Livros

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sexta-feira, 28 de junho de 2019

Liberdade não rima com maledicência




Quando o galo entrou no galinheiro, o conselho já se encontrava reunido, cinco galinhas e um galo velho, gordo, com um ar assustado, de quem procurava incessantemente um qualquer ponto de fuga, a presidir ao conselho estava uma galinha gorda, velha, denotava-se-lhe uma gritante dificuldade em equilibrar-se no poleiro, oscilava à medida que articulava sílabas, num tom monocórdico muito seu, o galo, ainda à entrada, não lhe estranhou o tom, infelizmente, pensou, já lhe era familiar, há coisas que a vida nos podia poupar, talvez assim sorríssemos mais, porém, ainda à entrada, inspirou e expirou longamente (e de si para si disse Vamos a isto!), queria, de facto, subtrair-se do azedume...




quarta-feira, 26 de junho de 2019



(…) candeeiros, nem altos, nem baixos, nem iluminavam, nem obscureciam, apenas vagos pontos de luz a apontar uma direcção, a de um sempre incumprido regresso no final de cada dia, se não somos daqui, regressar deveria ser banido do nosso léxico (…)

in O hoje constrói-se no ontem


sexta-feira, 21 de junho de 2019


“Não, este de almas nada entende”, tinha um coração envelhecido, de certa forma, sempre o soube, vivemos no coração e caminhamos pelo pensar, quem não se apercebe destas singelezas pouco aprendeu por aqui…

in O hoje constrói-se no ontem

domingo, 16 de junho de 2019

O hoje constrói-se no ontem



Só ouviu o início da frase, o resto já não lhe interessava, por sabê-lo, talvez bem demais, assim que a voz, atrás da secretária, partiu em busca de palavras ajustadas para pô-la a par da sua situação, ela desinteressou-se, procurou um ponto de fuga, encontrou-o na janela, alta, estreita, uma arquitectura desumana, opressiva, deprimente, reparou que estava ligeiramente aberta, dava para um estacionamento, nem um vislumbre de natureza para aquietar o espírito, nada, apenas alcatrão, carros e candeeiros, a voz, atrás da secretária, persistia no seu tom monocórdico, sem vestígios de emoção...

quinta-feira, 13 de junho de 2019


Na minha memória, só ecoa o final…

L.- Acabámos por não chegar onde queríamos…
B.- Enganas-te, Luís. Só chegamos onde podemos.
L.- Pareces uma velha a falar.
B.- E sinto-me uma, acredita… (Nisto, Bárbara vira-se para Luís e beija-o na face, enquanto lhe dá a mão sob a areia.) Obrigado…

in Queira rever o teu rosto ao entardecer


sexta-feira, 7 de junho de 2019

Outono




Meu irmão, o que te fez a vida? Aqui estou, na ombreira da porta, da sala de visitas, comprida, larga, discretamente a observar-te, perdido que estás, à janela, de pijama, olhas não para lá do vidro, mas um não sei quê em ti, mais tarde ou mais cedo todos acabamos por olhar “um não sei quê” em nós, é uma inevitabilidade, no teu caso foi cedo, talvez em demasia, lá fora um prenúncio de noite, os dias mais ligeiros com a mala, com pressa em abandonar-nos, mas isso é-te indiferente, há muito fizeste a mala ao aqui, meu irmão, o que te fez a vida? Persistes com a janela, mas até da distância vê-se que nada esperas...

segunda-feira, 3 de junho de 2019



Fomo-nos sentar e viver a espera, quando já nada esperamos, continuam a obrigar-nos a esperar, chego à conclusão de que a vida se resume a uma enorme ironia, parece sentir gozo em se rir na nossa cara, como se no seu enleio nos conduzisse ao ponto de onde julgáramos ter partido há tanto, e, afinal, ainda ali estamos. 
in A noite do pensar