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terça-feira, 27 de junho de 2023

Dos asnos e afins

 


Nessa manhã, o canto intemporal não amanheceu o mundo. O galo morrera um pouco antes da primeira fenda de luz anunciar a derrota das trevas. Ali estava, no meio dos excrementos, sem qualquer resquício da majestade que fora, caído, até parecia mais pequeno, de facto, partimos apenas com a bagagem necessária, as penas deslustradas, à sua volta, já a luz ilusoriamente reinava sobre a terra, quando começaram a juntar-se os companheiros da quinta, questionavam mais a ausência do canto da aurora do que a ave ali caída, no meio dos dejectos, sem qualquer resquício da majestade que fora, vieram de vários pontos, todos acorreram à capoeira na busca de um porquê pela ausência do anunciar da manhã, assim que uma resposta, viravam costas, lentamente, contudo, a meio do caminho, apercebiam-se do real estado das coisas, e regressavam para a porta da capoeira, ali estavam todos, numa mistura de idiomas demasiado polifónica, mas uma palavra sobressaía a todas as outras, a palavra amanhã, desde os porcos, às vacas, as próprias galinhas, os asnos velhos e sarnentos, passando pelas cabras, todos de costas para a outrora ave majestosa, para sempre caída no meio da ignomínia da terra, sem qualquer resquício da majestade que fora, Quem nos vai anunciar, agora, o fim da noite no mundo?, gritou uma das vacas, Sim, pois é, quem vai ser?, continuou um dos porcos, E quem vai decidir, doravante, as coisas?, lembrou um dos perus, uma velha galinha, num tom calmo, disse Terá de ser alguém de outro lado. Agora, por favor, escolham quem quiserem, mas deixem-nos fazer o funeral e o respectivo luto, de novo, polifonia pelos ares, se as galinhas não queriam assumir, as vacas também não, os porcos ainda menos, as cabras já se retiravam, só um dos asnos velhos e sarnentos ali permaneceu, sem saber muito bem porquê, de repente, uma voz levantou-se Ele ofereceu-se! O asno olhou em volta surpreendido pelo renovado barulho, quem atentasse, por escassos segundos, no seu olhar, apercebia-se de que estava longe do acontecer, no entanto, apesar do continente do pensar, todos o saudaram, o seu nome ecoou pelos ares ao longo daquela manhã, instalaram uma corneta para, dali em diante, anunciar o dia, afinal, nem todos nasceram com o dom do canto, o asno optou por sorrir às felicitações recebidas, enquanto se esforçava por compreender os direitos e obrigações do seu novo cargo, à tarde deu-se o funeral, todos compareceram, bem, nem todos, o asno contemplava a corneta que o destino lhe apresentara, ali estava, siderado, perante aquele objecto que, visivelmente, outrora, andara pela mão de uma criança, mas que, neste momento, para ele era o tudo, é curioso, uns querem mais, outros não sabem o que querem, há os que só querem ser pertença dos outros, há, ainda, aqueles que procuram o querer, também há os que nada querem, poucos, é verdade, mas não querer também é um querer, por fim, há os que querem trocar o ver pelo sentir, são aqueles que se debruçam à varanda de um rosto e olham o mundo pela janela de um olhar, e como a vida é generosa para quem o compreende, mas para este asno, velho e sarnento, a corneta bastava para lhe preencher horizontes e pensar, o regresso do funeral deu-se já o mundo uma noite imensa, ninguém se apercebeu do asno, velho e sarnento, e da corneta, as galinhas, condoídas com a perda, regressaram apressadamente e em silêncio para os seus aposentos, os restantes animais, numa passada reflectida, dialogavam sobre o amanhã e o ontem, ninguém reparou no asno e na corneta, como se o amanhecer, naquele preciso momento, constituísse uma impossibilidade, em verdade, convém sublinhar que ninguém testemunhou o facto de o asno ter ficado em claro toda a madrugada, diante da corneta, com medo de falhar o apelo da manhã, ao contrário da ave majestosa, para sempre desvanecida deste horizonte terreno, o seu receio de falhar sobrepôs-se a tudo, nunca, antes, lhe haviam atribuído tal responsabilidade, apesar do frio, do canto do lobo nas lonjuras altas, da memória, tão omnipresente, do canto inimitável da ave majestosa, a sua corneta iria anunciar a manhã, e, pelo menos uma vez na vida, todos acorreriam para o saudar.

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