Livros

Livros

domingo, 30 de agosto de 2020


 

Ele era diferente! Havia nele, simultaneamente, uma alegria contagiante e uma tristeza melancólica, tão estranho… Por vezes, dava-lhe, subitamente, para revisitar lugares do passado, como se vivesse em vários tempos, não sei se me faço entender… Talvez fosse o contrário, e quisesse apenas trazer o ontem ao hoje.

in Harmonia

sábado, 29 de agosto de 2020

A desencantada procura por “um não sei o quê”


 

Desde que me lembro, sempre que chegava a um lugar novo, fosse para férias ou de visita, uma frase nascia-me (“Afinal, é só isto…”), a minha atenção com o além logo transformado num aquém assim que lá chegasse (“Afinal, é só isto…”), uma urgência de partir, mas não de regressar, afinal só se regressa a casa, talvez seja esse o meu problema, ainda não encontrei o lar, para aqui ando de dia em dia num crescente enjoo de tudo isto, o pior, creio, seja a consciência deste enjoo (o além logo transformado num aquém), nada me ater ao aqui, quantas vezes a inveja dos que partem, por se cumprirem, realizarem, talvez por se libertarem do enjoo de tudo isto, e que fardo, há uns tempos alguém me disse que as maiores tragédias e guerras que travei na vida serviram-me unicamente de distracção, a evidência de uma verdade leva o seu tempo, porém, esta foi quase imediata, não podia estar mais certo, de facto há tanto que me fujo, e desconheço o motivo...

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Clareza

 


Uma frase que me regressa com frequência é “Quem está de fora vê melhor o filme”, tudo na vida tem um tempo, a própria vida é uma porção de tempo que nos é concedido, cada um gere como pode, sabe ou desconhece, de facto a maioria obstina-se em esquecer este singelo facto (a própria vida é uma porção de tempo que nos é concedido), sempre o recorrente virar de costas à problemática da morte, como um indesejável que, volta e meia, nos toca à porta, e insistimos em ignorar, apesar de termos consciência de que, num dado momento, forçosamente teremos de acolhê-lo, mas alimentamo-nos da ilusão de fugazes eternidades para manter a porta fechada a tão incómoda visita, andamos de distracção em distracção para não nos olharmos, tudo serve para nos alhearmos, de minudências a futilidades (quantas existências sobre a terra se balizam por aqui?) se nos olhássemos e, por fim, conhecêssemos, compreendíamo-nos perdidos na noite da alma, sem um resquício de amanhã nesse negrume infindo, certa noite, ouvi alguém dizer “Espera pela manhã. Não se deve tomar decisões à noite! Com a manhã, verás tudo com mais clareza”, segui esse conselho, para minha surpresa, de facto, na manhã seguinte, aprendi a soletrar devidamente cla-re-za, tudo se me afigurou distinto à luz matinal, os problemas vespertinos, insuflados com o negrume da noite, surgiram-me neutralizados, quase extintos, como se diluídos pelo amanhecer...

domingo, 23 de agosto de 2020

 

Tenho de me apressar, alguém lá atrás espera-me, numa madrugada, para reiniciar uma sempre adiada viagem. Não posso adiar mais! Tenho a certeza: foi ali que me perdi de mim.

 

in Deslumbramento

quarta-feira, 19 de agosto de 2020


“Se não fosse cobarde, matava-me!” O que mais me impressionou não foi o conteúdo da frase, a entoação, foi simplesmente a evidência de que ele dizia a verdade: “Se não fosse cobarde, matava-me!” Não, não pense que o tentei dissuadir com ideias ocas de vãs esperanças e de amanhãs melhores, até porque não sou o melhor exemplo para tal contexto, permaneci em silêncio e limitei-me a estender-lhe a mão... 

in Harmonia

terça-feira, 18 de agosto de 2020

Um vaso à janela

 


Certa noite ela resolveu escrever este desabafo (“Prefiro a companhia dos bichos do que das pessoas, porque sei que eles nunca me vão desiludir”), escusado será dizer que o fez na praça pública do hoje, antes saía-se de casa para se encontrar os outros, pôr a conversa em dia, porventura exibir a nova indumentária, em todos os passos olhava-se o outro nos olhos, desde há uns tempos tudo sucede atrás de um écran, e tudo é motivo de exibicionismo, do lugar onde se está ao prato que se tem à frente, da roupa ao penteado, do carro à velocidade, do que se queria ser ao que se é, pois, as ilusões são mais férteis quando não se olha o outro nos olhos, vidas aparentemente tão preenchidas, realizadas, bem-sucedidas, preenchidas com sorrisos e repletas de cor, pois, as ilusões são mais férteis quando não se olha o outro nos olhos, o intransponível abismo entre o que se queria ser e o que realmente se é, uma vez alguém disse “Nunca vi ninguém publicar uma lágrima. E numa lágrima salgada está contida toda a verdade do mundo”, não podia estar mais certo, foi com espanto, ou talvez não, que li esta frase (“Prefiro a companhia dos bichos do que das pessoas, porque sei que eles nunca me vão desiludir”), escusado será dizer que choveram comentários, a maioria com o timbre das carpideiras (“Então, o que se passa? Está tudo bem? Se precisares, desabafa… Quem te magoou?”), em vez do problema, a procura da génese, apenas pela deplorável coscuvilhice, ela vivia no terceiro-andar...


domingo, 16 de agosto de 2020

 

... à nossa frente, agora, a encantatória beleza daquela praia, com o seu arco natural, do lado esquerdo, erigido pelas mãos líquidas do oceano, desde tempos para além da memória, percebi-te, também pela segunda vez nessa tarde, deslumbramento...

in Deslumbramento


sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Tenho de aprender a deixar-me em paz

 


Sempre que o meu pai ia de férias inevitavelmente ouvia-o a exclamar “É essencial para descansar a cabeça!”, mas é também inevitável que só ouvimos os pais no início e no fim da vida, de outra forma, no início prestamos atenção às suas vozes, no fim ouvimos-lhe os ecos e a razão que os acompanha, então passei a encarar esse período, entre outras coisas, também “para descansar a cabeça”, porém, devo confessar, neste ponto o meu absoluto fracasso, em miúdo, por exemplo, enquanto me dedicava, com o devido afinco, às brincadeiras próprias da meninice na areia, desde os jogos de bola aos mergulhos, volta e meia o meu olhar detinha-se nos adultos, deitados nas suas toalhas, concentradíssimos, virados para o sol, e um pensamento levantava-se-me, “Pois, lá está, estão descansar a cabeça”, acreditava piamente nisto, que tinham esse dom, o de desligar o pensamento, como se o arrefecessem para não ser tão incómodo, foi mais ou menos quando eu também ocupei uma toalha, concentradíssimo, virado para o sol, que me apercebi da minha ingenuidade, não, o pensar simplesmente não nos larga, continua incessantemente a gritar-nos em cada canto do ser...

 

terça-feira, 11 de agosto de 2020

Uma esplanada em forma de regresso

 


Àquela hora, que precede o jantar, há apenas duas ou três mesas vagas. Chegam e sentam-se na mais afastada. Ambos de mochila, chinelos de outros solos, olhar de novidade, e com a pele a gritar estridentemente por sombras. Pegam na ementa, plastificada, no irreflexo de uma compreensão linguística sempre adiada. Entreolham-se. Para disfarçar o embaraço do malogro, socorrem-se de um mapa, que ambos analisam numa acuidade criteriosa, como se chegados a um oásis, e à volta apenas o desconhecido. Numa outra mesa, um casal idoso, de silêncios comunicantes, actualiza-se, ele com o jornal, ela com revistas. O idoso, à sua frente, tem uma chávena vazia (café?). Ela, ligeiramente para a extremidade direita da mesa, um prato vazio (torradas?), e, diante de si, uma chávena ainda com um pouco de chá. Não sei porquê, mas pelos seus gestos adivinha-se a proximidade do lar. Como se esta esplanada fosse o prolongar de uma certa familiaridade. Neste caso, a do recato. Porque, se nos demorarmos um pouco neles, compreendemos o saber. Nem se olham. Absortos na leitura. Mas há nesta leitura um imperativo de ordem desconhecida. Sim, não se vislumbra ansiedade no folhear. Pelo contrário, é raro vê-los a mudar de página. Como se a sua leitura estivesse eivada de uma distância intangível, como aquele viajante que, de um cume longínquo, olha o distante vale numa saudade e indulgência sorridentes. Sim, é isso. Nada lhes é novidade, apenas ecos de outras paragens. Daí a lentidão. Talvez a lentidão seja a aprendizagem do efémero. E estas verdades só são visíveis de um cume. O meu olhar ainda com os idosos. Por enquanto, não há vislumbres de bengalas. Apenas sequelas, naturais, da guerra de existir. À minha frente, uma mãe e filho. Ela morena, com um rosto agradável, apesar de um indesmentível traço de tristeza, desdobra-se em atenções, demasiado excessivas, para o filho finalizar o lanche. A criança, com idade suficiente para saber comportar-se, lê a fraqueza maternal, e diverte-se num jogo de vencedor anunciado. Ela com um resto de bolo na mão, a estendê-lo, o filho ignora-a, como se a penitenciasse por uma culpa velada aos demais. Apenas por si conhecida. E ela, exausta, com o resto de bolo na mão, numa súplica inaudível, ele, porém, numa intransigência mascarada de brincadeira e enfado. Detenho-me naquele traço de tristeza. Procuro, agora, a sua génese. De onde provém? Ela procura maquilhá-lo sob imperativos de moda e uma aura de pressa perceptível. Como se fosse esperada. Sim, como se sempre alguém a aguardasse. De vez em quando, olha o telemóvel – muleta da solidão –, por acaso, naquela esplanada, foi a única bengala que vi. Embora não o tivesse ouvido tocar. Talvez um divórcio recente. Uma guerra com um despojo. Quem sabe se no rosto do filho se espelhem demasiadas memórias? Um rosto nunca é uma cara. Pelo contrário, um rosto é sempre o resultado da soma de muitas máscaras. Mas, quando olhamos alguém, só vemos o nosso espelho. Daí o nosso equívoco. Daí a nossa cegueira. Olhamos o mundo da varanda do nosso eu. E o outro? Está tão longe! É tão difícil lá chegar. O filho ao alcance da mão, mas fechado no seu jogo. Ela, apesar da mão estendida, vê-se a correr numa praia, num desespero gritante, retira, em aflição crescente, objectos da água, leva-os, numa corrida cansada, para local seco, a salvo das águas, e persiste, mas o seu olhar sempre além objectos, sim, houve um naufrágio, recorda-se ela agora, mas não estava sozinha… E nesse seu frenesim salvífico, não encontra a memória de um rosto. De súbito, cai de joelhos, não por cansaço, mas por outra razão, enterra as mãos na areia. Não grita, isso é para os filmes, e deixa-se estar. De certa forma, a frescura subterrânea da areia acalma-a...

sábado, 8 de agosto de 2020

Um ontem tão ontem

 

Foi numa hora de almoço, com uns colegas aborrecidíssimos, num desses lugares esconsos, onde se sorve o que se pensa ser uma refeição a olhar ponteiros, de pé, que o ouvi, estava na mesa atrás da minha, igualmente de pé, ignoro para quem falava, se homem ou mulher, não ousei olhar para trás, tal o fascínio das suas palavras, no fundo parecia estar a falar comigo, abandonei o meu corpo na mesa com os colegas aborrecidíssimos, pensar e sentir debruçados sobre a mesa de trás, ainda hoje se suspende, diante de mim, a sua primeira frase Acho que nunca saímos do mesmo lugar… Não sei porquê, como ecoou em mim Acho que nunca saímos do mesmo lugar… E prosseguiu Essa história de mudar, tornarmo-nos melhores, sermos o que desejarmos, apenas tolices para enganar estúpidos, vimos a este mundo com uma fôrma e dele partiremos iguais, apenas e só, dir-me-á que há quem mude, hoje pense de uma outra forma, amanhã de outra, eu respondo: Errado! Apenas se ajustou ao rumo do acontecer, pouco mais, a sua essência permanece inalterada, como a água nos diferentes estados, sólido, líquido ou gasoso, é sempre água, lá está, ajustou-se às exigências do meio, por exemplo: já viu alguém que goste de falar tornar-se introvertido? Claro que não! Pode haver circunstâncias em que se possa sentir constrangido, novos contextos, ambientes hostis, porém, na sua essência gostaria de se comunicar, está a perceber? (...)