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domingo, 7 de abril de 2024

E quando dei por mim, o chão cobria-se de folhas

 


Antes o Verão era mais longo, antes tudo demorava mais, um pouco como se as coisas caminhassem em passos de minhoca, num precário equilíbrio, sobre um caule numa demasia oblíqua, de facto, antes tudo demorava mais, sobretudo o Verão, acordava-se e havia uma compreensão, após inspirar a manhã, que diante de nós, aquele dia, seria a eternidade, não se percebia que as sombras mudavam de lugar, que a luz se ia alaranjando com o decorrer das horas, a sucessão das refeições, quando a voz da minha avó, proveniente da cozinha com aroma a lareira, preenchia os ares, a chamar para o almoço, uma pausa no reino do brincar, a tomada do castelo adiada por um pouco, ou o assalto ao forte pela tribo índia, em verdade, de estômago vazio não convém abraçar este tipo de empreitadas, uma pausa na eternidade, a corrida obediente, o aroma a lareira a intensificar-se, o banco retirado de debaixo da mesa com o pé, logo as regras a descerem sobre mim, um chefe índio, Por acaso, já lavaste as mãos? Eu a pensar, repito, somente a pensar, Por acaso, sabe que se está a dirigir a um chefe índio? Lavar as mãos? Para quê, se ainda tenho uma batalha pela frente? Enquanto pensava, repito, somente pensava, já as minhas mãos, cobertas de sabonete, debaixo de água fria, como sabia bem nesses dias que ensinavam, num além-dicionário, o significado da palavra calor, que jorrava abundantemente da torneira, e naquele mundo, uma casa aqui, outra acolá, verde a separá-las, na distância, o rio, uma questão nascia-me Onde nasce o rio? A resposta eivada de uma pertinência cerimoniosa Provém das alturas, a princípio, eu soterrado de imagens e de ainda mais questões, até que, num compasso teatral, a luz final, Nasce na serra, além, na distância, seguia o gesto, materializado no braço magro, a mão ossuda, mas elegante, por fim, o indicador levantado, quase tangia a serra, que preenchia o horizonte a leste, insistia, Estás a ver? Eu, perante aquela explicação, nada via, porque tudo sentia, senti-me transportado para a génese pétrea daquelas águas, tantos anos depois, ainda não encontrei melhor lição de Geografia, Estás a ver? Meu Deus, como podia não ver? Ainda hoje, quando me perco nos, cada vez mais, enviesados caminhos do mundo, olho esperançado que um braço magro, uma mão ossuda, mas elegante, com o indicador levantado, me diga Estás a ver? E eu respondo, na humildade de quem se perdeu, DesculpeComo podia não ver? Após lavar as mãos, as panelas, ainda ao lume, aguardavam pela chegada do meu avô, eu serenamente sentado à mesa (Há quanto tempo não me sento serenamente à mesa? Ou em qualquer outro lugar?), a pensar numa forma de derrubar o forte, na tarde que, antes de chegar, já se espreguiçava na indolência do estio, hoje só compreendo a tarde quando já me acena amanhãs, e nunca mais vi panelas ao lume a aguardarem a chegada do meu avô, talvez, por isso mesmo, eu nunca mais tenha visto panelas ao lume, também nunca mais me disseram, antes das refeições, Por acaso, já lavaste as mãos? E como lhe sinto a falta, logo eu que tão distraído sou, talvez se, num qualquer lado do hoje, reencontrasse uma água fria que tão bem sabia naqueles dias que ensinavam, num além-dicionário, o significado da palavra calor, que jorrasse abundantemente da torneira, talvez aí, eu me sentasse a uma mesa com serenidade, no entanto, percebo-me hoje mais inquieto, o amanhã ainda não veio, mas entra-nos sucessivamente o seu receio, assim, já não há pausas e menos ainda reinos de brincar, por todo o lado, insistentes sombras de inquietantes nuvens, para onde quer que olhemos, a verdade é que antes o Verão era mais longo, antes tudo demorava mais, percebo-me, cada vez mais, um habitante da dúvida, e, não sei porquê, volta e meia, dou por mim a olhar para leste, não sei se de manhã ou de tarde, mas o horizonte longe, tão longe, de serras e de alturas, se ao menos, perto de mim, um braço magro, uma mão ossuda, mas elegante, com o indicador levantado, me dissesse, uma vez mais, Estás a ver? Talvez aí eu tangesse serenidade.

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