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terça-feira, 6 de junho de 2023

Há famílias em que a dor tem lugar à mesa

 


Não sei porquê, mas naquela noite em particular, pareceu-me, não sei bem como dizê-lo, estávamos a jantar, os quatro, à mesa, de repente, a forma como ele se riu, tão longe de mim e dos meus, demasiado sonora, a boquita aberta, numa obscenidade de comida mastigada e de dentes encavalitados, o outro, sim, esse meu, sem dúvida, a olhá-lo num pudor à mesma velocidade que eu, ela numa expressão agradada, embora se lhe denotasse algures os passos de uma nuvem pelo rosto, talvez cansaço, ou talvez me lesse a desordem do pensar, também não sei, isto bateu-me à porta já há um par de anos, ou talvez há mais, é o mais novo dos dois, têm três anos de diferença, no entanto, já é um pouco mais alto que o irmão, e, do meu lado, sempre familiarizados com um banco para chegar às coisas, poder-se-ia dizer que puxou aos lados dela, mas por ali também não padecem de vertigens, por isso, não sei, daí que, bom, há coisas que ficam na soleira do meu juízo, e aqui estou eu, da minha janela, a olhá-lo, sem perceber muito bem como ele aponta às nuvens, e aquele feitio, fala com todos que o olham, aos vizinhos que já sentem o Inverno, chega a oferecer-se para lhes fazer as compras, e a facilidade com que verbo lhe sai, e a generosidade no ouvido, sempre o mais importante, eu prefiro o chão, quando os outros por perto, não gosto quando me olham de frente, parece que estou sob um qualquer escrutínio, daí a calçada, ou azulejos, ou outro pavimento, e a palavra nem me chega a nascer, sucumbe à minha necessidade de silêncio, e à pressa de casa, o mais velho, já reparei, também caminha por azulejos e silêncios, sim, esse meu, sem dúvida, agradado quando se fecha a porta do mundo, desde muito novo, horas e horas no quarto a montar e desmontar brinquedos, como se procurasse aquele ponto em que tudo resultou no que vemos, o outro na rua, atrás de uma bola, ou com uma fisga, era preciso descer para lhe relembrar o jantar, não vinha à primeira, de certa forma, e vendo bem as coisas, lá teria as suas razões, talvez preferisse abrir a porta ao mundo para aí consertar o que pudesse, daí a facilidade de verbo e a generosidade no ouvido, sempre o mais importante, a nossa campainha soava sempre pelo nome dele, como se apenas ali um único morador, os olhos dela mais jovens quando ele por perto, em relação ao mais velho a cor de um dever nascido muito antes dela, mas lá o cumpria, em relação a mim, percebia-lhes a indiferença de uma qualquer transparência, assim que a porta do mundo se fechava, a minha respiração sentava-se com o meu pensar, o mais velho, sim, esse meu, sem dúvida, a sorrir-me, do seu quarto, a porta aberta, eu a vê-lo a montar e desmontar brinquedos, como se procurasse aquele ponto em que tudo resultou no que vemos, ela, nesses momentos, corria para a varanda, como se, mais uns momentos connosco, pudesse afogar-se, ali ficava, a inspirar continuamente até a respiração sentar-se com o seu pensar, o mais novo, lá em baixo, ora atrás de uma bola, ora com uma fisga, o olhar dela em passos de adolescente, os lábios aligeiravam-se, e esta coisa bateu-me à porta e não me larga a soleira, quero acreditar que…, mas não sei, ele aponta às nuvens, e nós sempre familiarizados com um banco para chegar às coisas, ao menos se ela viesse para dentro, sim, se ao menos ela viesse para dentro, eu conseguisse juntar os cacos de uma frase, numa dessas vezes em que eu com a calçada, ou azulejos, ou outro pavimento, me sentasse a seu lado a procurar aquele ponto em que tudo resultou no que vemos.

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