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quinta-feira, 29 de junho de 2023

Por onde andas?

 


Desde que o miúdo saiu de casa, pareces outra, desinteressada de tudo, antes, Vamos ao cinema?, eu, no sofá, já por paisagens distantes, a rezar que não falasses, para, assim, não me obrigares a regressar, no entanto, logo que um passo, a tua voz em cada canto da casa e de mim, Não me digas que já estás a dormir, eu, contrariadíssimo, a abrir um olho, a negar a evidência com a cabeça, a reforçar ainda Que disparate! Só fechei os olhos um bocadinho, por causa desta dor de cabeça, porém, tu sempre convicta, Vai tentar enganar outra! Caramba! Já nem um programa vês comigo, e acrescentavas sempre aquele golpe fatal: Pareces um velho! Aí chegados, só podia reagir, E tu pareces uma avozinha! Basta ver a forma como tratas o miúdo! Quase te babas só de olhar para ele, sabia que te acertara, sem qualquer necessidade, sempre esta carência de arenas, de nos retalharmos, as palavras de hoje, os gumes de outrora, o teu olhar pelo tapete, duvido que te levantasses, nesse ponto, optavas pelo silêncio, sempre foi a tua estratégia preferida, aí não tinhas par, sabias que a minha capitulação estava à distância de uma camisa por passar ou no paradeiro de uma gravata, contudo, compreendo a desnecessidade do meu comentário, afinal, esta terra, sobre a qual caminhamos, é um cemitério de sonhos, o teu quase se lhe juntava, é tão estranho, o real que a vida, hoje, nos tira, devolve-nos amanhã em possibilidade, um ano após aquele dia de altar, famílias e banquete, já não disfarçávamos o azedume perante a estupidez daquela extenuada pergunta Então, para quando um herdeiro? Sabia que não era de mim, nunca to disse, em verdade, nunca me perguntaste, também não te devia explicações, foi antes de te conhecer, ainda trabalhei umas férias na oficina de um tio meu para pagar o desmancho, foi de comum acordo, ela também não queria, quando assim é, mais do que a idade, é sinal de que não desejamos apearmo-nos na mesma estação, umas semanas depois, é curioso, quando nos cruzávamos na rua apenas um levantar de mão, enquanto antes nos entregávamos até à nudez do sentir, assim foi, agora é do domínio da memória, só aí vive, e não é todos os dias, como te estava a dizer, sabia que não era de mim, daí te tivesse convencido àquela consulta, achei engraçado que nunca me equacionasses com a génese da extenuada pergunta, talvez já conhecesses enlaces até à nudez do sentir, no entanto, nem queria espreitar por tais janelas, lá foste, sem objecções, após uma semana de testes, a confirmação da dificuldade, seguiram-se meses de medicação, em vez da nudez do sentir entregávamo-nos abnegadamente a um objectivo, por vezes, tinha alguma dificuldade ao início, confesso, mas sempre gostei de saborear a viagem, foste paciente com essas minhas hesitações, reconheço, mas o teu olhar só se focava no destino, estavas para além da viagem, cerca de meio ano depois, conseguimos, perdão, conseguiste, a extenuada pergunta cedera lugar a felicitações, todos aquém meses de medicação e enlaces abnegados por um objectivo, sem o doce e desarmante tempero da nudez do sentir, desde então, a tua existência caracterizou-se por um antes e depois, nem me vou dar ao trabalho de sublinhar qual o marco, como é óbvio, primeiro, é tão pequenino e dependente, o nosso espaço invadido por aquele berço intruso, e logo tu a deslocares esse sentir e a fazeres-me o intruso, não sei até que ponto não o terei sido de facto, daquele vosso universo tão particular, olhavam-se numa admiração mútua e extasiada, diziam-se tanto e eu para sempre surdo aos vossos dizeres, ainda olhava à minha volta por um dicionário de tal idioma, mas o feminino é sempre um continente da distância, tempos depois, tentava caminhar sobre a terra, e tu curvada no amparo das primeiras quedas, procurava, de certa forma, amenizar as coisas Deixa! Do chão não passa, e logo aquela tua expressão de desprezo, que nos faz procurar a lonjura, seguiu-se a escola, os livros, as letras, os números, mas é curioso, sempre que vos olhava, naquele vosso universo tão particular, continuava a olhar à minha volta por um dicionário de tal idioma, e, aqui chegado, só te posso culpar por nunca, em verdade, o teres deixado conhecer-me, mesmo quando saíamos de raquetas, apressavas-te na intromissão, e lá ias, também de raqueta na mão como podias segurar uma mala, um livro, um saco de compras, desde que te intrometesses, e quando levou aquela loirinha lá a casa, nem lhe possibilitaste terminar a apresentação, alegaste uma reunião urgente e bateste com a porta, todos percebemos a tua fúria repentina e desmedida, pensavas que não, e, com os anos, esquecemo-nos de que uma pergunta estúpida é sempre servida aos pares, ainda tentaram, algumas vezes, Então, para quando o segundo?, reconheço que, aí, a fúria e os repentes me pertencerem, é saudável, de vez em quando, estalar o verniz, permite-nos o respirar da alma, não achas, agora que o miúdo saiu de casa, percebi logo que ele e aquela loirinha se iriam apear na mesma estação, podíamos olhar as possibilidades que nos são devolvidas, e talvez uma delas nos relembre um cinema, o regresso a casa, uma porta que se abre, a penumbra tépida, e o doce e desarmante tempero da nudez do sentir…

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