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domingo, 14 de abril de 2024

Uncas


 

- Sim, tinha nome de índio: Uncas! Uma das personagens do filme da minha vida, quando se colocou a questão do nome, eu nem hesitei: Uncas! E como o nome tão bem lhe assentou, há, de facto, coisas espantosas, talvez por ter tropeçado numa fotografia dele, há uns dias dei comigo consumido em saudades, sabes bem o porquê da sua entrada na minha vida, não vou repeti-lo, como dizia, há uns dias dei comigo consumido em saudades, sinto-lhe mais a falta do que a de muitos ditos humanos que para aqui andam ou já partiram, a verdade é esta, por conseguinte, assumo-a, vejo-o com todas as idades: de cachorro a um cão velhinho e quase cego, teve um fim natural – nem glorioso (como se um fim pudesse, alguma vez, ser glorioso), nem trágico –, partiu nos meus braços, de noite, ainda hoje creio que soube ser a sua hora, foi sereno, à sua volta, entre nós, que assistimos, incrédulos, à sua partida, apenas o vazio e a resignação, desculpa, estou a perder-me, não posso falar do Uncas partindo do fim, a sua essência está no início: era Alegria materializada, ninguém ficava indiferente àquele cão, todo o bairro o conhecia, sinto-lhe mais a falta do que a de muitos ditos humanos que para aqui andam ou já partiram, a verdade é esta, com o Uncas por perto, vazio era um conceito longínquo, talvez por tanto nos dar, não fosse o vazio o resultado da subtracção daquilo que nos legaram, podia contar-te tantas e tantas histórias suas, raras vezes, nos meus passos pelo aqui, senti-me tão compreendido num olhar, porém, bastava os seus expressivos olhos em mim, o abanar da cauda, os passos hesitantes ou em corrida na minha direcção, para logo me ser restituída a fé no mundo, certa noite, numa das suas idas à rua, fugiu, o seu nome gritado, desespero, imagina, quando me ocorreu uma possibilidade: liguei para casa dos meus pais, e, claro, adivinha quem lá estava? Era uma distância de aproximadamente oitocentos metros, porém, o bicho nunca a percorrera a pé, quanto mais sozinho e de noite! E lá estava ele, feliz da vida, ainda eram domínios seus, por ali os seus direitos prevaleciam sobre os deveres, basta relembrar que não havia casotas, dormia, como qualquer outro elemento da família, numa cama, não comia em tijelas, petiscava, sempre a generosa mão de meu pai, que, durante anos, afirmara não querer cão ou gato, mas não resistiu a Uncas, em verdade, quem lhe resistia? Só mesmo quem não possuísse o símbolo do amor a bater dentro do seu peito, houve até quem adquirisse cães, numa ansiada busca por um protagonismo jamais seu, até os baptizaram com nomes fajutos, Fungas, por exemplo, mais deprimente é impossível, bem o sei, só me suscitou bocejos e indulgência, nada mais, nos primeiros anos, quando vinha da rua, era vê-lo em corridas alucinantes pela casa, parecia percorrer um circuito, uma, duas, três, quatro, sala, sofá acima, cozinha, um dos quartos, de novo, sala, sofá acima, cozinha, um dos quartos, terminava invariavelmente debaixo da mesa da sala agarrado à sua… Bolinha! Quando se lhe soletrava bo-li-nha, as orelhas em sentido, a cabeça inclinada e o mundo em suspenso, acreditava, e acredito, que efectivamente a realidade se suspendia à espera da sua corrida em busca da bo-li-nha, aprendeu rapidamente as elementares regras de higiene, a sentar, dar a pata, o que é a rua, sem aquela pedagogia básica da recompensa, é natural, o Uncas não era básico, felizmente anos-luz de tal conceito, outro dos episódios que te posso relatar, para perceberes a sua singularidade, foi aquando de uma ida aos correios, de repente, os céus resolvem limpar da terra os pecados do homem, ao regressarmos ao carro, no meio daquele dilúvio, julgámos que não saíra, chegados a casa, Uncas, Uncas,  Uncas, nada, uma vez mais, o seu nome gritado, desespero, imagina, quando me ocorreu uma possibilidade: regressar ao estacionamento dos correios: ali estava o bicho, sob aquela chuva inclemente, reconheceu, de imediato, o carro, a cauda em velozes saudações, até hoje ainda não encontrei tamanha fé num denominado ser-humano! Aquele cão, naquela tristonha tarde de chuva, iluminou o mundo com um acto de fé singular: sabia que os seus donos (sim, isso mesmo, donos, na minha prosa a estupidez e cretinice do hoje jamais têm porta de entrada!) regressariam para o buscar, se, de dentro do carro, o visses, sentado, imóvel, estaria ali, pelo menos, há hora e meia, a olhar para o fundo da rua, não encontro palavras para ilustrar devidamente esta cena, às vezes questiono-me quantos carros por ali não teriam passado, no entanto, ali se manteve, impassível, sabia bem quem eram os seus, o verdadeiro amor: uma soma de: abnegação, esperança e fidelidade… Continuo-o  a vê-lo com todas as idades: de cachorro a um cão velhinho: sinto-lhe mais a falta do que a de muitos ditos humanos que para aqui andam ou  já partiram… Se subtraía tempo de vida para o rever? Alguma dúvida?! O que eu não dava para sentir aquela Alegria a correr na minha direcção! Sabes uma coisa? Há palavras que não mais repeti. Quais? Bo-li-nha, por exemplo! Pertencia-lhe. Há coisas que definitivamente pertencem ao contexto, devias saber isso, fora dali soam a absurdo, havia um filme, da minha infância, com um título muito curioso: “Todos os cães merecem o céu”; isto descansa-me, acredito que esteja num bom lugar e à nossa espera, para quando chegar a nossa hora, do outro lado ser recebido por uns expressivos olhos, o abanar da cauda, os passos hesitantes ou em corrida na minha direcção, para logo me ser restituída a fé no mundo e, por fim, afirmar que valeu a pena cada pegada deixada para trás.

 

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