e senta-se inclinado o suficiente para observar quem lá estava,
um segundo e ainda mais longo suspiro, a mão pelo rosto, numa teatralidade
excessiva, como se carregasse todos os males do mundo pelos ombritos-curtos, em
verdade, havia sempre algo a ensombrar-lhe os passos, desta vez falou-se num
desgosto amoroso, só aguardava um interlocutor desprevenido a quem pudesse
despejar a dor maior que o atormentava , para o efeito bastava alguém ouvir os
desesperados suspiros, os lancinantes passos arrastados, aquele olhar suplicante
apoiado numa demasia oblíqua, a curiosidade vir ao de cima “Então, o que se passa?”, aí,
sim, inspirava, a mão pelo rosto, e o verbo numa torrente para horas, pois, há
vidas complicadas, não nos esqueçamos de que todo o Rofty tem o seu D´Artacão, o
deste era uma antiga estrela de futebol que, aos fins-de-semana, ainda
espalhava o perfume, em torneios ou jogos-amigáveis, da arte de bem-tratar a
bola, ao nosso Rofty, pelo facto de ter nascido com duas tábuas no lugar de
pés, restava-lhe a baliza, lugar quase sempre destinado aos gordos ou aos
toscos, inseria-se obviamente nesta segunda categoria, dizem as más-línguas,
tão antigas quanto o homem, que motivo
do seu divórcio fora precisamente esta obsessão, certezas não há, porém, alguns
asseguram, já o nosso Rofty experienciara os alvores da paternidade, que, ao pedirem-lhe
para ver fotografias dos filhos, ele prontamente pegava no telemóvel e: “Olha,
isto foi no fim-de-semana! Nós a chegarmos ao pavilhão, olha, vê, aqui no
aquecimento, eu a defender um remate do…” Claro, do seu D´Artacão – por razões
óbvias, não vamos aqui expor o nome de uma lenda do nosso futebol – nestas linhas,
ficará consagrado como o D´Artacão do nosso Rofty, de início, incautos, amigos
e familiares ainda estranhavam, talvez tivessem ouvido mal, por conseguinte,
voltavam à carga: “Pois, sim, sim… Mas mostra lá como estão os miúdos!”, neste
ponto, com a emoção espelhada no olhar, quase em soluços, o nosso Rofty: “E
ganhámos… Sabes, no fim, ainda defendi um penálti!!!” Com a mão dominada pelo
sentir, oscilante, “Não queres ver as nossas fotos a sair do pavilhão?”, sinceramente,
não se pode falar de obsessão, é um exagero, que mal tem um homem querer
mostrar ao mundo os seus feitos dentro das quatro-linhas? Também se dizia em
surdina, lá voltamos às más-línguas, tão antigas quanto o homem, que, na noite-de-núpcias,
ele esperou a noiva com as luvas de guarda-redes postas, asseguram que lhe
chegou a gritar: “Anda, anda… Atira-te a ver se eu não defendo!” Certezas
não há, pois, as más-línguas, tão antigas quanto o homem, sofreu com a
separação, pelo menos, aos fins-de-semana, durante duas horas, esquecia as arestas
do amor, se ele gritasse: “Anda, anda… Atira-te a ver se eu não defendo!”, ninguém
lhe viraria costas, um dos momentos mais sublimes da sua existência foi, como é
óbvio, dentro das quatro-linhas, lançou directamente a bola para o seu D´Artacão
que, com uma classe inata, e de primeira, fez golo, em êxtase saiu da baliza
para o abraçar, mas nenhum cavaleiro quer ser abraçado por uma cavalgadura, ainda
hoje, quando lhe perguntam pelas datas de aniversários dos filhos, é este dia que
ele cita, que mal tem um homem querer mostrar ao mundo os seus feitos dentro
das quatro-linhas? Se, por acaso, encontrarem alguém com a farda-do-trabalho, o
necessário fato e gravata, devido à altura, as peúgas a espreitarem quase
sempre o exterior, enfim, aqueles aspectos ternurentos que ninguém pode levar a
mal, a arrastar os pés como se recém-chegado de uma longuíssima e extenuante
jornada, a pousar o saco, com a muda, em cima do balcão e a soltar um longo e
sonoro suspiro, não se esqueçam de lhe colocar a questão essencial: “Na
noite de núpcias: defendeste ou não a bola?”
Uma trilogia é sempre mais simbólica
que um díptico, com base nesta premissa, resolvemos concluir “As aventuras da Peida-Sentada” com
esta terceira parte, tudo começou com o sol ainda aquém das alturas, o Mocho,
no seu ramo, via uns sujeitos a aproximarem-se do portão do curral da
Peida-Sentada e afixarem três algarismos que, no fundo, constituíam um número:
403; o Mocho ficou alerta, o que provocaria aquele número, agora cravado no
portão, nas porcas e porcos do curral? Nem por acaso, nessa manhã, a
Peida-Sentado convocara os suínos para a ouvir dizer umas quaisquer alarvidades,
afinal, que mais tem uma porca para dizer? Esta praxis de alarvidades já era
comum ao porco velho e gasto do seu antecessor, mal conseguia emitir dois
grunhidos direitos, porém, fazia com que os restantes porcos o ouvissem,
durante horas-infindas, a debitar boçalidades sobre temáticas que, coitado, ignorava
por inteiro, pois, alguém já viu algum porco com um livro nas patas? Os suínos
já se aglomeravam no centro do curral à espera da Peida-Sentada, um aspecto que
não passou despercebido ao Mocho foi o acumular de excrementos em que se
mobilizavam, nada de estranhar para quem chafurda na imundície, lá estavam personagens
nossas bem conhecidas, o porco das perninhas-arqueadas, um verdadeiro sabujo da
Peida-Sentada, fidelíssimo acólito do confessionário, não há dia em que lá não
passe, mais um porco cobarde que apenas sabe grunhir nas costas alheias, com as
perninhas-arqueadas, os dejectos já lhe ultrapassam as orelhas, o porco-da-bolsinha,
agora de olhar perdido, talvez veja a ração a fugir-lhe, o porca do
focinho-sorridente, esta continua a secundar a Peida-Sentada, assim que o Mocho
a viu, foi acometido de uma tontura pela putrefacção exalada, a porca dos
dentes-de-esquilo, também a grunhir mal de alguém nas costas, que mais sabe ou pode
fazer uma porca? Calma, temos de levar em conta que os porcos não são animais dotados
de muito raciocínio, vivem com o focinho colado em dejectos, por conseguinte,
as alturas estão-lhe, desde sempre, vedadas, existem de e para o chiqueiro,
quem deles se aproximar, como é óbvio, arrisca-se a sair maculado, por acaso,
também estava aquela porca que uma perna era suficiente para alimentar toda uma
indústria salsicheira, imagine-se as duas pernas! Essa porca, num grotesco
paradoxo com a sua desmesurada morfologia, envergava um fato-de-treino, à vista
de tal cenário, o Mocho quase caía do ramo, como era possível aquele monte de celulite
ambulante envergar um fato-de-treino, e como conseguiu cobrir os quadris
traseiros?! Há, de facto, fenómenos que, em muito, nos ultrapassam a compreensão,
pela primeira vez, aquelas patas, autênticos e desmesurados presuntos, cobertas
com um fato-de-treino, o focinho descaído mantinha-se inalterável, manifestamente
era uma porca muito desaprazível à vista, claro que também lá se via, a um
canto, o porco-espanhol, habituado a jogar-às-escondidas, repetindo: porco e
espanhol: pior combinação é impossível, também lá estava a porca-baixa, com
autênticos mapas desenhados nas pernas, é isso mesmo, as varizes
multiplicavam-se incessantemente, nem se fazia rogada, porca que é porca já
degustava a sua bolota prazenteiramente; agora, introduzimos novas personagens,
claro que há muito habitavam o curral da Peida-Sentada, porém, ainda não se
lhes tinha dado espaço para assomarem, uma é a porca da Bata-Branca,
perguntar-se-á o leitor: uma porca de Bata-Branca num curral? Pois, veja-se o
nível de inteligência da suína: só naquele singular neurónio que lá gravita é
que a bata está branca, há muito é um amontoado de dejectos, a brancura nem na
ideia devia habitar já, é possível que o sonho dessa porca fosse ser doutora,
pois, quem sabe? Em verdade, é apenas uma porca de Bata-Branca, outra é uma
Porca-da-Índia, dizem as más-línguas que perdeu toneladas, pois, não sabemos, no
focinho ostenta uns óculos deveras anacrónicos, enquanto grunhe saem-lhe, ao
mesmo tempo, detritos alimentares da boca, o que torna o quadro-geral deveras
obscuro, mais uma porca que só grunhe pelas costas, nada mais sabe fazer, por
fim, temos a Porca-Platinada, ar de coquete, mas a um olhar mais atento não
escapa a marca da imundície já além-orelhas, até que surge a Peida-Sentada, a
rainha do curral, salpicos de dejectos por todos os lados quando os porcos
batem efusivamente as patas, tudo em êxtase perante a Peida-Sentada, não vamos
transcrever aqui, até por uma questão de decoro, as boçalidades da
Peida-Sentada, começou por atirar uns nacos de carne-podre aos porcos capados do
curral, sim, por ali não se admitiam machos, felizes com a carne-podre nem
ousavam grunhir, não é assim tão difícil gerir um curral, carne-podre para um
lado, uma bolota para outro, duas bolotas para as amigas, três ou quatro para
as mais próximas, e assim a coisa vai correndo, para o Mocho, por exemplo, que
vê toda aquela imundície há muito, já atiraram dejectos, felizmente foi lesto a
esquivar-se e soube subir para outro ramo, o 403 nem sequer foi abordado, mas
porquê esse número cravado no portão do curral? Há questões, por ali, que nem
se ousa articular, a Peida-Sentada reforçou que o seu curral está no caminho
certo, exaltou os valores do mesmo, valores? Quais valores, pensou o Mocho, até
se inclinou ligeiramente para se certificar de que ouvira bem: Valores? Quais
valores? Conluios, tramoias, maledicência, exaltação da incompetência, promoção
da mediocridade, favores obscuros, e o 403 pregado no portão… Valores? Quais
valores? O Mocho nada mais conseguiu ouvir, olhou o horizonte, enquanto, no
curral da Peida-Sentada, os porcos, ululantes, batiam as patas, os dejectos
ascendiam, felizmente as ideias do curral permaneciam na cloaca de cada um dos
porcos, chegou a hora de partir, pensou o Mocho, para um horizonte
além-fedores.
Há umas semanas, alguém me escreveu: “Vivemos tempos muito estranhos…”; não podia estar mais de acordo, desde há dois anos repito: “Afinal, não saímos da Idade Média”, acenam com o medo e quase todos se curvam e enfileiram em rebanho, pois, de facto, “Vivemos tempos muito estranhos…”, quando, na cronologia temporal, os teóricos afirmam estarmos na “Era da Tecnologia”, tão-só a aplicação prática da ciência, constato que “Afinal, não saímos da Idade Média”, e nesta confluência de informação aterrorizante diária, desesperança, cinzentismo, alienação galopante, derrube sistémico dos Valores Essenciais, há uma corrente que postula a época de e para tudo: “época balnear, época de férias, época da neve, época das castanhas, dos morangos, das cerejas, e mais frutas houver, época dos saldos…”, enfim, até há a “época dos incêndios”, pasme-se, como se fosse uma decorrência normal esta monstruosidade criminosa, uma coisa vos garanto: se ninguém ganhasse muito dinheiro, não havia fogos – como em quase todos os crimes que perduram! Face a este contexto, resolvi dar o meu contributo para o novo léxico: a “época dos avecs”. Perguntar-se-ão boa parte dos leitores: o que é um avec? Se somarmos um garrafão-de-azeite a um dicionário Português/Francês, o resultado é invariavelmente um avec! Surgem, de facto, em finais de Julho, atingem o auge no decorrer do mês de Agosto, e começam a desvanecer-se felizmente no início de Setembro, após a definição, ainda deve haver questões pendentes: como identificar um avec? É relativamente fácil, não, não estou a ser optimista, pelo contrário, por vezes, basta ouvi-los, mas é necessária uma ordem, comecemos pelo exterior: qual o aspecto distintivo de um avec? Há qualquer coisa, assim que nos cruzamos com um, de diferenciador, se for do género masculino, sim, na minha prosa haverá sempre e apenas dois géneros (Masculino e Feminino), seria preciso muito mais para que os meus Valores Essenciais balançassem, como dizia, se for do género masculino usa uma inevitável camisola-de-alças, que realçam uns bracitos descarnados e uma palidez excessiva, uns calções com bolsos dois números acima, de onde pontificam uns gémeos igualmente descarnados e com uma palidez excessiva, nos pés, regra geral, uns chinelos pouco vistos por estes lados, não viessem os avecs de la France, às vezes até com umas peúgas, para mitigar aquele joanete teimoso que, ao final do dia, fica magoado, a peúga lá tem o seu efeito balsâmico, o inevitável colar ao pescoço, com uma imagem, em miniatura, da Virgem, um chapéus de feltro, perfeitamente desajustado a estas paragens, que lhes confere um ar de figurantes ridículos em filmes ambientados em safaris e savanas, por fim, uma malinha a tira-colo, tudo complementado com o enfatizar de galicismos (“oui, ça va, bien-sur, donc, mais non…”), quando escasseavam, lá entrava em força o bom vernáculo utilizado antes por Camões e Fernando Pessoa, embora subvalorizado pelo resultado da soma entre um garrafão-de-azeite e um dicionário Português/Francês, os descendentes, por norma, recebiam na pia-baptismal nomes preciosos como: Jean-Pierre, Marianne, Gaston, Michel, Monique… Tudo, claro, enfatizado devidamente com aquele sotaque de onde sobressai o indelével bafo azeiteiro, elas, por seu lado, mesmo que tímidas, tornam-se, de imediato, extrovertidas, tudo fazem para aparentar não serem daqui, por conseguinte, “oui, ça va, bien-sur, donc, mais non…” ecoam muito antes dos seus passos, as cores das roupas numa demasia barroca, como se fosse possível, garanto-vos que sim, e as cabeleiras numa permanente aura de saídas de uma qualquer tosquia, caros leitores, peço-vos agora um esforço de imaginação: se o vosso trabalho e a própria existência se cingissem a um qualquer horizonte redutor, o que fariam para ocultá-los? Pois, laivos de grandeza é resposta inequívoca, assim vemo-los a chegar numa manifesta e sublimada competição por quem traz o carro mais comprido, é enternecedor, confesso, de novo peço um esforço de imaginação: concebam lá a ideia de um carro que ocupasse, quase por inteiro, a praça de uma qualquer aldeia, até podia ser descapotável, vocês, sentados ao volante, a gritar para todos: “Bon-jour, ça-va bien?” Notável, sem dúvida, é tudo o que se me oferece dizer, os filhos acabam por ser decalques dos progenitores, quanto mais velhos são, mais se denota esta característica, a compreensão de que os pais, naquela sociedade, realizam os trabalhos indesejados, pois, não é fácil este assimilar dos factos, ao menos, por quatro semanas, podem brincar ao Era uma vez… Este voltar às renegadas origens acaba por constituir uma pausa da realidade, o verdadeiro sentido de férias, neste Verão, se cruzarem com um avec, peço-vos indulgência, lembrem-se de que está a brincar ao Era uma vez…, não, por favor, não falem de trabalhos indesejados, da sanita entupida ou do atraso na recolha do lixo da vossa rua, respeitem a pausa de realidade dos avecs, andaria eu pela segunda ou terceira classe quando tive o primeiro contacto com esta espécie, regressavam para um rés-do-chão, todo o ano desabitado menos naquele mês de Agosto, o carro era comprido, mas não excessivamente, era bonito para a altura, um Peugeot, não me recordo do modelo, nunca fui muito pródigo nessas matérias, verde-metalizado, casal com uma filha, eram discretos nos modos e no uso de galicismos, por estranho que pareça, bom, cada espécie lá tem exemplares divergentes, mas todos sabiam que eram avecs, a filha primava igualmente pela discrição, era simpática, brincava connosco na rua, o que recordo melhor dela é o facto de os olhos terem a cor do carro - verde-metalizado – , quando, por acaso, o sol por lá se passeava, eu encantado e perdido naquelas paragens, talvez se lhe tivesse murmurado ao ouvido “Je t´aime”, eu fosse digno de terminar esta crónica com um “Au revoir!”
Nietzsche defendia que a essência humana se caracteriza por “Vontade-de- Poder”, até numa frase, com um pouco de atenção, é mensurável essa “Vontade-de-Poder”, não estranhem o facto de iniciar esta crónica com o grande filósofo alemão, porque hoje vou tratar a personagem que mais me fez recordar esta teoria nietzschiana, de facto, cada sofrível frase por si dita transparecia essa “Vontade-de-Poder”, também só lhe restava o verbo, pouco mais, apresentava-se como um douto na sétima-arte, durante um certo período, realizámos trocas clandestinas de filmes em formato dvd, um dos aspectos que mais me fascinava era, quando lhe entregava um filme novo, enquanto as suas pupilas quase tacteavam a capa, ouvi-lo exclamar “Isto é ganda filme! Isto é ganda filme!”, e, ao mesmo tempo, abanava a caixa, da primeira vez, totalmente desprevenido, ainda retorqui “Mas… Mas… Já viste?”, assim que terminei de proferir a última sílaba da questão, logo o arrependimento a dominar-me, o que é natural, uma vez que estava perante um douto na sétima-arte, se ele exclamava “Isto é ganda filme! Isto é ganda filme!”, mesmo sem o ter visto, eu tinha mais de me silenciar e anuir, em vez de ser povoado por questões estéreis como: Mas se ainda não viu o filme, como pode afirmar que é bom? Por que ouviu dizer? Será que é influenciável a este ponto? Logo eu que sou apologista de que a base da inteligência está no exercício do espírito-crítico, porém, confesso, e na justa reposição da Verdade, que esta personagem demarca um antes e depois em relação aos géneros-cinematográficos, abriu uma nova categoria, é a realidade, se antes tínhamos, entre outras: drama, acção, comédia, terror, suspense, guerra; passámos a ter: “filmes à Laurindo!” E o que é um filme à Laurindo, questionar-se-á o leitor? Pois, em verdade, não é um filme, mas sim um sonífero! Por norma, só enfatizamos o que nos falta, esta sublinhada vertente cultural, pontuada com máximas, até para alguns familiares, “Deixa-te disso: não é filme para ti”, no fundo era uma forma de sublimar um nono-ano incompleto, a vida é muito simples, a nossa recusa dos factos é que a torna penosa, inocente como sou, por vezes, ainda tentei elencar alguns óbices a filmes colocados na distinta categoria dos tais à Laurindo, as respostas eram proporcionais à capacidade argumentativa (“Tá maluco! É ganda filme!”), perante tal retórica, o que fazer? Houve uma altura da sua vida em que realizou duas viagens, regressou como se de um Marco Polo se tratasse, uma vez mais, as suas máximas ecoaram, sobretudo para um familiar (“Quando viajamos, vemos as coisas logo por outro prisma. É o que te falta! Devias viajar mais!”), comigo trocou umas frases sobre um destino que eu bem conhecia (“Aquilo é poesia em estado-puro”), pois, a frase que intitula esta crónica, confesso não ser desajustada do destino em causa, problema é o desajuste com o emissor, achei-a rebuscada, como um escudo para aquele nono-ano incompleto, uma das grandes aprendizagens da vida é o silêncio, foi a minha opção aqui, devidamente pontuada com um sorriso (“Aquilo é poesia em estado-puro”), poesia, pensei, mas que poetas terá lido? Pessoa, Antero, Pessanha, Rilke, Holderlin… Pois, isto é uma crónica, não, não valia a pena, como demorei a chegar ao silêncio, atenção, ainda lhe estou a bater à porta, também, por algum tempo, foi vê-lo com um livro bem volumoso debaixo do braço, veio-me logo à mente aquele velho dito popular (“Um burro carregado de livros é um doutor”), não sei porquê, geralmente Dostoiévski, achei extraordinário quando me começou a elencar as virtudes das temáticas do génio russo, talvez se tivesse esquecido de que fora eu a falar-lhe de Raskálnikov, da Sonja, e de tantas outras extraordinárias criações de Dostoiévski, uma das grandes aprendizagens da vida é o silêncio, achei delicioso aquele malabarismo com o grosso volume, de forma a que todos vissem, confesso que me enterneceu, ainda pensei em dizer-lhe, por que não lês o “Noites Brancas”? É uma obra superlativa, um Dostoiévski bem mais luminoso, e o livro é pequenino, escusas de andar tão carregado, porém, com o “Noites Brancas” não lhe seria possível aquele malabarismo, e como não é muito volumoso, talvez não ocultasse devidamente aquele teimoso e inconveniente nono-ano incompleto, mas, em verdade, a minha preocupação de ele andar com tal volume, debaixo do braço, era séria, pois vira-se privado da carta-de-condução, certa noite tivera conhecimento de que, para conduzir, necessitava de: carta-de-condução, seguro, registo-de-propriedade da viatura, nenhuma anomalia exterior na mesma, enfim, aspectos comuns a qualquer cidadão, dizem as más-línguas que, ao tomar conhecimento destes factos, exclamou para o mundo: “Tá tudo maluco!” Hoje arrasta-se a pé, embora não tenha virado costas, por completo, à moda, segundo o próprio, tem fortes ligações a este contexto, quem sou eu para duvidar, é vê-lo com umas jardineiras à Bud Spencer, só com uma das alças abotoadas – há pormenores que demarcam realidades –, umas “crocs” nos pés (peço desculpa pela publicidade, não era, de todo, intencional), e uns óculos com uma só haste, tem de combinar com a alça abotoada, pois, neste ponto confirma-se o tal passado com fortes ligações ao mundo da moda, embora não deixe de ser um paradoxo um espírito tão guindado por valores culturais imiscuir-se num contexto tão fútil, bom, são as idiossincrasias da existência, antes das quinze horas não ousem tocar-lhe à porta, ainda está no seu merecidíssimo período de repouso, talvez o serão tenha sido passado a visionar filmes que possam ser adicionados à sua ditosa categoria (filmes à Laurindo), não posso terminar esta crónica sem narrar um dos momentos mais sublimes desta personagem, uma das suas refeições passa invariavelmente por dois queijos-frescos, coloca-os simetricamente em cima do balcão, fica, por uns instantes, a contemplá-los, isto, sim, é poesia em estado-puro, a alguns passos de distância os queijos-frescos afiguram-se silos, claro que as pupilas chegam sempre primeiro, só depois, com uma faca, os vai retalhando com a devida lentidão, num cerimonial com muito pouco de pagão, não fossem aqueles silos autênticas epifanias, no Verão, aos fins-de-semana, ruma, com duas irmãs mais velhas, para uma praia dos arredores da capital, ali ficam os três, se o factor hereditário prevalecer, imaginem a genialidade daqueles diálogos, por ora, fiquemos apenas com a imagem daqueles três vultos a contemplar o oceano, sim, sem dúvida, é poesia em estado-puro!
É inevitável olhar o outro com as
cores do nosso pensar, por outras palavras, esperamos que aja ou pense de uma forma
consentânea com os padrões em voga, certa vez, dei por mim, para meu silenciado
espanto, a afirmar: “Não
há pessoas normais!”; acrescentei ainda: “O que é isso de normal?”; pois,
de facto, o que é isso de normal? Sem querer, agora, entrar no complexo campo
dos Valores, alvo de extermínio a cada dia, vou ilustrar, hoje, uma das figuras
mais singulares que se pode conhecer sob o céu, de certa forma, pagar uma
dívida, há muito merecia umas linhas, é o resultado de uma estranha combinação,
sublinhe-se que sem nenhum exagero, entre: Corto-Maltese + John Rambo + Platão
+ Santo Agostinho + Tarzan + Errol Flynn + Mr. Miyagi… Esta soma peca por
escassez! Aqui chegados, haverá quem abra a boca de espanto e questione: por
escassez? Mas existe ser-humano assim? Um todo resultante destas insignes
partes? Sim, existe, e posso assegurar-vos de que tenho o privilégio de há
muito o conhecer, sublinho que se tratou de um lento desvelar, mais velho de
quatro irmãos, todos engenheiros, doutores, filho também de um engenheiro, com
quatro doutoramentos e três mestrados, talvez seja o contrário, três
doutoramentos e quatro mestrados, ou cinco doutoramentos e seis mestrados, já
me perdi, pois, peço desculpa, qualquer um se perde nesta infinda teia de
diplomas, logo eu que só tenho algum jeito para juntar palavras, da mãe não me
recordo haver canudo, mas asseguro-vos que lhe corria nas veias sangue-azul, um
antepassado chegara a Papa, não, não se espantem, se o afirmou, é um facto, crescera
com os irmãos no Sul, quando me contou, surgiu-me logo a imagem dos quatro a
descer uma qualquer rua e tudo a esconder-se em terror, ousei balbuciar-lhe
após o relato: “Deviam ser conhecidos como os quatro cavaleiros do
Apocalipse”, a sua resposta foi lesta: “Sim, sim…”, naquele seu timbre
introspectivo, quase cavernoso, soube, mais tarde, que chegara a cantar ópera
em São Carlos, bem avisei que a soma pecava por escassez, falta Plácido Domingo, reparei que adequava a
temática do diálogo ao interlocutor, comigo, por exemplo, puxava a literatura
para a mesa, escudava-se em meia-dúzia de chavões, talvez nem a isso chegasse,
na minha infinita inocência, perante aquela sumidade, resolvi trazer alguns dos
meus autores de eleição ao diálogo, do seu lado apenas o silêncio a aumentar, quem
sabe fosse uma má interpretação da minha parte, tentei uma segunda vez, com
autores mais populares, de novo os chavões, estranhei, como aquela soma de tão
insignes partes não conseguiu desenvolver um diálogo literário tão simples, os
seus lugares-comuns estão ao alcance de qualquer analfabeto funcional,
dissera-me que crescera no meio de uma biblioteca com similitudes apenas na de
Alexandria, que devorava livros e livros, pois, estranho, complementava cada afirmação
com a expressão que intitula esta crónica: “Já o meu irmão…”; sublimadamente
ficávamos a perceber que o irmão (Qual dos três? Talvez todos…) seria também um
devorador insaciável de páginas e páginas, um dos seus relatos mais fascinantes
ocorreu num dia de Verão, estava com um dos irmãos na praia, linha do Estoril,
quando, num repente, decidiram nadar em apneia até ao forte de São Lourenço do Bugio,
fica somente a cerca de dois quilómetros e quatrocentos metros em linha recta
da costa, para não falar nas correntes, nem retorqui, o que era isso para
aquele Tarzan? Ouvi fascinado a narrativa, nem ousei interromper, imaginava-o
apenas a afastar uma alga teimosa que lhe ousava travar a odisseia submarina, também
era um ex-combatente da guerra-colonial, regra geral, evitava falar deste tema,
compreensível, os horrores da guerra não se devem partilhar, de novo a minha
infinita inocência a construir imagens daquele titã, de metralhadora, a limpar
todos os turras que se lhe atravessassem à frente, disse que estivera na força-aérea
como piloto, claro, embora também no terreno, alguém pode duvidar? De forma
espontânea perguntei se conhecia um meu familiar, oficial, que realizara três
missões, inspirou longamente, olhar no infinito, e com a sua voz de tenor
incompreendido: “Sim, sim, claro que conheço. Já o meu irmão…”; de imediato,
logo a minha imaginação a construir imagens destes três titãs a repor a ordem nas
profundezas de África, outro aspecto intrigante prende-se com a facto de já ter
calcorreado todos os cantos da Terra, não havia um ponto onde já não tivesse
ido, quem podia duvidar daquele aventureiro? Imagino os corações-dilacerados
que deixou em cada porto, com o seu bigode à Errol Flynn! Como provinha de uma
família deveras abastada, para percorrer a propriedade dos avós era necessário um
dia, não, não estou a falar de triciclo, há sempre espíritos maldizentes, mas
sim de jipe, até lá passava um rio, para não se ficar atolado é naturalmente mais
seguro o jipe, fruto de uma árvore-genealógica tão ilustre, era natural o seu
desapego aos bens-materiais, posso afirmar, sem quaisquer rodeios, jamais ter
conhecido alguém tão desligado do vil-metal, o sangue-azul guiava-lhe os passos, quando falava da família, não raras
vezes, dava por mim a visualizar o mapa-político do mundo, não me queria perder,
avó sueca, tio-avô alemão, o antepassado Papa como já referira, o outro lado da
família era oriental, daí a sua aura de Mr. Miyagi, extraordinário, tudo o que
posso dizer, havia tanto para relatar, merecia, confesso, um romance no lugar destas
escassas linhas de uma crónica, repito: se acham que isto é um delírio da minha
imaginação, experimentem ir, agora mesmo, até ao Alasca, se virem alguém, no meio
de um nevão, a correr em tronco-nu, é ele, não fiquem admirados se, ao passar
por vós, disser: “Já o meu irmão…”
Pergunta óbvia do leitor: Quem é a dona Suzete? Por norma, quando se pergunta quem é alguém, responde-se com a sua profissão, o que constitui um gravíssimo erro estrutural, porque jamais a actividade-de-subsistência pode definir um sujeito, afinal, há uma miríade de factores a contribuir para direcção dos passos de cada um de nós sobre a terra, porém, um ponto-de-interrogação continua pendente: Quem é a dona Suzete? A dona Suzete já dobrou as seis décadas, ostenta uma cabeleira demasiado loura, como se tivesse algures um patrocínio da Robbialac ou de qualquer outra marca de colorir o mundo, tal a sua inclemente luta por calar os brancos que brotam da sua cabecita, é baixa, daí os saltos de três andares, medida transversal a todas as sujeitas que Deus não dotou com o dom das alturas, pelo menos trabalham o equilíbrio, e, de facto, a dona Suzete era pródiga na arte do equilibrismo, mais à frente iremos desvelar estes seus dotes, nascera no Sul, por contingências do destino viera para a capital, embora nas férias regressasse às origens, nem por acaso, uma das suas fotos mais expressivas é precisamente em terras do Sul, só se veem os pezinhos, inchados, deselegantes, curtos, as unhas pintadas, embora estaladas em vários pontos, numa clara expressão de: Finalmente, descanso! Como se a dona Suzete fosse uma incansável trabalhadora! Não, nada disso, a dona Suzete é tudo menos trabalhadora, se falarmos em termos de teatralidade, aí sim, a dona Suzete é uma ilustre actriz, do melhor, consegue abstrair-se singularmente do contexto, benéfico ou hostil, para fitar somente as coordenadas da personagem que encarna, é operária numa empresa de carimbos, ganhou relevância um pouco rápido demais, chegou a tesoureira da empresa, quem tem a mão sobre o dinheiro, tem a mão sobre tudo, assim é, infelizmente, a deplorável história deste ser bípede de nome homem, muitas teorias procuram explanar esta celeridade, mas não é isso que nos importa, o nosso foco está no que a dona Suzete fez, em relação aos demais, com a sua ascensão na empresa de carimbos, diz a sabedoria-popular que: “Se queremos verdadeiramente conhecer alguém, basta dar-lhe poder ou uma arma”; a partir desta velha premissa, vamos, então, realmente conhecer a dona Suzete, já sabemos que veio do Sul, da sua tristemente risível foto dos pezinhos inchados, deselegantes, curtos, as unhas pintadas, embora estaladas em vários pontos, num hino surdo ao descanso, como se disso precisasse, da baixa-estatura, ainda nem falámos das largas-ancas, contudo, uma das suas características mais flagrantes, na empresa de carimbos, é que está a caminho ou a sair de uma reunião, logo apontando o dedo aos outros funcionários, que se esfalfaram o dia inteiro na produção dos carimbos, “Pois é, vocês a caminho de casa e eu ainda vou para uma reunião…”, sublinhe-se o tom dramático com que entoa cada sílaba, pois, a dona Suzete é uma actriz de primeiríssimo-nível, houve, lá na fábrica, maldizentes que a apelidavam de papa-reuniões, como se o fizesse por gosto, nada disso, se a dona Suzete estava presente seria para delinear o futuro da empresa, a solvência da mesma e o ordenado dos trabalhadores, alinhada com os ventos políticos de ocasião, como qualquer invertebrado, desde que não voltasse a ter de arregaçar as mangas, afinal “Pois é, vocês a caminho de casa e eu ainda vou para uma reunião…”, tinha uma vida árdua, apesar de tesoureira, a dificuldade com as contas era notória à distância, embora o maquilhasse com laivos doutorais, mas aí não havia Robbialac que lhe valesse, sobretudo para os olhares mais atentos, em certa ocasião, um incauto convidou a dona Suzete para ser oradora num evento cultural, a flamejante cabeleira contrastava com a discreta e profunda aura reflexiva inerente a esses contextos, o desastre foi total, meia-dúzia de lugares-comuns e pouco mais, se ao menos os pezinhos inchados, deselegantes, curtos, as unhas pintadas, embora estaladas em vários pontos, sobre um banco, a proclamar: Finalmente, descanso! A dona Suzete era pródiga, como qualquer actriz de nomeada, em ocultar emoções, às vezes questiona-se o carácter humano destas personagens, só tinha, por ali, dois objectivos: a mão sobre o dinheiro e agilizar a produção de carimbos, carimbos e mais carimbos, se, por acaso, alguém se levantasse a chamar a atenção para a qualidade dos mesmos, logo a dona Suzete arranjaria uma reunião para o silenciar ou despachar para bem longe, menos para Sul, não fosse o desgraçado morrer de susto ao ver, sobre um banco, uns pezinhos inchados, deselegantes, curtos, as unhas pintadas, embora estaladas em vários pontos, ninguém sobreviveria a tal visão, se, por acaso, alguém tiver curiosidade em conhecer a dona Suzete, é bastante fácil, deve estar a vir ou a caminho de uma reunião, não se espantem se, num tom dramático, vos proclamar: “Pois é, vocês a caminho de casa e eu ainda vou para uma reunião…”
(05/07/22)