Livros

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segunda-feira, 18 de março de 2024

Pois é…

 


O que fica do ontem? Andava ele com esta pergunta dentro de si, um pouco como aquelas melodias que não nos largam, por muito que queiramos, quando decide regressar àquele lugar, no fundo, não interessa qual, porque todos temos um lugar nesta vida, em certo momento, é inevitável, temos de nos apear da viagem e fechar os olhos para que o sonho possa esticar as pernas, como dizia, retorna a um espelho entretanto anoitecido, um banco à beira-rio, nem uma brisa a relembrar outras paragens naquele final de tarde, tudo num estatismo condizente com a desesperança que há muito aportara no horizonte da indizível mágoa do seu olhar, sentado a um banco, a olhar a vazante, que levanta aquele típico aroma a lodo e desolação, em baixo, igualmente sentado, também a olhar a vazante, como se numa expectativa muda, a companhia que lhe resta, por outras palavras, o seu último amigo, ambos olham os passeantes que ali chegam com o Verão, sem nunca perder do horizonte a vazante, famílias de estrangeiros com aspecto de camarão, a falarem a sua língua com a naturalidade de quem não parece ter-se feito à estrada, entre gelados numa mão e cervejas na outra, casais de cá, a sentir a leveza dos bolsos – sinal de que outros indevidamente ficam pesados –, num esforço patético de transparecer um relaxamento, a cada passada, que roça o ridículo pela artificialidade, acrescente-se a este quadro as indumentárias, não só pelo anacronismo como pelo desajuste com as formas que pretensamente deviam cobrir, pais que tentam recuperar, naqueles escassos dias, em esforços inglórios, a cumplicidade dos filhos, é vê-los com gestos mais rasgados, a voz mais expansiva, a chutar uma bola, percebe-se, ao primeiro toque, como o objecto lhes é estranho, os filhos, regra geral, transparecem um primeiro sinal daquela intromissão, mas a flagrante cegueira dos pais associada à inabitual ociosidade, proporcionada por estes dias de Verão, concorrem para cimentar um muro geracional, uma história deveras cansada de tão repetida, as mães, por seu turno, concorrem com as filhas em decotes e na escalada das saias, daí ao ridículo, em alguns casos, nem um salto, pois a flacidez ameaça irromper por todos os lados e precipitar-se até à calçada, a gravidade sempre foi uma coisa tramada, no entanto, elas sentem-se rejuvenescidas (que fazer?), e lá vão no seu trajecto, julgando que os olhares mais gulosos lhes são dirigidos, em certas alturas, tudo serve para acariciar o ego, quando, em verdade, caso lhes sobrasse um pouco de atenção, perceberiam a direcção da gula ocular, centrada na jovem que caminha a seu lado (que fazer?), outras famílias, se assim se pode chamar a um conjunto de indivíduos que partilha grande parte do mesmo espaço de existir, passam diante deles com olhares e gestos vertidos para um rectângulo iluminado, volta e meia param, vociferam impropérios, geralmente com a voz elevada, onde duas palavras se repetem numa cadência obstinada, rede e perda, é curioso, há neles uma nítida consciência de que não são ouvidos, no sentido de alguém os entender, mas insistem, enquanto rede e perda lhes sai naquela cadência obstinada, em olhar à sua volta, como se súbitos desalojados por ordem de razão desconhecida, subitamente, o vociferar impropérios cessa, rede e perda pertencem ao passado, retomam o passo enquanto olhares e gestos se vertem, de novo, para um rectângulo iluminado, ele, sentado no banco, percebe que caminham na direcção da vazante, olha-os e sabe que é tão difícil sentarmo-nos diante de alguém e dizermos quem somos, não aquilo que a sociedade nos destinou, porque isso, em verdade, é sempre a última coisa que somos, em certa medida, compreende a invenção do rectângulo iluminado, é a máscara do hoje, sempre foi mais fácil escondermo-nos, olhar o outro nos olhos, por momentos, despir as palavras, outra máscara, e dizermo-nos, requer saber e paciência, tão longe de rede e perda, aproximava-se a hora de regressar, sabia-o quando a brisa de Oeste lhe sussurrava madrugada na face direita, a companhia que lhe resta, por outras palavras, o seu último amigo, já se levantara da calçada, antes de se erguer do banco passa-lhe a mão pela cabeça, Tu não tens problemas desses, não é? De te esconderes? Onde estiveres, estás por inteiro… Nisto, o seu olhar com a vazante, um ramo de flores na mão, nem lhes sabia as cores, por dentro afogava-se em amor, mas por fora sabe que é tão difícil sentarmo-nos diante de alguém e dizermos quem somos, ela dera sinais de cansaço em pequenos nadas que sempre são o tudo, ele percebera-o, no entanto, por dentro afogava-se em amor, mas por fora sabe que é tão difícil sentarmo-nos diante de alguém e dizermos quem somos, por fim, levanta-se, a companhia que lhe resta, por outras palavras, o seu último amigo, à sua frente, toma a direcção do lar, ele segue-o, mas sempre a olhar a vazante…

sábado, 9 de março de 2024

Da Indignação


 

E que dizes da incessante repetição dos dias? Levantar à pressa, calar o despertador, pequeno-almoço ritmado pelos ponteiros do relógio, segue-se o trânsito ou os transportes-públicos, quantos anos não se esvaem nesse pesadelo materializado, trabalho ou lá o que essas tarefas impostas para garantir a sobrevivência se chamem, almoço ritmado pelos ponteiros do relógio, mais uma tarde de trabalho ou lá o que essas tarefas impostas para garantir a sobrevivência se chamem, de novo, agora para o regresso a casa ou lá como lhe queiram chamar, o trânsito ou os transportes-públicos, quantos anos não se esvaem nesse pesadelo materializado, jantar cadenciado por bocejos e um pânico calado, num canto de nós, por se vislumbrar o negrume do dia seguinte, um decalque deste, mulher ou filhos, se os houver, em tentativas de apelar a atenção, paciência falecida (que fazer?), o sofá como porto-de-abrigo após o jantar, assiste-se a uma qualquer boçalidade, apesar das ameaças de queda devido ao sono, após um dia assim ninguém quer coisas que obriguem a pensar muito (não é verdade?), a boçalidade sempre distrai e, no fundo, todos gostam, ao menos, nesses instantes, a mulher em silêncio, por fim, a cama, não se pode esquecer dos comprimidos que abrem a porta ao sono, de outra forma, só o revirar-se indefinidamente, a mulher a seu lado, entre eles apenas um sumido “Até amanhã!”, quando, há uns anos, não tantos assim, tardes e tardes de êxtase, um arrebatamento até ao infinito da vertigem, os lençóis como testemunha de que ali se cumpriu paixão, hoje apenas um sumido “Até amanhã!”, costas voltadas, a espera pelo sono, e o terror por tudo se reiniciar, os fins-de-semana, dois dias que passam entre um descer e subir de pálpebras, numa deriva, não há ânimo para mais, a energia rareia, entre compras, um café ali, outro acolá, de vez em quando, ao passar por um lugar ou ouvir certa melodia, o passado a irromper pelo pensar, a saudade da felicidade, e o hoje é isto, entre  murmúrios (“Não, não foi uma ilusão, eu vivi aquilo e tão feliz fui… Ao menos tenho, em mim, essa certeza!”), o lar não convém sair do horizonte, pois a fadiga é muita, muito, muito, a custo, lá chegam as férias, a inevitável discussão pela escolha do destino, a calculadora entra ao serviço, lá surge outro pesadelo materializado, o aeroporto, a inexplicável imposição de chegar com três horas de antecedência, quantos anos por ali não se esvaem, espera, mais espera, ainda mais espera, bichas e bichas, malas e malas, pega agora, carrega para ali, vai para acolá, saca da carteira, mais à frente, de novo a carteira, um cartão com o teu nome e foto, como se aquilo fosses tu, inpeccionam-no com olhar cirúrgico e desconfiado, olhos no cartão e em ti, cartão de novo e em ti, “Pode passar”, corredores infinitos, as rodas da mala, se as tiver, a chiar canseira, chegas a um ponto em que tudo tens de beber e comer, ordens de rosto sempre velado assim o impuseram, o problema é não teres fome nem sede, no entanto, o desperdício salta-te à vista, e os escrúpulos pela fome deste lado das coisas, assim bebes sem sede e engoles sem fome, de novo a carteira, um cartão com o teu nome e foto, como se aquilo fosses tu, inpeccionam-no com olhar cirúrgico e desconfiado, olhos no cartão e em ti, cartão de novo e em ti, “Pode passar”, por umas janelas numa demasia oblíqua espreitas o pouco de mundo oferecido, a asfixia daquela artificialidade faz-se sentir, olhas com ânsia cada cilindro com asas e pensas qual te vai levar para o sonho comprado, todavia segue-se mais espera, uma oração para que não haja atrasos, já lhes conheceste o fel, por fim, chegou a hora, antes, porém, tens de ouvir oficializar a coisa por uma voz, nada, só silêncio, o tempo continua, entraste ali precisamente há mais de cinco horas, lá surge alguém a anunciar o óbvio e tão ansiosamente esperado, o lugar onde agora estás, a porta que se vai abrir para o cilindro com asas, bichas, mais bichas, os bilhetes, um cartão com o teu nome e foto, como se aquilo fosses tu, inpeccionam-no com olhar cirúrgico e desconfiado, olhos no cartão e em ti, cartão de novo e em ti, “Pode passar”, o tão ansiado cilindro revela-se um lugar acanhado, turvo, à volta só gente a levantar malas para enfiar nos compartimentos superiores, um infindável barulho das portinholas a abrir e fechar, abrir e fechar, finalmente sentam-se, até os dedos se entrelaçam, trocam olhares que segredam “Cá vamos nós rumo ao paraíso”, entretanto, uma certeza nasce: o desconforto dos assentos; lá se contorcem nos lugares, na procura de uma posição que mitigue dores antigas, quando, um pouco à frente, no corredor, veem a hospedeira-de-bordo numa mímica, cansada e ridícula, a ilustrar uma extenuada mensagem, emitida por uma tão impessoal voz, subitamente o pânico, as costas do assento da frente quase de encontro ao seu rosto, o anafado que lá se sentara resolveu espreguiçar-se, incidentes, pois, incidentes, a aterragem, a espera pelas malas e malas, pegar, levar, entregar, o autocarro para o hotel, a certeza de que dispõem de poucas horas até ao amanhecer, mas não se pode desperdiçar o pequeno-almoço, o fatídico despertador, uma exclamação impronunciada pelo pensar (Até nas férias! Até no tal paraíso!), sob o domínio do sono encaminham-se lentamente para a sala-de-refeições, à sua espera a caos, um vai-e-vem de gente com pratos, sem pratos, todo à volta de largas mesas com diminutas quantidades para um potencial pequeno-almoço, e, claro, bichas e bichas, uma prece para que o tempo lhes permita a sonhada praia, de repente, chegou o dia de regresso (“Mas como? Já?! E gastámos a totalidade dos subsídios! Pois foi… Mas valeu a pena, não achas? Confesso que não sei… Passou tão rápido! Parece que chegámos ontem e hoje estamos a ir embora… Estivemos uma semana, mas pareceu um dia…”), e lá vêm eles, tudo de novo, o aeroporto, as horas infindas perdidas, as malas, tira cartão, arruma cartão na carteira, o desconforto dos assentos, a ridícula mímica da hospedeira-de-bordo a ilustrar uma extenuada mensagem, emitida por uma tão impessoal voz, agora no sentido contrário, rumo ao seu quotidiano, uma questão demasiado subterrânea a levantar-se-lhes, ela logo a silencia, ele talvez não, uma vez que no seu horizonte já vislumbra um pesadelo materializado, trabalho ou lá o que essas tarefas impostas para garantir a sobrevivência se chamem, e enquanto se remexe, no desconforto daquele assento, na procura de uma posição que mitigue dores antigas, as palavras chegam-lhe ao penar, ordenam-se na forma de uma questão: “O que ando aqui a fazer?”

terça-feira, 5 de março de 2024

NASCER


 

PEDRO DE SÁ



NASCER

 

 

Just a perfect day
You made me forget myself
I thought I was someone else
Someone good

 

Lou Reed (Perfect Day)



ÍNDICE


 

 


Perder………………………………………………………………………….

Procurar……………………………………………………………………….

Encontrar?…………………………………………………………………….

Epílogo…………………………………………………………………………


Perder


Pensei em escrever-te uma carta-de-amor, mas não sei para onde enviá-la, procurei-te nas possíveis formas do hoje e nada, até ajuda pedi, sabias? E nada! Uma das frases que mais tenho repetido ultimamente (“Vivemos tempos estranhos!”) regressa-me, parecemos estar tão próximos, ao alcance de um écran rectangular que levamos no bolso, porém nunca estivemos tão distantes, desta verdade ninguém me demove, e eu não te encontro, quando a realidade vira costas aos nossos desejos, só resta recriá-la, aprendi há muito, lembra-te da minha primeira frase (“Pensei em escrever-te uma carta-de-amor, mas não sei para onde enviá-la”), compreendi, recentemente, que te tenho procurado de todas as formas possíveis, um dia talvez te conte, como demorei a chegar a esta conclusão, e os equívocos, meu Deus! Os equívocos! A orfandade que me regressava, a orfandade de ti! Tenho tanto para te dizer, que nem sei por onde começar, espera, lembrei-me, vou falar de arrependimentos, há quem ouse afirmar de nada se arrepender, pois, não pode haver burro maior, logo eu que me vergo ao peso dos meus arrependimentos, e tu és o maior deles, por numa certa madrugada… É sobre isso que te quero falar, há uns tempos disseram-me que tenho uma alma anoitecida, como podia ser de outra forma, se não sei por onde andas, e não falo de saudades, mas de Viver, hoje vamos regressar àquela madrugada, se há momentos que definem o rumo de uma existência esse figura  entre os principais da minha, e da tua, espero, aqui chegados, assumo toda a responsabilidade pela minha enormíssima estupidez! Não concebo outra forma de agir, sem ser a assumpção do erro! Não te peço desculpa, escrevo-te uma carta-de-amor, como dizia, numa existência há quatro ou cinco momentos que definem o seu rumo, eu intuí, nessa madrugada, que vivia um deles, algo em mim, muito subterraneamente, alertava-me para esse facto, porém, eu relativizei, o lugar do ontem é o amanhã - que verdade mais dolorosa! Deixei-te à porta do teu prédio e corri para o meu, mochila, roupa, o suficiente para gasolina e comer, já reparaste: esta é uma das delícias do ontem: basta pouco para sermos felizes, no fundo, basta sermos, como, a dado momento do nosso trajecto, trocamos o ser pelo parecer? Hoje, aquando de uma viagem, logo uma panóplia de utensílios designados de imprescindíveis, submergimos nas correntes e, na maioria das vezes, nem nos apercebemos, basta atentar naquele peculiar rectângulo onde tantas almas se aprisionam, há somente duas décadas nem vislumbres de tão triste realidade, nessa noite, enquanto deambulava por casa, com receio de me esquecer de alguma coisa, uma questão levantou-se-me: quantas vidas pode conter uma existência? Encosto-me à parede e rumino a pergunta, de facto, cedo me vi perante as questões essenciais desta coisa de nome viver, vi-me a descer, a correr em direcção ao teu prédio, do outro lado da rotunda, a madrugada chamava-nos, há coisa mais bela que o apelo da madrugada? Mas também me vi a sentar na cama, a telefonar-te, com a sofrível desculpa de um fraco  que prefere a segurança de um amanhã sabido à incerteza do apelo da madrugada, contudo, resolvi materializar o pensamento: vou escrever-te uma carta-de-amor; após juntar o necessário numa mochila, adeus aos pais, desço, fico, durante um pouco, a sentir a noite, talvez por ser uma criatura diurna, este fascínio, agora, pelo desvelar dos encantos nocturnos, um silêncio descido sobre as coisas do mundo, como se este não fosse o lugar do sofrimento, meu Deus, este é o seu habitat natural, enfim, de vez em quando, uma viatura ao longe, logo se me levantam as habituais questões (De onde vem? Para onde irá?), como se uma decorrência natural, olho as janelas iluminadas em volta, desde miúdo um irreversível enlevo, talvez pelas possibilidades silenciadas (Quem seria eu se ali tivesse nascido? Será que por aí mora a felicidade? Haverá menos silêncios entre aquelas paredes?  Moram ali as minhas vidas sonhadas?), inspiro a madrugada, vou ao teu encontro, sim, repito, vou até ao encontro, não fosse esta uma carta-de-amor que ficou por escrever, enquanto caminho, compreendo que, neste espaço do existir, podíamos ter sido tantos (bastava um olhar mais demorado ali, muito menos estupidez acolá, saber ouvir os silêncios gritados entre gestos e olhares), é uma análise dolorosa, sem dúvida, porém, necessária, a dignidade nasce da assumpção do erro, e só não erra quem não respira, olho o mundo como uma imensa manhã, há poucas sensações que se lhe igualem, o mundo como uma imensa manhã, a meio da rotunda, vislumbro a tua silhueta em contraluz, já me aguardavas, de capacete na mão, o mundo como uma imensa manhã (Há coisa melhor?), acelero o passo, simultaneamente a alma também me amanhece, para disfarçar o meu notório entusiasmo pergunto-te  (“Estás pronta?”), respondes com o teu característico sorriso rasgado (“Sabes que sim.”), há quanto não ouço uma  resposta que se aproxime (“Sabes que sim.”), agora que penso nisto, curioso, há quanto não me perguntam (“És feliz?”), uma questão simples, curta, objectiva, porém, ninguém a coloca, em verdade, nunca me colocaram, pelo menos a minha memória não alcança tal (“És feliz?”), por  que será? Questiona-se tanta coisa, no entanto, descura-se a essência: És feliz? Antes do capacete, inspiro, não por acaso, tinha deixado a moto no teu prédio, não, desta vez não ia telefonar-te, com a sofrível desculpa de um fraco que troca a incerteza do apelo da madrugada pela segurança de um amanhã sabido, subo, tu a seguir, ajustamos as mochilas, uma vez disseste-me que adoravas andar de moto comigo, sabes, sempre foi a ti que eu adorei ter-me abraçada, denotava-te entusiasmo, afinal, íamos para longe das nossas agruras, descemos até à bomba-de-gasolina, a meio daquela cansada avenida, embora naquela noite se nos afigurasse tudo menos cansada, parecia uma pauta-musical prestes a iluminar-se, afinal, íamos para longe das nossas agruras, era a segunda vez que atestava o depósito daquela moto,  também desceste e retiraste o capacete, aproveitaste para esticar as pernas antes da viagem e ajeitar os cabelos, fascinava-me esse ritual, o elástico entre os dentes, enquanto reorganizavas os cabelos, embora aquela teimosa madeixa escapasse sempre, nem sonhas o quão encantado ficava, parecias conhecer o desfecho, daí a tua resignação, lá a ajeitavas para trás da orelha, mas tarde ou cedo precipitar-se-ia para te encobrir parte do rosto, nunca comentei isto contigo, quem se fascina não verbaliza, compreendes, não é? Nessa madrugada, quem estava de serviço era aquele brasileiro excêntrico, recordas-te dele, certo? Falava tão pausadamente, ficávamos na dúvida se seria lento de raciocínio ou na fala, repetia tudo o que se lhe dissesse, eu “É para atestar o depósito”, como se um eco “Atestar o depósito… Ora, muito bem, atestar o depósito…”, o que nos ríamos, lembras-te? E anuía enquanto falava, o que lhe conferia um ar de boneco-de-corda vindo de um qualquer sótão longínquo, o penteado anacrónico, em escova para a frente, reforçava essa impressão, porém, denotei-lhe espanto ao ver-nos àquela hora, as mochilas volumosas, inesperadamente pedes dois cafés, logo eu que, até então, lhe desconhecia o gosto, “É melhor! Olha as horas, a distância…”, não precisaste de argumentar muito, logo te sorri, e cada um bebeu o seu café, enquanto o brasileiro nos observava intrigado, pela hora, as mochilas volumosas, o seu insistente olhar questionava (“Para onde vão a estas horas?”), não sei se reparaste, uma das coisas que mais me encantava em ti era essa tua altivez, como se, depois de tão magoada, tivesses resolvido virar costas ao mundo, talvez por isso não reparasses no insistente  olhar que questionava (“Para onde vão a estas horas?”), terminado o café, efectuado o pagamento, saímos, de novo, antes do capacete, inspirei fundo, tu, uma vez mais, de elástico na boca, cumprias com o ritual do cabelo, claro que me imobilizei a olhar-te, mesmo após colocares o capacete, denotei a teimosa madeixa sobre o teu rosto,  como estava feliz por seres tu, neste momento,  comigo, e também orgulhoso, não consigo transparecer por palavras o porquê desse orgulho, sabes,  intuía que a nossa ligação provinha de um ontem há tanto ido, como amava estar a teu lado, sempre foste o espelho que mais extensão deu de mim, o brasileiro persistia, atrás do vidro, a olhar-nos, acenei-lhe adeus, ele retribuiu com entusiasmo, não mais iríamos vê-lo,  já pensaste nisso? Ainda te lembras dele? Nessa mesma noite, quando pediste os dois cafés, ele “Ora são dois cafés… Dois cafés… Dois cafés…”, o que ríamos, e ríamos porque éramos felizes juntos, ambos sabíamos, só não o admitimos para o outro, havia tantos escolhos entre nós, mas quando partíamos para longe, tudo se diluía como se uma mera ficção, premi o pé para baixo, a primeira estava metida, antes de acelerar, olhei para trás, aninhavas-te nas minhas costas, a estrada deserta, a madrugada, a mulher que amo abraçada a mim, que mais podia pedir? Uma vertigem de felicidade assolou-me, temia esses momentos, o brasileiro continuava a acenar adeus por detrás do vidro, acelerei ao mesmo tempo que largava, com suavidade, a embraiagem pelo manípulo esquerdo, senti mais o teu calor, rumávamos a Norte, tanto que falámos nisto, viseiras para baixo, blusões-de-penas fechados até cima, embora não estivesse frio, só pela distância, a cidade aparentava dormir, à medida que nos íamos distanciando do quotidiano, descia sobre nós uma leveza, demorei tanto a compreender-te, como pude ser tão burro! Despojo de um primeiro casamento fracassado no lar do segundo, com dois meios-irmãos, o padrasto zelava para que a luz recaísse sobre estes, a tua mãe deixava-se ir na corrente, prometeu que não voltaria a falhar, neste ponto tu eras o espelho da relação fracassada, pois, o despojo, volta e meia ausentavas-te do bairro, só percebi depois, tão depois, ias visitar o teu pai, no seu novo lar, também refizera a vida, num bairro mais humilde, ainda estávamos a assistir aos primeiros passos da destruição do núcleo familiar, foste mais uma vítima deste processo, apenas e só, não por acaso eras das poucas que navegava entre dois arquipélagos, não gostavas de te dar a conhecer, sobretudo com quem não tinhas confiança, não sabíamos onde dormir, era irrelevante, arranjar-se-ia lugar, apenas quisemos partir, depressa, juntos, há coisa melhor?  Foi a única vez onde tal me sucedeu, o seu carácter singular, como se vê, perdura até hoje, a noite estava luminosa, não há luar como o de ontem, perfumada, felizmente pouco trânsito, descontraía-me a condução, embora acelerador no máximo, a tua mão insistente na minha cintura para abrandar, apontaste o horizonte do lado direito, reduzi e parei na berma, agora, à nossa frente, um longo vale onde se espraiava o rio imenso que, a esta hora, reflectia o luar, mota no segurador, avançamos até ao possível do penhasco, extasiados com o cenário, com o momento, o silêncio, talvez com tudo, retirámos os capacetes e ficámos a contemplar aquele vasto curso de prata a iluminar o mundo em volta, sentei-me numa rocha, tu permaneceste de pé, lembro-me de me descer a ideia, perante aquele cenário, de possivelmente existir uma ordem-das-coisas, tudo no mundo estar no seu lugar, hoje rio-me destas minhas elucubrações, como era inocente, porém, naquele momento não podia inferir outra coisa, se o eu do hoje lá regressasse, retirava a mesmíssima ilacção, e o silêncio,  apenas rompido, volta e meia, pelo canto de um pássaro, talvez uma coruja por ali, desejei regressar de dia, embora agradecesse a bênção da perspectiva nocturna, o vale teria bem mais de uma dezena de quilómetros, na margem de cá havia uma povoação, pela dimensão talvez uma vila, do outro lado do rio apenas a obra de Deus, hoje coroada de prata, lembras-te do que me disseste? “Com a distância, os nossos problemas ficam menores”, no fundo, reflectias em voz-alta, apreciei o facto, cumpria um dos meus desígnios, mitigar-te os temores, relativizá-los, davas os primeiros passos nesse sentido, tal como o teu silêncio enquanto contemplávamos aquele deslumbrante cenário, no fundo, em momentos assim, as palavras tornam-se obscenas, intuías este facto, o verbo pode eternizar  ou destruir uma circunstância, ficámos o necessário, fui eu a relembrar caminho, a fazer-te regressar ao aqui, disfarçaste com o teu peculiar sorriso, é a primeira imagem quando o teu nome: o sorriso solar: esperança e luz: e tanta noite trazias no coração! Sabes quando me entraste no peito? Outra questão essencial e tão pouco verbalizada, dever-se-ia colocar a todos os casais, para aferir quantos já a realizaram, a insignificância do resultado seria elucidativa, de facto, hoje cala-se a essência e privilegia-se o acessório, mas regresso ao essencial: Sabes quando me entraste no peito? Foi numa daquelas tardes onde começava a vislumbrar o abismo de mim, a vertigem de tudo isto, a carência de um Sentido para o desfile inextinguível dos dias, de facto foi muito prematura esta minha intuição, claro que a procurei silenciar, atirar para bem longe, soterrá-la, como pude, porém já se alojara em mim, não me recordo como, vi-me a desaguar à tua campainha, logo eu que sempre fui gabado pela capacidade de trazer o ontem ao hoje, porém, a verdade é que não me recordo como, andava para aqui e para ali em tentativas vãs de calar este prenúncio de loucura, quando a tua imagem se me iluminou no pensar, logo a campainha, quando me disseste “Sobe”, percebi como era bem-vindo, andavas também à volta com os teus demónios, no fundo, salvámo-nos um ao outro, pelo menos nesse dia, também noutros por nascer e hoje tão idos, quando entrei, ouvias uma canção tão minha, a partir desse momento, tão nossa, como é raro, no espaço do viver, encontrarmos uma alma que se delicie com os mesmos acordes, sim, foi nessa tarde que te alojaste no meu peito, por me salvares, pela honra de possibilitares que também te salvasse, pela canção onde tanto me revi, por subitamente compreender que a nossa história há muito tinha começado – para lá da vã compreensão -, creio que por tudo, desde então, aqui perduras, lembras-te do resto desse dia? Perguntei se querias sair, tu grata, olhámo-nos e compreendemos que, só juntos, calaríamos os demónios que nos habitavam, como se não encontrassem forma de entrar no halo por nós formado, demorei tanto a compreender-te, talvez demasiado, como pude ser tão Burro! Não me canso de repetir! Lembro-me de a tua mãe e padrasto chegarem com os teus irmãos, ainda pequeninos, pois, isto foi num ontem, a surpresa pela minha presença, mas pressenti alegria e alívio, sobretudo na tua mãe, ela sabia dos teus demónios, como podia desconhecer? Ainda, em mim, a sua gentileza, amabilidade, simpatizei logo, e sabes bem que nunca fui de simpatias à primeira, a certa altura olhei à minha volta e entrevi a possibilidade de uma outra existência, há coisa melhor? Fomos jantar fora e cinema, antes de sairmos, despedi-me, estavas a meu lado, o semblante da tua mãe amanheceu com a possibilidade de nós, como eu gostava quando tu a meu lado, não foi só o seu rosto em manhãs, o nosso também, encantava-me a tua pequena cicatriz perto do sobrolho esquerdo, enquanto o elevador descia perdi-me a olhá-la, não vou desvelar aqui a sua génese, isso fica entre nós, uma carta-de-amor pode ser transviada, nunca se sabe, por conseguinte, não posso aqui expor tudo, mas, como te dizia, foi, nessa tarde, quando, da entrada, aquela canção, de repente o Sentido, com o tempo creio que me virou costas, há tanto não o encontro, alojaste-te no meu peito e não mais partiste, respondes “Eu sei qual era a canção!”, já repeti que desta existência perduram quatro ou cinco momentos, este será um deles (...)