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sábado, 24 de junho de 2023

Inteligência é estar, pelo menos, em dois sítios ao mesmo tempo

 



Os filhos já no carro, ela, de porta aberta, com gumes no olhar, ele imóvel, a perceber-lhe a agudeza na expressão, nem esboçou uma última aproximação dos miúdos, agora só dali a duas semanas, eles impassíveis, sentados, a olhar em frente, como se cumprissem um rito, tal a mecânica dos gestos, ela a entrar, a chave, o ligeiro estremecer daquela carapaça mecânica, um ronco desnecessário, ela sempre acompanhou a chave com o pé no acelerador, quantos vezes ele Que estupidez! Não faças isso! É completamente desnecessário e só gastas gasolina, mas estas recomendações foram há muito, há tanto que, hoje, parecem uma ficção, pareceu-lhe, por acaso, que os olhos dela se ergueram, do interior da viatura, à altura do seu rosto, do lado de fora, mãos nos bolsos, assim que o ronco desnecessário povoou a rua e pracetas circundantes, os miúdos sempre a olhar em frente, apenas uma mãozita se atreve a erguer-se, assim que se inicia a marcha, para um adeus e vemo-nos daqui a quinze dias, do carro, agora, apenas o guinchar dos travões ao fundo da rua, ele continua de mãos nos bolsos, a pensar naquele renovado silêncio da casa, que o aguarda numa inevitabilidade de tragédia, ainda há umas horas, aquele silêncio afigurava-se uma impossibilidade, os filhos exorcizavam-no para longe do pensar, com aquela espontaneidade de ser criança, ela com nove, ele com sete, era-lhe impossível olhar aqueles rostos sem pensar nela e na aparente ficção de uma outra vida, a primeira saída, um café, sempre um café, há qualquer coisa de inevitabilidade num caminhar conjunto que obriga ao apeadeiro de uma mesa de café, tão estranho, talvez pelo carácter de um espanto sempre nascido a jusante, mas assim foi, trabalhavam sob o mesmo tecto há uns meses, recém-saídos dos corredores da faculdade e estigmatizados pela ilusória esperança da cor dos recibos do parco pecúlio auferido, por acaso, nunca se tinham falado, nem sequer haviam reparado um no outro, até que, sem se saber muito bem porquê, naquela tarde de chuva, que os obrigou, entre outros, a demorarem-se à porta, olharem-se e algo agradável instalou-se entre eles, talvez aquela familiaridade, nascida em parte incerta, que surge quando nos demoramos a passear por certos rostos, umas frases de algibeira para equilibrar os olhares, enquanto interiormente a certeza se construía, sim, até a voz agradava, a chuva lá fora persistia, compreende-se, tantos pecados neste mundo do homem por lavar, desde então, tudo lhes seria diferente, afinal, quando os seus olhares se encontraram, compreenderam a direcção do amanhã, as primeiras semanas de anuências e de gestos contidos, depois, seguiram-se semanas de exaltação e de frases cantadas, por fim, conheceram-se por inteiro, tinham toda a privacidade para tal, da parte da tarde, na casa dela, os pais trabalhavam, enquanto a mãe dele doméstica, ou em limpezas, ou à janela como uma vigilante do bairro, nada lhe escapava, nem o primeiro pombo que, cinzento com a asa direita ligeiramente para o escuro, até parecia coxear, aterrava assim que migalhas pela janela, era um rés-do-chão com uma entrada independente do prédio, usavam-na sempre, as árvores providenciavam a discrição necessária, acreditavam eles, embora o cabelo molhado à saída indiciasse algo mais que simples higiene, depois das apresentações às famílias, deixaram de usar a entrada independente, a discrição das árvores tornara-se supérflua, ele aí sentiu, pareceu-lhe, como aquelas coisas de que o nosso olhar rapidamente se desvia, da parte dela, um ligeiro descair de braços, como se de uma obrigação, enquanto antes, sob a discreta sombra das árvores, à sua frente, lhe guiava os passos, de mão dada, numa ânsia irreprimível, mas, aqui chegados, deu-se aquele atraso, ele feliz, ela numa apatia obscena, o pai dele, que trabalhava no ramo imobiliário, falou-lhes num apartamentozito, muito simpático, para os lados de Odivelas, bastante solarengo, com dois quartos, foram vê-lo num Sábado de manhã, ele bastante agradado, ela numa indiferença angustiante, apesar disso, mudaram-se semanas depois, foi ali que o berço acolheu o recém-chegado, durante esse período, entre eles, só os antebraços se tocavam ao trocar a criança de colo, ele conseguiu trocar o estigma da ilusória esperança da cor dos recibos, do parco pecúlio auferido, por um lugar efectivo, ela atraiçoada pela gravidez, assim que pôde, mal a creche o acolheu, pôs-se a enviar currículos, como isto foi há algum tempo, responderam-lhe de vários lados, optou por uma empresa perto de casa, talvez tivesse sido nessa noite, em que a apatia se lhe desvaneceu do rosto, que se tocaram para além dos antebraços, dois meses depois, ela a dar conta de um atraso, ele derrotado pelo regresso da indiferença àquele rosto que anoitecia e amanhecia a seu lado, mas nem sempre, por vezes ele ficava-se pelo sofá, há muito que os serões televisivos diferiam sob aquele tecto, com a chegada da filha, houve necessidade de mais um quarto, nada disseram, ao menos isso, não houve necessidade de vozes sobrepostas, de facto, tudo estava dito entre eles, uns dias depois, ele partiu, socorreu-se do pai para um outro apartamentozito, se possível solarengo, e, já agora, talvez um rés-do-chão, com uma entrada independente do prédio, pode ser então que alguém, de novo, na sua vida, sob a discreta sombra das árvores, à sua frente, lhe guie os passos, de mão dada, numa ânsia irreprimível. 

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