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quinta-feira, 21 de julho de 2022

O curral nº 403 da Peida-Sentada


 

Uma trilogia é sempre mais simbólica que um díptico, com base nesta premissa, resolvemos concluir “As aventuras da Peida-Sentada” com esta terceira parte, tudo começou com o sol ainda aquém das alturas, o Mocho, no seu ramo, via uns sujeitos a aproximarem-se do portão do curral da Peida-Sentada e afixarem três algarismos que, no fundo, constituíam um número: 403; o Mocho ficou alerta, o que provocaria aquele número, agora cravado no portão, nas porcas e porcos do curral? Nem por acaso, nessa manhã, a Peida-Sentado convocara os suínos para a ouvir dizer umas quaisquer alarvidades, afinal, que mais tem uma porca para dizer? Esta praxis de alarvidades já era comum ao porco velho e gasto do seu antecessor, mal conseguia emitir dois grunhidos direitos, porém, fazia com que os restantes porcos o ouvissem, durante horas-infindas, a debitar boçalidades sobre temáticas que, coitado, ignorava por inteiro, pois, alguém já viu algum porco com um livro nas patas? Os suínos já se aglomeravam no centro do curral à espera da Peida-Sentada, um aspecto que não passou despercebido ao Mocho foi o acumular de excrementos em que se mobilizavam, nada de estranhar para quem chafurda na imundície, lá estavam personagens nossas bem conhecidas, o porco das perninhas-arqueadas, um verdadeiro sabujo da Peida-Sentada, fidelíssimo acólito do confessionário, não há dia em que lá não passe, mais um porco cobarde que apenas sabe grunhir nas costas alheias, com as perninhas-arqueadas, os dejectos já lhe ultrapassam as orelhas, o porco-da-bolsinha, agora de olhar perdido, talvez veja a ração a fugir-lhe, o porca do focinho-sorridente, esta continua a secundar a Peida-Sentada, assim que o Mocho a viu, foi acometido de uma tontura pela putrefacção exalada, a porca dos dentes-de-esquilo, também a grunhir mal de alguém nas costas, que mais sabe ou pode fazer uma porca? Calma, temos de levar em conta que os porcos não são animais dotados de muito raciocínio, vivem com o focinho colado em dejectos, por conseguinte, as alturas estão-lhe, desde sempre, vedadas, existem de e para o chiqueiro, quem deles se aproximar, como é óbvio, arrisca-se a sair maculado, por acaso, também estava aquela porca que uma perna era suficiente para alimentar toda uma indústria salsicheira, imagine-se as duas pernas! Essa porca, num grotesco paradoxo com a sua desmesurada morfologia, envergava um fato-de-treino, à vista de tal cenário, o Mocho quase caía do ramo, como era possível aquele monte de celulite ambulante envergar um fato-de-treino, e como conseguiu cobrir os quadris traseiros?! Há, de facto, fenómenos que, em muito, nos ultrapassam a compreensão, pela primeira vez, aquelas patas, autênticos e desmesurados presuntos, cobertas com um fato-de-treino, o focinho descaído mantinha-se inalterável, manifestamente era uma porca muito desaprazível à vista, claro que também lá se via, a um canto, o porco-espanhol, habituado a jogar-às-escondidas, repetindo: porco e espanhol: pior combinação é impossível, também lá estava a porca-baixa, com autênticos mapas desenhados nas pernas, é isso mesmo, as varizes multiplicavam-se incessantemente, nem se fazia rogada, porca que é porca já degustava a sua bolota prazenteiramente; agora, introduzimos novas personagens, claro que há muito habitavam o curral da Peida-Sentada, porém, ainda não se lhes tinha dado espaço para assomarem, uma é a porca da Bata-Branca, perguntar-se-á o leitor: uma porca de Bata-Branca num curral? Pois, veja-se o nível de inteligência da suína: só naquele singular neurónio que lá gravita é que a bata está branca, há muito é um amontoado de dejectos, a brancura nem na ideia devia habitar já, é possível que o sonho dessa porca fosse ser doutora, pois, quem sabe? Em verdade, é apenas uma porca de Bata-Branca, outra é uma Porca-da-Índia, dizem as más-línguas que perdeu toneladas, pois, não sabemos, no focinho ostenta uns óculos deveras anacrónicos, enquanto grunhe saem-lhe, ao mesmo tempo, detritos alimentares da boca, o que torna o quadro-geral deveras obscuro, mais uma porca que só grunhe pelas costas, nada mais sabe fazer, por fim, temos a Porca-Platinada, ar de coquete, mas a um olhar mais atento não escapa a marca da imundície já além-orelhas, até que surge a Peida-Sentada, a rainha do curral, salpicos de dejectos por todos os lados quando os porcos batem efusivamente as patas, tudo em êxtase perante a Peida-Sentada, não vamos transcrever aqui, até por uma questão de decoro, as boçalidades da Peida-Sentada, começou por atirar uns nacos de carne-podre aos porcos capados do curral, sim, por ali não se admitiam machos, felizes com a carne-podre nem ousavam grunhir, não é assim tão difícil gerir um curral, carne-podre para um lado, uma bolota para outro, duas bolotas para as amigas, três ou quatro para as mais próximas, e assim a coisa vai correndo, para o Mocho, por exemplo, que vê toda aquela imundície há muito, já atiraram dejectos, felizmente foi lesto a esquivar-se e soube subir para outro ramo, o 403 nem sequer foi abordado, mas porquê esse número cravado no portão do curral? Há questões, por ali, que nem se ousa articular, a Peida-Sentada reforçou que o seu curral está no caminho certo, exaltou os valores do mesmo, valores? Quais valores, pensou o Mocho, até se inclinou ligeiramente para se certificar de que ouvira bem: Valores? Quais valores? Conluios, tramoias, maledicência, exaltação da incompetência, promoção da mediocridade, favores obscuros, e o 403 pregado no portão… Valores? Quais valores? O Mocho nada mais conseguiu ouvir, olhou o horizonte, enquanto, no curral da Peida-Sentada, os porcos, ululantes, batiam as patas, os dejectos ascendiam, felizmente as ideias do curral permaneciam na cloaca de cada um dos porcos, chegou a hora de partir, pensou o Mocho, para um horizonte além-fedores.


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