Livros

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domingo, 26 de março de 2023

Gostava, um dia, de me sentar à mesa comigo


Ia, de bola na mão, ao encontro dos outros miúdos da minha rua, após o almoço, tínhamo-nos mudado há pouco para o bairro, esta devia ser a terceira ou quarta vez que jogava à bola com eles, já tinha uma ideia do que eles faziam com uma bola nos pés, há coisas, na vida, que basta olhar, com a bola é assim, soube que tinha de regressar pela voz da minha mãe, que me chamava da janela, já os candeeiros nos lembravam que sempre ali estiveram, e eu com vontade de continuar o jogo, os outros também, um aroma a jantar descia pelas janelas abertas, de facto, o tempo da infância obedece a outros ponteiros, do almoço ao jantar apenas uns pontapés na bola, antes de um último remate, percebi que se combinava um jogo com os miúdos da praceta de baixo, pelo tom moderado das vozes, compreendi que era coisa séria, de facto, poucas coisas superam em relevância um jogo entre as selecções de duas pracetas, claro que me aproximei daquelas vozes contidas, procurei assumir igualmente uma expressão compenetrada, mas o olhar dos outros foi inequívoco, afinal, mudara-me há pouco, fingi-me distraído e deixei-me estar, falava-se de tácticas, a certa altura, lanço a questão Mas quem vai escolher a equipa?, percebi, de novo, pelos olhares, a minha condição de recém-chegado, só mais tarde, já a caminho de casa, depois de ouvir o meu nome mais duas vezes, agora num tom mais agreste, pela voz de minha mãe, é que o meu vizinho da frente, também ele um selecionável, me explicou que era o rapaz do 5º frente, do lote 12, a tratar de tudo, talvez o facto de ser quatro anos mais velho que a maioria contribuísse para esse estatuto, não sei, mas algo em mim insistia nessa tese, antes de nos despedirmos, ele vira-se para mim, e timidamente diz-me, quase a título de conselho, Se ainda hoje fores falar com ele, pode ser que, apesar do pode ser que, eu agradeci-lhe em sorrisos, afinal, a intenção era boazinha, e tratava-se do meu vizinho da frente, e os meus pais sempre inflexíveis com essa coisa da educação (Cumprimentaste? Agradeceste? Disseste bom-dia? Não seguras a porta? Pediste se faz favor? E com licença, não se usa?), mas quantas vozes nos acompanham os passos?, e uma delas, assim que fecho a porta, antes de me sentar à mesa, Só pode estar a gozar contigo! Depois da aula que lhes deste hoje à tarde de bola, teres de pedir para jogar! A um tipo só por ser mais velho! E, certamente, ainda deve tropeçar mais na bola do que estes… Esquece isso! Sabes o que vales…, nisto, soou a reprimenda maternal, o atraso, quantas vezes tem de me chamar, inadmissível, para a próxima fico de castigo, do lado do meu pai, apenas duas questões Quantos golos marcaste? Já tens muitos amigos?, respondi-lhe de pronto, mas curiosamente não partilhei o dilema que me atomizava, não sei bem porquê, ou talvez saiba, compreendia, numa fundura de mim, que aquela decisão há muito me aguardava, não sei bem porquê, mas algo me dizia isso, daí em diante, um trajecto ficaria por cumprir, eu só esperava que fosse o mais desinteressante, acordei, no dia seguinte, com a decisão tomada, achei esse facto curioso, sem reflexão, sem angústia, nada, apenas o sono, e talvez o sonho, como é natural, não pedi a ninguém para jogar, soube, depois, que perderam, ainda por alguns, com a praceta de baixo, não me admirei, a bola era-lhes ainda um objecto estranho, anos depois, percebi porque caminho enveredara, por causa de uma nota escolar, não compreendia o porquê de duas colegas, com média inferior nas avaliações, terem melhor nota na pauta, alguém me dizia, Devias conversar mais com a professora, eu ficava tolhido, a pensar que não me apetecia falar com a professora, já me chegava a voz dela na sala de aula, durante horas que se me afiguravam meses, desta vez, socorri-me dos conselhos paternos, afinal, há muito escolhera o caminho, só me queria certificar que o mais desinteressante ficaria por cumprir, meu pai Deixa-te estar, filho. Não nasceste para engraxador, mas logo minha mãe Um sorriso, de vez em quando, não fica mal a ninguém. Mas não te ponhas com contestações com a professora, eu não queria contestar, apenas perceber as coisas, mas ficava cada vez mais confuso, um sorrisinho de ocasião superava três meses de trabalho, começava a achar que escolhera mal, talvez se tivesse falado com o rapaz do 5º frente, do lote 12, sempre era quatro anos mais velho, a idade sempre é um posto, hoje teria aprendido a demorar-me com a professora, nos intervalos, em sorrisos, assim, quem sabe, os meus três meses de trabalho valeriam por seis, na faculdade, uma vez mais, o espectro do rapaz do 5º frente, do lote 12, a acompanhar-me, as repetidas noites de páginas, esferográfica, alimentadas a cafés, sempre aquém de risinhos, pálpebras saltitantes, nos movimentados corredores do edifício que proclama enaltecer méritos e trabalho, meu pai já não me perguntava por golos, talvez por se cansar em demasia da cozinha à sala, no entanto, aconselhava-me Vai com calma. Sê prudente! Vais entrar na selva que é o mundo do trabalho, compreendi, pelas suas palavras, que tinha consciência da decisão que eu tomara na manhã da vida, minha mãe, por seu lado, Juizinho, meu filho. Deixa-te de devaneios. Cumpre com o que te mandam, e não olhes para os lados, não vou falar do destino das médias expostas naquele edifício que devia enaltecer méritos e trabalho, ainda insatisfeito com os factos do lugar onde se nasce, concorri, com um projecto, a um prémio da área onde me formara, arquitectura, foram meses para criar uma habitação que respeitasse aqueles desígnios, área inferior a 200 m2, 60% de luz natural, no máximo dois pisos, etc, mostrei-o a alguns colegas e entendidos da área, o aplauso foi unânime, despendi os parcos tostões no banco em maquetas, material informático, tudo para cumprir as directrizes do concurso, um mês depois, fui visitado pelo rapaz do 5º frente, do lote 12, o prémio foi para uma rapariga que, soube-se depois, nem o curso terminara, anos mais tarde, via-a na televisão a falar em nome de pardacenta cor política, de facto, no lugar onde nasci, há contextos onde não se pode falar em cores, há muito que tudo se desbotou, certas noites custa-me a adormecer, talvez seja quando o rapaz do 5º frente, do lote 12, se vem sentar, diante mim, à espera que lhe peça para jogar, noites como esta, mas hoje resolvo olhá-lo, desta feita com um sorriso, pego na bola e digo-lhe Vamos. Ainda vais a tempo de aprender a jogar…

 

sábado, 25 de março de 2023


 ... devias saber que nos apaixonamos por ideias, mas só amamos pessoas...

in Deslumbramento

Cambaleio entre duas ideias

 



Só me apercebi das pedras da calçada, quando o tempo me relembrou o seu excesso, e eu ali, a subir e a descer a rua, há demasiado, resolvo parar à porta do prédio dela, a luz das escadas acesa, talvez alguém vá sair, seria tão bom se o seu rosto, assim nem teria o esforço da campainha, esperar por uma esperança de diálogo, mas não, uma velhota com destino marcado no supermercado mais próximo, munida de um saco de plástico numa mão, há que ser precavido, hoje até os sacos vazios já pesam, na outra, a carteira tão leve que não custa erguê-la à altura do peito, a porta fecha-se após o seu terceiro ou quarto passo, lá vai, passeio fora, só me resta premir um botão pelo seu rosto, há dois dias, a esta mesma hora, ainda me faltavam uns metros para a sua porta, já ela corria ao meu encontro com um rosto solar, dois dias e o mundo outro, como é difícil acreditar que tudo não foi uma ilusão (porém, se o fosse, como aqui teria chegado?), aproximo-me, de novo a luz acesa, também uma luz em mim, a porta abre-se, um cavalheiro com o seu cão, algo se me obscurece, fico a vê-los, ambos naquela passada de quem vê as coisas da varanda de si, não quer dizer que se tenha cansado, mas já as viu de suficientemente perto para se cansar com perguntas ou espantos, de costas parecem dialogar, é possível, talvez o façam na linguagem do olhar, pelo menos aí a mentira ainda não encontrou uma porta de entrada, é curioso, há entre eles uma compreensão de anuências, isto só sucede quando as ideias jorram da mesma fonte, assim que dono e cão se diluem na tarde da cidade, avanço para a campainha, mas o gesto sustém-se numa dúvida que se me abriu, recuo um passo, imperceptivelmente levo o indicador direito aos lábios, relembro a tarde de ontem, já não a via há um par de anos, sempre o acaso, queixamo-nos da monotonia, mas assim que a vida nos apresenta uma esquina, corremos desenfreadamente pela familiaridade, regresso ao meu indicador e à tarde de ontem, foi ela que me chamou, a sua voz surgiu-me sem o peso daqueles cinco ou seis anos, assim que os imperativos do social ruíram, uma mesa de café, confidências, falou-me com desassombro do desemprego, das portas onde bate e sempre, como resposta, o eco dos seus desejos, vive com alguém, disse-me isto com aquela peculiar expressão de comprometimento, não sei porquê, mas gostei de a rever, era pior se a indiferença pelo seu rosto, achei-a mais magra, compreendi que pouco mudara, no fundo, o que muda é a direcção do nosso olhar, o resto é apenas tarefa do tempo, continuava indefinidamente a rodar a colher na chávena após o pacote de açúcar, antigamente chamava-lhe a atenção, ontem deliciei-me a olhá-la, ali, diante de mim, uma memória que se levantou no meu caminho, quando me apercebi do calendário, já a minha mão se passeava pelos seus cabelos, ela não a afastou, percebi-lhe o cansaço de tanto ouvir os próprios ecos depois de bater às portas, quase lhe senti gratidão por lhe dedicar aquele meu tempo, acabei por acompanhá-la à paragem mais próxima, ambos sentimos que o autocarro estava próximo, sem a mesa de café diante de nós, a relembrar insularidades, um pudor embaraçado não nos permitiu falar de amanhãs, apesar disso, e não sei bem porquê, talvez enlevado pela doçura  daquela memória, de uma colher indefinidamente a rodar a chávena após o pacote de açúcar, aproximei o meu rosto até que os nossos lábios se tocassem, ela não recuou, palavra de honra, sabiam a café, a uma colher que rodava indefinidamente e a uma memória que se levantou no caminho, regressámos à nossa circunstância com um chiar de travões acompanhado de passos apressados que descem ao mesmo tempo que outros hesitantes sobem, despediu-se, com palavras de ocasião, de um futuro feliz, até um dia destes, não as retive, fiquei com aquele seu gesto de puxar o cabelo para trás da orelha, tudo ali de novo e tudo, uma vez mais, a ofuscar-se, diante de mim ficou apenas uma paragem vazia, percebi que perdera qualquer coisa, pelo menos, preservei o sabor a café nos lábios, soube, ainda nesse dia, que um olhar actual não compreendera a minha deferência para memórias que se levantam no caminho, tentei demonstrar a impossibilidade de uma memória ir além disso, mas argumentava com portas onde  se bate e, como resposta, sempre o eco dos nossos desejos, não sei se deva insistir, foi esta dúvida que me fez recuar um passo, ou talvez dois, entretanto, a velhota regressa, agora com a carteira ainda mais leve, tanto que não custa erguê-la à altura do peito, no saco apenas duas ou três coisas, a fome já não se sacia, apenas se engana, fico a vê-la entrar, continuo indeciso, entre a imagem de alguém que corre ao meu encontro com um rosto solar e o eco desse desejo, também de regresso, agora, o dono e o cão, naquela passada de quem vê as coisas da varanda de si, sempre num diálogo de olhares, passam por mim, entram, a porta fecha-se, e, confesso, pareceu-me ouvir uma colher rodar indefinidamente na chávena após o pacote de açúcar enquanto uma mão, num peculiar gesto, puxa o cabelo para trás da orelha...

sábado, 18 de março de 2023


 ... nada dissemos, os olhares tudo gritaram, compreendi, nesse momento, a insignificância do verbo, aprendi mais sobre o viver nessas dezenas de segundos do que em toda a escolaridade até então....

in Deslumbramento

sexta-feira, 17 de março de 2023


 

Os factos são estes: as coisas não moram no mundo, mas em nós.

in Deslumbramento

Quem mata o sonho, mata a esperança

 



Subiu os cinco ou seis degraus com avidez, a porta encontrava-se aberta, no patamar desaguava aquela luz insípida, prenúncio de auroras distantes, mesmo assim, entrou resoluto, era uma divisão rectangular, uma mesa, ao centro, coberta de revistas anacrónicas, cercada por cadeiras, quase todas ocupadas, por homens e mulheres de idades próximas da sua, também munidos de uma pasta similar à que ele trazia, receberam-no com a indiferença da invisibilidade, como se, de alguma forma, ali não estivesse, é tão estranho, por momentos, ele próprio em dúvidas de ali estar de facto, opta por se sentar, durante uns minutos, receia que um movimento seu quebre a indiferença a que fora votado, como se ousasse romper um veredicto há muito ratificado, à sua volta, apenas incómodo, por si, por todos, por ser, por estar, pelas pastas, pela luz insípida, pela porta que permanece obstinadamente fechada, mas percebe-se gente no interior, timidamente passeia a vista em volta, consigo contou quatorze sentados, seis mulheres, apenas três se abeiraram da mesa por uma revista, quatro olham para a máquina do hoje numa cadência de polegares, dois perdem-se a contemplar a obstinação da porta encerrada, com uma esperança intermitente, os restantes deambulam entre o tecto, as pastas alheias, os passos que ali os conduziram, mas nunca com o amanhã, talvez carreguem demasiado ontem, de vez em quando, um suspiro controlado, uma tosse refreada, até que, de repente, se abre a porta, uma mulher sai, também de pasta na mão, passos rápidos, mas não resolutos, todos os olhares da sala naquela figura que apenas ambiciona sair e respirar fundo, assim que ela sai, as atenções viram-se, de novo, para aquela outra divisão, agora de porta aberta, lá de dentro, uma voz, masculina por sinal, grita um nome, uma das pastas levanta-se, entra, a porta, uma vez mais, a mostrar-lhes o seu rosto, tudo se repete, até que ele ouve um nome que o representa neste mundo dos aparentes vivos, levanta-se, entra, fecha a porta atrás de si, senta-se diante de uma secretária, do outro lado, um sujeito não muito mais velho que ele, de fatinho, impecavelmente engomado, óculos em consonância com os tempos, tudo numa sintonia exasperante, com a excepção de não se lhe notar sulcos de suor no rosto para compreender destinos, muito menos tê-los na mão, à questão Então, mostre lá o seu currículo, a resposta a brotar-lhe por cada poro, E qual é o seu? Para se sentar, na almofada da arrogância, diante de mim? Quem foi a mão conhecida que o conduziu até aí? Tenho a certeza, que nem numa pasta pegou, ao mesmo tempo, olhou a porta, pensou abri-la, sair, não, era demais, para aquilo que pensava do mundo, afinal o seu, o único de onde nunca partimos, mostrar aquelas noites sem travesseiro, as múltiplas páginas, transformadas em volumes, que recitava de tanto as beber, as madrugadas a atravessar a cidade, nos bancos ainda frios dos transportes, por vezes a pé, o tempo que sobrava em trabalhos de ocasião, tudo em nome de um rolo que sempre lhe disseram abrir portas, num último instante, abre a pasta e estende um conjunto de folhas impressas, o fatinho, impecavelmente engomado, recebe-as e começa a analisá-las com um ar superiormente entendido, tudo elaborado numa aura de prestidigitador, enquanto isso, a sua memória a despertar para a primeira tarde de circo, levado pela mão tranquila da Avó, sim, essa mão conhecia bem as madrugadas e os frios deste mundo, e quantas noites não terá passado sem travesseiro, não para decorar múltiplas páginas, mas para compreender que na vida tudo vem de baixo, daí a curvatura que sempre lhe conheceu, talvez por ter atendido à humildade das coisas, ora na lavoura, ora nas vindimas, a acorrer às súplicas febris dos filhos, dos netos, a doença do avô nos últimos tempos, nem por um instante a viu fora da sua cabeceira, compreendeu que a Avó nunca se familiarizou com o travesseiro, a vida não lho permitiu, em verdade, foi a sua consciência, aquilo que pensava do mundo, afinal o seu, o único de onde nunca partimos, a ditar essa escolha, se uma mão como a dela lhe pedisse Então, mostre lá o seu currículo, ele teria pudor em estender um conjunto de folhas impressas.

domingo, 12 de março de 2023

Um dia de praia


 

Por fim, chegou o Domingo. Apesar disso, o despertador tocou como se de uma segunda-feira se tratasse. Mas, naquela casa, não se ouviram protestos, ninguém se virou para o outro lado na cama, nada, todos se levantaram em leveza, apesar do cheiro a fritos da véspera, a mãe, quase até à meia-noite, dividida entre dois horizontes, a novela e o fogão, rissóis, croquetes, o marido a protestar pelo cheiro, ela a responder-lhe Quero ver se, quando te der a fome, não te vais chegar a eles, não houve gestos apressados, corridas pela única casa de banho da casa, olhares furtivos para o relógio, pelo contrário, reinou a parcimónia entre eles, pai e filho encarregaram-se de levar tudo para o carro, o guarda-sol, um pequeno frigorífico, bem abastecido de cervejas e refrigerantes, um saco com os inevitáveis tupperwares onde se acondicionavam, entre outros, fatias de bolo, os fritos da véspera, sandes, em pão de forma, de fiambre, queijo, e doce, bolachas, pêssego em calda, um tacho de arroz, noutro saco, espelhos, escovas, cremes, protectores, e demais utensílios requeridos pela beira-mar, raquetas, bola, o rádio para ouvir música e acompanhar o relato, duas cadeiras de armar, a bagageira já estava bem composta, o pai, agora, impaciente, a tamborilar os dedos no tejadilho do carro, enquanto olhava incessantemente para a entrada do prédio, percebia-se o destino pela indumentária, um boné desbotado enfiado até à testa, com marcas bem impressas, algures entre suor e sal, camisa de manga curta desabotoada quanto baste para exibir a fé, na forma de um medalhão litúrgico, perdido algures entre a vasta pilosidade, prova cabal e indesmentível de masculinidade, seguia-se uma tanga azul-choque, a evidenciar a morfologia da intimidade masculina, nos pés, uns chinelos plásticos, brancos, com uma tira larga a esconder o peito do pé, mas não aquela unha encravada, já amarelecida, no dedo grande do pé direito, que soavam histeria a cada passo, o filho, em termos de indumentária, não ficava aquém do paradigma paterno, adicionava um brinco reluzente no lóbulo esquerdo e uma poupa alicerçada a bisnagas de gel, por fim, o trinco da porta soou, o pai, de novo, em sorrisos, a mulher saiu, secundada pela filha, vinha com o seu chapéu de palha, gasto nalguns pontos por Verões anteriores, os óculos-escuros que havia comprado a um marroquino na Praça da Figueira, embora, para as amigas, proclamasse bem alto Perdi a cabeça por eles. Nem te digo o preço, para não te sentires mal, e bastaram-lhe algumas moedas, uma camisola demasiado justa para o relevo da zona abdominal, e uns calções, desajustados tanto para a idade como para a forma física, que faziam sobressair os efeitos da gravidade naquele corpo, e cada passada trazia à memória um anúncio televisivo das gelatinas royal, a filha, por seu lado, apenas discrição, como se quisesse permanecer nas faldas daquele quadro, assim que entraram no carro, o pai ligou o rádio, mãe e filho em sorrisos, a filha com a janela, rumaram para a Costa, ainda tinham a ponte, o crucifixo no retrovisor era garantia de segurança, para os bancos da frente, o pai adquirira, há umas semanas, a um amigo, umas capas com umas esferas que eram garantia de bem-estar para a coluna, os bancos traseiros estavam protegidos com uma colcha, e, no vidro traseiro, o miúdo havia colado um autocolante com o dito Não me siga, estou perdido, a princípio, o pai renitente, mas lá acabou por achar a sua graça, antes de chegarem à ponte, o rádio ainda mais alto, o pai maldizia o trânsito, a mãe ajeitava a maquilhagem, o filho repetia incessantemente a mesma questão (Ainda falta muito?), a filha sempre com a janela, elegera-a para sua companheira de viagem, talvez há muito, nem olhava o irmão, um continente separava-os, era cinco anos mais novo, volvida hora e meia, o estacionamento de terra, a distribuição dos sacos, a mãe à frente, a brancura publicitava ainda mais o efeito gelatina, seguia-se o pai, o azul-choque da tanga a contrastar com a alvura descarnada dos membros inferiores, o irmão aos saltos com a bola e mais qualquer coisa, a uns quantos passos atrás, a irmã, sempre nas faldas deste quadro, a olhar como se de uma janela, demoraram o seu tempo a instalar-se, após o guarda-sol, as toalhas, abrir as cadeiras, ligar o rádio, pô-lo audível em relação às ondas, fechar os sacos onde havia comida por causa da areia, ele deliciado a pôr protector nas costas da mulher, ela nem precisou de o verbalizar, já a aguardava de frasco na mão, o filho entretinha-se a jogar raquetas com um vizinho de um guarda-sol próximo, só a rapariga da janela se encaminhou para a água, assim que uma onda lhe cobriu os pés, respirou fundo, avançou mais uns passos, achou curioso, o único som advinha das águas, olhou para trás, parecia tudo tão longe…

domingo, 5 de março de 2023


 Às vezes penso se não devíamos estar mais extenuados. Tanto palco e tão pouca verdade.

in Deslumbramento

sábado, 4 de março de 2023

Deitado na cama a olhar para o tecto

 


Vi-os, pela primeira vez, numa tarde de sol, do quarto que alugara, num segundo andar, naquela travessa da cidade, não sei porquê, mas sustive-me perante um quadro familiar a céu aberto, ela ladeada dos filhos, um em cada mão, a rapariga aí pelos dez, o rapaz mais novo dois ou três anos, é curioso, pareciam familiarizados com o trajecto, a sua vista fresca não se detinha em lateralidades, pelo contrário, seguiam o compasso materno numa devoção incondicional, percebi-lhe, apesar do segundo andar, do passo ligeiro, uma nuvem a caminhar pela face, até que uma esquina os subtraiu do possível que eu já não olho, fiquei suspenso do há pouco, havia nela qualquer coisa que me fazia lembrar de mim, e os miúdos, passos de meninice guiados por uma nuvem sobre uma face, há coisas que não pedem licença para entrar na nossa atenção, geralmente é o que nos falta, apesar do sol na rua convidar a mundos, persisto na compreensão de uma nuvem que se detém sobre uma face, regresso ao leito de onde me levantara não há assim tanto, de novo, a ideia de que havia nela qualquer coisa que me fazia lembrar de mim, olho-me em vez de olhar, é o mais frequente, mas nós sempre na desatenção de nos fugirmos, eu a remar pelo inverso, a procurar a memória que ela me despertara, talvez aí chegado aporte na compreensão de qualquer coisa, voltei a vê-los uns dias depois, uma vez mais, numa tarde de sol, do quarto que alugara, num segundo andar, naquela travessa da cidade, peguei no casaco e desci, porém, assim que um pé no passeio, nem vestígios de um quadro familiar a céu aberto, à minha volta apenas passos anónimos, nada mais, soube, mais tarde, a génese daquela nuvem que insistia em caminhar por uma face, há sempre uma voz à procura de um ouvido atento, nem tive de ir assim tão longe, bastou-me a minha senhoria, pródiga em enredos de paredes alheias, talvez julgue que, desse modo, silencie os seus, em verdade, uma prática cansada, certo dia, uma jovem que trabalhava como criada numa pensão, percebeu amanhãs diferentes quando se cruzou, na escada, com um jovem embarcadiço, de sotaque espanholado, ele também não ficou indiferente aquela candura que aprendia a soletrar amor, começaram por um gelado na praça, uma matiné num Domingo, o primeiro aproximar de lábios, dias depois, ela a acompanhá-lo ao porto, a assistir esmagada à sua partida, ele a sossegá-la, oito semanas passam rápido, para ela, soaram a eternidade, num Sábado de manhã, uma hora antes do previsto, já ela contemplava o zénite marítimo, nem se apercebeu do lento regresso do cargueiro, de o procurar com avidez no meio daquela rudeza que suspirava por terra, de correr para ele, de o abraçar, daquele sotaque espanholado lhe segredar que a amava, de facto, os amanhãs seriam irremediavelmente diferentes, quando regressou a si, estava no quarto que ele geralmente ocupava na pensão, as portadas semi-fechadas conferiam uma recatada luminosidade, conheceram-se por inteiro nessa tarde, já suspiros ecoavam pelo quarto e ela em lágrimas ao destino no pânico de o perder, muitas vezes regressou ela ao cais, o único sal que conheceu advinha-lhe do sentir e desenhava-se-lhe no rosto, até que, muito tempo depois, numa tarde, no meio daquela rudeza que suspirava por terra, ele a não aparecer, ela gritou, gritou, e gritou o seu nome, como eco, no fim de tudo, apenas o marulhar das águas e o aviso salgado das gaivotas, ela ladeada dos filhos, um em cada mão, a rapariga aí pelos seis, o rapaz mais novo dois ou três anos, a olhar as luzes da cidade numa forma líquida, diante de si, o cais, agora, já deserto, antes de regressar, ainda perguntou na portaria por uma carta, um recado, percebeu, pela expressão do homem, atrás dos vidros, que aquela era uma pergunta, por aqueles lados, extenuada, o sujeito limitou-se a um movimento horizontal do rosto acompanhado por um longo suspiro, à vista daqueles rostos que a ladeavam, cedo se lhes apresentou a noite, claro que, findo o relato, a minha senhoria procurou saber do meu interesse, esquivei-me como pude, posso apenas adiantar que, neste momento, ela vem ao meu encontro, ladeada dos filhos, um em cada mão, a rapariga aí pelos doze, o rapaz mais novo dois ou três anos, cada um já escreve o seu nome com o meu apelido, aguardo-os à entrada da nossa casa, numa vila do interior, é verdade, escolhemos um lugar onde não houvesse cais, o aviso salgado das gaivotas, e onde nuvens não caminhem pela face.