Enquanto julgava que aprendia
a viver,
afinal aprendia a morrer.
O
nosso corpo está debaixo do céu,
e o
céu fica debaixo do espírito.
Leonardo
da Vinci
Índice
Nascer………………………………………………………………
Viver…………………………………………………………………
Morrer……………………………………………………………….
Nascer
I
Despertou…
Respirou fundo, não por resignação, mas para se iludir, como se detivesse algum
controle. Como se o acto de inspirar o remetesse para si mesmo, para espaços há
muito conhecidos. Fechou os olhos. Sempre inspirou de olhos fechados. Nunca
soube porquê. Ela ainda dormia. Olhou-a. Sorriu. Sorria ao vê-la dormir. Talvez
por um rosto adormecido ser um rosto sem sombras. O tempo tinha passado. Esta
certeza partia do rosto dos outros, nunca do seu. Com os anos aprendeu a
afastar-se dos espelhos. Costumava afirmar que cada um nasce com a idade que
tem. Agradava-lhe esta ideia. Sempre quis crescer depressa, mas envelhecer
devagar. Agora já nada queria… Decidiu levantar-se. A urgência das manhãs
sempre o irritou. Tinha um despertar difícil, desconfiava daqueles que cantavam
de manhã. Deixou-a dormir. Saiu do quarto. De repente, aquele estranho e
obcecante pensamento assaltou-o de novo. Encostou-se à parede. Nesses momentos,
que sucediam cada vez com maior frequência, precisava de um apoio. Ali ficou,
ainda uns minutos, no corredor. Por fim, veio à superfície, abriu os olhos,
ainda sem qualquer decisão.
Hoje
era dia de ir para o centro telefónico. Desde que se reformara, três vezes por
semana, fazia voluntariado numa dessas linhas telefónicas de ajuda ao próximo.
No fundo, a ajuda era para ele. Tinha perfeita noção disso. Nunca o confessou a
ninguém, não precisava, sobretudo aos próximos. Convivia mal com a desocupação.
Era como estar excluído de qualquer coisa de grande significado. Embora não
soubesse o quê. Algo ditava, no seu íntimo, que devia ser parte integrante
desse contínuo movimento. E ele ainda sentia este frémito bem vivo em si.
Ela
encontrou-o já de saída.
- Não me acordaste?
- Dormias tão bem.
- Vais ao jornal?
- Sim. Queres alguma coisa da rua?
- Não. (Beijou-a na testa e
saiu)
O espanto das manhãs há muito não lhes
pertencia. Mantinham a ternura, talvez por uma questão de disciplina, para se
obrigarem a relembrar que já houve algo mais. Dirigiu-se ao quiosque habitual.
Cumprimentou o sr. Acácio e ficou a examinar as parangonas. Trocou meia dúzia
de frases feitas.
- Então sotôr, que me diz desta crise?
- É uma miséria…
- O problema é que pagam sempre os mesmos!
Já viu isto?! Anda aqui um homem a esfalfar-se uma vida inteira!
- É uma tristeza! Anda meio mundo a
enganar meio mundo.
- Não me diga nada! Não me diga nada! Qualquer
dia trabalho para aquecer.
- E a sua senhora? Está melhor?
- Lá vai andando, lá vai andando,
coitadinha… Sabe como é, chega-se a estas idades, e não há nada a fazer, apenas
continuar a enganar a morte. Não sabemos é por quanto tempo a conseguimos
enganar.
- É bem verdade, meu caro amigo.
Acabou
por comprar o jornal de sempre, e regressou. Irritava-o o uso de chavões. Sempre
quis ser original, mas foi-se apercebendo de que a sua demanda pela originalidade,
com o tempo, o empurrou para a mais quotidiana das banalidades. No fundo, não
conseguia falar de outra forma nas situações do dia-a-dia, e sem a companhia do
infeliz e usual encolher de ombros, a servir de moldura. O que se passava
consigo? Não era carência de vocabulário, seguramente. A sua vida sempre se
centrou nos livros. Teve o sonho de ser escritor, que foi sendo adiado, pelas
mais diversas razões (família, trabalho, dinheiro, problemas…) Ele tentara
escrever alguma coisa em tempos, mas teve consciência de que faltava qualquer
coisa. Ao dar-se o confronto entre a mão e a folha, soube-o logo: faltava tudo!
A distância entre o que pretendia verter no papel, e o que a sua caligrafia revelava,
derrotou-o. Amargou-o. Abalou o seu eu,
mas não a sua vaidade. Porque a vaidade é sempre uma projecção exterior, e esta
derrota viveu-a em domínios muito subcutâneos. Nunca o confessou a ninguém.
Reconfortou-se no facto do seu fracasso provir de uma carência de imaginação.
Havia algum fundo de verdade nisto. Ele manejava bem a pena. Era um facto. Mas
concluiu que, se a sua imaginação era estéril, então não tinha experienciado o
suficiente. Entrava na fase da divagação. Reviu a biografia dos seus autores
preferidos. Estabeleceu comparações. É incrível a incapacidade humana de
enfrentar a verdade à primeira. Esta crise ainda durou alguns meses. Nunca a tentou
partilhar. Muito menos com a mulher. Havia que manter as aparências, e o
casamento sempre foi o tabuleiro ideal para este jogo. Não lidava bem com a
fraqueza. Era algo que lhe custava a aceitar, sobretudo a de carácter. E ao
confrontar-se com esta incapacidade, de materializar um sempre adiado sonho de
meninice, no fim, teve de se limitar a acolhê-la em si. Mas isto já foi há uns
anos.
Hoje havia
qualquer outra coisa que o incomodava. Como que uma desistência, uma
capitulação interior, uma conformação. Já muito antes da reforma, notou em si,
por volta dos quarenta, um abrandar das suas convicções. Na altura estranhou,
mas achou que era fadiga, excesso de trabalho. Estava certo, só que era apenas
o início do cansaço…
Sempre
sentiu, quando estava na presença das suas velhas tias, que estas possuíam uma
máquina futurista do tempo. Fascinava-o a velocidade com que se deslocavam nas
suas viagens espácio-temporais, com descrições pormenorizadas de lugares e
pessoas que a sua mente logo remetia para o domínio do lendário, ao mesmo tempo
que evidenciavam uma notável dificuldade para se levantar do lugar onde
estavam. Em regra, ao se evocar uma pessoa, surge-nos a sua face. No caso das suas
tias, a face fazia-se acompanhar das mãos. Sempre que falava com a mais velha,
pouco ouvia, perdido que estava com as suas mãos. E era fácil aí perder-se, naquele
labirinto de veias e sulcos. Imaginava os anos que foram necessários à
edificação daquele labirinto. As gerações que nele trabalharam, o arrojo da
construção, o esforço, as alegrias, as derrotas… Eram mãos com sabedoria, dizia para si, enquanto as olhava. Como se
esta qualidade pudesse ser aplicável a uma extensão do corpo. De alguma forma,
ele sabia que aquelas mãos eram sábias. Por vezes, quando a velha se
silenciava, as mãos exprimiam-se no seu lugar: Meu filho, meu filho, estou cansada, tão cansada. Já não espero nada, e
não há nada pior que isto.
Foi
mais ou menos por esta altura, que começou a compreender o que diziam as mãos
da sua velha tia. Ele também começava a deixar de esperar…
Regressou
a casa. Ao rodar a chave na porta do prédio, observou uma vez mais as cortinas
da marquise do rés-do-chão a esvoaçarem. Porque seria que, em cada rés-do-chão,
vivia um potencial espião?, questionava-se ele. Era uma situação que o
irritava. Sempre foi muito cioso da sua privacidade, sobretudo com estranhos.
Com os amigos era mais expansivo, mas com os anos foi alargando as margens
entre o que dizia e o que ficava por dizer.
Encontrou
a sua mulher ao telefone. Questionou-se: quem terá nascido primeiro, a mulher
ou o telefone? Virou costas, dirigiu-se para a sala, e sentou-se, de perna
traçada, a ler o jornal. Geralmente, ao sentar-se, sem saber muito bem porquê,
cruzava de imediato a perna direita sobre a esquerda. Espantava-se com estes
aparentes pequenos nadas. Mas não por muito tempo, sorria, questionava-se, mas
de imediato seguia em frente, e logo a sua atenção iria prender-se em qualquer
outra coisa. Nunca procurou aprofundar muito as coisas. Cansava-o a secura das
questões, sobretudo aquelas que originavam ainda mais questões. Era um homem
pragmático. Embora centrasse o seu pragmatismo numa das suas principais
preocupações: a sua imagem. E, neste particular, podia descansar: transmitia
aos outros a imagem desejada: a de um homem compenetrado, reflexivo, no fundo,
a de alguém que se encontra numa posição elevada face aos demais. Este estatuto
deliciava-o. Formou-se em direito às expensas das tias paternas, duas
solteironas que viveram sempre juntas, entretanto já falecidas, tendo ainda
herdado o que estas juntaram em vida. Ficou órfão muito cedo. Não guarda quaisquer
memórias dos seus pais. Só os conhece das poucas fotografias que as tias
guardavam. Um casal sorridente, claramente vestido para a fotografia. Mas, para
si, nada eram. As tias diziam: Olha os
teus pais… E ele interrogava-se
onde, ao mesmo tempo que buscava naquela imagem um vestígio de emoção sua. Não
conseguia. A cena repetiu-se várias vezes, porque ele, desde muito cedo,
procurou alicerçar a sua imagem, e aqui a intuição ditava-lhe que procurasse e
mostrasse comoção ao contemplar os progenitores desaparecidos. Nas suas
funduras irradiava uma certeza: estou a olhar para dois estranhos que nada me
dizem. Nunca confessou isto a ninguém. Também nunca sentiu necessidade.
O
facto de, desde muito cedo, ter ido para o seminário, ajudou a superar eventuais
choques. Sobretudo o de conviver com os pais dos outros. Uma das piores coisas
da vida é quando nos colocam face ao espelho das nossas mais profundas feridas.
Mas a sua entrada no seminário deveu-se, não a este, mas a outros factores. Um
dos quais é muito curioso: ele, em criança, queria ser padre. As tias não se
opuseram a esta ideia. Muito pelo contrário: tinha assegurado casa, sustento, e
mulher. Mas o que o levou a alimentar este desejo? Hoje, ao olhar para trás,
acredita que partiu da ausência da figura paterna, que se virou para deus como
substituto do pai que nunca conheceu. No fundo, a sua vida estava rodeada de
mulheres, as tias, as amigas das tias, as empregadas… Carecia de um contrapeso
a tanto feminino: encontrou-o na primeira vez em que rezou o pai nosso… Deus constituiu um refúgio
sedutor. Encontrava-o sobretudo no silêncio sagrado das igrejas. Ainda hoje,
nas raras ocasiões em que entra numa igreja, é para inspirar aquela melodia de
pedra. Sentia qualquer coisa de dialogante nesse silêncio, um diálogo de
apaziguamento, no fundo, tratava-se de reiniciar uma conversa algures
interrompida.
Recordava
o seminário não com saudade, mas com gratidão. Tinha-o manuseado das
ferramentas essenciais para enfrentar a vida: disciplina, espírito de
sacrifício, e um muito razoável suporte cultural.
A sua
actualização mediática foi interrompida com a sonora chegada da mulher. Começou
a reflectir se, em algum ponto do mundo, haveria uma mulher silenciosa.
Entretanto a mulher questionava-o:
- Sabes quem era ao telefone?
- Não. (Como se isso algum
dia o interessasse)
- Era a minha prima Chiquinha. Vem cá
passar uns dias. Chega sábado. Não faças essa cara! Até simpatizas com ela, que
eu sei. Pareceu-me mais animada. Está menos chata. Olha, vai vender a casa
deles, e diz que vai comprar um apartamentozito. Diz que já não aguenta viver
naquela casa tão grande. Ainda por cima agora! Vive sepultada em recordações.
Pareceu-me que também se quer livrar de algumas coisas, certamente para fazer
algum, também lhe deve dar jeito…
Mais
ou menos por esta altura, ele deixava de a ouvir. E ela falava, falava, falava,
coisas que estavam nos antípodas dos seus interesses, mas por uma questão de
respeito, mantinha um ar interessado e respondia com monossílabos ou
limitava-se a anuir. Às vezes pensava no porquê de ter que levar com estes
filmes. Porquê? Qual a razão? Seria alguma maldição profética para o género
masculino? Continuava a fingir ouvi-la. Era dose. De vez em quando, a sua
cabeça cambaleava para as páginas do jornal abertas à sua frente. Logo era
chamado à pedra: Não me estás a ouvir?
De novo lhe prestava atenção, com o ar de culpabilidade com que enfrentava os
professores quando era apanhado a sonhar com intervalos sempre adiados. Só que
uma vez mais, a sua total desatenção à matéria era mais que evidente, ao ser
confrontado com a tradicional questão síntese: O que é que achas? Mas a experiência é a mãe da sabedoria, segundo
alguns, e ele respondia com um afago ao ego feminino dela: Fica ao teu critério, minha querida, fica ao teu critério. Acabava
por passar sempre no exame.
Saíram
para almoçar. Tinham cerca de três ou quatro restaurantes a que iam com
frequência. Nos últimos tempos, era ela que guiava. Ele perdeu, com os anos, a
paciência para isso. O seu problema com a condução, ao contrário dos outros, é
que com a idade guiava cada vez mais depressa. E confrontava-se com um número
crescente de viaturas tripuladas por azémolas. Perdeu a conta, com o tempo, aos
gastos no arranjo de buzinas. Chegou a aumentar a medicação, no sentido de se
controlar ao volante. Costumava afirmar que havia povos que não eram destinados
ao uso de automóveis: aí os portugueses lideravam. Mas a sua relação com a
estrada continuava conturbada, se atendermos aos constantes reparos feitos à
marcha da mulher. A idade ensinou-a a sorrir. Ele, com a idade, aprendeu a
respeitar o esforço daquele sorriso.
Hoje
escolheram o restaurante do sr. Amândio. Sentiam-se lá muito bem. A boa comida
e o ambiente acolhedor em muito contribuíam. No entanto, desde o desaparecimento
do sr. Arlindo ficou um vestígio de ausência no ar. O sr. Arlindo foi um
assíduo cliente, almoço e jantar, após ter enviuvado, durante sete anos. Não
tinha mais ninguém no mundo. Falava-se de um irmão, mas nada ao certo. Desde a
viuvez, convertera-se à deusa da desconfiança. A mulher era o seu farol. No
fundo, todas o são. O homem sempre foi mais carente da mulher. E de sexo forte
estamos conversados. Morava na porta ao lado. O restaurante passou a ser a sua
sala de estar. Todos lhe tinham apreço, embora fosse a compaixão que os forçava
a acolhê-lo. Por vezes, com notório prejuízo, porque tanto em dias de grande
afluência, como nos outros, jamais se levantava da sua mesa antes da hora de
fecho. Estava sempre a ruminar qualquer coisa. Extinta a sede, afiava-se-lhe a
língua. E, nessas ocasiões, a inconveniência do sr. Arlindo assumia contornos
épicos. Os conselhos dos outros eram logo remetidos para os lavabos mais
próximos. Tinha uma invulgar capacidade crítica: da ementa ao vestuário, dos
guardanapos ao lugar da televisão, do excessivo barulho à falta de investimento.
Nada era deixado ao acaso. Chegou a levantar a voz, com os outros clientes,
sobre política e futebol. Daí ao insulto nem um pequeno passo ia. O eficiente
radar dos papagaios, sempre sorridentes e vigilantes, num vai e vem constante,
entre as mesas e a cozinha, estancou outros desenvolvimentos. Mas quando via
crianças, o seu olhar perdia a bagagem dos anos. Brincava com elas, como se
fosse um semelhante. Ainda hoje a sua voz ecoa nos ouvidos dele, quando se lhe
referia ao filho, e proclamava de indicador no ar: Este menino é muito lindo. Este eco provinha da sua mesa, assim que
transpunham a porta. Houve alturas em que se abasteceu mais de líquidos em
detrimento dos sólidos. Muito contribuiu, este modo de vida, para a derradeira vertigem
que o precipitou das escadas. O sr. Amândio não gostou de ver dois estranhos a
ocupar a sua mesa. Mandou um dos papagaios chamá-lo. Após muita insistência,
sem qualquer eco do interior da casa, usaram a chave que lhes tinha sido
confiada. Resistiu apenas mais sete dias à queda e à factura dos anos de álcool.
Quem o conhecia bem, sentiu a sua partida. Eles foram dos poucos que
presenciaram o seu reencontro com a mulher. Agora, finalmente, estão juntos no
leito da eternidade. E o ruminar do sr. Arlindo certamente cessou.
O sr. Amândio, ao contrário dos dois papagaios,
sempre os cumprimentou timidamente. Nunca souberam porquê. Uma vez que outros
eram contemplados com efusivas conversas. Ele atribuía isso à escassez de
temas, e à sua evidente inépcia para falar do tempo. Chegou, uma vez, a
questionar-se sobre o porquê de cada português ser um meteorologista. Acabavam
por falar mais com os papagaios, sobretudo de bola. Tema sempre recorrente nas
conversas masculinas. Ela colocava, nestas ocasiões, um rosto indulgente. De
futebol, ele gostava. Discutia com a autoridade de quem sabe da coisa. Os
papagaios e o sr. Amândio eram de um clube rival. Chegou a haver apostas. Ele
desconfiava de que a timidez do sr. Amândio se devia também a uma antiga e mal
resolvida querela futebolística. Pasmava-se com o efeito do futebol nas relações
das pessoas. Tinha consciência de que ele próprio se entusiasmava, mas sempre
se considerou justo nas suas análises. Nunca compreendeu que a justiça é sempre
um ponto de vista.
Quando
ela olhava para aquelas discussões, com o devido distanciamento feminino,
pensava: basta evocar a bola, que as máscaras dos homens caem. Uma vez, numa
discussão, ele disse-lhe: Se queremos as
mulheres caladas, basta pôr a telenovela; ela retorquiu: E a vocês, basta pôr futebol. Ele ficou
sem resposta. A mulher disparava rápido e geralmente certeiro. Ele admirava-a.
Para amar não se pode perder essa dimensão. Ele sabia-o. Hoje, como muitas
vezes, olhava-a de longe, enquanto ela debitava algo. Mas o seu olhar distante
centrava-se nos recantos do rosto dela. Ele sorria ternura. Ela continuava a
falar. Ele continuava a sorrir, de uma felicidade inexprimível, pelo simples
facto daquele rosto despertar o que de melhor havia em si. Ela, apesar da idade,
ainda irradiava alguma luz.
II
Conheceram-se
numa vila próxima do litoral alentejano há 38 anos. Ele tinha sido lá colocado,
após terminar o curso, no tribunal. Nunca ali estivera anteriormente. Nem
sequer ouvira falar. Fez a viagem, que durou cinco horas, de camioneta
(cor-de-laranja, da rodoviária nacional). Perdeu a conta às vezes em que parou.
Ficou surpreendido pela beleza da vila: branca,
limpa e arranjada, assim a descreveu na primeira carta às tias. Não se pode
falar de uma adaptação difícil. Embora tivesse que passar pelos ritos
iniciáticos, comuns ao acolhimento em qualquer sociedade. Tinha uma forma de
ser discreta e era cordial no trato, dois factores de sucesso para um meio
acanhado. Morou numa pequena casa, facultada pelas suas funções, a cem metros
do tribunal. Notou que os locais eram reservados. O seu olhar emanava
desconfiança face aos de fora. Teve algumas dificuldades em consolidar
amizades. Mas só os tolos é que falam em amigos com facilidade. Daí que os
fins-de-semana fossem encarados como gólgotas que surgiam no calendário. Foi
mais ou menos por esta altura, que nasceu o seu interesse pela arqueologia.
Sempre preferiu, ao longo da sua vida, olhar para trás. Talvez com receio do
que pudesse vir. Começou a evadir-se para os montes, durante as tardes de
fim-de-semana, porque a vila misteriosamente ficava desértica, com excepção dos
fontanários de álcool. Aquela região era fértil em ecos do passado. O que
começou como simples curiosidade, rapidamente ganhou contornos de paixão, que
manteve acesa ao longo da vida.
Os
primeiros meses assim decorreram. Firmou amizade com o pároco local. Era um dos
assíduos frequentadores da cerimónia domingueira. Reparou ser também o mais
novo. As beatas de cabeça prateada olhavam-no com curiosidade, como se ali
estivesse para expiar alguma culpa. A educação seminarista acompanhou-o até ao
fim da vida. Daí a consequente obediência aos ritos impostos. Não se pode dizer,
em abono da verdade, se era movido por uma fezada ou por uma verdadeira fé. O
pároco acabou por convidá-lo várias vezes para almoçar, ao saber que podiam ter
sido colegas de profissão. Ambos, à sua maneira, careciam de diálogo. Foi o
início de algo muito raro: de uma amizade. Ainda hoje lhe escreve. Actualmente,
está para os lados de Chaves. Recorda nitidamente uma das suas primeiras
conversas, porque foi um dos raros homens a verdadeiramente compreendê-lo.
Estavam sentados na esplanada do café onde almoçavam, a primavera estava nos
seus alvores, os imigrantes alados do sul rodopiavam num estridente frenesim
sobre as suas cabeças a depositar as suas bagagens nos telhados, após mais uma
odisseia sazonal.
- Você ainda não se adaptou muito bem a
isto, pois não?
- Acho que nunca me vou adaptar.
- Tenha calma. Ainda está cá há pouco
tempo. Isto tem as suas vantagens…
- Desculpe lá, mas não me venha falar dos
benefícios do campo. Já vi aqui mais promiscuidade…
- Fale mais baixo!
- Se não precisasse do ordenado para
viver, metia-me na primeira camioneta.
- Ouça, compreendo-o perfeitamente. Julga
que para mim foi fácil?
- Mas você parece parte da mobília.
- Agora!
- Também se sentiu deslocado?
- Acho que volta e meia, todos nos
sentimos assim, seja onde for. A menos que…
- Não puxe para aqui a Teologia!
- Estou a puxar por outra teologia.
- Estou longe!
- Ó homem, você precisa de uma mulher. Aí,
sim, deixará de se sentir deslocado. As mulheres têm esse dom: adormecem-nos as
pernas.
- Bom, você parece um catedrático a falar
do assunto. Se a tribo das papa-hóstias o ouve falar assim, temos na páscoa uma
paixão ao vivo e a cores.
- Fale mais baixo.
- Está bem…
- Está a ruminar o que lhe disse?
- Talvez…
- Sabe, a solidão nunca fez acelerar o
passo de ninguém no regresso a casa.
- E é o Senhor que acelera os seus?
- Não seja orgulhoso, você sabe que eu
tenho razão. Estou, sinceramente, preocupado consigo. Deixe os meus regressos
para depois. Você precisa de uma mulher. E estou a falar de casamento!
- Você não faz a coisa por menos! É logo
com compromisso para o resto da vida!
- Estou a falar para o seu bem. Em todo o
lado precisamos de uma âncora, que nos agarre. E aqui mais ainda. Isto não é
mau de todo. Mas, sabe, já vi muita coisa… Um dos perigos desta região é que as
árvores são baixas. É fácil trepá-las, e é comum ficar-se pendurado nos seus
ramos. É a falta de uma âncora, meu amigo, é a falta de uma âncora, seja ela
qual for, mas que nos agarre à terra.
Estas
palavras acompanharam os seus passos durante dias. O seu amigo tinha razão.
Nunca tinha pensado nestes termos. Quer dizer, muito longinquamente, já tinha
pensado em casamento. Mas em materializar a ideia? Desde criança, a timidez foi
sua senhora. Mas tinha aquilo a que se pode chamar uma timidez dissimulada: ou
seja, era alguém que não parecia padecer desse mal. O seu farto contacto com o sexo feminino pós-menopausa, em
nada contribuiu para apurar o seu conhecimento face à faixa etária que lhe
interessava. Embora alto para a sua geração, não era homem que prendesse por
muitos segundos um olhar feminino. Tinha um rosto vulgar, uma cintura de quatro
meses, e emanava uma indolência que profetizava rotina no lugar de paixão.
Teria a sua quota de mercado. Não se esforçou muito para a encontrar. Mas
acabou por suceder mais cedo do que a sua timidez permitia. E caindo a timidez,
os sonhos tornam-se tangíveis. Não que ele fosse um grande sonhador, mas
cultivava as suas ambições. E o seu maior obstáculo residia na memória: que
mantinha os dias pardacentos de seminário bem presentes. Os fantasmas de Eva,
Dalila, Salomé, entre outras, haviam contribuído sobremaneira para alimentar os
seus mais profundos temores face ao desconhecido continente feminino. Mas não
por muito tempo. As palavras do amigo ajudaram-no a despertar. Em breve
descobriria que há algo capaz de fundir a carne e o espírito: o amor. Mas aí já
era tarde: era sinal que tinha embarcado na maior odisseia da humanidade.
No
decorrer da sua estadia acabou por se familiarizar com os rostos locais. O
sentido incómodo inicial acabou por dar lugar a uma anestesia generalizada,
face a tantos olhos pregados em si. O cargo no tribunal também ajudou na sua
afirmação. Sempre era o sotôr, algo de relevante na cultura do rectângulo luso.
Não fosse esse o país dos doutores. Foi no decorrer do rito dominical que
reparou nela pela primeira vez. Era um rosto desconhecido. Isso chamou a sua
atenção, mas não prendeu o seu olhar. Foi qualquer outra coisa que o fez
regressar incontáveis vezes a memorizar o seu perfil. Estava sentada duas filas
à sua frente. Parecia estar acompanhada dos pais. Não se podia afirmar que
fosse bonita. Nem vistosa. Era de estatura baixa, morena, de cabelo curto. Tinha
um rosto simpático, onde se vislumbrava uma solicitude atenta aos outros
emoldurada num recato muito pessoal. Vestia-se com discrição, mas piscava o
olho às modas. Segurava o missal com reverência. O seu olhar fixava-se apenas
no altar. Como se ali estivesse apenas o sacerdote. Foi essa alienação
sacralizante que o despertou. Ela vivia o rito com uma intensidade que ele
jamais experimentou. Houve inveja e admiração nele. O que mais o fascinou foi a
distância a que ela parecia estar. Parecia um prolongamento do próprio sagrado.
Não soube como explicá-lo, mas teve a súbita certeza de que seria alguém que o
compreenderia. Queria apresentar-se, sentar-se com ela numa esplanada e falar,
falar, dar-se a conhecer, porque sentia já conhecê-la, talvez de outro tempo e
de outro lugar. Por outras palavras: apaixonou-se. Entrou na primária dos
afectos. Ainda teve oportunidade de sentir a primeira arritmia, ao vê-la de
perto, durante a saída. Nada voltaria a ser como dantes. Era irreversível.
Aguardou pelo seu amigo à entrada do templo. Pela primeira vez, não havia
vestígios de indolência naquele homem. O padre António deteve-se a observá-lo
da nave central. Havia algo de diferente, não soube logo defini-lo. Estava
irrequieto. Já não se assemelhava a alguém que espera pela vida. Muito pelo
contrário, parecia em pânico por vê-la fugir-lhe.
- Está com fome?
- Não, não…
- Houve alguma coisa?
- Não! Porque pergunta?
- Por nada. Mas você parece crispado.
- Lá está você a ver coisas!
- Se o diz…
Enquanto
caminhavam para o almoço mudaram de assunto. Reduziram imperceptivelmente a
cadência do passo. Ambos apreciavam a evidência das coisas sob aquela luz do
sul. Mas havia coisas cuja evidência teria o seu tempo. O padre António era
ligeiramente mais baixo do que ele, via-se que era muito cuidadoso com a aparência,
tinha uma magreza elástica, fruto da sua paixão pelo desporto. Era apaixonado
por futebol, e desde que ali estava, tinha-se iniciado nas artes da canoagem.
Gostava de competição. Talvez para contrabalançar a sua retórica generalizada
de o último será o primeiro.
Sentaram-se na esplanada do restaurante do costume. Ele gostava de ali almoçar.
Era um local movimentado, ajudava-o a passar despercebido. Situava-se na parte
baixa da vila, próximo do rio. Este tinha a sua foz a cerca de vinte e cinco
quilómetros. Ele já tinha manifestado curiosidade em conhecer a povoação que
assiste diariamente ao abraço final. O amigo António ofereceu-se para o
acompanhar. No entanto, ele hoje ansiava por outros abraços.
- Desculpe voltar à carga. Mas passou-se
alguma coisa?
- O que é que se pode passar neste fim do
mundo?
- Acredite numa coisa, neste fim do mundo
ou noutro qualquer passa-se sempre muita coisa. Basta ter os olhos bem abertos.
- Você nem disso precisa. Chega-lhe a sua
patrulha de alcoviteiras. Deve pagar-lhes à hóstia.
- Não seja irónico. Não é de agora, mas
noto em si uma certa animosidade com os assuntos religiosos.
- Digamos, que cresci.
- Cresceu em que sentido? Refinou a
ironia?
- Irónico está a ser você. Compreendeu
perfeitamente o que eu quis dizer.
- Sinceramente, não. Desculpe a minha
franqueza, mas, apesar de não falhar um domingo, há uma acrimonia que não
consegue disfarçar.
- Não ligue. É a minha maneira de ser.
Desculpe se o ofendi, de alguma forma.
- Não ofendeu nada, homem. Apenas gostaria
de o compreender melhor. O que o move a ir à missa.
- Quer que seja sincero? São duas coisas:
o hábito e a solidão.
- Não me espanta. São quase sempre os
motivos de toda a gente.
- Está desiludido?
- Não, não, de forma alguma. Muito pelo
contrário, aprecio a sua sinceridade. Não julgue que eu ainda alimento a ideia
de mudar o mundo. Mudei desde que saí do seminário. Já vi o meu quinhão de
realidade. Ao contrário dele, quero morrer velho e de preferência na minha
cama.
- Não acredita naquilo que vende?
- Não é uma questão de acreditar, é uma
questão de passar a imagem que se acredita.
- Não é a mesma coisa?
- Claro que não. Sabe, há trabalhos em que
aquilo que mais conta é a representação.
- Então, os meus parabéns. Você é um
óptimo actor.
- Não seja depreciativo. Hoje em dia o meu
deus é a dúvida.
- Um pouco tarde, não lhe parece?
- Não, não me parece. Sou um homem a quem
o tempo deu mais questões que respostas.
- E isso não acontece com todos?
- Não! Só com aqueles que se riem pouco.
Ele
também não se ria muito. E compreendeu na perfeição aquilo que o amigo
procurava transmitir. Esta e outras conversas contribuíram para firmar, ainda
mais, a sua amizade com o padre António. Declinaram o tratamento por você. O
nível de intimidade exigia a segunda pessoa do singular. António acabou por se
deixar seduzir pelas pegadas da história. Aos fins-de-semana passou a
acompanhá-lo nas suas incursões em busca dos ecos do passado. Alertou-o, desde
logo, que o faria enquanto não chegasse o Verão. Aconselhou-o a desistir nessa
altura. Não fosse ele tornar-se também um vestígio. A dinamização do museu
local foi uma consequência óbvia desta actividade. Crescia o seu protagonismo
na povoação. Ainda não era um deles, nunca o seria, mas já o acolhiam com
alguma familiaridade. O seu carácter pragmático sempre lhe ditou a ocupação da
mente. No fundo, tratava-se de algo bem mais simples: era a voz do instinto de
sobrevivência. Sabia que a desocupação alimentava os vícios. E ele procurava o
lado oposto da existência, ou seja, o da vida.
Ela
estava de férias com a família. Apenas pais e irmão mais velho. Tinham-se
alojado numa das poucas pensões da terra. Reviu-a no jardim da vila, sentada
num banco de madeira, a saborear um gelado. Ele vinha do museu com António, que
parou logo para cumprimentá-la.
- Boa tarde. Então, de novo por cá?
- Boa tarde
(Enquanto se levantava e mudava o gelado de mão). Chegámos anteontem.
- Sim, eu vi-os na eucaristia. Como estão
os seus pais?
- Estão bonzinhos. Sabe como é, a idade
não perdoa.
- E o seu irmão?
- Está bom. Prepare-se que um dia destes
tem de celebrar casamento.
- Ai sim! Mas isso é uma grande novidade!
Desde quando namora?
- Para aí há uns oito meses. Ela é lá, de
Lisboa.
- Grandes novidades desde o ano passado.
Diga ao seu irmão, que espero que o casamento seja aqui. (E
não foi por acaso que António, neste ponto, mudou o rumo da conversa. Desde que
ali estavam, reparou que o característico olhar do seu amigo, como que alheado
de tudo, se dissipara. Envergava, agora, o olhar estarrecido de um assíduo
frequentador de museus. António reparou que ela também evidenciava curiosidade
pelo estranho que o acompanhava. Os anos de experiência com as diferentes
nuances da natureza humana, dotaram-no de uma intuição invulgar, o que lhe
permitia desvelar, com facilidade, as máscaras da circunstância.) Desculpem, nem vos apresentei. Que
esquecimento! Este é o dr. Francisco. Esta é a menina Maria Luísa
(Cumprimentaram-se com as equivalentes doses de curiosidade e timidez).
M.
Luísa – Está a gostar de cá viver?
Francisco
– Não é uma questão de gostar, mas de ter
de ser.
António
– Está a gostar sim senhor, até já tem um
clube de arqueologia.
M.
Luísa – Mas que interessante. Cheguei a
pensar em tirar História, mas depois do piano, os meus pais quiseram
arrastar-me para o Francês. Mas aí fiz finca-pé. Francês não quero! A ser um
curso de línguas, ao menos que seja eu a escolher. Optei por Inglês, dizem que
é a língua do futuro.
Francisco
– Também já ouvi isso. Em que ano está?
M.
Luísa – Estou no segundo.
Francisco
– Está a gostar?
M.
Luísa – Não sei.
Francisco
– Desculpe?!
M.
Luísa – Não sei, de facto. É como se…
Ainda é tudo muito novo para mim. Acho que, só no final, é que poderei dizer se
gostei ou não.
Francisco
– Pois…
António
– Não te espantes! A Luisinha é assim
mesmo: directa! Acho que foi uma boa opção pelo inglês. O mundo está a ficar
cada vez mais americanizado.
Francisco
– Isso é verdade. Mas falta-lhes o
principal: História e a consequente identidade. Por isso é que pegam em armas
com tanta facilidade.
António
– Pois, pois, mas não macemos a Luisinha
com política.
M.
Luísa – Não é nenhuma maçada. Aliás,
estava a ouvi-lo com muito interesse. (O sinal estava dado e António
apanhou-o ainda à nascença.)
António
– Bom, vou deixá-los, então, a conversar
mais um pouco sobre política. Como sabem, há muito que estou filiado no partido
do Senhor. Por isso, vou visitar uma das minhas ovelhas, que já solicitou a
minha presença por diversas vezes.
Francisco
– Não quer que eu…
António
– Não quero nada. Acompanhe, por favor, a
menina Luisinha a casa.
Não se
pense que Francisco tivesse receio de ficar a sós com Maria Luísa. O seu
receio, pelo contrário, provinha de uma profunda convicção interior de que iria
enfrentar uma jogada de tudo ou nada. O seu amigo oferecera-lhe uma abertura
que não esperava. Francisco inspirou-se naqueles que nem isso têm. Seguiu a sua
intuição, que, acima de tudo, o norteou a ser um bom ouvinte. Em boa hora o
fez. Maria Luísa sempre gostou muito de falar. E tudo era tema de conversa.
Ninguém se aborrecia na sua presença. Tinha aquilo a que uma tia sua denominava
de presença refrescante. Era raro haver constrangimentos junto de si.
Não
regressaram logo. Ainda ficaram algum tempo no jardim. Falaram disto e daquilo.
Cada um procurava arranjar um tema que permitisse tactear um pouco do outro.
Ele evitou demorar-se no espelho da alma de Maria Luísa. Temia perder-se. Ela,
sábia como qualquer mulher, percebeu que o tinha na mão. As mulheres sabem
quando têm um homem na mão, só não sabem como mantê-lo aí por muito tempo.
Ele
acompanhou-a à porta da pensão. Ficou a saber que, havia laços familiares com a
terra, na génese destas férias anuais. Agendaram um gelado para o dia seguinte.
Passou a ser o momento mais importante do dia para Francisco. E também para
Maria Luísa. Só agora é que Francisco começou a percepcionar a idade real das
pedras que tanto o interessavam. Finalmente, tinham passado à história dos seus
interesses. Pelo menos, momentaneamente. Outras arqueologias o moviam. Conheceu
o irmão dela numa noite em que foram ao cinema. Era de estatura baixa, como a
irmã, cordial sem ser muito falador, uma característica que sempre impressionou
muito Francisco. Que quando procurava demonstrar cordialidade, sentia-se
impelido a falar. Francisco admirou-se com o nariz do irmão. Dali não conseguia
tirar os olhos. Não sabia muito bem porquê, mas parecia-lhe nariz de boxeur.
Não que isso o atemorizasse, mas aquele nariz fascinava-o. Sempre achou que o
nariz de um boxeur era uma enciclopédia viva. Ele sabia muito bem que só se
chega às certezas através da dor.
O
cinema da vila era, na realidade, um cine-esplanada, que só funcionava nos
meses de Primavera e Verão. Apenas as cinco últimas filas tinham o privilégio
de uma cobertura. As restantes inspiravam as estrelas. Só nessa noite é que ele
se apercebeu do maravilhamento de um céu sonhador. O dia jamais lhe oferecera
tamanhas possibilidades. O dia cega. A noite pega-nos na mão e convida-nos a
rememorar sonhos sonhados. Daí a sua sedução. Daí o seu temor.
Outros
filmes se seguiram. Maria Luísa sentava-se entre eles. Não costumava falar
durante a projecção, para descontentamento de Francisco. Mas assim que saíam, regressava
ao seu estado habitual, e procedia a uma dissecação minuciosa do filme.
Francisco e o irmão limitavam-se a anuir. Francisco, no entanto, constatava que
os seus pontos de vista, de uma forma geral, coincidiam. Rapidamente, concluiu
que, essa comunhão de perspectivas, não era positiva para alimentar o diálogo.
Após o cinema também não dispunham de muito tempo. A pensão ficava a cerca de
duas centenas de metros. E o irmão fazia questão de lhes fazer companhia
integral. Mesmo à entrada da pensão, enquanto se despediam e suspiravam luares.
Assim
se passaram as férias de Maria Luísa e família, entre cinemas, gelados no
jardim e passeios à beira rio. Francisco lamentava, devido ao seu trabalho,
apenas dedicar-lhe os finais de tarde. Aos fins-de-semana tudo mudava. Foi num fim-de-semana,
que Maria Luísa o convidou para almoçar, que foi apresentado aos pais. Os pais
ficaram encantados com Francisco. Percebeu que, por ali, já era da família. Era
uma família remunerada, tradicional quanto baste, e Francisco foi perspicaz ao
denotar, sobretudo da parte do pai, o emergir de uma vontade latente, e mal
dissimulada, de arrumar os filhos. Francisco, ainda hoje, desconfia que a sua
posição em muito contribuiu para a efusiva hospitalidade dos pais. Não estaria
muito enganado.
Houve
um dia desse Verão a que, ainda hoje, regressa incontáveis vezes. Tinha
agendado com António, há algumas semanas, a visita à povoação da foz. Ambos
prontificaram-se a convidar Maria Luísa e o irmão. O dia chegou. Mas, quando
Francisco chegou junto da estação de camionetas, deparou-se unicamente com
Maria Luísa. Ela explicou-lhe, quanto ao irmão, que o calor alentejano havia
feito a primeira vítima. Francisco lamentou o K.O. do boxeur. Afinal,
bastou-lhe o calor. Quanto a António, a dúvida pela ausência subsistia. Resolveram,
quando chegou a hora, subir para a camioneta. De António, nem sinal. Francisco
compreendeu, de imediato, a astúcia do amigo. Afinal, ele já conhecia aquela
foz há muito. Percebeu, pela conversa, que Maria Luísa também já lá tinha ido.
O que seria natural, devido aos laços familiares com a região. Mas Francisco
observou nela um entusiasmo de estreante. Afinal, ela ia rever, os lugares da infância,
através dos seus olhos.
A
viagem de camioneta decorreu lenta e abanada. Eles não notaram. Ela contava-lhe
histórias de verões passados ao mesmo tempo que o colocava a par da geografia e
história locais. Ele ouvia com interesse, afinal era ali que trabalhava e, no
fundo, as pedras ainda latejavam dentro de si. Quando a camioneta passou a ponte,
vinda de sul, e ele pôde contemplar aquele abraço líquido azul, ficou
extasiado. Não era uma foz, como estava habituado, grandiosa como a da capital.
Esta foz era um espectáculo de azul inesperado, e improvável, após um cansaço
no olhar por tantos campos amarelados pontuados por árvores sedentas.
Custou-lhe a acreditar que estava em pleno Alentejo. Ela reparou no seu
deslumbramento. Desceram da camioneta e passearam pelas ruas da aldeia, embora
tivesse nome de vila. Ela continuou as suas incursões histórico-geográficas. Ele
redobrara o seu interesse, após descobrir mar no Alentejo. Tudo era novo para
ele. E, de certa maneira, para ela também. Ele lamentou não ter trazido fato de
banho, a uma praia deslumbrante e um calor convidativo não costumava resistir.
Mas não tocou nesse assunto. Afinal, era o primeiro passeio com Maria Luísa.
Haveria tempo para ver o resto…
Almoçaram
num restaurantezito perto da praia. O cenário convidava ao peixe. A seguir ao
almoço, optaram por usufruir um pouco da maior preciosidade do Alentejo: uma
sombra. Foi neste ponto, em que fruíam o presente, que ela se inclinou para o
futuro.
M.L.
– Pensas em voltar a Lisboa?
F.
– Quando?
M.L.
– Não sei, daqui a uns anos? Ou pensas
ficar cá a viver?
F.
– Não, não, de forma alguma. Eu… Bom, eu
sempre desejei regressar a Lisboa. E, assim que puder, peço transferência. Não
é que desgoste disto, mas estou habituado a outro estilo de vida.
M.L.
– Eu compreendo-te. Esta altura do ano,
para mim, é um desespero. Tirando os dias de praia, que são cada vez menos, à
medida que os meus pais envelhecem, não há nada para fazer, nem ninguém para
falar.
F.
– E o teu irmão?
M.L.
– Não reparaste na guerra silenciosa com
o meu pai? Desde que abandonou o curso de engenharia, para abrir uma oficina, o
ambiente lá em casa vai de mal a pior. Desde aí, ele decidiu ouvir o dobro do
que fala. O meu pai não se conforma, ainda por cima, detesta a namorada dele.
F.
– Porquê?
M.L.
– Pensa que ela teve alguma coisa a ver
com a decisão dele.
F.
– E teve?
M.L.
– Bom, de certa forma sim. Afinal, ele
estava farto de pedir dinheiro ao papá para tudo. E a paixão dele são os
carros. Por isso é que escolheu engenharia, para ver se calava o pai, com a
malfadada conversa do curso superior. Mas os anos passam, e o curso subsiste.
Daí que tenha optado por arranjar a sua independência naquilo que gosta.
F.
– E onde arranjou dinheiro? Desculpa se…
M.L.
– Não há problema. Foi a minha mãe, tem
as suas economias. Atenção, o meu pai não sabe nada disto. Julga que ele pediu
um empréstimo. Sabes, a minha mãe é uma mulher muito sábia. Tem a perfeita
noção de que nós, os filhos, somos de uma massa diferente. Ela costuma dizer
que cada geração tem a sua própria forma de respirar. Daí que opte, no
silêncio, por ajudar-nos a perseguir os sonhos. Mas não fiques com uma ideia
errada do meu pai. Ele é boa pessoa, mas tem aquela mentalidade. Quem julgas
que me aconselhou a ir para o inglês?
F.
– A tua mãe?
M.L.
– Claro! É uma mulher evoluída. Tem a
noção de que o presente é um constante passado, daí que se vire para o futuro.
Ela não gosta muito de vir para cá. Mas também não quer contrariar o meu pai.
Só não quer que ele enterre dinheiro a construir aqui uma casa. Sempre foi o sonho
dele. Enfim! Ela disse-lhe que, enquanto dormir numa pensão, continuará a
acompanhá-lo.
Desde
que ela começara a falar dos pais, Francisco perdera o seu olhar nas lonjuras.
Afinal, que tinha ele para dizer nesta matéria, a não ser dor e mágoa?
M.L.
– Queres saber o que a minha mãe disse de ti?
Francisco
despertou. Mas começava a irritá-lo aquela idolatria de Maria Luísa pela figura
da mãe. Começava a achá-la ligeiramente imatura. Não conseguiu conter, no
entanto, a curiosidade pelo vaticínio materno.
F.
– Já agora.
M.L.
– A minha mãe diz que tu, por enquanto,
és um conservador. E isso deriva de…
F.
– De quê? (Francisco não disfarçou o
incómodo ao proferir a questão)
M.L.
– (Maria Luísa sentiu que era tarde para recuar. Afinal, estavam a conhecer-se.
Se não se entendessem agora, mas valia ficar por ali…) De uma busca de segurança.
F.
– A tua mãe é discípula de Freud?
(Arrependeu-se assim que lançou a questão)
M.L.
– Não é preciso ter lido Freud ou Jung para conhecer a natureza humana.
F.
– Tens razão. Desculpa se…
M.L.
– Eu é que peço desculpa. Talvez tenhamos
ido longe de mais. Mas a minha mãe é mesmo assim. Gosta de observar os pequenos
gestos. Costuma dizer que mais importante que as linhas são as entrelinhas.
Francisco
estava num ponto que, ou ela parava de falar na mãe, ou ele ia-se já embora.
Mas aqui, um gesto irreflexo seu alterou por completo o rumo daquela tarde.
Como se tentasse silenciá-la, pousou a sua mão sobre a dela. Ele sabia que
agora teria de enfrentar o seu olhar. Assim o fez. Ela revelava espanto. Algo o
impeliu à acção, e das falanges aos lábios a espera não foi muito demorada. A
melhor amiga da inexperiência é a lentidão. Ele sabia-o. Nem admitia a hipótese
de ela desconfiar. Beijou-a pausadamente. Ela retribuía, de olhos fechados,
numa ternura harmoniosa. Nunca mais se recordou das palavras trocadas após os
primeiros beijos. Talvez por estarem encobertas pelo manto do embaraço. Só se
recorda, vagamente, do lanche, e da crescente necessidade, sentida desde então,
da presença de Maria Luísa. Da parte dela, parecia ser recíproco. A camioneta
regressava pelo fim da tarde. Aproveitaram para descer novamente à praia. Sentaram-se,
de mãos dadas, e assistiram ao ocaso numa súplica interior de agradecimento e
esperança.
III
Oficializaram
o namoro pouco tempo depois. Tiveram as saudações de todos. Maria Luísa
admirou-se, particularmente, com a do irmão. O boxeur enalteceu a sorte da
irmã, ao evidenciar o futuro cunhado como um homem sério. No fundo, ele
respirou, desde o início, a inexperiência de Francisco. Sabia que quem casa com
a primeira paixão, dificilmente encontra espaço para outras. Por aí, a irmã
estaria salvaguardada de hipotéticos desgostos. Mas a dor caminha a poucos
passos da alegria. As férias familiares terminaram. Maria Luísa teve de
regressar. Prometeram reencontrar-se por altura do natal, porque ele passava
esta quadra em casa das tias. Até lá, a vida de Francisco retomou a pardacenta
monotonia. Embora com uma novidade: a consciência do facto. Não demorou muito a
azedar o seu humor. Daí a considerar invivível a sua existência naquela
localidade demorou pouco. O desespero abraçou-o. Um sábado à tarde, o amigo
António bateu-lhe à porta. Não abriu. Relia, melhor, citava de cor, a última
carta de Maria Luísa. Eram os únicos momentos de sorriso. Nessa noite, talvez
derrotado pela culpa, foi a casa de António. Foi a rapariga da limpeza que lhe
abriu a porta. Estranhou. Mais perplexo ficou ao ver o entusiasmo de António
com o filho desta ao colo. Nunca tinha visto filho tão parecido com o seu pai.
Nada disse. Também não era necessário. Era suficiente o dialogante espanto do
olhar. Sentiu o embaraço de António. Nunca é fácil um desvelamento. Francisco,
por seu turno, ficou indisposto consigo próprio. Talvez pela sua constante
desatenção aos factos mais óbvios da vida. Com o amigo não ficou minimamente
agastado, muito pelo contrário, até compreendia e aceitava. Embora António o
receasse, Francisco nunca aceitou, na sua vida, o absurdo de certos dogmas e,
acima de tudo, os dogmas do absurdo. António convidou-o, de imediato, a sentar-se
e a beber algo. Francisco acedeu. A criança continuava ao colo do pai. Teria
uns três anos. Irradiava a felicidade própria destes momentos de brincadeira
paterna. A mãe olhava embevecida de distância segura. Poucas vezes, ao longo da
sua vida, Francisco terá visto tanta harmonia num lar. A única nota dissonante
era a profissão paterna. Mas ainda bem que este a tinha, pensava Francisco.
António, no entanto, não lhe podia ler os pensamentos. Trivialidades imperaram
no diálogo. Francisco sentiu a inquietude do amigo.
Por
fim, António prontificou-se a acompanhá-lo a casa. Francisco percebeu o sinal.
O amigo precisava mudar de cenário para recuperar a confiança e a autoridade
concedidas pelas suas funções. Enquanto caminhavam, Francisco sentiu como a
noite liberta o espírito, mas agudiza a dor.
A. – Deves achar-me uma fraude.
F. – Porque dizes isso?
A. – É preciso explicitá-lo?
F. – Ama-la?
A. – Que se passa? És o meu confessor? Desculpa…
Eu… Há muito que não era confrontado com a situação.
F. – Já foste?
A. – Sabes, chega-se a um ponto nesta vida, em
que as coisas se tornam tácitas. Não sei se me faço compreender… Quero dizer,
para a nossa coexistência prosseguir pacificamente, cada um tem de saber que
terrenos não pode pisar. Aquilo a que os inexperientes chamam hipocrisia, os
mais avisados chamam de instinto de sobrevivência.
F. – Queres com isso dizer que toda gente aqui
sabe…
A. – Ficarias espantado, se dissesse que sim?
F. – Sinceramente, acho que já nada me espanta!
A. – Desiludi-te?
F. – Não, não é nada disso. Por isso é que te
perguntei se a amas?
A. – Se não a amasse, achas que o Fernandinho
teria vindo?
F. – Queres dizer que…
A. – Sim, é isso mesmo. Tudo começa da mesma
forma, já o deves saber. Quando olhamos à nossa volta, e aquela pessoa brilha
mais que as outras. Eu apaixonei-me. Ela correspondeu. Dura há cinco anos. E
entre vários pontos em comum, havia o desejo de um filho. Agradeço que não
venhas com sermões. Sabes, uma das grandes lições que a vida nos dá, é que não
nascemos feitos. Vamo-nos fazendo.
F. – Mas, eu nem abri a boca… Estou… Realmente,
lembro-me de te dizer, há uns tempos, que falavas com grande à-vontade de
certas temáticas. Mas daí a…
A. – É verdade. Nesse caso, era a voz da
experiência.
F. – Desculpa a questão. Mas, como é que
justificam, enfim, o surgimento da criança?
A. – Para todos os efeitos, a Mila é responsável
pela casa paroquial. Daí a sua presença constante. Quando a gravidez se tornou
demasiado visível, os pais enviaram-na para casa de uns familiares na capital.
Antes do seu regresso com o Fernandinho, alertei, toda a gente, que iria cuidar
de um sobrinho órfão. Ninguém reparou que chegaram ao mesmo tempo. É a questão
tácita, homem.
F. – Pois… E os pais dela, aprovaram desde logo?
A. – Entre alguém com o futuro arranjado, que
conhecem bem, que respeitam, estimado por todos, ou um indivíduo qualquer, de
rumo incerto, capaz de chegar a casa, diariamente, com uma carraspana e
espancar a filha e os netos, quem achas que merece a sua preferência?
F. – Bem, vistas as coisas assim… Também não
careces de retórica. Isso é um facto.
A. – Não é uma questão de retórica. É uma questão
de bom senso. E tu? Morto de saudades da Luisinha?
F. –
(Irritava-se com o uso do diminutivo. Nada disse) Morto, ainda não estou. Mas, sim, sinto a sua falta.
A. – Isso vê-se, homem. É normal. Afinal, estão
nos alvores da paixão. E agora, ainda por cima, a duas centenas de quilómetros
um do outro. É dose! Tens de ter calma. Logo, logo, está aí o natal.
F. – Eu sei, mas… Diz-me uma coisa: como é que
soubeste, desde o início, que nos iríamos entender?
A. – Sabes, é como a electricidade, não se vê mas
sente-se.
Ao
despedir-se, Francisco procurou, no aperto de mão, transmitir-lhe a gratidão
sentida. António, por seu lado, ainda quis acrescentar algo, mas engasgou-se
algures entre a emoção crescente e a imediata necessidade de a refrear.
Viver
IV
Francisco
permaneceu mais três anos na vila alentejana. Durante esse período, ele e Maria
Luísa continuaram a encontrar-se nas férias. Num desses dias, durante um
passeio pelos campos, Francisco e Maria Luísa conheceram-se em plenitude sob a
vertigem da paixão. Ele teve o seu primeiro vislumbre de eternidade. A partir
de então, começou a contar o tempo de uma outra forma. No entanto, esta sua
entrada na adolescência dos afectos, não foi totalmente pacífica. Houve, em si,
espaço para o louvor pela entrega de Maria Luísa. Mas, simultaneamente,
habitavam-no vestígios de desilusão. Afinal, ela era carne e tinha desejos.
Morria a ideia, nascia o barro.
O
tempo e a natureza providenciaram o apaziguamento das suas idiossincrasias. No
final de umas férias, Francisco compareceu, uma vez mais, à partida de Maria
Luísa e família. À medida que o automóvel se afastava, pintando de desolação as
cores do mundo, ele sentiu, pela primeira vez, que precisava dela para
respirar. Nessa noite, não conseguiu dormir. Doía-lhe o peito. Entrava na fase
das certezas. E o seu amor foi abençoado por lágrimas nocturnas. Apesar do
sofrimento, ainda hoje recorda com saudade essa vigília. Não pela dor, mas pela
promessa de horizonte que prenunciava.
Neste
entretanto, ocorreram vários acontecimentos: o casamento e o primeiro filho do
boxeur, Maria Luísa concluiu o curso, apareceu uma sobrinha na vida do Padre
António, o agravamento da saúde de uma das tias de Francisco… Resignava-se
Francisco à sua existência, pelo quarto ano consecutivo, arrumada, branca, e
limpa, na vila alentejana, quando recebe a notícia do deferimento da sua
transferência para a capital. Não se pode afirmar, em plenitude, que ele tenha
recepcionado esta notícia com total felicidade. Embora pensasse que sim. Havia,
em si, sublimado, o desejo da continuidade. O hábito e algumas amizades
contribuíam para esse efeito.
Quando
reparou, já estava dentro da camioneta, a despedir-se, definitivamente, de um
período da sua vida. Os últimos dias voaram. Francisco compreendeu que a
incerteza é própria da despedida. Talvez por tudo ficar suspenso neste
preâmbulo temporal, algures entre o passado que se revisita e o futuro que se
abraça. Vários rostos, e vozes, passaram a acompanhar os seus passos. O rosto
de António acompanhou para sempre os seus pensamentos.
Casaram
num dia de Setembro. Foi uma cerimónia recatada, para os lados de Sintra.
Francisco não faltou à sua palavra. O amigo António é que tinha sido
transferido para o norte um ano antes. A empregada e os sobrinhos
acompanharam-no. Ainda hoje, Francisco lamenta não ter sido o amigo a presidir
à cerimónia. António agradeceu muito o convite, mas uma doença indeterminada da
sobrinha impossibilitou a sua vinda. Enviou-lhes, no entanto, uma lembrança.
Passaram a lua-de-mel numas termas. Foi uma época feliz. Maria Luísa falou em
filhos desde muito cedo. Dizia bem alto que uma mulher que não fosse mãe, não
podia ser uma mulher realizada. Ele discordava, mas nada dizia. Procurava adiar
a questão. Compraram uma casa nos arredores da capital. Os pais dela
ajudavam-nos no que pediam, as tias dele não gostavam de ficar atrás. Algumas
agrestes colinas da vida eram-lhes assim aplanadas. Maria Luísa arranjou vaga,
como professora, num colégio particular. Embora continuasse a dar explicações
em casa. Era o início de um lar.
Mas a
temática do filho era recorrente. Ele sabia tratar-se de uma questão de tempo.
Era uma fuga efémera. Aprendeu que, em questões de filhos, mandam as mulheres.
Nas outras também, mas isso levaria o seu tempo. Francisco não era
especialmente dotado para crianças. Costumava afirmar, ao pé dos amigos, que as
crianças matam o erotismo de um casal. Teria alguma razão. Nunca compreendeu
que, quando as mulheres começam a falar em filhos, o erotismo já está em
convalescença. O desejo de Maria Luísa seria realizado. Por duas vezes. Primeiro,
veio uma menina. Três anos depois, um menino.
Após o
almoço, ele acompanhou-a a casa. Tinham, na mesa de entrada, uma fotografia, juntos
e sorridentes, no jardim da vila onde se conheceram. Não era por acaso. Já não
se lembravam de quem a tirou. Depois, seguiria para o centro telefónico. Ia a
pé até à estação. Foi uma dádiva da idade, o andar a pé. A certa altura, o
médico apresentou-lhe duas alternativas possíveis. Ele optou por gastar os
sapatos. Sempre era mais económico. Olhava à sua volta, e ainda se sentia parte
integrante da paisagem. Era reconfortante. No fundo, sentia que ainda não
perdera a bússola da vida. Já estava na plataforma quando avistou, ainda ao
longe, o comboio. A história ensinara-o a conotar este transporte com
deploráveis contextos. Não o conseguia evitar. Levou um forte empurrão, mas não
conseguiu definir a origem. Chegara a altura de entrar. Com uma crescente
dificuldade, lá conseguiu. Viajava de pé, perto da porta. Tinha as suas razões.
Se alguém se levantava para lhe oferecer o lugar, ofendia-se. Se não se
levantavam, também se ofendia. Optou por virar costas ao dilema. Sempre evitava
mais cargas de ombro no momento da saída. E ainda tinha o metro pela frente. Não
se espantava com a crescente velocidade do mundo. Espantava-se, sim, com o
proporcional rarear de tempo. Como se este se evolasse à medida que as
distâncias estreitam. Estes pensamentos ocupavam-no, enquanto assistia às
corridas dos outros, a caminho do desamparo do nada que os aguardava. Nestes
momentos, sentia que pisava solo lunar.
Heterogeneidade
era o que não faltava na equipa do centro telefónico. Francisco relacionava-se
bem com todos. Preferia os da sua idade para recordar, mas os novos para
aprender. Já havia atendido chamadas de todos os géneros. Desde divórcios
iminentes, a potenciais suicidas, gravidezes indesejadas, alcoólicos, suas
vítimas, idosos derrotados pela doença… Mas o lastro comum a todos os apelos é
a peste de hoje: a solidão. Francisco procurava, unicamente, ser profissional.
Houve momentos em que se sentiu condoído, mas nunca se deixou envolver. Nunca
procurou, sequer, corroborar quaisquer evidentes resultados da sua intervenção.
Mal saía, desligava-se. Durante as décadas de trabalho era igual. Afinal,
estava ali por si. Embora saísse de consciência imaculada, porque era um óptimo
conselheiro. No fundo, todos trazemos conselhos e palpites na algibeira. Não se
vá dar o caso de alguém precisar. Ao chegar a casa, nos primeiros tempos, Maria
Luísa ainda o questionava. Mas Francisco depressa se apercebeu da sua
exacerbada sensibilidade. Acordou com ela um pacto de silêncio. Ela acusou-o de
frieza. Ele aconselhou-a a voluntariar-se. Tinham os seus momentos de trovoada.
Mas também havia os de silêncio. Francisco temia, sobretudo, estes últimos.
Houve um que se prolongou por meses. E quase os silenciou para sempre…
V
Tudo
começou quando ele conheceu Matilde. Conheceu-a no trabalho. Matilde estava a
realizar o estágio final de curso. De início, achou-a demasiado extrovertida. A
comunicação limitou-se ao contexto profissional. Mas ela não lhe era, de todo,
indiferente. Havia nela qualquer coisa. Talvez uma alegria, que lhe fugira há
muito, ou nunca lhe pertencera, associada a uma intensidade rara no olhar.
Francisco não descortinou logo o quê. Teria o seu tempo. Certo dia, convidou-a
para almoçar. Ainda hoje, não sabe onde foi buscar arrojo para tal convite. Ela
aceitou. Conversaram animadamente. Francisco sentiu, à medida que a conversa se
desenrolava, os anos a desvanecerem-se. Era algo de muito estranho. Nunca antes
se sentira assim. Porque ele falara abertamente de si, dos seus gostos, do seu
passado, mas tudo estava eivado de uma estranha distância, como se agora
vivesse uma outra existência. No fundo, a isto se chama felicidade. Só mais
tarde compreendeu que a felicidade é sempre pretérita. Por ser um conhecimento
tardio. Talvez por a felicidade ser própria do momento e a desatenção uma
constante da vida.
Ela
ainda vivia com os pais. Tinha terminado recentemente com um namorado demasiado
ciumento. Notava-se-lhe alguma mágoa ao falar disto. Matilde já sabia que ele
era casado. Ele interpretou esse facto como uma vantagem. Sempre gostou de
regras claras. Quanto mais ela falava, mais Francisco se perdia no seu olhar,
nos seus gestos, na sua voz. Achava curioso que ela não lhe despertasse a
ternura de Maria Luísa. Não, ela despertava uma outra coisa. Que, neste
momento, ele preferia sentir a compreender. Porque ele sabia, muito bem, que a
compreensão começa quando o sentimento se esfuma. Regressaram diferentes do
almoço. Uma diferença alicerçada no alvor de um sentimento. Os olhares trocados
à tarde, no trabalho, traziam a iluminação de um sorriso. Outros almoços se sucederam.
Francisco sentia, pela primeira vez, o que era ser adolescente. Antes, a vida
não lhe dera essa possibilidade.
Este
entusiasmo de Francisco deixava o seu rasto. O súbito cuidado no vestir, a
descoberta dos espelhos, a preocupação com os odores, uma renovada paciência
com os filhos, e – o sinal mais alarmante – um despertar alegre. Maria Luísa
estava alerta. Nada lhe passou despercebido. A mulher tem o condão de aparentar
ter vistas curtas, quando, na verdade, é dotada de um visão longa e profunda.
Maria Luísa não fugia à regra. É um segredo do elemento feminino. O homem
cresce a vê-las na contemplação, perplexa, de montras. Não se apercebe de que
este é um acto natural de defesa. A maior parte das vezes não lhes interessa o
produto exposto, mas sim aquilo que o vidro reflecte.
Francisco
encarava os fins-de-semana com um esforço sisífico. Há muito que se haviam
tornado em pura rotina. Ao sábado, a missa de manhã, tarde nas compras, depois
visita às tias. Ao domingo, almoçavam e passavam as tardes em casa dos sogros.
Era assim que recobrava as forças para mais cinco dias de ganha-pão. Não o
desgostava esta rotina. Afinal, ele sempre preferiu as bancadas à arena. Mas,
no insondável de si, um sussurro constante alertava-o. Matilde transformou o
sussurro num grito épico. Num sábado, com desculpa de um processo que carecia
de reanálise, foi ao cinema com Matilde. Parecia a primeira vez que ia a um
cinema. Era uma matiné. Quando chegou, Matilde já o esperava. O estacionamento
atrasara-o. Isso deu-lhe a possibilidade de a apreciar à distância. Matilde não
era bonita. Era bela. Francisco conhecia muito bem esta diferença. Ela estava
envolvida num casaco comprido, e deambulava na periferia da bilheteira. Se
alguém lhe perguntasse o filme em cartaz, ela não saberia responder. Pela
primeira vez, a visão de Matilde despertou em Francisco ternura. Seguiu-se uma
onda de remorso que lhe imobilizou os passos. Entretanto, Matilde decidiu
aumentar a fila da bilheteira. O constante cirandar dos transeuntes
desapercebia-o. A imagem de Maria Luísa cegava-o e nem vinte moedas tinha no
seu bolso. O trânsito continuava à sua volta. Francisco levantou os olhos, e
nisto, vê um cavalheiro solitário, de jornal debaixo do braço, a ser passeado
pelo seu prepotente animal de estimação. Bastou para que seguisse em frente.
Quando alguém guiar os seus passos, ao menos que saiba por onde andou, pensou
ele. E que mal estaria a fazer? Afinal, até àquele momento, só haviam
conversado. O homem sempre encontra uma desculpa a servir de esponja para a sua
consciência.
Juntou-se-lhe
na fila. Ela sorriu ao vê-lo. Ele já sorria. Cumprimentaram-se como dois
amigos. Ele perguntou pelo filme. Ela disfarçou, através da indecisão.
Francisco optou pelo mais conveniente. Podia ser que o romance extravasasse a
tela. Entraram. Enquanto ela estava absorvida pelo filme, ele sentia-se, uma
vez mais, tolhido pela timidez. Mas havia outra coisa a inquietá-lo. O medo da
morte de outra ideia. Não, ele não queria mais terra. Por enquanto, ela ainda
ali estava a seu lado, inata. Porquê corrompê-la? O filme acabou por passar-lhe
ao lado. Saíram. Francisco sentia um orgulho indizível por caminhar ao lado de
Matilde. Como se isso, o elevasse. Ela perguntou-lhe se gostou do filme. Ele
encontrava-se absorvido neste jogo emocional. Mas teve presença de espírito
para lhe devolver a questão. Ela disse que sim, e passou, de seguida, a uma
dissecação do porquê. Ele não ouvia, contemplava.
Lancharam
numa pastelaria perto do cinema. Era um espaço aprazível. Francisco sabia que
podia ser visto. Mas começava a fruir dos prazeres da adrenalina. Ela falou-lhe
dos seus planos para o futuro. Francisco já não sabia o que isso era. Na sua
vida, só havia um eterno presente. Ela ria e provocava o riso com facilidade.
Tudo era novo para ele. Era como se a realidade lhe fosse apresentada numa
outra perspectiva. Ficaram ainda algum tempo na pastelaria. Quando saíram, ele
ofereceu-se para a levar a casa. Ela já tinha carta, mas ainda não ganhava para
o carro. Caminhavam muito próximos. Ele sentia o seu calor. Olhava-a. Já não se
lembrava que, no início da tarde, havia sentido ternura por ela.
Nessa
noite, não compreendeu como conseguira chegar a casa. Que estranhas forças o
haviam conduzido. Maria Luísa aguardava-o. Disse-lhe que as tias ligaram. A
filha cobrou-lhe, logo à entrada, a história prometida. Pela primeira vez na
sua vida, Francisco compreendeu perfeitamente os sentimentos de um imigrante
ilegal. Só antes de se deitarem, é que Maria Luísa perguntou pela reanálise do
processo. Ele respondeu que ficara ainda em aberto. Não conseguia suster o seu
olhar por muito tempo. Sentia-se, simultaneamente, um herói e um verme. Esta
profusão de sentimentos deixara-o extenuado. Deitou-se. Observava Maria Luísa
na delicada familiaridade dos seus gestos. Tudo nela brotava da essência
feminina. A forma de preparar a roupa do dia seguinte, de se pentear, de
arrumar os chinelos, de se deitar… De novo, a ternura despertou nele. Beijou-a
na testa e desejou-lhe uma boa noite. Virou-se para o outro lado. Já não havia
nele vestígios de herói…
Certo
dia, ao almoço, Matilde confessou-lhe, de forma natural, que ambicionava
trabalhar no exterior. Francisco ficou estarrecido. Isso, para ele, era impensável.
Nada disse. Francisco é daquelas pessoas que gosta de conhecer a paisagem antes
de ir à janela. Percebeu que Matilde nem de janelas gostava. Persistiu no
silêncio. Matilde, curiosamente, nunca tocou no nome de Maria Luísa. Mas, sem
saber muito bem porquê, ele notava em Matilde um certo respeito, sempre que a
conversa tangia ao de leve a mãe dos seus filhos. Francisco intuiu que Matilde
a teria visto. Compreendia, na perfeição, a fonte deste seu desejo. Maria Luísa
não era uma temática proibida. Mas estava além deste universo que eles
construíam, baseado em almoços fugidios, jantares esporádicos, e numa
constância de sorrisos no olhar. Certa ocasião, com a desculpa do trabalho, conseguiu,
pela primeira vez, jantar com Matilde. Após o jantar, deram um passeio. Ele,
sem pronunciar qualquer palavra, deu-lhe a mão. Ela correspondeu. Acabaram sentados
num banco de jardim. A noite estava desagradável. Embora pairasse uma promessa
de verão no ar. Havia gente na rua. Matilde, por vezes, caricaturava algumas
figuras excêntricas com que se deparavam. Ele descobria a luz do riso. Era
impensável isto suceder com Maria Luísa. Nessa noite, ainda no jardim, trocaram
o primeiro beijo. Anos depois, ele passou esta memória para o papel.
Na fria noite…
No ainda mais frio banco de madeira…
Que conforto sentido!
Como é ridícula esta necessidade de negar
a evidência!
E, contudo, como a evidência é tão clara!
No fundo… tudo se resume a uma noite fria,
Um banco de madeira
e a
um conforto…
… Nunca mais sentido…
Matilde,
certo dia, quis apresentar-lhe os pais. Era filha única. Francisco não podia
recusar. No fundo, era uma forma de ela dar a conhecer o seu lar. Ele ficou surpreendido
com a simpatia dos seus pais. Eram mais novos do que julgava. Francisco estava
habituado a lares mais envelhecidos. Bastava-lhe as tias. Houve, contudo, um
pormenor que achou curioso. Matilde apresentou-o como amigo. Ele ficou entre a
indignação e o alívio. Foi convidado para jantar. Recusou com delicadeza. Ela
percebeu. Haveria outras oportunidades. E houve. Uma vez mais, a desculpa de uma
reanálise foi a chave de permissão. Foi um serão muito agradável. Os pais dela
eram informais e bons conversadores. Francisco sentia-se bem naquele lar. Era
um apartamento moderno e espaçoso. A seguir ao jantar, ela convidou-o para ir
até ao seu quarto. Ele acolheu a sugestão com embaraço. Olhou os pais dela, que
se ocupavam em levantar a mesa, numa indiferença concentrada. Tudo isto era
novidade para ele. Do seminário até este lar, a jornada tinha sido longa. Ela
pegou-lhe na mão. Ele seguiu-a. Ainda olhou os pais. Mantinham-se impassíveis
nas suas arrumações. O quarto dela estava apenas iluminado por uma luz de
presença, que proporcionava uma ambiência de um azul onírico. Mesmo as sombras
eram azuis. A decoração era minimalista. Nada que contrariasse o perfil de Matilde.
Ela disse-lhe para se sentar. A escolha não era muita. Cingia-se a uma cadeira
de balouço ou à cama. Ele optou pela cadeira. Nunca gostou de transparecer
aquilo que não era. Ela ligou a aparelhagem e escolheu uma cassete. Música
romântica e actual. De seguida, ela deitou-se na cama. Ele permaneceu na
cadeira. O diálogo fluía sem que ambos se apercebessem. Nunca, antes desta
noite, Francisco se sentira tão desnudado perante alguém. Não havia vestígios
das suas defesas. A certa altura, Matilde lembrou-se de ir buscar o seu álbum
de infância. Ele deduziu tratar-se de um eco de respeito aos pais. Ouviu, de
repente, a voz do pai, à porta do quarto, a perguntar se queria um café.
Agradeceu a opção pela cadeira de balouço. Levantou-se e seguiu-o. Matilde e a
mãe juntaram-se-lhes no café. Ainda demorou alguma conversa. Francisco não
deixou de observar, nestas pessoas, um desinteresse genuíno com interesses económico/casamenteiros.
Ao contrário do prematuramente observado nos seus sogros. Eram realidades
distintas. Ele preferia esta. Regressaram ao quarto. Matilde vinha de álbum
debaixo do braço. Desta vez, o álbum obrigou-o a sentar-se na cama. Ela
abriu-lhe a infância. Ele agradeceu comovido. As roupas e penteados do passado
rapidamente semearam risos. Nada escapava a Matilde. Ele seguia-a. Houve um
primo afastado dela que, de forma particular, originou a maior gargalhada.
Renderam-se à sua coragem. E era precisa muita, para sair assim à rua. Quanto
mais para pousar para a fotografia. Nunca ele se rira tanto. Nem se riria assim
outra vez. A música continuava a tocar. Ele já sabia a sequência. Haveria de
gravar esta cassete para si. E com ela haveria de cumprir as exigências da
saudade. No seu caso, regressava ao passado para saber que já houve vida em si.
Antes de ele ir embora, contemplaram da varanda do quarto a noite em silêncio.
Ela abraçou-o. Beijaram-se pela segunda vez.
Ela
acompanhou-o ao carro. Ainda conversaram um pouco. Francisco partiu com uma
convicção. Mesmo que tivessem feito amor madrugada dentro, jamais alcançariam
tal comunhão de intimidades. Esta noite também foi revisitada nas suas
palavras.
A música ecoa pelas sombras do
quarto …
Ouvem-se risos sinceros
Há tranquilidade
De repente tudo cessa. Por quanto tempo?
Há memória da música? E dos risos?
Que haja, pelo menos, da sinceridade de
tudo
VI
Desde
o início, Francisco sabia com quem iria ficar. Como se os seus passos
obedecessem a um argumento escrito por outra mão. O relacionamento com Matilde
durou quatro meses. Ao quarto mês, Maria Luísa anunciou-lhe novas esperanças.
Ele disfarçou a desilusão. Francisco não tinha perfil para a paternidade.
Talvez fruto da sua carência infantil. Não sabia como se comportar com os
filhos. Ainda lhes tentou impor resquícios do seminário. Tudo se esfumava na
obstinada resistência de Maria Luísa e no fosso geracional. Não concordava com
a educação da mulher. Achava demasiado liberal. Costumava afirmar que uma
educação demasiado liberal fomenta um vazio de valores. Ela chamava-o
antiquado. Ele respondia que era bom sinal, era sintoma de raízes fortes. O
barulho da infância também não o ajudava. As crianças corriam para o colo
materno. Em relação ao pai, arrastavam-se na sua direcção. Era compreensível. Ela
irradiava afecto. Ele transparecia a autoridade de outrora algures adormecida
no negrume dos corredores de um seminário de província. Todos à sua volta
atribuíam isso à inabilidade masculina. Somente Maria Luísa via além da
superfície. Mas compreendia. Só não aceitava que, devido às tortuosas vias da
sua biografia, ficasse ela privada de fruir dos deleites da maternidade. Esta
que era a sua consagração. Via-se na forma, maternal e orgulhosa, como levava
os seus filhos ao colo. Como se tratasse de uma altaneira torre de guarnição,
em lento movimento, onde estes buscavam descanso, alimento, conforto, e protecção,
da hostilidade circundante. Neste aspecto, Francisco compreendia-a. Também ele
já se elevara. Não com os filhos, mas ao caminhar ao lado de uma mulher.
Convém
realçar, no entanto, que Francisco cumpria escrupulosamente com as obrigações
do lar. Nos últimos tempos é que andava um pouco disperso. Atribuíam o facto ao
trabalho. Maria Luísa não queria ir além desta possibilidade. Foi num
tradicional almoço de domingo, em casa dos sogros, que Francisco teve a
possibilidade de experienciar a intuição inquiridora da sogra. Subtilmente,
evitava estar a sós com ela. Mas as artes da subtileza não eram o seu ponto
forte. Estavam todos à mesa, quando uma observação, vinda da anciã, lhe
projectou o espelho da sua mais elementar ignorância nos trilhos das relações
humanas.
- Ó Francisco, já andava, em verdade, há algum
tempo para lhe perguntar isto: vocês, lá no ministério, recebem por todas essas
horas extra?
- Desculpe?! (Ele esperava que a surpresa
na voz, tivesse passado despercebida)
- Sim, essas horas todas a mais que, de
repente, você passou a fazer. Pagam-lhe, à parte, não é?
- (Ele
apercebera-se da reforçada ironia, sibilada pela sogra, no de repente. Nisto, levantou os olhos para Maria Luísa, que se distraía
a cortar o bife da filha. O mundo, afinal, continuava o seu plácido quotidiano.
Olhou o prato. De novo, a comida readquiria o sabor. Estava na hora de
enfrentar a ilimitada prepotência da velha) Não,
não pagam nem mais um tostão. Sabe, nós temos que cumprir e calar. É assim, o
que é que se pode fazer?
- A sério?! Nunca vi isso em lado nenhum! Bom,
lá no seu ministério, vocês devem ser todos muito generosos. Nunca vi tanto
amor à camisola! Isso carece de uma reanálise, não lhe parece, Francisco?
- (De
novo, a comida perdia o gosto. E ele aprendia que há adversários que mais vale
não despertar. Comungava, no seu íntimo, das palavras da mulher em relação às
artes psicológicas da sogra. Embora, nesse momento, a odiasse. Sabia que tinha
de ser rápido na resposta. Esta era uma daquelas ocasiões em que o silêncio
evidencia derrota. E, neste caso, culpa)
- Caso queira, minha querida sogra, fazer uma
petição ao ministro da justiça, ficar-lhe-ei eternamente agradecido.
(Sentiu-se triunfante)
- Olhe, talvez o faça. Assim, pode ser que
você passe mais tempo em casa. E o trabalho não o disperse tanto em relação à
família. Sabe, você até está com má cor. Devia andar mais à luz, não lhe
parece?
-
(Neste momento, reconheceu a derrota. Não valia a pena esgrimir argumentos com a
velha. Ela estava vários passos à sua frente. Ela parecia saber qualquer coisa.
Mas como? Era impossível! Contudo, aquelas observações… Ele declinou, em
humildade, e procurou refúgio no ilimitado horizonte do prato à sua frente) Acho que tem toda a razão, minha sogra.
Não
foi esta promessa de luz que afastou Matilde do seu olhar. Nem a anunciada
gravidez de Maria Luísa. Embora a pressão familiar estivesse no seu auge.
Entretanto, o verão chegara. A seguir ao trabalho, iam para os lados do
Estoril, e davam longos passeios, de gelado na mão, junto ao mar. Através do
olhar dos outros, à sua volta, descobria que podia ter uma outra vida. Podiam
achar que eles eram casados. Ou namorados… Esta possibilidade, como se de uma
realidade paralela se tratasse, fascinava-o. Num desses finais de tarde junto
ao mar, resolveram descalçar-se para sentir a natureza líquida do universo azul
à sua frente. Estava uma tarde quente e um céu límpido de sul. Quando uma onda
lhes molhou os joelhos, entreolharam-se e comemoraram a eternidade daquele presente
num beijo sem amanhã. De novo, o seu coração caiu para uma folha de papel.
Tarde de verão…
No horizonte só a liberdade…
Doce perspectiva… o sonho da
impossibilidade!
A tua voz atinge o eco do horizonte
É para lá que vamos?
Só espero por um aceno teu!
Entre
o que queria ser, espelhado em Matilde, e aquilo que era, espelhado em Maria
Luísa, assim se balançavam os seus pensamentos. A culpa também andava no seu
encalço. Não podia mais. Tinha perfeita consciência de que ele seria o único
perdedor. E de que seria uma derrota inominável. Após um jantar, ele e Matilde
deram um longo passeio. Acabaram por desaguar no jardim do primeiro beijo.
Sentaram-se. Sentiam a noite. (Era impossível este silêncio com Maria Luísa.
Ela detestava a noite, pensava ele.) Matilde, de repente, perguntou-lhe se
queria ir a um bar. Ele, o ex-seminarista, num bar! Disse, de imediato, que
sim. Francisco desconhecia-se. Neste momento, dobrara o Bojador. Matilde
levou-o a um lugar simpático, onde foram cortesmente recebidos. Sentaram-se num
lugar cinéfilo, que emanava murmúrios sentidos e dedos entrelaçados. Havia uma
jovem de microfone na mão, virada para uma tela, a cantar músicas da memória.
Francisco apercebeu-se das legendas mais tarde. Matilde tratou das bebidas,
enquanto ele dava os primeiros e titubeantes passos na praia deste novo
continente. Ela acompanhava-o com um sorriso. Brindaram à magia da
possibilidade. Ele percebeu-a perfeitamente. A jovem do microfone silenciou-se.
Os tímpanos de Francisco agradeceram. O empregado perguntou se algum deles
queria substituí-la. Matilde levantou-se determinada. Ele colou-se à trincheira
da mesa, enquanto pelo canto do olho a via avançar impassível rumo ao fogo
cerrado das linhas inimigas. Quando o piano iluminou a noite, Francisco
percebeu que ela escolhera uma das canções da cassete. À medida que as legendas
surgiam na tela, a voz dela procurava colar-se ao original. Matilde, num certo
momento, virou-se para ele. A princípio, ele sentiu-se envergonhado. Mas a
vergonha está sempre de viagem, e ele, segundo a segundo, começou a achar esta
versão melhor do que a original. Matilde era imprevisível. Habitava-a Dionísio.
Ele, que sempre se refugiara da vida nas faldas de Apolo, descobria-se vivo ao
ver reflectida, no olhar sonhador daquela mulher, a imagem espantada de um
homem contemplando a felicidade.
Ao
deixá-la em casa, ela perguntou-lhe se queria subir. Seria, para ele, a
celebração da vida. Seria o seu Evareste. Deixaria uma pegada indelével na rota
dos sonhos. Mas recusou. Escudou-se no avanço indesmentível da madrugada. Se
subisse hoje, perderia para sempre a memória do seu lar. Ela compreendeu. Respirava-se
despedida. O olhar dela irradiava compreensão. Não havia vestígios de tristeza,
nem de mágoa. Abraçaram-se. O relógio do carro iluminava 3:19. De repente,
começou a chover. Deixaram de ver a entrada do prédio. Durante alguns segundos,
ele hesitou. Ela sabia porquê. Matilde preferiu adiantar-se. Sabia que ele não
teria coragem. Ela havia terminado o seu estágio profissional. Chegara a altura
de Francisco completar o seu. A maioridade nos afectos haveria de chegar um
dia. Ela disse-lhe que, apesar de ser uma viajante, precisava de estradas
seguras. Ele baixou o olhar. Compreendeu-a na perfeição. Sabia ser um
sedentário, que há muito sufocava nas raízes nascidas da terra. Matilde
desenhou-lhe o rosto com os dedos. Ele procurou perpetuar-lhe o gesto. De
seguida, ela deu-lhe um breve beijo. E saiu.
Ele
ficou a observá-la. Ela não correu. Diluiu-se na chuva. Como se a abraçasse.
Ele quis acreditar que sim, mas sabia que ela não olhara para trás.
A noite
quente de canções terminou com a imagem solitária de uma entrada de prédio às
escuras. Ele ainda ali permaneceu algum tempo. Por fim, regressou a casa. Não
se foi logo deitar. Abateu-se sobre o sofá e ali deixou-se estar. Era raro
haver música na sua casa. Tudo era previsível, arrumado, harmonioso.
Tratava-se, no fundo, do rosto de Maria Luísa. Mas ele trazia melodias dentro
de si. Ficou a ouvi-las no que restava daquele silêncio da madrugada. Acabou
por adormecer. E assim os seus versos coloriram o sonho de um homem que se
observou a contemplar a felicidade, nos olhos de uma mulher que ao cantar
iluminava a noite de amanhãs azuis.
Noite de verão no jardim…
O meu eu expande-se para ti…
Morna era a brisa… e leve também.
Nunca mais o meu eu se expandiu.
Nunca mais houve mornas brisas…
Talvez, ainda, haja o jardim…
Porque falta sempre qualquer coisa?
Há solidão por excesso de companhia,
Há solidão por simplesmente estarmos sós.
Mas há uma mais profunda. Mais
intolerável.
Que brota do nosso eu e nos deixa ainda
mais sós…
Com saudades da saudade por desvelar.
Na ansiada espera,
espero por alguma coisa
Será um encontro ou um reencontro?
Não sei. Apenas sei e sinto uma inquietude
pela espera
Uma espera é sempre uma náusea!
Talvez por não se saber o que esperar…
… do encontro sempre adiado…
… pela sempre adiada memória doce!
No dia
seguinte, Maria Luísa deparou-se com o náufrago nocturno a dormir na sala. Ele
desculpou-se com a hora tardia, não a querer acordar, um processo urgentíssimo
pendente. Ela derramava desprezo. Os filhos, à entrada da sala, assistiam entre
o espanto e a incompreensão. Após um sonho, a rotina é sempre o pior dos
caminhos. Mas foi o que ele encontrou. Nunca teve tanta relutância em ir trabalhar.
Deixou de haver reanálises, processos pendentes, reuniões urgentíssimas. O
caudal do quotidiano retomou as suas margens. O desprezo de Maria Luísa, com o
bálsamo do tempo, começava a capitular. Ele nunca questionou o porquê desse
comportamento. Preferiu responder com uma solicitude atenta. Começava a
vislumbrar o poder do feminino. E o tempo foi passando…
Foi
numa quarta-feira. Para os lados do Chiado. Ele regressava a casa, quando a viu
no passeio. Ainda pensou parar. O trânsito não o permitiu. Ainda hoje, não sabe
se foi uma desculpa para si próprio. E estas são sempre as piores. Ela ia com
uma amiga. Iam-se a rir. O riso delas feriu-o de uma forma indizível. A visão
dela perturbou-o. Muito mais do que poderia supor. Perdeu-se no labirinto das emoções.
Vinte minutos depois, o seu corpo entrou em casa. O seu eu, nesse momento, sentava-se num bar a ouvir melodias da memória. Maria
Luísa e os miúdos chegaram depois. Disfarçou a agitação interior. Por muito que
tentasse aprofundar, não conseguia definir que sentimentos Matilde despertava
em si. Sabia que andava algures entre a paixão e mais qualquer coisa. Mas não
sabia o quê. Por Maria Luísa era diferente. Aí, tinha as ideias bem arrumadas.
Diluída a paixão, tinha como sobreviventes a compaixão, o respeito, a amizade, o
companheirismo… Mas a paixão nutrida por Maria Luísa era diferente. Sempre
esteve imbuída de uma ternura. Com Matilde era distinto. Não havia ternura.
Havia sonho…
Nesta
altura, Francisco estava aquém de compreender que Matilde espelhava a
desesperança em que mergulhara. A seu tempo, lá chegaria. Essa foi uma noite de
música, memória, palavras, e de solidão, enquanto o televisor da casa somava
outro serão de boçalidades, ao mesmo tempo que entretinha a sua família de
estrangeiros. Ele foi o último a deitar-se. E enquanto todos dormiam, a sua
angústia suavizou-se, enquanto relembrava uma face desejada.
E agora? visão materializada…
Serias tu? Retorno ao mesmo frio…
à mesma invivência… à angústia sem grito!
Mas eu vi-te! Certeza, concretude,
proveniente, não do calor de então,
mas do frio de agora.
E agora? Questiono o momento,
a realidade, a justiça, a lógica,
a razoabilidade, a existência, Deus,
Questiono, no fundo, o porquê de não estar
contigo…
… nem que fosse por mais um pouco –
para me sentir vivo.
Na
desamparada solidão de mais uma noite familiar, redigiu-lhe uma missiva…
Sabes, no fundo, eu sei que tu compreendes, sempre a
necessidade de uma metalinguagem que possa dar expressão aos sentimentos
inexprimíveis… Àqueles que, no fundo, dão expressão a tudo, dão carne ao
esqueleto da existência.
Sabes, no fundo, eu sei que ansiavas por
mais uma palavra, por um sinal… Por um gesto, um simples gesto, através do qual
se pudesse edificar tudo.
Sabes, no fundo, tudo provém de uma
inocência no olhar, de uma frescura, que sempre ali esteve, e que, por
desatenção, deixámos pelo caminho…
Sabes, continuo à espera… Do teu sorriso,
da tua energia, daquela tua alegria reencontrada que era sustento da minha
desarmonia interior, equilíbrio para o meu próprio desequilíbrio céptico… Como
sobreviver? É a pergunta, quando não se questiona mais: Como viver?
Sabes, eu sei que tu tens a resposta… Ou
será tudo fruto de uma imaginação alimentada por uma alma carecida de
horizontes, faminta de espaço? Eu sei que não! Porque tu também sabes… Que há
algo de grandioso reservado para nós no grande banquete final… Contudo, eu só
anseio por umas míseras migalhas, no momento presente, para enfrentar a penosa
caminhada de não te ter a meu lado.
Sabes, custa muito ver-te e, simplesmente,
olhar-te sem saber se tu, de facto, sabes o que eu sei!
… Sem
destino.
Morrer
VII
A
tarde anunciava noite, quando aquele estranho e obcecante pensamento,
novamente, o assaltou. O seu turno, de telefónica ajuda ao próximo, terminara.
Estava a descer para o metro. Encostou-se à parede. Ali ficou durante algum
tempo, à margem de uma corrida que nunca fora sua. Deixou-se estar. Afinal, não
havia melhor local para reflectir, do que uma entrada de metro. Ele estava a
meio da escada. O seu ombro esquerdo, e parte do rosto, ainda recolhiam os
últimos vestígios de luz. O restante já se banhava nas trevas. Era raro alguém subir.
O movimento de descida era generalizado e sôfrego. Enquanto ali esteve, só um
contrariou a ordem estabelecida. Subia com dificuldade. Com lentidão. De forma
abnegada. Quando o primeiro vestígio de vermelho anunciou superfície, os olhos
fecharam-se, por pouco tempo, como se resistissem à evidência de uma nova
ordem. Francisco assistiu num espanto emudecido ao que restava daquela
ascensão. Até que o perdeu de vista, quando deu os primeiros passos em direcção
a um desígnio que só ele conhecia.
Por
fim, Francisco decidiu-se. À medida que deixava a aparente evidência das coisas
para trás, e avançava na desilusão das sombras, algo se clarificou em si. Caminhava
com um passo resoluto. Tudo se esclarecera. As dúvidas cessaram. Tinha, pela
primeira vez na vida, uma jornada sem apeadeiros.
O
metro nunca foi muito demorado. Ao contrário dos outros. Viajou em pé, perto da
porta, para não variar. De seguida, passou para o comboio. Gostava deste
percurso. Principalmente, ao entardecer. Assim que as carruagens se arrastavam
para fora da estação, e as janelas perdiam nitidez, e, lentamente, as luzes da
cidade turvavam o céu, ele sentia que uma serenidade descia sobre as coisas e
as harmonizava com mão desconhecida. E o seu coração, embalado pelo comboio da
meninice, sorria no regresso a casa. Enquanto o mar se pintava de ocaso, um
paquete ladeava o comboio numa corrida com metas distintas. Sempre que via um
barco assim, no regresso a casa, ele percebia onde não queria estar. E o seu
olhar nem o barco via, apenas que vogava rumo à única réstia de luz do mundo. Enquanto
o comboio, de estação em estação, apenas derramava despojos de ilusões.
Cada ocaso é um melancólico espelho da nossa
finitude. E a palavra lar assume a sua verdadeira significação. O tempo
ensinara-lhe isso. Saiu, como sempre, na estação que antecedia a ponte sobre o
jardim. Subiu a inclinada rua de vivendas e árvores. Caminhava em terrenos
familiares. Por esses lados, a paisagem não mudara muito. Os passeios haviam
estreitado, é verdade. As ruas não saciavam o apetite dos carros. Algumas lojas
renderam-se aos ventos ocidentais. De resto, tudo permanecia na mesma. Com uma
relevante excepção: ele já não vislumbrava rostos familiares. O tempo
apresentara-lhe estranhos. De facto, as distâncias haviam encurtado. Disso, não
restavam dúvidas. As memórias de parar a cada esquina, entre cumprimentos e
afáveis diálogos, relembram-lhe outros dias e outras cores. Ainda se recorda de
ir trabalhar, e deparar-se com os mesmos rostos no comboio diário. Conhecia a
estação de saída de cada um. O senhor que saía em Belém, a senhora de Santos…
Por vezes, nas compras, via o jovem de Alcântara. Agora, já não vê ninguém.
Onde estarão todos? Os jovens serão hoje adultos, à custa de problemas e
facturas por pagar. E os da sua geração? Desses, conhece o paradeiro da
maioria. Levantaram-se, gentilmente, e saíram, na estação mais próxima, para
dar o seu lugar a outro…
Ao
chegar, uma vez mais, reparou nas esvoaçantes cortinas do rés-do-chão. Abanou a
cabeça. Já houve alturas, em que o elevar da voz lhe vinha acompanhado de um
vernáculo metalinguístico. Isso foi noutros tempos. Nunca foi um homem destemido.
Longe disso. Mas a paciência é uma qualidade só notada pelas suas fronteiras.
Subiu. Ao entrar, apercebeu-se de que Maria Luísa cumpria o rito das sete da
tarde. Ali estava ela, concentradíssima, receptor passivo de uma enormidade
chamada telenovela. Ele ainda se espantava. Como era possível? Depressa virava
costas. De novo, a questão o imobilizava: como é possível? Nesses momentos,
surgia-lhe, por estranho desígnio, a imagem do primeiro encontro no jardim da
vila alentejana. A imagem romântica e sonhadora da jovem de então perdera-se
no perfil de desesperança da mulher de hoje. Se ele aprofundasse um pouco a
questão, perceberia o quanto se equivocava. Os sonhos ainda a habitavam, só que
ela já não sabia onde os procurar. Daí a sua passividade. O seu desespero. A
sua efémera alienação. Ao assistir a encruzilhadas que lhe relembram, com
nitidez, que poderia ter enveredado por outros caminhos. Infelizmente
esquecidos, na contínua desilusão do suceder dos dias. Só quando ele entrou na
sala, é que Maria Luísa se apercebeu da sua chegada. Sorriu-lhe. Ela
perguntou-lhe pela tarde. Ele respondeu com o habitual encolher de ombros e um nada
de especial. Maria Luísa levantou-se com dificuldade. O fenómeno das pernas
inchadas perseguia-a há uns cinco anos. Os médicos diagnosticaram várias
causas. Embora a idade, a partir de certa altura, seja a génese de todas as
maleitas. No fundo, os médicos também têm a sua formação eufemística. Ela
aqueceu a refeição preparada pela empregada, enquanto ele se distraía com as
misérias do mundo. Era a sua dose diária de pessimismo. Afinal, para que
serviam os telejornais?
Enquanto
jantavam, ela relatou-lhe as ocorrências do dia. A filha havia telefonado.
Estava a gostar imenso do estágio em Inglaterra. Ele percebeu, na perfeição, a
mensagem da filha. Tão cedo não regresso… Lamentou por Maria Luísa. Porque ser
mãe, é não aceitar que uma parte de si se perca pelo mundo. Ele sabia que o
papel de pai era distinto. Estava aquém dos nutrientes básicos da criação:
peso, dor, e sangue. No fundo, a seiva da vida.
VIII
O
primeiro contacto com a morte deu-se no funeral da tia mais velha. Francisco
assistiu numa impassibilidade espantada. Havia colegas de faixa etária, da tia,
num pranto solidário. Maria Luísa mostrava-se condoída. Nada mais. Os filhos,
na altura ainda crianças, foram poupados a esse confronto. Morte e juventude
são assuntos apartados. Pelo menos, deveriam ser. A dada altura, a tia
sobrevivente abraçou-o. Ela cheirava a idade. Ele conhecia bem aquele cheiro.
Lembrava-lhe a sua desamparada meninice, onde as palavras tias substituíram as
sagradas pai e mãe. Elas tinham o seu eterno obrigado. E ao perceber a solidão
daquele abraço, ele ocultou as lágrimas de criança que lhe humanizavam o rosto.
E, nesse momento de reencontro, os papéis inverteram-se, e ele acolheu, nos
seus braços, aquela criança pequenina, perdida, triste, de cabelos brancos, que
tinha o cheiro do tempo.
A
vigília arrastou-se o tempo suficiente, para que os presentes sentissem uma
repentina urgência em despedirem-se da morte e regressar ao conhecido. Além
disso, a madrugada estava fria. E os piedosos azulejos, que os rodeavam,
acentuavam a inexprimível frieza de uma partida. De manhã, foi a enterrar.
Quando, no regresso, ele transpôs a porta do cemitério, apercebeu-se de que a
tia não ficara sozinha. Parte dele acompanhara-a. Olhou à volta. E os outros?
Tê-la-ão, de alguma forma, acompanhado? Nunca questionou Maria Luísa a esse
respeito. Há questões que são só nossas. São as únicas a que sabemos responder.
O
tempo providenciou outras despedidas. À tia velha, seguiu-se a tia mais nova. E
com ela partiu aquele odor a tempo de meninice. Depois, partiu o pai de Maria
Luísa, traído pelo sistema nervoso. De adeus em adeus, ele ganhava experiência.
Já sabia que postura assumir nos diferentes momentos. Optava, regra geral, por
contemplar o chão. Afigurava-se-lhe a mais correcta. Assim, transparecia o peso
da dor. Mas era sempre traído no momento do regresso. Assim que transpunha as
portas do cemitério. Porque o vazio sentido então, era um grito interior de dor,
pelo que ali deixara de si.
Houve
um aspecto que sempre o impressionou. Todos, ao entrar num cemitério, vinham
num passo hesitante. Como se visitassem, forçadamente, alguém indesejado. Mal
terminava o rito do adeus final, com um ar de naturalidade forçada, viravam
costas e caminhavam num estugado passo, como se a memória lhes despertasse um
súbito e incontornável compromisso. Talvez esse despertar da memória fosse
verdade. Talvez lhes lembrasse que tinham um compromisso com a vida.
Lamentava-se que, na pressa da saída, procurassem esquecer a promessa de morte
que a todos acompanhava. E demonstrassem um terror visceral pela única certeza
da existência.
Quando
o médico lhe diagnosticou esquecimento, há quatro anos, ele soube logo o que
fazer. Tudo começou numa manhã, com um telefonema para polícia, a participar o
roubo do carro. Descobriu-se, depois, que o carro dormira noutra praceta, duas
ruas acima. Ainda perdeu algumas chaves de casa, agendas, compromissos
falhados… Por fim, Maria Luísa marcou a consulta. Seguiu-se-lhe a sentença. Ao
deixar a clínica, Maria Luísa deu-lhe a mão. E, enquanto caminhavam, ela
segredou-lhe coisas de amor. Ele sorriu, e os seus dedos, entrelaçados nos
dela, estremeceram num sentido obrigado. Passou nesse instante, por eles, um
casal adolescente, que sorria indulgência pelo carinho evidenciado pelos velhos.
Francisco e Maria Luísa olharam para trás e sorriram compaixão…
Reencontraram-se sob um horizonte de esquecimento.
A
medicação evitou mais telefonemas para a polícia. Em consequência, a
percentagem de furtos de viaturas baixou drasticamente. O tempo, para ele,
deixara de ter futuro. Vivia num eterno presente. No fundo, o lugar da
eternidade. Aproveitaram para retomar velhos hábitos. Dito de outra forma,
reapreciar prazeres algures perdidos no vazio dos dias. Ele agradeceu e apreciou
essa reaprendizagem. O tempo ensinara-o a agradecer em silêncio. Nesses
momentos, contemplava Maria Luísa. E compreendeu, na perfeição, a mão do
destino. Sempre mais sábia do que a nossa vontade.
Após
o jantar, e sempre que o tempo permitia, ajudava a digestão com um passeio.
Assim, nessa noite, enquanto Maria Luísa se aprestava para uma nova jornada
telefónica, ele saiu. Mal a porta da rua se fechou atrás de si, de novo as
cortinas. A noite apelava a caminhadas e a nostalgia. Estava amena. De quando
em quando, um carro. Um cão a passear o dono. Alguém, de saco na mão, apressado
para o contributo camarário. Francisco tinha um percurso definido. Ainda eram
dois quilómetros. Descia até à praia e regressava. Ajudava a desentorpecer as
pernas, mas sobretudo o pensamento. Era-lhe vital. À noite, todo ele precisava
de respirar. E acentuou-se após a sentença. Enquanto caminhava, outros dias e
outras noites vieram-lhe à memória. Fragmentos. Procurou organizar-se. Sabia
que era muito fácil perdermo-nos. Não conseguiu. Todo ele, nesse momento, era a
resolução tomada. Iria cumpri-la. A ser a última, que fosse sua. Uma réstia de
vontade e de consciência…
IX
Achou
curioso que, precisamente nessa noite, caminhasse ao sabor da memória. Tudo
surgia diante de si. Nítido. Claro. Rostos, paisagens, vozes, emoções,
melodias… Regra geral, era-lhe difícil caminhar e pensar simultaneamente. Mas,
nesta madrugada, o pensamento sobrepunha-se ao passo. Ia na descida para o
jardim, quando a voz da sogra ecoou em si: Tudo
o que o dinheiro possa resolver ainda sai barato. O pior é quando ele já não
resolve nada. Maria Luísa tinha razão quanto àquela mulher. Tinham ido
visitá-la num destes fins-de-semana. Não quisera abandonar, após a viuvez, a
casa que haviam comprado na vila alentejana. Tinha sido o sonho do sogro. Ela
nunca tivera muita vontade de ali se desterrar. Mas percebia bastante de amor e
partilha de sonhos. E assim compraram uma casa caiada de branco, na parte alta
da vila, com um terreno à volta. Para Francisco, era sempre um prazer o
regresso àquela vila. Ele acreditava que para Maria Luísa também. Com os anos,
ela interiorizava mais. E ele ficava-se pela superfície das impressões.
Apesar
dos noventa próximos, ele tinha sogra para durar. A viuvez turvara-lhe o rosto,
mas aqueles ares agilizaram-lhe os movimentos. Ansiava pelas férias escolares,
para acolher os netos. Francisco ainda se lembra, de, num serão, ela exclamar: Filhos! Sabemos criá-los, mas não podemos
fadá-los! A experiência ajudara-o na compreensão da frase, e no
reconhecimento da sogra. Embora nunca o verbalizasse, Maria Luísa sabia-o.
Afinal, era a quem ele bebia as palavras numa atenção de fascínio estudantil.
E
a frase da velha foi profética. Quanto à filha, estamos conversados. Rendida à arrogância
complexada da insularidade britânica. Em relação ao filho, o fado também
divergiu da criação. Sempre lutou com estrépito pelo que queria, ao contrário
do pai. E falava alto. Os olhos maternos ajudaram a suavizar potenciais
arestas. Assim, a personalidade do menino foi alicerçada longe da realidade
cortante da vida. Na altura de eleger um curso, curiosamente seguiu o rumo
paterno. Seguiu para Coimbra. Disse que precisava de espaço para crescer. Por
alturas do terceiro ano, acendeu-se-lhe a paixão. A eleita foi uma jovem mãe
solteira, que trabalhava numa pastelaria da cidade. Ecoou bem alto o choque
entre o código civil e a bandeja. Ele largou tudo. Incluindo a razão de ali
estar. Foi viver com ela. Maria Luísa, mais do que Francisco, ficou
estarrecida. A certa altura, os fins-de-semana eram passados ao volante a
caminho de Coimbra. Só lhe pediam que não se casasse. E que não aumentasse o
número de bocas à mesa. Como sempre acontece, os pais bebem do rio do esquecimento,
e deveriam ter dito o inverso ao filho. O segundo pedido, ele ainda atendeu.
Mas quanto ao primeiro, demorou apenas um mês a defraudar os progenitores.
Assim se tornaram sogros e avós, por afinidade, de uma linda menina de quatro
anos.
A
inexperiência cansa-se depressa. Cinco meses depois, a empregada depositava-o
na rua. Arranjara outro, mais capaz de comparticipar na renda. O telefone de
casa soou. Entre lágrimas e soluçadas desculpas, o pródigo renovou os laços
paternos. A partir daí, só namorou findo o curso. A experiência ensina a
desacelerar o passo. Ela era farmacêutica. Casaram, tempos depois. Vivem hoje
desafogadamente para os lados do Lumiar. Ele e outros colegas juntaram-se numa
sociedade de manipuladores da lei. Apesar dos conhecimentos dela, e de algum
investimento, ainda não há notícias de filhos. Francisco, às vezes, ainda se
lembra da anterior nora. Além de trabalhar numa pastelaria, o que adoça sempre
a boca, já vinha munida da neta que eles tanto ansiavam.
Nos
últimos tempos, Francisco e Maria Luísa viam o filho e a nora as vezes
necessárias. Ele continuava a falar alto. Francisco, à terceira frase, deixava
de o ouvir. O filho ainda não desacelerara o suficiente para que pudessem
comunicar.
Chegou
à praia. Nunca gostou do mar à noite. Intimidava-o aquele ululante negrume. Sem
saber muito bem porquê, desceu para a areia. Avançou até perto da água e
sentou-se. Afinal, naquele momento, ele via o mar azul do seu contentamento,
que emoldurava outro rosto do passado. Nunca mais a viu. Uma vez cruzou-se com
os pais dela num restaurante. Cumprimentou-os educadamente, mas não conseguiu
ir mais além. Eles corresponderam ao cumprimento. Contudo, não era seu papel
dar notícias que não foram pedidas. A fugacidade das relações humanas espantava-o.
A facilidade com que se perde o mais elementar nível de intimidade. E ele sabia
que partira de si, pela forma afectada de os cumprimentar. Lamentou a sua
máscara nessa ocasião. E em muitas outras. Gostaria de ter dito, àquele
simpático casal que o acolheu, várias vezes, em sua casa, sim, eu amei-a, em
sinceridade. Apenas isso. Nada mais. O passado submergia-o. O rosto dela
fê-lo sorrir. Soletrou o seu nome. De alma cheia, pelo eco de cada sílaba,
reencontrou o seu olhar, e louvou a memória pela magia de perdurar cada segundo
daquela recordação.
Levantou-se.
Enquanto sacudia a areia, reparou que estava longe de estar sozinho. Muitos
elegiam a praia para o serão. Do desporto à bebida, havia de tudo. Não era
novidade para ele. Iniciou o regresso. Pensou em Maria Luísa. Devia estar
preocupada. Estava a demorar-se mais que o habitual. Ela podia recear novo
assomo de esquecimento. Acelerou o passo. Sabia que estava a fugir de si mesmo.
De uma decisão sensata. Incontornável. Parou. Decidira não fugir mais. Já não
tinha idade para se esconder. Inspirou noite. Olhou à sua volta. Retomou os
passos do lar. Sentiu cada passo como um adeus. A sê-lo, que fosse esta noite.
O passado serenou dentro de si. Desvaneceu-se sob a prata que descia dos céus.
A partir deste momento, ele ansiava apenas por um sentido. A questão fê-lo
vacilar. Mas de forma ligeira. Desta vez, estava preparado. O tempo das
vertigens, face ao abismo, era da meninice. Agora, só tinha de avançar, e
improvisar uma oração de reencontro e harmonia.
Mal
entrou em casa, os efeitos da preocupação de Maria Luísa fizeram-se notar. Ele
sossegou-a, com a desculpa de um amigo, ao mesmo tempo que lhe beijava a testa.
A ternura é uma das principais vitaminas da mulher. O tempo ensinara-o. Maria
Luísa foi-se deitar. Francisco ainda deambulou um pouco, de divisão em divisão,
ao som de melodias da noite. Por fim, seguiu os passos da mulher. Ela já
dormia. Como sempre, olhou e sorriu para aquele rosto sem sombras. Já submerso
pelos lençóis, e de luz apagada, aproximou-se do seu calor. Ela abraçou-o. Ainda
não adormecera.
Pela
segunda vez, nessa noite, ele beijou-a e murmurou-lhe amor e perdão, enquanto
ela o silenciava com um gesto sentido. Assim ficaram, abraçados, sob o silêncio
da madrugada.
Pedro de Sá
(09/04/2010)