Livros

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quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

Quanto tempo dura uma sombra?



De repente, vejo-me diante deste estranho, com um aspecto frágil, delicado mesmo, e a questão (“Então, o que a traz cá?”) suspensa entre nós, embora só me pese a mim, quase me ensurdece (“Então, o que a traz cá?”), eu opto por olhar à volta, não me passou despercebido o silêncio da divisão, convidativo ao fluir da palavra, embora talvez um pouco artificial, uma vez que, lá fora, a dessintonia habitual da hora citadina, era uma sala agradável, um pedaço de lar ali colocado, as cores suaves, das paredes aos objectos, ao centro pontificavam dois cadeirões, de frente um para o outro, num convite implícito ao diálogo, assim que os vi, nasceram-me palavras... 


terça-feira, 28 de janeiro de 2020


… não vivemos, vamos morrendo, mais lenta ou rapidamente, esta é a realidade...

in Divagações


sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Ao Sabor de um Eléctrico pelas ruas da Cidade



São sete da manhã. Ele permanece ainda deitado. Chegara a dormir? O estore corrido não consegue travar o anúncio de dia. Levanta-se, numa dificuldade crescente do acumular dos dias. Mas, sim, levanta-se. Após arranjar-se, e antes que o silêncio da casa lhe ensurdeça a razão, senta-se num banquito de madeira para comer um copo de leite e um bocado de pão com marmelada. É uma casa pequena. Da cozinha avista a cama por fazer, e os bibelôs empoeirados por cima da televisão. Primeiro, sorve um pouco de leite. Não sabe porquê, mas sempre se habituou em jejum a ingerir primeiro líquidos. Talvez por ser mais digerível. Só depois vem o pão da véspera acompanhado com um poucochinho de marmelada. Mastiga, também, com a dificuldade do tempo acrescido, no ensurdecedor crescente silêncio da casa. Por fim, embrulha tudo e repõe nos sítios. Ao abrir o frigorífico, sempre se espantou com o excesso inato de prateleiras. Afinal, o dele emanava a brancura do vazio. Sempre foi assim. Até em anos de necessidade calórica. Ele apenas um sorriso conformado interior. A sabedoria, no fundo, talvez seja a aceitação de que há coisas que trazemos para o mundo e connosco partem. Antes de sair, ajeita os fios de prata que lhe emolduram o rosto acinzentado pelas desilusões do tempo. Pega no pente preto, aqui e ali com umas pontas partidas, e de olhos fechados procede ao rito que antecede a saída. Após fechar a porta e rodar a chave quatro vezes, antes ainda de chamar o elevador, procede a uma derradeira reconfirmação de chaves e fechaduras. Sai para o mundo, num passo estugado para a idade, que, visto de longe, proclama uma pressa de destino. E este não é assim tão longe da porta do prédio. Àquela hora ainda poucos na paragem. Passados cerca de sete minutos, ouve o som familiar de uma campainha. Vira-se para esquerda, e hoje, sem saber muito bem porquê, afigura-se-lhe ainda mais familiar do que em dias idos. Deixa sempre a pressa passar adiante. Afinal, há muito compreendeu o malogro da sua fuga. De si, vai para onde? De novo a campainha, e a marcha metálica tem início. 

Viaja à janela – hábitos de meninice que o tempo não apagou –, por ora o banco só para si. A cidade primeiro espreguiça-se (o trânsito começa a avolumar-se, bancas que se montam, a vida regressa-lhe…), de seguida lava a cara (persianas que se levantam, montras que se renovam…), por fim perfuma-se (ora cheira a café, ora a bolos, ora a flores…). 

Para ele, o mundo há muito que está a preto e branco. Os únicos movimentos que se lhe vêem, devem-se ao constante pára e arranca. Sobejam um rosto e uma janela. As mãos seguram o nada. Talvez uma ausência. Talvez demasiadas ausências. E o mundo sempre num preto e branco dorido. Alguém se sentou a seu lado? Ele não sabe. Não terá reparado. O rosto sempre na janela. Que contempla? Talvez o próprio movimento, e uma réstia ilusória esperança de fugir de si (...)

domingo, 19 de janeiro de 2020

Divagações



A partir de hoje, se me perguntarem porque escrevo, responderei: porque a vida não me chega! É um facto: a vida não me chega! Aqui chegado, continuo sem lhe encontrar um sentido, quanto mais o Sentido, tantas teorias, da religiosidade às filosofias, porém, nada que, no quotidiano, mitigue uma extenuada questão regressada na voragem do acontecer: O que ando aqui a fazer? Se me perguntassem a coisa de uma outra forma (Gostas da tua vida?), a minha resposta seria pronta: Não! Quem responde o inverso (seja pela instaurada tirania do maldito politicamente correcto, para não ferir susceptibilidades próximas, pela ditadura do sorriso, a fraqueza de não reconhecer erros…), mente ou mente-se...

sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Uma janela para qualquer coisa de bom



A primeira vez que ali entrei, pela mão dos meus pais, teria os meus sete ou oito anos, desde logo, fascinou-me a grandiosidade e a beleza do espaço, pude contemplá-lo demoradamente porque havia uma fila considerável, compreendi, pelas rasgadas janelas, um verde, lá fora, a relembrar-me aventuras em paragens longínquas, enredos de cinema ou banda-desenhada regressaram-me à vista de tão luxuriante paisagem, quando chegou a nossa vez, uma voz sussurrou-me (não me recordo se meu pai ou minha mãe), “Agora escolhes quatro variedades”, eu, atónito, a contemplar as múltiplas iguarias, algumas pela primeira vez, hesitante, renitente, a voz insistia: “Escolhe quatro variedades”, quase tacteando lá procedi à minha selecção, depositaram-me o prato no tabuleiro (não me recordo se meu pai ou minha mãe), seguiu-se a escolha da sobremesa, o meu olhar, não sei porquê, perdido numa iguaria verde, nunca vira um doce com tal coloração, com a exigida educação (sim, houve tempos em que a educação era um imperativo social) questionei que doce era aquele, responderam-me, sorridentes, mousse de abacate, de súbito, parecia estar noutro continente (mousse de abacate), a escolha estava feita, após o pagamento, a procura por uma mesa vazia, havia uma mesmo junto à grande janela que ilustrava um verde, lá fora, a relembrar-me aventuras em paragens longínquas, foi a primeira vez que ali entrei, teria os meus sete ou oito anos, mas uma certeza nasceu-me, ali estava meu lugar preferido para almoçar...

quarta-feira, 15 de janeiro de 2020


Tem de haver uma Biblioteca no Céu



Conheci-o já adulto. Sim, porque só conhecemos alguém, quando compreendemos as suas paixões. E para compreender as do meu Tio, levei o meu tempo. E esse exigiu a maioridade. Recordo-me, com nitidez, a sua forma de receber. Com elevada cortesia, convidava-nos a entrar, e apontava-nos, com a sua mão direita, o fundo do extenso corredor à direita. Aí chegados, entrávamos no seu mundo: um mundo de papel, de silêncio, de saber, de sonhos… E foi aí, que me deu a conhecer o sublime da essência humana. Sentava-se, na sua secretária, diante de mim, e dissertava acerca da temática mais relevante para o momento. Por vezes, parava, para ir em busca de um qualquer texto que, oportunamente, ilustraria, na perfeição, as suas palavras. E como era extenso o seu universo de papel! O seu olhar, acompanhado pela mão, percorria lombadas e lombadas e lombadas. Por fim, regressava sempre, num triunfo silencioso, com o volume desejado. Sentava-se. Olhava o livro com uma familiaridade quase orgânica. Como se este fosse uma extensão de si. E, no fundo, era-o. Sabia sempre onde o abrir. Regra geral, os seus livros estavam comentados, sublinhados… E então, procedia à leitura de um excerto, com a singularidade de uma voz que tinha o dom de animar caracteres impressos, como se, em vez de os decifrar, lhes desse a vida. Como eu gostava de o ouvir declamar Pessoa! E tantos outros… Acredito, no meu íntimo, que o próprio Pessoa gostava de ouvir as suas palavras através do meu Tio. Ainda hoje recordo quando declamou o Aniversário, de Álvaro de Campos. A cada verso, senti-me a mergulhar naquele universo, numa viagem ao tempo em que festejavam o dia dos meus anos. E muitos, muitos, outros… Sim, a lista é extensa, assim como a sua invulgar cultura. Sabia que o caminho do saber é o da humildade. Porque só procura quem sente a falta. E, até ao fim, procurou, e procurou, acrescentar um pouco de areia à sua ilha (o meu Tio gostava, particularmente, desta metáfora de Huxley). Achava que era o dever de cada um de nós, nesta existência, lançar a ponte para o próximo. Só assim, no seu entendimento, a compreensão poderia emergir. E, de facto, sempre procurou esse conhecimento do outro. Ouvia-nos, sentado, a cabeça ligeiramente inclinada, num misto de compreensão e indulgência. De seguida, as suas palavras apenas lucidez. Afinal, os tempos não pedem outra coisa...

domingo, 12 de janeiro de 2020

O Verão é um lugar lá atrás



Há palavras que fatalmente nos remetem para tempos e lugares, Verão é uma delas, hoje, quando a ouço, limito-me a olhar para um tempo em que vivia o presente, foi tão precoce este desaprender, não me recordo do momento, apenas do seu carácter matinal na minha vida, lamento-o bastante, talvez por isso hoje queira regressar a um tempo onde o passado estava à distância de um olhar e o futuro apenas um sonho por sonhar, há felicidade maior que respirar o instante? A angústia, assim sendo, não advém da ignorância, mas da consciência de tão precoce desaprender, e a amarga compreensão da impossibilidade desse regressar, há quem o tente através de retornos e recriações estéreis, não sei se chegam a entrever o malogro dos seus esforços ou o ridículo do itinerário, embora, por estes dias, ridículo seja um vocábulo em desuso, tal a proliferação da sua essência, mas quando ouço Verão, limito-me a olhar para um tempo em que vivia o presente, e para uma terra, de casinhas brancas, que contempla, a cada instante, o abraço líquido entre rio e mar, a primeira vez que ali cheguei, familiarizava-me com letras e números, lembro-me tão bem de ficar sentado, num muro branco, da falésia, a olhar todo aquele azul à minha volta, a brisa quente relembrou-me outras paragens, como se eu já tivesse sido outros, de repente, encontrava um Sentido para as coisas (foi tão precoce este desaprender), algo tão raro, tão precioso, íamos para lá em Setembro, daí ecoem na minha memória tantos entardeceres, sempre vislumbrei em cada um o seu carácter irrepetível, no fundo, esse olhar residia em mim e não à minha volta...

quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

Por favor, diga-me que sim



Chegaram ao centro comercial, como é habitual ao sábado, por volta das 3 da tarde. Apesar da idade do carro, a estima dele não esmorece. Ainda por cima, como ele costuma dizer, sempre que pode trata de o abonecar. Já lhe mudou a dianteira e consequentes novas ópticas. O anoitecer, para ele, ganhou um novo desígnio: afinal, a estrada passou para uma tonalidade algures entre o azul e o roxo. E não esquecer a traseira… Mas já chega de carros. Afinal, acabaram de o estacionar, e, ao sair, ele não evita bater com a cabeça no terço, pendente do retrovisor, que a mãe o obrigara a colocar, sob promessa. Ela saía com mais solenidade: não só pelos saltos, como pelo carácter da ocasião. Antes de as portas se lhes abrirem de par em par, com a promessa de um triunfalismo nunca chegado, ele prime o botão da chave, e escuta o guincho metálico do carro, observa o reflexo das luzes nos vidros, e incha o peito por uma confiança revigorada. Ele dá-lhe a mão. Com a outra ajeita o boné. Enverga umas calças de ganga, compradas numa feira em Loures (na altura dissera a um amigo: São um mimo, bacano. Por um nico, e parecem as verdadeiras), camisa branca, casaco castanho de cabedal, um pouco coçado, e com o fecho estragado, e umas botas pontiagudas, pretas, com umas cornucópias gravadas a atirar para o dourado. Está um pouco irritado com um bocado de carne, preso entre molares, que não consegue tirar. Não consegue desviar daí a língua. Já tentou, infrutiferamente, com o indicador direito. Praguejou pela ausência de palitos. Tinha por hábito mirar-se nos vidros das montras, e perdia-se com os reflexos de luzes provenientes da ostensiva pasta de gel, que lhe emoldurava o cabelo. Ela, muito direita a seu lado, trazia vestida uma camisola preta, de decote acentuado (neste particular, ele nutria orgulho, e proclamava bem alto: O que é bonito, é para se ver), por cima um casaco a imitar peles, uma minissaia verde, e uns botins, forrados a leopardo, com um salto da altura da vertigem. Deambularam um pouco, entre montras, com o semblante algures entre o cumprimento de um dever e o fascínio. Enquanto ela resistia, desta feita, a entrar, e ficava-se pelas montras, ele observava em redor, na esperança de um sorriso conhecido. Mas os rostos cirandantes apenas lhe devolviam circunspecção e o distanciamento da indiferença (...)

quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Quantas vezes se Morre e Nasce ao longo da Vida?



O cortejo negro, num passo lento e doloroso, contrastava com o azul demasiado azul, talvez pelo seu convite à alegria, do céu. Não era um cortejo muito longo. Também não se esperava que o fosse. Mas no íntimo de cada um, latejava uma indizível revolta pela exiguidade do mesmo. Afinal, tratava-se de uma última homenagem. E, para essa, todos são convidados. Ela ia amparada (não se recorda por quem), a olhar um vazio, talvez não olhasse, mas começasse a sentir. Por fim, os passos cessaram. Algo desceu (um regresso?), ouviu palmas (soaram-lhe estridentes, despropositadas, ocas), e o som (inesquecível) de pás e terra, terra a cair em madeira, e este som ecoou nas suas raízes, como um grito secular mudo, e ela estremeceu, sentiu-se cair, agarrou-se à falésia anónima do ombro que a ladeava… Quando, por fim, abriu os olhos, só terra. Da madeira, nem sinal. Olhou o rosto dos homens das pás. Ostentavam um rosto condizente com a mecânica dos seus movimentos. Nutriu compaixão, afinal que sentimento pode suscitar a ignorância? Ouviu, agora, passos, murmúrios, era a hora do regresso. Mas ela já não tinha hora. Ainda menos onde regressar. Uma mão tola tentou arrastá-la. Tentou resistir-lhe, mas não havia forças. Se ao menos uma lágrima lhe surgisse. Talvez uma súbita leveza. Mas não. Sabia que o seu sentir estava além lágrimas. Um sentir de pedra não se compadece com o carácter líquido de uma emoção. Sentiu-se longe. Apenas isso (...)