Livros

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quinta-feira, 29 de junho de 2023

Por onde andas?

 


Desde que o miúdo saiu de casa, pareces outra, desinteressada de tudo, antes, Vamos ao cinema?, eu, no sofá, já por paisagens distantes, a rezar que não falasses, para, assim, não me obrigares a regressar, no entanto, logo que um passo, a tua voz em cada canto da casa e de mim, Não me digas que já estás a dormir, eu, contrariadíssimo, a abrir um olho, a negar a evidência com a cabeça, a reforçar ainda Que disparate! Só fechei os olhos um bocadinho, por causa desta dor de cabeça, porém, tu sempre convicta, Vai tentar enganar outra! Caramba! Já nem um programa vês comigo, e acrescentavas sempre aquele golpe fatal: Pareces um velho! Aí chegados, só podia reagir, E tu pareces uma avozinha! Basta ver a forma como tratas o miúdo! Quase te babas só de olhar para ele, sabia que te acertara, sem qualquer necessidade, sempre esta carência de arenas, de nos retalharmos, as palavras de hoje, os gumes de outrora, o teu olhar pelo tapete, duvido que te levantasses, nesse ponto, optavas pelo silêncio, sempre foi a tua estratégia preferida, aí não tinhas par, sabias que a minha capitulação estava à distância de uma camisa por passar ou no paradeiro de uma gravata, contudo, compreendo a desnecessidade do meu comentário, afinal, esta terra, sobre a qual caminhamos, é um cemitério de sonhos, o teu quase se lhe juntava, é tão estranho, o real que a vida, hoje, nos tira, devolve-nos amanhã em possibilidade, um ano após aquele dia de altar, famílias e banquete, já não disfarçávamos o azedume perante a estupidez daquela extenuada pergunta Então, para quando um herdeiro? Sabia que não era de mim, nunca to disse, em verdade, nunca me perguntaste, também não te devia explicações, foi antes de te conhecer, ainda trabalhei umas férias na oficina de um tio meu para pagar o desmancho, foi de comum acordo, ela também não queria, quando assim é, mais do que a idade, é sinal de que não desejamos apearmo-nos na mesma estação, umas semanas depois, é curioso, quando nos cruzávamos na rua apenas um levantar de mão, enquanto antes nos entregávamos até à nudez do sentir, assim foi, agora é do domínio da memória, só aí vive, e não é todos os dias, como te estava a dizer, sabia que não era de mim, daí te tivesse convencido àquela consulta, achei engraçado que nunca me equacionasses com a génese da extenuada pergunta, talvez já conhecesses enlaces até à nudez do sentir, no entanto, nem queria espreitar por tais janelas, lá foste, sem objecções, após uma semana de testes, a confirmação da dificuldade, seguiram-se meses de medicação, em vez da nudez do sentir entregávamo-nos abnegadamente a um objectivo, por vezes, tinha alguma dificuldade ao início, confesso, mas sempre gostei de saborear a viagem, foste paciente com essas minhas hesitações, reconheço, mas o teu olhar só se focava no destino, estavas para além da viagem, cerca de meio ano depois, conseguimos, perdão, conseguiste, a extenuada pergunta cedera lugar a felicitações, todos aquém meses de medicação e enlaces abnegados por um objectivo, sem o doce e desarmante tempero da nudez do sentir, desde então, a tua existência caracterizou-se por um antes e depois, nem me vou dar ao trabalho de sublinhar qual o marco, como é óbvio, primeiro, é tão pequenino e dependente, o nosso espaço invadido por aquele berço intruso, e logo tu a deslocares esse sentir e a fazeres-me o intruso, não sei até que ponto não o terei sido de facto, daquele vosso universo tão particular, olhavam-se numa admiração mútua e extasiada, diziam-se tanto e eu para sempre surdo aos vossos dizeres, ainda olhava à minha volta por um dicionário de tal idioma, mas o feminino é sempre um continente da distância, tempos depois, tentava caminhar sobre a terra, e tu curvada no amparo das primeiras quedas, procurava, de certa forma, amenizar as coisas Deixa! Do chão não passa, e logo aquela tua expressão de desprezo, que nos faz procurar a lonjura, seguiu-se a escola, os livros, as letras, os números, mas é curioso, sempre que vos olhava, naquele vosso universo tão particular, continuava a olhar à minha volta por um dicionário de tal idioma, e, aqui chegado, só te posso culpar por nunca, em verdade, o teres deixado conhecer-me, mesmo quando saíamos de raquetas, apressavas-te na intromissão, e lá ias, também de raqueta na mão como podias segurar uma mala, um livro, um saco de compras, desde que te intrometesses, e quando levou aquela loirinha lá a casa, nem lhe possibilitaste terminar a apresentação, alegaste uma reunião urgente e bateste com a porta, todos percebemos a tua fúria repentina e desmedida, pensavas que não, e, com os anos, esquecemo-nos de que uma pergunta estúpida é sempre servida aos pares, ainda tentaram, algumas vezes, Então, para quando o segundo?, reconheço que, aí, a fúria e os repentes me pertencerem, é saudável, de vez em quando, estalar o verniz, permite-nos o respirar da alma, não achas, agora que o miúdo saiu de casa, percebi logo que ele e aquela loirinha se iriam apear na mesma estação, podíamos olhar as possibilidades que nos são devolvidas, e talvez uma delas nos relembre um cinema, o regresso a casa, uma porta que se abre, a penumbra tépida, e o doce e desarmante tempero da nudez do sentir…

terça-feira, 27 de junho de 2023

Dos asnos e afins

 


Nessa manhã, o canto intemporal não amanheceu o mundo. O galo morrera um pouco antes da primeira fenda de luz anunciar a derrota das trevas. Ali estava, no meio dos excrementos, sem qualquer resquício da majestade que fora, caído, até parecia mais pequeno, de facto, partimos apenas com a bagagem necessária, as penas deslustradas, à sua volta, já a luz ilusoriamente reinava sobre a terra, quando começaram a juntar-se os companheiros da quinta, questionavam mais a ausência do canto da aurora do que a ave ali caída, no meio dos dejectos, sem qualquer resquício da majestade que fora, vieram de vários pontos, todos acorreram à capoeira na busca de um porquê pela ausência do anunciar da manhã, assim que uma resposta, viravam costas, lentamente, contudo, a meio do caminho, apercebiam-se do real estado das coisas, e regressavam para a porta da capoeira, ali estavam todos, numa mistura de idiomas demasiado polifónica, mas uma palavra sobressaía a todas as outras, a palavra amanhã, desde os porcos, às vacas, as próprias galinhas, os asnos velhos e sarnentos, passando pelas cabras, todos de costas para a outrora ave majestosa, para sempre caída no meio da ignomínia da terra, sem qualquer resquício da majestade que fora, Quem nos vai anunciar, agora, o fim da noite no mundo?, gritou uma das vacas, Sim, pois é, quem vai ser?, continuou um dos porcos, E quem vai decidir, doravante, as coisas?, lembrou um dos perus, uma velha galinha, num tom calmo, disse Terá de ser alguém de outro lado. Agora, por favor, escolham quem quiserem, mas deixem-nos fazer o funeral e o respectivo luto, de novo, polifonia pelos ares, se as galinhas não queriam assumir, as vacas também não, os porcos ainda menos, as cabras já se retiravam, só um dos asnos velhos e sarnentos ali permaneceu, sem saber muito bem porquê, de repente, uma voz levantou-se Ele ofereceu-se! O asno olhou em volta surpreendido pelo renovado barulho, quem atentasse, por escassos segundos, no seu olhar, apercebia-se de que estava longe do acontecer, no entanto, apesar do continente do pensar, todos o saudaram, o seu nome ecoou pelos ares ao longo daquela manhã, instalaram uma corneta para, dali em diante, anunciar o dia, afinal, nem todos nasceram com o dom do canto, o asno optou por sorrir às felicitações recebidas, enquanto se esforçava por compreender os direitos e obrigações do seu novo cargo, à tarde deu-se o funeral, todos compareceram, bem, nem todos, o asno contemplava a corneta que o destino lhe apresentara, ali estava, siderado, perante aquele objecto que, visivelmente, outrora, andara pela mão de uma criança, mas que, neste momento, para ele era o tudo, é curioso, uns querem mais, outros não sabem o que querem, há os que só querem ser pertença dos outros, há, ainda, aqueles que procuram o querer, também há os que nada querem, poucos, é verdade, mas não querer também é um querer, por fim, há os que querem trocar o ver pelo sentir, são aqueles que se debruçam à varanda de um rosto e olham o mundo pela janela de um olhar, e como a vida é generosa para quem o compreende, mas para este asno, velho e sarnento, a corneta bastava para lhe preencher horizontes e pensar, o regresso do funeral deu-se já o mundo uma noite imensa, ninguém se apercebeu do asno, velho e sarnento, e da corneta, as galinhas, condoídas com a perda, regressaram apressadamente e em silêncio para os seus aposentos, os restantes animais, numa passada reflectida, dialogavam sobre o amanhã e o ontem, ninguém reparou no asno e na corneta, como se o amanhecer, naquele preciso momento, constituísse uma impossibilidade, em verdade, convém sublinhar que ninguém testemunhou o facto de o asno ter ficado em claro toda a madrugada, diante da corneta, com medo de falhar o apelo da manhã, ao contrário da ave majestosa, para sempre desvanecida deste horizonte terreno, o seu receio de falhar sobrepôs-se a tudo, nunca, antes, lhe haviam atribuído tal responsabilidade, apesar do frio, do canto do lobo nas lonjuras altas, da memória, tão omnipresente, do canto inimitável da ave majestosa, a sua corneta iria anunciar a manhã, e, pelo menos uma vez na vida, todos acorreriam para o saudar.

 


... a felicidade é o lugar onde nos despojamos de todas as máscaras...

in Nascer

segunda-feira, 26 de junho de 2023

sábado, 24 de junho de 2023

Inteligência é estar, pelo menos, em dois sítios ao mesmo tempo

 



Os filhos já no carro, ela, de porta aberta, com gumes no olhar, ele imóvel, a perceber-lhe a agudeza na expressão, nem esboçou uma última aproximação dos miúdos, agora só dali a duas semanas, eles impassíveis, sentados, a olhar em frente, como se cumprissem um rito, tal a mecânica dos gestos, ela a entrar, a chave, o ligeiro estremecer daquela carapaça mecânica, um ronco desnecessário, ela sempre acompanhou a chave com o pé no acelerador, quantos vezes ele Que estupidez! Não faças isso! É completamente desnecessário e só gastas gasolina, mas estas recomendações foram há muito, há tanto que, hoje, parecem uma ficção, pareceu-lhe, por acaso, que os olhos dela se ergueram, do interior da viatura, à altura do seu rosto, do lado de fora, mãos nos bolsos, assim que o ronco desnecessário povoou a rua e pracetas circundantes, os miúdos sempre a olhar em frente, apenas uma mãozita se atreve a erguer-se, assim que se inicia a marcha, para um adeus e vemo-nos daqui a quinze dias, do carro, agora, apenas o guinchar dos travões ao fundo da rua, ele continua de mãos nos bolsos, a pensar naquele renovado silêncio da casa, que o aguarda numa inevitabilidade de tragédia, ainda há umas horas, aquele silêncio afigurava-se uma impossibilidade, os filhos exorcizavam-no para longe do pensar, com aquela espontaneidade de ser criança, ela com nove, ele com sete, era-lhe impossível olhar aqueles rostos sem pensar nela e na aparente ficção de uma outra vida, a primeira saída, um café, sempre um café, há qualquer coisa de inevitabilidade num caminhar conjunto que obriga ao apeadeiro de uma mesa de café, tão estranho, talvez pelo carácter de um espanto sempre nascido a jusante, mas assim foi, trabalhavam sob o mesmo tecto há uns meses, recém-saídos dos corredores da faculdade e estigmatizados pela ilusória esperança da cor dos recibos do parco pecúlio auferido, por acaso, nunca se tinham falado, nem sequer haviam reparado um no outro, até que, sem se saber muito bem porquê, naquela tarde de chuva, que os obrigou, entre outros, a demorarem-se à porta, olharem-se e algo agradável instalou-se entre eles, talvez aquela familiaridade, nascida em parte incerta, que surge quando nos demoramos a passear por certos rostos, umas frases de algibeira para equilibrar os olhares, enquanto interiormente a certeza se construía, sim, até a voz agradava, a chuva lá fora persistia, compreende-se, tantos pecados neste mundo do homem por lavar, desde então, tudo lhes seria diferente, afinal, quando os seus olhares se encontraram, compreenderam a direcção do amanhã, as primeiras semanas de anuências e de gestos contidos, depois, seguiram-se semanas de exaltação e de frases cantadas, por fim, conheceram-se por inteiro, tinham toda a privacidade para tal, da parte da tarde, na casa dela, os pais trabalhavam, enquanto a mãe dele doméstica, ou em limpezas, ou à janela como uma vigilante do bairro, nada lhe escapava, nem o primeiro pombo que, cinzento com a asa direita ligeiramente para o escuro, até parecia coxear, aterrava assim que migalhas pela janela, era um rés-do-chão com uma entrada independente do prédio, usavam-na sempre, as árvores providenciavam a discrição necessária, acreditavam eles, embora o cabelo molhado à saída indiciasse algo mais que simples higiene, depois das apresentações às famílias, deixaram de usar a entrada independente, a discrição das árvores tornara-se supérflua, ele aí sentiu, pareceu-lhe, como aquelas coisas de que o nosso olhar rapidamente se desvia, da parte dela, um ligeiro descair de braços, como se de uma obrigação, enquanto antes, sob a discreta sombra das árvores, à sua frente, lhe guiava os passos, de mão dada, numa ânsia irreprimível, mas, aqui chegados, deu-se aquele atraso, ele feliz, ela numa apatia obscena, o pai dele, que trabalhava no ramo imobiliário, falou-lhes num apartamentozito, muito simpático, para os lados de Odivelas, bastante solarengo, com dois quartos, foram vê-lo num Sábado de manhã, ele bastante agradado, ela numa indiferença angustiante, apesar disso, mudaram-se semanas depois, foi ali que o berço acolheu o recém-chegado, durante esse período, entre eles, só os antebraços se tocavam ao trocar a criança de colo, ele conseguiu trocar o estigma da ilusória esperança da cor dos recibos, do parco pecúlio auferido, por um lugar efectivo, ela atraiçoada pela gravidez, assim que pôde, mal a creche o acolheu, pôs-se a enviar currículos, como isto foi há algum tempo, responderam-lhe de vários lados, optou por uma empresa perto de casa, talvez tivesse sido nessa noite, em que a apatia se lhe desvaneceu do rosto, que se tocaram para além dos antebraços, dois meses depois, ela a dar conta de um atraso, ele derrotado pelo regresso da indiferença àquele rosto que anoitecia e amanhecia a seu lado, mas nem sempre, por vezes ele ficava-se pelo sofá, há muito que os serões televisivos diferiam sob aquele tecto, com a chegada da filha, houve necessidade de mais um quarto, nada disseram, ao menos isso, não houve necessidade de vozes sobrepostas, de facto, tudo estava dito entre eles, uns dias depois, ele partiu, socorreu-se do pai para um outro apartamentozito, se possível solarengo, e, já agora, talvez um rés-do-chão, com uma entrada independente do prédio, pode ser então que alguém, de novo, na sua vida, sob a discreta sombra das árvores, à sua frente, lhe guie os passos, de mão dada, numa ânsia irreprimível. 


 

quinta-feira, 22 de junho de 2023

quarta-feira, 21 de junho de 2023

 


Tende-se a confundir a amizade com a circunstância, isso é perigoso, porque o fim de uma acompanha invariavelmente o términus da outra. Em verdade, não se deve avaliar a amizade pelos dias de sol ou de tormenta, mas pelo que perdura...

in Nascer

segunda-feira, 19 de junho de 2023


 ... a dignidade nasce da assumpção do erro, e só não erra quem não respira...

in Nascer

domingo, 18 de junho de 2023


... persisto a olhá-la, aparentava a minha idade, ia na direcção das ruas pedonais, antes de se diluir por completo do meu horizonte, era o único que ainda lhe acompanhava os passos, olhou para trás como se perguntasse pelos meus sonhos.

in Deslumbramento

sábado, 17 de junho de 2023

A nudez envergonhada de uma moldura por se cumprir

 


O chão, à sua volta, povoava-se de céu, ele feliz, com o saquito de plástico, transparente, na mão, a chamar, para si, as alturas, com o que se arranca à terra, de vez em quando, de uma mesa próxima, os amigos insistiam no seu nome, mas ele há muito distante de cartas, dominós, e afins, preferia-se só, naquele banco, àquela hora, talvez nas outras também, sob a descansada sombra de um pinheiro, assim que o olhar das aves nele, numa súplica com qualquer coisa de meninice, a mão, de novo, mergulha no saquito de plástico, transparente, e grãos amarelos pelo ar, asas pelo chão à espera deste regresso, um casalinho abraçado passou diante dele, estacou por uns instantes a assistir ao frenesim de asas e grãos amarelos pelo ar, notava-se-lhes cidade e ausência de suor em cada poro, levantou-lhes o olhar e a seguir o desprezo, o casalinho permaneceu ali, até que o sujeito, sem largar a rapariga, atirou Acha bem alimentar esses vermes com asas? Fique sabendo que só causam doenças, além de nos destruírem o património, percebeu-se o agrado da rapariga por esta tirada, cavalheirismo e intrepidez sempre casaram bem, do banco continuou a fitá-los, nem se mexeu, apenas o olhar derramava desprezo por aquelas figuras, que emanavam cidade e ausência de suor em cada poro, até que lhe respondeu Que percebe você das alturas? Que percebe você de fome? O outro recuou dois passos, secundado pela rapariga, talvez pelas questões que o surpreenderam (sempre aquelas onde não encontramos resposta), talvez pelo olhar que do banco se lhes levantou, regressou ao saquito de plástico, transparente, e grãos amarelos pelo ar, asas pelo chão à espera deste regresso, quando esticou, de novo, as pernas ao olhar, nem vislumbre de um casalinho que há pouco ali se imobilizara, de uma mesa próxima, os amigos insistiam no seu nome, mas ele há muito distante de cartas, dominós, e afins, um deles Para o que é que te havia de dar… Agora, só queres saber da passarada! Nem lhe respondeu, no entanto, a resposta travou-se-lhe entredentes (Que percebes tu das alturas?), nessa mesa próxima, ninguém se apercebeu de que ele partira, para aquele banco, fazia oito semanas, todas as tardes repetiam o seu nome, incessantemente, sem lhe perguntarem o porquê, e, como quase sempre acontece, é tudo tão simples, ele cansara-se, dos jogos com sabor a desocupação, das conversas debruçadas sobre a varanda do ido, de perceber que o mundo se resume a uma espera, e, de facto, ele cansara-se, apesar de perceber o seu nome de uma mesa próxima, o seu olhar por asas que buscam, no chão, o alimento das alturas, ao menos, por ali, percebe-lhes gestos de infância, são gestos que desconhecem a espera, são gestos que desconhecem um mundo debruçado sobre a varanda do ido, levanta-se, o saquito de plástico, transparente, agora vazio, passa pelos amigos, a mesa agora ao seu lado, tão enredados em esquecer a sua desocupação que não percebem a sua partida, talvez, dali a pouco, o seu nome, de novo, pelos ares da tarde que finda, um sino ao longe anuncia partidas, quem sabe alguém deixou de esperar, lá vai, no seu passo arrastado, enfia o saquito de plástico, transparente, agora vazio, no bolso, apesar do passo arrastado, denota-se-lhe relutância no destino, talvez pela direcção do andar, talvez pela direcção do olhar, se ao menos, à vista da sua casa, um rés-do-chão logo ao início daquela rua íngreme, que sobe para (um qualquer sítio que se cansara de repetir o nome), a janela se abrisse, para o seu nome pela voz que lhe dava o sentido, a voz dela, desde há oito semanas silenciada, no seu lugar, agora, a mecânica de um aparelho, a fazer a vez dos pulmões, ele a pedir promessas às batas brancas, todas Prepare-se para o pior, prepare-se para o pior, berrou-lhes com desprezo e violência Que percebem vocês das alturas? Que percebem vocês da fome? Se ao menos uma fresta na janela, no rés-do-chão logo ao início daquela rua íngreme, que sobe para (um qualquer sítio que se cansara de repetir o nome), se ao menos isso, e o seu nome pela voz que lhe dava o sentido, a voz dela, talvez um cansaço adormecesse…

segunda-feira, 12 de junho de 2023


 


 Poderia, a meu favor, levantar variadíssimos argumentos, mas, durante esse tempo, aprendi a maior das lições: o silêncio de um ténue sorriso: tudo diz, tudo cala.

in Deslumbramento

sexta-feira, 9 de junho de 2023


O futuro é o invisível da imaginação.

in Deslumbramento

Quando o sol nasce a Oeste

 


Ao ali entrar, naquela manhã em particular, de fora tão igual às outras, mas cá dentro tão diferente, procurava não um rosto, mas um ouvinte, aquele dia, em número, há uns tempos, cerca de cinco anos, tão igual a hoje, no entanto, quando já acenava partidas, revelar-se-ia tão diferente, como sempre, deixou-me junto ao portão pouco antes das oito (há quanto partilhávamos a vida? Já não me lembro… O suficiente para dois filhos, percebermo-nos neve pelos cabelos, e ter a noção de que sem ele, a meu lado, não saberia caminhar…), como dizia, deixou-me junto ao portão pouco antes das oito, nesta fase da vida, já avistávamos a meta, é verdade, tínhamos entrado na recta final, era tão estranho, não traduzia o sentir em verbo, nem alegria, nem tristeza, um estar algures anestesiado, como se me soubesse num sonho de um sono longínquo, enquanto se afastava, estrada fora, a mão dele sorria-me fora da janela, quando o horizonte se encarregava de o retirar do meu alcance, eu entrava, naquela manhã, em particular, de fora tão igual às outras, mas cá dentro tão diferente, embora, a essa hora, distante desta certeza, tudo se cumpriu sob o olhar da rotina, a meio da tarde, não sei bem porquê, algo se me inquietou, ainda atribuí ao esquecimento da medicação, ou por aí queria andar, ao final da tarde, como sempre, ele no portão, a mão sempre de fora a sorrir-me, a saudar-me, a minha também pelos ares a retribuir-lhe à medida que me aproximava, antes de casa, uma passagem para providenciar a janta e o reforço da despensa, por fim, o lar, estranhámos, não sei bem porquê, a ausência do mais novo, sempre tão metido entre ele e as paredes, então, desde que aquela rapariga vaidosa e fútil o deixou, meteu-se, ainda mais, entre si e as paredes, agora que me lembro disso, percebo há quanto não lhe perguntava pelo curso, andava numa engenharia qualquer de computadores, uma dessas coisas que diz olá, cara a cara, ao futuro, o mais velho estava a terminar Direito, sempre em festas, detestava paredes e silêncios, raparigas só até terminar um copo, ou talvez mais, depois já não conseguia lembrar-se-lhes do nome, tudo em risos e cantorias, tão diferentes, no entanto, as mesmas regras e dedicação da nossa parte, davam-se bem, mas não saíam juntos, no fundo, talvez se suportassem, sempre aquela coisa da inevitabilidade, como se fizesse parte do ofício de viver partilhar tectos com estrangeiros, talvez fosse isso, percebo, hoje, que, entre eles, três a quatro frases num dia soava a abundância, da nossa parte, nunca quisemos forçar nada, sempre confiámos no leme da natureza, às vezes uma forma de se contornar uma derrota, projectar o presente para o futuro, é possível, mas regresso aquela inquietação, a ausência do mais novo, sempre tão metido entre ele e as paredes, então, desde que aquela rapariga vaidosa e fútil o deixou, meteu-se, ainda mais, entre si e as paredes, agora que me lembro disso, percebo há quanto não lhe perguntava pelo curso, e por outras coisas, chegar, arrumar, cozinhar, limpar, arrumar, a mesa, arrumar, só quando nos sentámos, é que algo se quebrou por aqui dentro, ainda hoje recolho cacos, primeiro, as possibilidades, talvez esteja em casa deste, ou daquele, desculpas para maquilhar evidências, afinal, de há muito era ele e paredes, o mais velho a perceber, então sim, o oceano que o distanciava daquele estrangeiro, nessa noite, apesar de tudo, ou somente por pudor, permaneceu a nosso lado na busca por aquele estranho, terminámos na polícia, esgotadas que foram as escassas probabilidades de apeadeiros, ainda demorou uma madrugada, a mim, pareceu-me a noite do mundo, já a luz em passos titubeantes, quando o telefone, como é irónico, caminhava já por outro continente, logo ele, que dialogava com as paredes, desconhecia que soubesse orientar-se devidamente fora de casa, quanto mais por Marrocos, um dia para ali chegar (E porquê?), meu Deus, onde falhámos para isto… Afinal, o leme da natureza… Regressou ao lado do pai. Nada se disse, até hoje, sobre isto… Talvez fugisse de si, e, no fim, percebeu que se levava consigo… Talvez… Mas eu ainda apanho cacos, e, nesses momentos, sei-me demasiado longe de um sonho de sono longínquo.

terça-feira, 6 de junho de 2023


 ... nesta vida, as respostas nascem sempre antes das perguntas, poucos compreendem esta singularidade...

in Deslumbramento

Há famílias em que a dor tem lugar à mesa

 


Não sei porquê, mas naquela noite em particular, pareceu-me, não sei bem como dizê-lo, estávamos a jantar, os quatro, à mesa, de repente, a forma como ele se riu, tão longe de mim e dos meus, demasiado sonora, a boquita aberta, numa obscenidade de comida mastigada e de dentes encavalitados, o outro, sim, esse meu, sem dúvida, a olhá-lo num pudor à mesma velocidade que eu, ela numa expressão agradada, embora se lhe denotasse algures os passos de uma nuvem pelo rosto, talvez cansaço, ou talvez me lesse a desordem do pensar, também não sei, isto bateu-me à porta já há um par de anos, ou talvez há mais, é o mais novo dos dois, têm três anos de diferença, no entanto, já é um pouco mais alto que o irmão, e, do meu lado, sempre familiarizados com um banco para chegar às coisas, poder-se-ia dizer que puxou aos lados dela, mas por ali também não padecem de vertigens, por isso, não sei, daí que, bom, há coisas que ficam na soleira do meu juízo, e aqui estou eu, da minha janela, a olhá-lo, sem perceber muito bem como ele aponta às nuvens, e aquele feitio, fala com todos que o olham, aos vizinhos que já sentem o Inverno, chega a oferecer-se para lhes fazer as compras, e a facilidade com que verbo lhe sai, e a generosidade no ouvido, sempre o mais importante, eu prefiro o chão, quando os outros por perto, não gosto quando me olham de frente, parece que estou sob um qualquer escrutínio, daí a calçada, ou azulejos, ou outro pavimento, e a palavra nem me chega a nascer, sucumbe à minha necessidade de silêncio, e à pressa de casa, o mais velho, já reparei, também caminha por azulejos e silêncios, sim, esse meu, sem dúvida, agradado quando se fecha a porta do mundo, desde muito novo, horas e horas no quarto a montar e desmontar brinquedos, como se procurasse aquele ponto em que tudo resultou no que vemos, o outro na rua, atrás de uma bola, ou com uma fisga, era preciso descer para lhe relembrar o jantar, não vinha à primeira, de certa forma, e vendo bem as coisas, lá teria as suas razões, talvez preferisse abrir a porta ao mundo para aí consertar o que pudesse, daí a facilidade de verbo e a generosidade no ouvido, sempre o mais importante, a nossa campainha soava sempre pelo nome dele, como se apenas ali um único morador, os olhos dela mais jovens quando ele por perto, em relação ao mais velho a cor de um dever nascido muito antes dela, mas lá o cumpria, em relação a mim, percebia-lhes a indiferença de uma qualquer transparência, assim que a porta do mundo se fechava, a minha respiração sentava-se com o meu pensar, o mais velho, sim, esse meu, sem dúvida, a sorrir-me, do seu quarto, a porta aberta, eu a vê-lo a montar e desmontar brinquedos, como se procurasse aquele ponto em que tudo resultou no que vemos, ela, nesses momentos, corria para a varanda, como se, mais uns momentos connosco, pudesse afogar-se, ali ficava, a inspirar continuamente até a respiração sentar-se com o seu pensar, o mais novo, lá em baixo, ora atrás de uma bola, ora com uma fisga, o olhar dela em passos de adolescente, os lábios aligeiravam-se, e esta coisa bateu-me à porta e não me larga a soleira, quero acreditar que…, mas não sei, ele aponta às nuvens, e nós sempre familiarizados com um banco para chegar às coisas, ao menos se ela viesse para dentro, sim, se ao menos ela viesse para dentro, eu conseguisse juntar os cacos de uma frase, numa dessas vezes em que eu com a calçada, ou azulejos, ou outro pavimento, me sentasse a seu lado a procurar aquele ponto em que tudo resultou no que vemos.


 


 

sábado, 3 de junho de 2023

 


... acredito que morrer começa quando perdemos os motivos para aqui continuar, como se fôssemos perdendo a bagagem ao longo da jornada, até nada restar...

in Deslumbramento

Deixa-me ouvir o teu olhar

 


Só se ilumina o presente quando se olha para trás, compreendo agora isso, a sugestão dele, primeiro entrecortada, quase inaudível, eu a não perceber, de todo, o alcance das suas pretensões, no fundo, naquele momento, longe do mundo, estávamos deitados, talvez a meio da tarde, pelos estores, não totalmente corridos, alguma luz, a suficiente para nos vermos, ele tinha esse hábito, o do estore, o prédio em frente parecia cada vez mais próximo, dizia, eu a pensar que zelava por nós, por aquele mundo construído na luz difusa de um quarto, tardes e tardes, mas as coisas são sempre uma outra coisa, em verdade, há algo que insiste em se nos escapar, como se o mundo recuasse, pelo menos, um passo, a cada evidência nossa, ele O que é que achas?, porém, eu na distância de mim, a regressar com esforço pela pressa que lhe senti na questão, O que acho de quê?, percebi-lhe a frustração, não sei bem como, nem uma palavra, nem um gesto, no entanto, eu a compreender-lhe a frustração, de facto, há muitas pontes a ligarem-nos aos outros, até ao fim desse dia, esse assunto congelou-se, haveria de regressar, de novo, num momento, longe do mundo, estávamos deitados, talvez a meio da tarde, pelos estores, não totalmente corridos, alguma luz, a suficiente para nos vermos, ele tinha esse hábito, o do estore, o prédio em frente parecia cada vez mais próximo, dizia, eu a pensar que zelava por nós, por aquele mundo construído na luz difusa de um quarto, tardes e tardes, uma vez mais O que é que achas?, desta vez, eu próxima, sem o esforço do regresso, talvez já algo me povoasse da sua anterior abordagem, respondi-lhe Não compreendo a necessidade…, o assunto por aqui, mais tarde, ainda nesse dia, diante de mim, à mesa da pastelaria, onde sempre íamos, Não vejo qual é o mal… Eu gostava de nos vermos. É quase como uma fotografia… Eu a não ver qualquer relação com uma fotografia, contudo, algo em mim a seduzir-se por aquela ideia, talvez a expressão Eu gostava de nos vermos, de facto, isso também me agradava, optei pela via mais fácil, e mais conveniente para mim, fiz-me de desagradada, virei-lhe costas, talvez por lhe saber os passos, regra geral, só apresentamos as costas quando sabemos a direcção dos passos do outro, demorou dois dias a soar-me a campainha, ainda pedi à minha mãe para me anunciar ausente, teve pena dele e mandou-o subir, apareceu-me a disfarçar água do olhar, a voz a encontrar a terra à medida que discorria, fingi-me interessada, como sempre fazia, na sua prelecção, enquanto aquiescia com o rosto, e uma frase recente iluminava-se em mim Eu gostava de nos vermos, deixei-o pensar em rédeas, como sempre fazia, à medida que o nosso mundo se reerguia, mais tarde, ainda nesse dia, diante de mim, à mesa da pastelaria, onde sempre íamos, disse-lhe, também com a voz rastejante, Eu também gostava de nos vermos, os seus olhos levantaram-se, entre a incredulidade e um estado de sonho, com um brilho natalício infantil, curiosamente, deixou a minha frase suspensa, entre os nossos rostos, à mesa da pastelaria, onde sempre íamos, percebi-lhe a ausência de palavras, sempre com a ilusão das rédeas, deixei-o conduzir, como sempre fazia, queria que fosse mais explícita, os meus dedos pousaram, numa suavidade de carícias, nas costas da sua mão, repeti, apenas com o olhar, Eu também gostava de nos vermos, sabia, não sei bem onde, que dava um passo numa noite estrangeira, mas, se não o desse, uma parte de mim para sempre numa gaveta de sótão… Quando, de regresso àqueles momentos, longe do mundo, deitados, talvez a meio da tarde, pelos estores, não totalmente corridos, alguma luz, a suficiente para nos vermos, ele tinha esse hábito, o do estore, o prédio em frente parecia cada vez mais próximo, dizia, eu a pensar que zelava por nós, por aquele mundo construído na luz difusa de um quarto, tardes e tardes, a voz dele a não conseguir erguer-se do soalho, a vontade a acompanhá-la, uma vez mais, dei-lhe a ilusão das rédeas, como sempre fazia, riu como a criança que foi atrás de uma bola na tarde de um parque, enquanto isso, não me esqueci do comando sobre a mesa-de-cabeceira, sabia, não sei bem onde, o passo que dera numa sempre longínqua noite estrangeira.