Livros

Livros

domingo, 27 de novembro de 2022


 


 

... parece que temos uma dívida inextinguível com o mundo, talvez pela existência, daí o papel que nos é imposto, e a exigência que o cumpramos na perfeição, há muito que eu virara costas a dívidas e papéis...

in Um definitivo adeus

sexta-feira, 25 de novembro de 2022


 ... parecia desconhecer que nos definimos não pelo que fazemos aos olhos dos outros, mas perante os nossos...

in Um definitivo adeus

quinta-feira, 24 de novembro de 2022

Um definitivo adeus

 



Quantas vezes o passado visita o presente? Esta questão ainda estava longe de mim, quando decidi entrar naquela loja. Não sei bem porquê, nem sequer precisava de qualquer produto dali, mas já tinha almoçado, faltava uma meia hora para entrar (como é estranho, quando dispomos de tempo, não sabemos o que lhe fazer…), perdia-me com qualquer coisa, não me lembro o quê, tal a sua importância, de súbito, num incessante vai e vem de vultos, um rosto, algo me levantou o olhar, sempre me espantou esta mão invisível que nos pousa a atenção naquilo que ainda grita em nós, os incessantes vultos a turvarem-me a visão, contorno a prateleira, o rosto, agora, imóvel, qualquer coisa na mão, nisto, duas crianças correm na sua direcção, também seguram objectos, deixo-me estar, também sob o pretexto de um objecto e da sua análise, ela acolhe, como só uma mãe pode fazer, a corrida das crianças, gesticulam pela atenção materna, eu, afinal, não me perdia com objectos e pretextos, mas sim com a indulgência desenhada numa face, nisto, uma mão percorre-lhe o braço, percebi que um gesto não cansado, mas seguro pela familiaridade, um incómodo despertou-me algures, os olhos dela saúdam o gesto recente, se me perguntassem, neste momento, que objecto tenho na mão, não saberia que responder, é compreensível, há muito que me abandonei ali para caminhar entre aqueles quatro seres, ele não é muito alto, talvez tenha a mesma estatura que ela, revela uma fisionomia de sofá, um rosto nutrido a ecrãs e cigarros, curioso, imaginava-a com uma antítese, as crianças rodeiam-no com a sua espontaneidade inata, ele em gestos vagarosos, como se o ontem da infância fosse um bolso vazio, nesta altura, eu já era compaixão por aquela figura apenas do hoje, ela deteve-lhe a atenção por ali, ele numa solicitude demasiada, como se não contivesse uma gaveta para a reflexão, parecia desconhecer que nos definimos não pelo que fazemos aos olhos dos outros, mas perante os nossos, continuei a acompanhar-lhes os passos, procurava nela um vestígio de mim, se bem que de há muito, esforcei-me, nada, até nos gestos, ela uma outra, o pensar sempre a sobrepor-se ao movimento, não bem o pensar, antes o que é expectável, um pouco isso, parece que temos uma dívida inextinguível com o mundo, talvez pela existência, daí o papel que nos é imposto, e a exigência que o cumpramos na perfeição, há muito que eu virara costas a dívidas e papéis, certo dia, encontrei uma bússola num bolso de mim, por várias vezes, muita gente tentou-me oferecê-las, umas até muito bonitas, sempre declinei, aquela, que encontrei num bolso de mim, sempre me indicou as direcções necessárias a cada momento do existir, pelo que percebo, ela aceitou, a dado momento, uma dessas bússolas muito bonitas, que vêm em lindos embrulhos, talvez, por isso, a minha dificuldade em encontrar vestígios de mim, começam a encaminhar-se para a saída, por momentos, os nossos olhares tocam-se sem, no entanto, nos reconhecermos, isto só acontece quando nem vestígios restam para uma arqueologia dos sentimentos, enquanto ele paga, ela orienta crianças e casacos, nunca lhe divisei estes gestos, tantas vezes, naquelas longas tardes de suspiros e murmúrios, ela desenhou-me um amanhã distinto (quantos amanhãs por cumprir suporta um coração?), sem descendência, falava de tempo, parecia, não sei bem porquê, que receava perdê-lo, para agora, aos meus olhos, caminhar ao lado de uma antítese, baixar-se, por duas vezes, para abotoar casacos, eu, sem compras, sem ter de me baixar, quanto mais por duas vezes,  para abotoar casacos, saio antes deles, disponho de uns escassos minutos para regressar, atravesso a rua, um vento frio relembra-me o calendário, levo instintivamente as mãos aos bolsos, talvez, por isso, algo me dite a direcção do olhar, viro-me para trás, estão, neste momento, a sair da loja, ela à frente, depois os miúdos, por fim, ele, com dois sacos, da compaixão inicial derivei para uma certa simpatia por aquela figura, é bem possível que até viesse a gostar dele, ela também leva as mãos aos bolsos, fico a vê-los, por uns segundos, caminharem na direcção oposta, antes de me virar, palavra de honra, pareceu-me ouvir suspiros e murmúrios, talvez alguém tenha revisitado uma gaveta de si, onde guarde os desenhos do amanhã.


 

domingo, 13 de novembro de 2022


Uma casa sem livros é um homem sem ideias.

in Harmonia

sábado, 12 de novembro de 2022

HARMONIA - Pedro de Sá



Pedro de Sá

 

HARMONIA

  

 

 

… não choreis por Mim, chorai antes por vós mesmas e pelos vossos filhos…

                                                  Lucas 23, 27-31

 

Sede prudentes como serpentes e inocentes como pombas.

                                                   Mateus 10:16

 

 

ÍNDICE

 

 

A página em branco…………………………………………....5

A Ideia…………………………………………………………..50

A Escrita…………………………………………….…………….100

 


A página em branco

 

Se me perguntassem como ali cheguei, não saberia o que responder, afinal, tudo começou há muito. Mas, agora, ali na rua, sob aquele inclemente sol de Agosto, a tarde no seu auge, não havia tempo para considerações acerca da génese deste meu destino. Toquei à campainha, nem hesitei, o trinco da porta demorou o necessário a abrir-se, entrei, aproveitei para respirar fundo e fruir da frescura da entrada forrada a mármores, sempre apreciei a frescura das entradas dos prédios antigos, por vezes, reflectia se, com os tempos, não desaprendêramos de fazer as coisas… Subi a escada até ao primeiro-andar, enquanto ouvia uma porta a abrir-se, aí chegado, deparei-me com uma mulher, de estatura média, era agradável à vista, tinha uma beleza dissonante dos seus gestos e voz, como se um corpo que merecesse outra alma (quantas vezes tal sucede?), teria mais uns dois ou três anos que eu, sempre fui péssimo a estimar idades, porém, desta vez acho que acertara, até porque, de certa forma, estava contextualizado, cumprimentámo-nos, ela Chegou um pouco antes da hora. Não olhei para o relógio, achei que seria uma manifestação de fraqueza, optei por um sorriso, sempre a melhor forma de ocultar sentires e pensares, estendi-lhe a mão, ela retribuiu, cumprimentámo-nos, convidou-me para entrar, conduziu-me para a sala, enquanto Bom, depois do seu telefonema, confesso que dei voltas ao assunto, e não sei bem o que quer de mim… Afinal, não o conheci assim tão bem. Apontou-me para um cadeirão, sentei-me, ela sentou-se, num sofá barato, bem à minha frente, porém, lá prevaleceu um resquício de educação Desculpe, nem lhe perguntei se toma alguma coisa… Quer um café? Não sei porquê, mas nunca tive forças para recusar um café, aceitei, sinceramente, acho que ela esperava o contrário. Levantou-se, enquanto isso, olhei à minha volta, percebia-se que se tratava de um apartamentozito alugado, talvez com uma renda inversamente proporcional ao espaço disponibilizado, mobiliário só o necessário, como é natural nestes infelizes tempos de inconstância, além desta salita onde estávamos, pelas portas que vi, poucas mais divisões deveria ter, regressou com o café, vestia uma roupa de desporto, coçada em vários pontos, as cores esbatidas, uns ténis, apesar de serem de uma marca em voga, não me escapou que fossem o modelo mais básico, o que conferia ao quadro uma nota desagradável, pois, a tal ideia de dissonância, a sua dicção era sofrível e o esforço pelo verbo faziam-na salivar, felizmente ainda estava a alguma distância e eu não uso óculos, mas, assim que se silenciava, de novo, como se por milagre, diante de mim, aquela beleza de há pouco, discreta, é certo, mas tão longínqua daqueles gestos, salivares, roupas coçadas, enfim, houve outro pormenor que não me escapou, desde que ali entrei, não vi um único livro! Sempre achei que uma casa sem livros é um homem sem ideias. Como pôde ele relacionar-se com uma mulher assim? A minha curiosidade aumentava, de facto, ela evidenciava outros atributos, talvez fosse por aí… Como estava a dizer, estendeu-me a chávena e sentou-se no sofá barato, bem à minha frente, não percebo bem o que quer de mim. Já agora, é da família dele? Reparei que o salivar se adensava à medida que ela procurava acelerar o discurso, talvez houvesse também alguma nervoseira à mistura, procurei tranquilizá-la pausando as palavras, Não. Nada disso. Estou a recolher dados para um trabalho académico. Sabe, todos os seus livros são puramente autobiográficos. É esta a minha convicção e quero demonstrá-lo. Acredito que cada linha que escreveu corresponde a um instante vivido. E, como é natural, tenho esperança de encontrar resposta para a sua decisão… Percebe, não é? O que o levou a… Neste ponto, percebi-lhe algum desconforto, remexeu-se, por mais que uma vez, no sofá, Pois, compreendo, mas insisto: não sei como ajudá-lo. Saímos juntos algumas vezes. Nada mais… Compreendi que tinha de me socorrer rapidamente de uma questão, a seiva do diálogo, O que sentiu quando soube da sua morte? A mudança tão repentina, na geografia da conversa, deixou-a perplexa, demorou o seu tempo a recompor-se, Bom, foi terrível, não acha? E naquelas circunstâncias… Não estava nada à espera! Foi um amigo comum que me contou. É curioso, agora que falo nisto, uma parte de mim não ficou surpreendida. Ele falava recorrentemente da morte. Eu até lhe dizia para afastar tais pensamentos. Mas parecia uma obsessão. Começava a achar que, afinal, não tinha perdido o meu tempo! Recostei-me no cadeirão, acho que este gesto a incentivou à palavra, pareceu-me que também ela precisava de reorganizar este acontecimento em si, Certa tarde, estávamos num café, ele andava inquieto, isto sucedia quando não tinha matéria para a escrita, este ponto, claro, não me passou despercebido, se ela, há pouco, afirmou não o conhecer assim tão bem, como é possível saber a génese da sua inquietude? Optei pelo silêncio e deixei-a prosseguir, Começava a perguntar-me pelos meus pais, irmã, se nos dávamos bem, a minha infância, amores passados, eu respondia-lhe, claro, mas, ao mesmo tempo, percebia-lhe esta inclinação vampiresca, afinal, ele precisava de temáticas para escrever, agora que me lembro disto, sabe que chegou a escrever sobre mim e um antigo namorado? Mandou-me o texto e perguntou se correspondia, li-o, mas confesso-lhe a minha dificuldade com aquela prosa, não sei porquê, parecia-me que ele escrevia ao contrário do suceder das coisas. Como hei-de dizer? Parecia que estava a assistir ao desenrolar da história, mas sob um outro ponto de vista, ou mesmo de vários pontos de vista, na altura, optei por discordar da sua descrição demasiado suburbana da casa dos meus pais, ele refugiou-se, de imediato, na liberdade criativa. Anuí, claro está, para disfarçar o meu desconforto com o rótulo de suburbanos. Neste ponto, quase não disfarcei um sorriso, relanceei, uma vez mais, a roupa de desporto, coçada em vários pontos, com as cores esbatidas, e o modelo básico dos ténis, a dicção, como é óbvio, só servia para coroar o quadro geral, porém, uma questão impunha-se Mas achava-o elitista? Acho que ficou, de novo, surpreendida com a minha frontalidade, Elitista? Bom, como hei-de dizer? Sabe, quando li aquele texto sobre mim e um antigo namorado, no fundo, foi a única coisa que li dele, não sou muito de leituras, então, literatura, não tenho mesmo paciência! Gosto de coisas mais práticas, mais palpáveis, mas voltando àquele texto, ele pegou na história que lhe contei e trabalhou-a como quis, não o reconheci naquelas linhas. Se me dissessem que tinha sido escrito por um desconhecido, eu acreditava, porque o texto era muito sério, muito erudito, bom, eu sabia que ele tinha todas essas qualidades, porém, no dia-a-dia, não era nada assim, acho, inclusive, que o procurava disfarçar, talvez para não se distanciar em demasia de nós... Por outro lado, às vezes, roçava a extrema má educação e chegava a ser agressivo, no trânsito, então, nem lhe digo nada… Agora, elitista, não creio que fosse. Bom, era um bocado snobe, quer dizer, tinha os seus momentos, sobretudo, lá está, quando tinha de demonstrar a sua erudição, no entanto, quando a coisa virava, parecia que estávamos diante de um autêntico cavador. Não me escapou um pormenor, resolvi jogar um trunfo na mesa, Falou-me há pouco do trânsito. Afinal, pressuponho que saíram várias vezes, certo? Como sempre sucede nestas situações, percebo-lhe desconforto pelo desvelar da mentira, Sim, tem razão. Mas não é meu costume falar da minha vida a estranhos, como deve imaginar. E, já agora, o senhor anda a investigar a vida privada dele ou a sua obra? Tentativa de inverter os papéis, um clássico, sorri-lhe de novo, neste momento, acho que ela estava mais ansiosa por falar do que eu por ouvi-la, não me pareceu que fosse adiantar muito ao que já sabia, contudo, deixei-a prosseguir, Ao contrário do que possa julgar, eu também tenho faculdade, e muito antes de si. Noutra área, é certo, daí a minha distância das letras. Não pude reter a imagem daquela dicção, diante de um auditório, a dissertar sobre a mais singela temática. Dei o meu melhor para liquidar, de imediato, a gargalhada que me nascia. Consegui restabelecer-me, assumi uma expressão de interesse pelas suas palavras, enquanto anuía com insistência, para que ela levantasse o passado, Corremos vários cafés e esplanadas. Quase sempre junto a praias. Percebia-se que ele amava o mar. Acho que o tranquilizava. Às vezes, ficava-me a impressão de que o entediava, nesses momentos, percebia-lhe pressa nos gestos e uma ânsia de regresso, no fundo, ele nunca quis dar aquele passo, percebe, não é? Eu sabia que o coração dele já tinha, há muito, a forma de um rosto, só não compreendia o porquê desta insistência em caminhar, por cenários marítimos, com esta dicção a seu lado, Após a nossa primeira saída, eu percebi logo. Sabe como é? Às vezes, estamos em casa, enfadados, e temos de ir à janela, está a perceber? Acho que foi isso que lhe aconteceu. Eu estava no fim de uma relação, prestes a regressar para casa dos meus pais. Imagine que, no dia a seguir à nossa primeira saída, logo pela manhã, ele mandou-me uma mensagem: “Gostei muito do entardecer de ontem”. Ele era diferente de todos que já tinha conhecido, acredito que, no fundo, não tinha a menor noção do que queria. Parecia uma criança que escolhia um brinquedo, mas assim que lho davam, hesitava… Perdia o interesse. Ele, como lhe disse há pouco, era alguém que estava em casa, enfadado, e teve de ir à janela, contudo, nem a ousava abrir… Permanecia ali, somente a olhar, desculpe, acho que já estou a divagar, mas diga-me uma coisa, uma vez que está a realizar este trabalho, ainda por cima de teor académico, já tem resposta para o que aconteceu? Encolhi os ombros, confesso que foi um gesto irreflexo, a questão, tornada resposta, surgiu-me espontânea Ainda não. Mas há pouco disse que não ficou surpreendida. Tem alguma resposta para o sucedido? Ela fixou-me o olhar, confesso que não era desagradável demorarmo-nos por ali, tinha um tom de mel que adoçava o sentir, por fim, Como lhe disse há pouco, era um tema recorrente nas suas conversas. Sabe, acho que, no fundo, estava tão enfadado da vida que… Era daquelas pessoas que estão sempre insatisfeitas. Às vezes, num lanche, por exemplo, ficava a ver-me comer, olhava constantemente à sua volta, estivesse onde estivesse, creio que nunca encontraria a paz… Tinha uma questão agendada para lhe colocar, mas declinei-a, era óbvia a resposta, se o caracterizou como alguém que está em casa enfadado e vai até à janela respirar fundo, é porque ela está precisamente do lado de fora, faminta de um lar, à espera da melhor porta ou janela que se abra para, então, se alojar. Agora compreendo o porquê de ele permanecer impassível à janela, apreciou uma paisagem pintada de mel, mas não foi tolo para a deixar alojar-se… Acredito que, no fim, terá compreendido este equívoco. Acho que ela pouco mais acrescentaria, a chávena de café equilibrava-se, agora, com esforço, no braço do cadeirão, cansara-me de a segurar, antes de me levantar, uma última questão Então, acha que ele era apático face à vida? Demorou o seu tempo a contextualizar a pergunta, percebi que não gostava de dar parte fraca, Sim, creio que se possa colocar a questão nesses termos. Às vezes, parecia enjoado de viver. Refugiava-se, quase sempre, no gozo, tinha piadas para tudo e todos, mas acho, sinceramente, que era um papel que representava, talvez mais um, de facto, lamento dizê-lo, só estranhei a demora desta notícia… Perante a frieza desta afirmação, levantei-me de rompante, escondi-me, de novo, com um sorriso, ela, quase surpreendida, Então, vai já? Antes de lhe responder, peguei na chávena, não fosse ceder ao esforço do equilíbrio, devolvi-lhe, felizmente intacta, Sim, tenho de ir. Recolheu a chávena, num gesto aquém do feminino, era deselegante nos gestos e andar, e não se pode dizer que tal se devesse à sua formação na área de desporto, muito pelo contrário, era -lhe inato, Calculo que vá ouvir outros testemunhos, denotei curiosidade nesta sua afirmação, Sim, claro, quero percebê-lo tanto quanto possível, encaminhei-me para a porta, ela acompanhou-me, Espero ter-lhe sido útil. Permita-me a curiosidade, o que lhe despertou o interesse por tudo isto? Foi algum livro dele? Chegou a conhecê-lo? Pus as mãos nos bolsos, quando estava de pé, não sei porquê, pensava melhor de mãos nos bolsos, olhei-a num jeito de adeus, é sabido que, nesta vida, há rostos que só vemos uma vez, ver não é olhar, convém a ressalva, apreciei, uma vez mais, aquele tom melado no olhar (se naquele corpo uma outra alma), Conheci apenas o que ele derramou de si em folhas e folhas. Sabe, dialogámos muito enquanto o lia, mais do que se falássemos. Porque ler é isso, dialogar sem falar. E ele, sem dúvida, foi dos escritores que mais espelho me deu. Às vezes penso que nunca viveu, parece que nunca saía de si, tudo era interiorizado, não sei se me faço entender… Procuro exactamente provar o contrário, que foi o excesso de vida que o levou a… Percebe, não é? Por acaso, ele nunca lhe falou daquilo? Do sucedido há muitos anos? Não queria verbalizar, de novo testava-a, Suponho que esteja a falar do… Nunca falámos disso! Não é que fosse tabu, mas, sinceramente, nunca vi necessidade. Sabia a causa, acho, sinceramente, que toda a gente sabia, se ele nunca tocou no assunto, não era eu que o ia fazer… Confesso que esta foi a única resposta que a elevou um pouco, maquilhava um pouco aquela imagem de quem está do lado de fora, faminta de um lar, à espera da melhor porta ou janela que se abra para, então, se alojar. Na sua opinião, acha que ele vivia bem com isso? A resposta não tardou Acha que alguém vivia? Creio que o tornou ainda mais arrogante. Havia uma vaidade muda por ter ultrapassado aquilo, percebi-a, segunda boa resposta da tarde, também tinha ficado com essa imagem, dos vídeos e fotos que dele vi, despedi-me, não sem antes desejar-lhe felicidades, ela retribuiu, deu-me um cartão, caso quisesse pôr-me em forma, dava também aulas particulares, fiquei com a impressão, talvez pela escassez de mobiliário, que a coisa não lhe corria assim tão bem, já na rua, percebi que a tarde arrumava a mala, arrefecera, tomei o caminho de casa, enquanto organizava ideias. Se procurasse, com a exigência devida, uma nova luz após esta conversa, confesso que seria em vão. Ela não acrescentou rigorosamente nada ao que eu já sabia. Houve, de facto, escritos que ganharam outra vida após conhecê-la. Mas apenas porque a percebi enquanto personagem. E o contexto envolvente, claro. Apanhei o metro. No dia seguinte, ia visitar o vulto que mais o influenciou culturalmente. Se ali não tivesse desaguado, a certa altura da sua vida, jamais teria escrito uma linha. Andava pelos oitenta. Talvez já estivesse para além de tão distinto número. Ao contrário do que esperava, foi bastante solícito em receber-me. Até ao momento, curiosamente, a mais nova da lista, foi a mais relutante, e, no fim, tanto queria falar e tão pouco tinha para me dizer. Consegui um lugar, há muito que tal não sucedia, aproveitei para rever apontamentos, o balouçar das carruagens também mudava a minha paisagem interior, não sei porquê, tinha o efeito de me levantar memórias, fechei os olhos, e descobri-me menino com uma bola nos pés… O trinco da porta fez-me recuar um passo, mal refeito, entro, sorri à vista da porta de grades que protegia o elevador, sempre que, algo do passado se nos levanta, parece conter, em si, o vestígio de uma inocência ida, era um edifício robusto de meados dos anos sessenta, o meu destino ficava no segundo andar, assim que o elevador se imobilizou, já me aguardava, na soleira da porta, saí, percebi que me observava, senti-me desconfortável, quase deixava cair a pasta, demorei cinco a seis passos até lhe apertar a mão, por fim, conhecia-o, nós só somos para quem nos conhece, e eu estava diante do vulto que mais o influenciou, repito: se esta porta, no segundo andar, não lhe tivesse sido aberta, jamais uma linha teria sido escrita. Com um sorriso límpido, convidou-me a entrar e apontou-me para o fundo de um longuíssimo corredor, a casa num silêncio reflexivo, agradavelmente fresca, enquanto lá fora o mundo enlouquecia sob a vertigem ardente de Agosto. Entrei numa divisória em que só via livros, pus-me, de imediato, a ler lombadas, há coisas que nos são inatas, ao meio, uma imponente secretária, também com pilhas de livros, papéis, muitos papéis, rascunhos, apontamentos, pela forma como por ali se mobilizava, percebi-lhe uma ordem, contudo, incógnita para qualquer estranho, até que Sente-se. Por favor, esteja à sua vontade. Já vi que gosta de livros! Percebi, nesta sua afirmação, entoada com algum entusiasmo, como alguém que perspectiva uma possibilidade de diálogo, um pouco como um viajante, em terras longínquas, que encontra alguém que fale a mesma língua, no fundo, a compreensão, Sim, desde criança. Sentei-me num sofá, demasiado baixo, bastante desconfortável, mas esforçava-me para iludir a minha situação, Então, pelo que percebi do seu telefonema, está a redigir uma tese sobre a sua obra… Algum livro em especial? Expliquei-lhe o meu ponto de vista, que tinha a convicção de que todos os seus escritos são autobiográficos, e é esta a ideia que pretendo sustentar. Bom, não serão todas as obras literárias autobiográficas? Não é uma ideia nova. Retorqui que o sabia, mas, no caso dele, acrescia o trágico e recente fim… Muito bem, em que posso ajudá-lo? De novo, aquele sorriso límpido, um olhar que transparecia uma compreensão sapiente e, simultaneamente, uma curiosidade, quase infantil, em conhecer o outro, a farta cabeleira prateada conferia-lhe um ar de majestade resignada, a sua entoação parecia iluminar cada sílaba, havia nele uma familiaridade com a palavra irrepetível, É simples, respondi-lhe, Fale-me um pouco das vossas conversas, troca de ideias, leituras, autores favoritos, e até, se quiser, o que acha da sua obra… Cruzou os dedos, expirou longamente, endireitou-se na cadeira, Nem imagina quantas vezes já me colocaram essa questão! Reporto-me à última, naturalmente. Só queria um tostão por cada vez! Estava rico! Se me perguntassem, a certa altura da vida, quem, com toda a certeza, jamais escreveria uma linha, o nome dele pontificava entre os primeiros a elencar. E, no fim de contas, foi o que se viu… Pois é, enganamo-nos! É sinal de que a vida nos surpreende. Ainda me lembro, o telefone a tocar, e, do outro lado, a sua voz, muito resoluta a declarar-me: “Vou escrever um romance”. Parte de mim, confesso, riu-se, mas houve outra que levou a coisa muito a sério. Afinal, o rapaz já nos havia surpreendido. Tinha uma característica ímpar: determinação. Agora que abordo isto, não sei se era tanto determinação ou maturidade. Talvez estivesse naquela fase da vida em que começavam a escassear as munições, e não podia dar-se ao luxo de falhar. Creio que fosse mais por aqui… Procurei redireccionar um pouco a conversa, ir ao encontro das áreas que procurava iluminar, E o que mais apreciou nos seus romances? A resposta não tardou muito, uma vez mais A maturidade! Atenção, a maturidade de conteúdos, a forma, como sabemos, é um aperfeiçoar constante. Mas, sim, para a sua idade, olhava o mundo como um ancião. Quem o conhecesse não diria, porém, conseguia descer ao invisível universo do sentir. Às vezes, punha-me a dar-lhe conselhos, no fim, fazia sempre à sua maneira. Não valia a pena! Se concordava, até os seguia, contudo, sublimadamente deixava no ar que a escolha seria sempre sua. Percebi, pelas entrelinhas, a fricção normal entre duas personalidades bem firmadas, mas que, ao mesmo tempo, se admiravam. E a admiração desagua necessariamente no respeito. Aproveitava cada pausa para olhar à minha volta, do chão ao tecto, lombadas e lombadas, estava fascinado, não lhe passou despercebido o meu espanto, Sabe, sempre achei que uma casa sem livros é um casa sem alma, sorri-me, pensava o mesmo, mas expressava-o de outra forma, como anteriormente referi, “uma casa sem livros é um homem sem ideias”, Disse-me, há pouco, que foi a maturidade do sentir o que mais apreciou nos seus romances. Que, infelizmente, não foram muitos, como sabemos. Destaca algum? Passeou o olhar pela paisagem de papéis sobre a secretária, expirou, até que O terceiro, sem dúvida. Antes que pudesse esboçar um “porquê”, prosseguiu Quanto à forma, no meu entendimento, atinge o seu ponto mais alto enquanto prosador. Em relação ao conteúdo, é a história, romanceada, é certo, da sua família. De facto, tudo aconteceu, só que sob uma outra luz. É como se um acontecimento, da manhã, fosse relatado ao entardecer… Por falar nisto, sabe, numa das nossas últimas conversas, confessou-me, com alguma relutância, que receava o anoitecer… Como justificação, acrescentou que lhe pesava mais o pensar a essa hora, fiquei curioso, também já tinha andado por aí, infelizmente, algo se colocou, não sei se um telefonema, a minha mulher a bater à porta, qualquer coisa, não me lembro, e esta pertinente questão diluiu-se… Mas quando procurou palavras, para confessar esse receio, percebi-lhe uma genuína apreensão. Não sei se foi mais um factor a contribuir para… Percebe, não é? Não, não andava bem… De certa forma, e penitencio-me por isso, sinto que contribuí para o efeito, sempre que o via, a minha fatal insistência: “Então, meu rapaz, já voltaste ao romance?” Ele, coitado, muito condoído, a olhar o soalho, “Ainda não. Continuo sem matéria…” Eu, imprudente, logo: “Deixa-te daqueles textozinhos, deixa-te disso, e consagra-te ao romance! É aí que o escritor se revela!” Os textozinhos a que me reportava eram as suas crónicas, no fundo, tecnicamente falando são contos, mas ele denominava-as de crónicas, que fazer? Eu gostava, tal como muita gente, a multiplicidade temática era admirável, lá está, a maturidade, contudo, acho que dispersava tempo e talento num tão curto galope. Repare, o romance perdura, aquilo não, por muito que se goste. Mas ele sempre precisou de palco… Tive de interromper, a questão interessava-me, Como assim? Palco em que sentido? Não se mostrou surpreendido com a minha interrupção, prosseguiu como se não tivesse ocorrido, Sabe, há pessoas que, assim que saem de casa, caminham pela sombra, nem ousam buscar um rosto conhecido no meio da multidão. Apenas e só porque não lhe sentem a falta. Se o encontrarem, cumprem com a educação, se não, ainda melhor. Ele pertencia ao lado oposto, carecia de atenção, precisava de ser reconhecido, admirado, para prosseguir. Era o alimento do seu ego, do “eu”, como lhe queira chamar. Chegávamos quase a discutir quando tentava refrear-lhe as desmesuras, porém, creio que tudo brotava de uma carência inextinguível, mas havia nele um aspecto distinto, assim que obtinha o que procurava, fechava-se em si mesmo, num pudor de gestos e sentires, quase numa confissão sem verbo de que este não era o seu lugar… Somos tão estranhos, não é verdade? Concordei prontamente, ainda acrescentei Que grande verdade! Emoldurada por aquele cenário de lombadas e lombadas, a conversa decorria sem ponteiros, havia uma questão que talvez ali encontrasse o seu fim, O que acha que o levou a escrever? De novo, cruzou as mãos, olhou pela janela, inspirou, expirou, longamente, pelo menos duas vezes, Acho que é essa é uma pergunta sem resposta. Porque ou se nasce escritor ou não, como músico, pintor, por aí fora… Bem sei que, agora, há escolas de e para tudo. Tolos a enganar tolinhos, apenas e só. Sabe, olho à minha volta e cada vez revejo-me menos nas coisas. Com a idade, senti essa distância a aumentar, a aumentar, até que fiquei nesta margem de indiferença, olho as coisas sem um vislumbre de espanto… Foi a forma que encontrei de manter o meu equilíbrio. No fundo, aquilo que todos procuramos. É impossível, com o tempo, não nos tornarmos saudosistas. Acho que as saudades são proporcionais aos grisalhos. É uma aprendizagem da vida. Parece que, de certa forma, vamos sendo empurrados para fora do palco do existir: pela saúde, pelas modas, tecnologia, convenções, ideias, hábitos… Bom, peço desculpa, acabei por me dispersar, e estou a falar mais de mim… Perguntou-me qual o motivo, no meu entendimento, que o levou a escrever… Acho que foi quando desistiu de fugir de si. Ou talvez tenha sido o contrário: houve um momento, na sua vida (não sei se quer que o especifique), em que se viu irremediavelmente cercado, de facto, não tinha mais por onde escapar, foi aí que se sentou à mesa consigo mesmo e se descobriu. Pois, as vozes… Só quem escreve as entende. Uma frase insistentemente sussurrada, alguém que nos sai ao caminho e suplica que contemos a sua história, um vulto que nem conhecemos, mas que se ergueu no nosso pensar, insiste para darmos corpo à sua narrativa, passa a acompanhar os nossos passos durante dias, semanas, meses se preciso for, até que capitulemos à sua insistência, e, por fim, resolvamos preencher folhas em branco com a sua voz, ou um momento que se deve emoldurar numa folha, para que não se vá da memória sob os caprichos do rio do tempo, enfim, podia continuar a minha dissertação sobre a génese da criação literária, mas creio que se tornaria fastidioso. Agora, um facto notório foi a sua mudança. Não retive a questão Como assim? Percebi, pelo seu olhar, que caminhava por paisagens idas, Ficou mais amargo, pessimista mesmo. Passou a refugiar-se num humor sarcástico para enfrentar este lado de cá do existir. De certa forma, parecia apático face a tudo. Nada o mobilizava. Quando antes, vociferava, revoltava-se, explodia perante qualquer injustiça, desde a política ao trânsito, do futebol à taxa de desemprego, porém, não me passou despercebido que, nestes últimos tempos, limitava-se a um sorriso esbatido, por vezes, acompanhado por um encolher de ombros, acho, olhando para trás, que iniciara aí o adeus às coisas, começara a descer os degraus de si… Aceita um café? Não pude recusar, reparei, pela janela, que a tarde já acenava despedida, de facto, a conversa ia longa, algures por mim nascia a sensação de que me perdera perante tanta informação, o meu desnorte não pôde passar despercebido àquele olhar límpido e intuitivo, Acho que o soterrei com tanta informação, instintivamente neguei com a cabeça antes de dar voz ao pensar, mas ele prosseguiu, No fundo, tudo se resume ao mesmo: dar sentido! Ele escreveu para dar sentido às coisas! O café chegou pela mão da empregada, pelas escassas frases trocadas, percebi que a sua mulher estava noutra divisão, sentada, teria dificuldades em se mobilizar, diante de um televisor, não aprofundei o tema, afinal, não era a sua existência que me movia. Bebi devagar, sempre gostei de saborear um bom café, espantei-me ao perceber que ele já devolvia a chávena ao tabuleiro, pois, procurava o efeito e não o sabor, assumiu, de novo, um ar professoral e começou a dissertar O sentido! Creio que, a certa altura, escrevia para não enlouquecer. Seja lá o que isso for da loucura! Com os meus oitenta e dois anos na terra dos homens continuo sem saber o que é a loucura! Mas, sim, ele abriu uma porta, como todos que escrevem – repare: eu disse: escrevem, e não escrevinham, creio que entendeu –, daí as vozes, a quem a caneta cegamente obedece, percebia-se tão bem quando ele estava imbuído num livro, um pouco como quem está a viver uma enormíssima paixão: distante, feliz, absorto, com pressa em regressar, antes que o perca… É esse fatalmente o maior receio: que a voz se cale… Quantos, na história dos livros, não acabaram assim com as suas vidas? Fala-se disto e daquilo, mas o terror de quem escreve é que a voz o abandone. Só assim o sentido! Não creio que ele tenha perdido a voz ou vozes. Para mim, a coisa apresenta-se de uma outra forma. Já lhe disse anteriormente, perdeu a alegria, o entusiasmo pela vida… Claro que não foi algo espontâneo, vistas daqui as coisas, foi como uma hemorragia ao longo dos anos, nestas últimas semanas, nada o movia, nada, um fastio de tudo e todos, acho que, ao contrário de muitos, não se separara da realidade, muito pelo contrário, mergulhara em demasia nela. Aí começou o esboço do seu desejo de partir… Um estado de consciência absoluto, aquela inextinguível sede de controlo sobre si e o acontecer à sua volta, inevitavelmente algo teria que ceder, e a escrita, sempre a escrita, muitos viravam costas, a maioria por estar aquém de tais desígnios, e havia os outros, os passageiros da inveja, sempre os piores, esses fingiam que nada se passava, como se ele nunca tivesse escrito uma linha, como se não houvesse nada de novo debaixo do céu do mundo, contudo, ele tinha pena destes últimos, afinal, são sempre os que mais sofrem, porque, lastimavelmente, têm consciência da sua limitação. Dei por mim a olhar para o relógio, o meu gesto, claro, não passou despercebido àquele olhar límpido, Espero não estar a maçá-lo… Fui imprudente, o que eu insisti para que me recebesse e, agora, dou ares de apressado, tinha de prontamente rectificar a situação, mas nem uma palavra se me aflorava para construir uma frase com um sentido de desculpa, ele olhava-me impassivelmente, sabia-me sua presa, quanto mais tempo de silêncio, maior dificuldade em preencher o súbito vazio que se abriu entre nós, tudo devido à imprudência de um gesto irreflexo da minha parte, até que lá consegui balbuciar qualquer coisa que felizmente conseguiu terminar em frase, Não… Nada disso! Peço-lhe imensa desculpa pela minha deselegância. De forma alguma, me está a maçar. Pelo contrário, nem dei pelo tempo passar. Daí a minha surpresa pelos candeeiros, lá fora, já iluminados. Até lhe queria pedir se poderia voltar. Creio que ficou tanto por dizer. E, permita-me, felicitá-lo. Nem imagina os horizontes que já me abriu! De certa forma, a questão do meu regresso, para uma segunda conversa, pareceu-lhe natural, creio que a aguardava, afinal, melhor que ninguém, sabia que ficara tanto por dizer. Levantou-se, eu secundei-o, colocou as mãos nos bolsos, olhou-me com um sorriso compreensivo, Já agora, diga-me uma coisa: qual foi o livro que mais gostou dele? Não estranhei a sua pergunta, talvez a aguardasse, não tardei a resposta, O segundo, sem dúvida. Contornou a secretária, foi até à porta, e disse-me Venha! Acompanho-o até à saída. De novo, o longuíssimo corredor, ao contrário do que geralmente sucede, afigurou-se-me ainda mais longo no regresso, talvez por estar mergulhado em sombras, no patamar, após chamar o elevador, a sua voz, com aquela entoação que parecia iluminar cada sílaba, disse-me Regresse quando quiser. Ainda há muito por dizer. Em verdade, calamos sempre mais do que dizemos… Além disso, gosto de falar com alguém que olha lombadas. Apertei-lhe a mão, combinámos para dali a três dias, de novo, a porta de grade a proteger o elevador, sorri-me, já na rua, após dois ou três passos no passeio, parei para inspirar a noite recém-chegada, tanta informação recebida que estava num estado de quase letargia, era uma noite sem brisas, quente, como se o dia não tivesse partido, apenas o céu fechasse as pálpebras, encaminhei-me para o metro, não sei porquê, mas sempre tive a sensação de que regresso a um lar que nunca foi meu, desde a infância, este sentir de que a minha casa estaria num outro lugar, talvez numa esquina para além do meu passo, e esta funesta solidão que me acompanha o ser, creio que já me aguardava, deste lado de cá do existir, para se instalar em mim, mesmo quando acompanhado, seja com ela, com familiares, amigos, este sentir só caminha por mim, então, em festas, nunca consegui corresponder à alegria e risadas atiradas ao ar, como se constituísse uma impossibilidade, em verdade, nunca fiz um esforço, como se intuísse o malogro, para ultrapassar tal enfermidade, nestes contextos, sobrepunham-se as questões Então, o que se passa? Estás bem? Houve algum problema? Limitava-me a um tímido encolher de ombros, assegurava, com a veemência possível, que tudo estava bem comigo, e só queria que restituíssem um pouco do espaço à minha volta, pensava-o, mas não o dizia, claro, não queria que me achassem ainda mais estranho, é curioso, ao mesmo tempo gostava destas manifestações de preocupação, ele tem uma expressão na qual me revejo inteiramente, Somos cemitérios de afectos, houve vezes em que a funesta solidão, que me acompanha o ser, afigurou-se-me o único lar possível neste lado de cá do existir, desço as escadas do metro, aquele peculiar cheiro invade-me, uma vez mais, a infância ergue-se em mim, na plataforma avolumam-se vultos à minha volta, sinto-lhes a presença, porém, não lhes vejo o rosto, por estes dias, estão velados por um rectângulo luminoso que há muito lhes devorou a alma, por fim, uma esperança, em forma de luz, acompanhada de um silvo metálico, quando retomo o caudal dos meus pensamentos, já sentado, a olhar-me no reflexo da janela, com as trevas exteriores e a artificial luz interna, apenas a minha imagem no vidro, nada mais, de novo, um regresso, por ele escrito, acende-se-me no pensar, Enquanto o mar se pintava de ocaso, um paquete ladeava o comboio numa corrida com metas distintas. Sempre que via um barco assim, no regresso a casa, ele percebia onde não queria estar. E o seu olhar nem o barco via, apenas que vogava rumo à única réstia de luz do mundo. Enquanto o comboio, de estação em estação, apenas derramava despojos de ilusões, sorri-me, conseguiu traduzir, na perfeição, o sentir desordenado que trazia no peito, percebia onde não queria estar, e há tanto que isso me sucede, já a rodar a fechadura de casa, do interior nem um som que anunciasse uma possibilidade de vida, entrei, fechei a porta, pelo chão apenas caixotes e caixotes, sei que no seu interior estão os despojos, dos vinte e cinco anos de casamento, do meu pai, que apenas aguardam a sua vinda para serem recolhidos, os de minha mãe por aqui ficam, tal como as paredes que nos abrigam, assim ficou decidido entre eles, pelo menos conseguiram trocar frases suficientes para chegar a este consenso, nos últimos três anos talvez não tenham comunicado tanto, houve um período em que eu servi de intermediário, uma vez mais, aquela sua expressão Somos cemitérios de afectos, ambos sofriam (e como eu o sabia!), contudo, nenhum soube ceder, persistiram nas suas torres de orgulho, enquanto tudo se desmoronava à sua volta, inclusive eu, minha irmã só uma ausência, ou um nome da saudade, nunca concebi a imagem deles separados, como se, de uma moldura, subitamente duas, talvez até em mesas distantes, como se nunca se tivessem conhecido, falado, apaixonado, beijado, dormido juntos, confidenciado sonhos e temores, é tudo tão estranho nesta vida, procuramos fundar a nossa existência em certezas, talvez para podermos caminhar, mas, de repente, num imprevisto, tudo muda na geografia do nosso ser… Quem sabe, mais à frente, regresse a esta questão de duas molduras, em mesas distantes, como se nunca se tivessem conhecido, como se nunca tivessem partilhado Verões em praias a Norte, como dizia, a cada passo, tinha de olhar para o chão, não fosse tropeçar num qualquer despojo de vinte e cinco anos de vida conjugal do meu pai, assim que ouviu a porta fechar-se, logo minha mãe És tu, meu filho? Respondi-lhe afirmativamente, embora sempre me parecesse uma questão inócua, o cheiro a tabaco e tintas invadiu-me logo à entrada, por um lado, agradado por ela retomar a pintura, por outro, crescia-me uma náusea por tão fortes odores, perdi o apetite, fechei-me no meu quarto, sabia que, quando tabaco e tintas pela casa, durante dias ela não sairia da divisão que consagrou à sua arte, nem providenciaria refeições, por esta altura, teria uma garrafa de um bom tinto aberta, numa mesa de apoio, e alimentar-se-ia dessa seiva até preencher o último resquício desafiador de brancura da tela. Sentei-me à secretária, verti para uma folha os pontos relevantes da conversa de hoje, aproveitei para organizar os meus apontamentos de leituras, estudos, da anterior entrevista com a mulher da dicção sofrível, senti uma ponta de vaidade, no fim de contas, o meu trabalho começava a ganhar corpo. De novo, o trinco da porta fez-me recuar um passo, mal refeito, entro, sorri, uma vez mais, à vista da porta de grades que protegia o elevador, pois, sempre que, algo do passado se nos levanta, parece conter, em si, o vestígio de uma inocência ida, chegado ao segundo andar, e pela porta de grades, vi que já me aguardava, mãos nos bolsos, a farta cabeleira prateada, que lhe conferia um ar de majestade resignada, quase iluminava todo o patamar, agradou-me rever aquele sorriso límpido, o olhar sapiente, não sei porquê, pareceu-me ser recíproco, afinal, íamos falar de livros, cumprimentou-me com aquela entoação que parece iluminar cada sílaba (como me soube bem ouvir de novo aquela voz!), e percorrer, uma vez mais, aquele longuíssimo corredor, a casa sempre num silêncio reflexivo, como se também mergulhada numa leitura, vejo-me novamente rodeado de lombadas e lombadas, do chão ao tecto, a majestosa secretária continuava afundada em pilhas de livros, papéis, muitos papéis, rascunhos, apontamentos, indicou-me novamente o sofá, demasiado baixo, bastante desconfortável, procurei, outra vez, mascarar a minha situação, Então, como vai a sua tese? Adiantou alguma coisa por estes dias? Expliquei-lhe que ainda não passava de um mero esboço, estava tudo numa fase embrionária, que teria de realizar mais entrevistas para consolidar ideias e abrir perspectivas, Como foi que se deparou com ele? A questão saiu-lhe sem inflexões, apanhou-me desprevenido, houve um flutuar de emoções em mim, por um lado, achei-a pertinente, por outro, pareceu-me desafiadora, não sei bem porquê, não obstante o facto de estar nos alvores desta minha caminhada, as noites de sono sequenciais há muito partiram do meu viver, creio que se todos, ao entrar em casa, tivessem de se desviar de ilhas, com vinte e cinco anos de vida dentro, estariam igualmente cansados… Não fugi à questão, Foi na livraria de uma cidade do Norte. Olhava as novidades na montra, e, subitamente, aquele título não mais me largou… Entrei e comprei! Nem sabia quem era o autor, mas sempre comprei livros pelo título! Acho que traduzem, ou, pelo menos, deviam fazê-lo, a essência da obra. Resolveu clarificar a situação, Presumo que se esteja a referir ao seu primeiro livro. Respondi prontamente, Sim, claro, “Olhei para trás e sorri…” Continuo a achar belo e sugestivo. Cruzou as mãos num gesto que já percebia tão seu, as sílabas, de novo, iluminadas por aquela tão singular entoação, Concordo. É, de facto, um belo título, e sugestivo também. Sabe, uma bela tarde toca-me aqui o telefone (apontou com o queixo, estava camuflado por papéis), era ele, com uma voz muito resoluta declarou-me: “Vou escrever um romance!” Não interrompi, apesar de se estar a repetir, receei ofendê-lo, esperei que prosseguisse, felizmente não me arrependi, Passados quatro meses, de novo, o telefone, a informar-me que havia terminado, se eu queria ler, que enviava uma cópia. Acedi, de imediato, o resto é fácil pressupor, a minha surpresa com a qualidade da obra, ainda para mais sendo a primeira, na altura declarei-lhe “Surpreendeste-me muito positivamente”. Apenas e só, sempre fui muito parco em elogios. Acho que não fazem bem a ninguém! Acabam por nos adormecer, anestesiar, quando, em verdade, devemos caminhar continuamente… Percebe o que quero dizer, não é…? Anuí prontamente. No fundo, ele fez tudo ao contrário. Lembro-me bem de lhe dizer que devia ter começado por redigir pequenos contos, só depois tentar o romance… Nada! Escreveu o romance, depois, sim, começou a enviar-me os contos, que designava de crónicas. Que fazer? Nada! Até a sua vida foi ao contrário, tudo tão rápido, nem teve tempo para a idade do sonho, já que nessa altura sonhou enquanto vivia, seguiu-se, fulminante, a aridez da realidade, por fim, assentou rapidamente… Aí, sim, sentiu a ausência de sonhar, ainda procurou, mas o tempo sorriu-lhe desdenhosamente na cara, e fê-lo perceber que, algures lá atrás, o sonho jazia na berma de um qualquer caminho. É possível que, nesse momento, se tenha percebido um escritor. Quem sabe? Havia uma questão que não me abandonava Alguma vez lhe contou o porquê de subitamente ter-se dedicado à escrita? Percebi que não olhava um qualquer ponto indistinto, porque nunca olhamos nada de indistinto, quando aparentamos fazê-lo, é sinal de que olhamos quem fomos, Não. Nunca falámos sobre isso. Houve sempre um grande pudor nessa matéria e noutras também. Mas o que há para falar quando descobrimos quem somos? Qual é o nosso papel enquanto caminhos sob o céu? Sabe, é algo demasiado íntimo e intransmissível. É vivido demasiado subcutaneamente para ser comunicado. Atenção, conversámos, como já lhe disse, sobre a sua escrita, projectos futuros, dei-lhe conselhos, lembro-me até, em certa ocasião, de lhe dizer que o litoral estava omnipresente na sua obra, fruto, claro, da sua biografia. Contestou ligeiramente, porém, não deixou de levar em conta, e, como lhe era natural, tratou de mudar a agulha, tanto que o terceiro romance é quase integralmente passado em cenário rural, pois é, afinal de contas, o rapaz já nos havia surpreendido… Às vezes, parecia que esperava por desafios, que o instigassem, como se só assim voltasse a caminhar. Também eu achei que chegara a hora de mudar o rumo da conversa, E sobre aquela questão, se é que me faço entender, alguma vez a trataram abertamente? Percebeu-me as entrelinhas, enquanto eu lhe lia espanto por trazer à liça tal temática, Bom, se é o que eu estou a pensar, nunca tal foi abordado. Nem houve necessidade. Pelo menos, de forma directa. Para questões burocráticas, onde pudesse retirar dividendos, sim, sem qualquer problema, pelo menos da minha parte, da sua, sempre reagiu naturalmente. Embora uma sombra se lhe passeasse pelo rosto. Insisti, Mas percebia-lhe algum desconforto com esse assunto, alguma revolta impronunciada? Respondeu-me laconicamente Nada! Parecia que não conhecera o inferno… Sabe, eu compreendo que enverede por aí, creio, com toda a sinceridade, que se esse dia não tivesse amanhecido, hoje não estaria aqui, diante mim, a tirar apontamentos sobre a sua vida e obra. Sabe, há dias em que o demónio resolve caminhar pelo mundo dos homens. Aquele foi inquestionavelmente um desses casos! Caiu, entre nós, aquele incómodo silêncio que parece ter expulsado o verbo para bem longe, a passagem do tempo era proporcional ao desconforto sentido, valho-me da sua última frase para cessar o mal-estar crescente Acredito! Sem quaisquer dúvidas. Mas, se não estou enganado, ele nunca verteu essa experiência em papel? Endireitou os óculos e suspirou, Nos romances, de facto, não. Havia nele muito pudor em relação a isso. Nunca abordou directamente a questão, não era eu que o ia fazer… De certa forma, parece que eliminou de si esse acontecimento, espere, deixe-me encontrar palavras mais ajustadas, eliminar não é o termo correcto. Como hei-de dizer…? Para ultrapassar aquilo, no âmago de si, nunca aceitou o facto, contudo, e devido a essa recusa, exteriormente sempre procurou as melhores formas de o sublimar. Faço-me entender? Foi como se fechasse uma divisão da sua casa, nunca mais lá entrasse, mas simultaneamente tivesse consciência disso, por conseguinte, tratasse das restantes o melhor possível, inclusive envernizasse a porta e ombreira da que fechou e até lavasse a janela mas, claro, sempre pelo lado exterior. A questão saiu-me em espanto E nunca mais lá entrou? A resposta foi pronta Creio que não! O instinto de sobrevivência impunha-se. Foi este o mecanismo psicológico que lhe permitiu continuar por aqui… Aquele culto todo da… Sim, já vi que você sabe, sempre achei aquilo um perfeito disparate, mas que fazer? Ele tinha gáudio nisso! Então, depois daquilo, havia uma vaidade muda por ter ultrapassado, sobressaltei-me, já tinha ouvido aquela frase! Onde? Pois, já sei, como é possível? Duas almas tão distintas, mas que utilizam a mesma expressão quando se reportam ao mesmo contexto, espantei-me, resolvo prosseguir Acha que esse acontecimento o mudou? Desta vez, foi lesto Claro que sim! Mudaria qualquer um! O que lhe parece? A brutalidade da violência que se grava na carne e simultaneamente no espírito… Quem é que não mudava? Se bem que, não sei se sabe, mas só bateu à minha porta anos depois dessa fatalidade. É compreensível, já procurava um rumo… Por conseguinte, vendo bem as coisas, eu não sou a pessoa mais avalizada para responder a essa questão. Começava a admirar a sua lógica de raciocínio, sempre em espiral, ou seja, aprofundava a sua análise num contínuo, prosseguiu, Da última vez, disse-lhe que me penitenciava por, quase, o obrigar a consagrar-se ao romance… Recorda-se? Anuí, Ele, em sussurros, a confessar-me que não tinha matéria, num receio bem mais profundo, o de se ter esgotado, sabe, há temores, para quem escreve, que são omnipresentes: quando não escrevemos: sentimos uma infelicidade indizível, um mal-estar essencial no nosso ser, por não cumprirmos com os desígnios a que fomos convocados; quando se escreve: o temor de perder a voz, de não conseguirmos terminar a obra, de não vertermos em palavras o sentir e as ideias; por fim, terminado o livro, o desconforto do vazio, a falta de vozes, de matéria para um outro… O profundo receio de nos repetirmos! Uma das maiores angústias para quem escreve! Repito: para quem escreve, não para quem escrevinha! Vivemos a era dos escrevinhadores, não dos escritores! Escrever é tão difícil! Já viu a vida de quem escreve… Onde desagua? Como lhe disse, aquando da última vez, ele andava apático, indiferente face a tudo, nada o motivava, infelizmente, só percebemos os sinais sempre depois… Há uns anos, ele tinha ido passar umas férias de Verão numa pequena localidade, sempre no litoral, claro está, e, passados uns dias, dali partiu, na altura, lembro-me bem, elencou vários motivos para se justificar, a água fria, a incessante brisa, a antipatia das gentes, enfim, eu percebi, claramente, que fugia de si, do seu, então, oculto desígnio, quando tal sucede, confrontamo-nos com o absurdo de ser, creio que, nas suas funduras, teve consciência desse facto. Pagou os dias que esteve alojado, a sua companheira aquém de absurdos e funduras, uma bem-aventurada, verdade se diga, como todos que passam por este existir sem que a inquietude se aloje no seu ser, dali partiram ainda mais para Sul, ele foi com um semi-sorriso, aquele vislumbre de “absurdo” inquietou-o, esforçou-se por enterrar essa ideia, talvez, por uns tempos, tivesse algum êxito, mas iniciara a fuga de si, ou talvez a prosseguisse, porém, mais tarde, teria uma compreensão deste episódio bem distinta. O suceder copioso dos dias, como se de uma fatalidade se tratasse, nem um vislumbre de saída, a ideia de que somos figurantes em guião oculto, estas e outras questões levantarem-se-lhe, tudo isto associado à pequenez da povoação, a uma luz inclemente que obscurece mais que ilumina, um calor que fractura a terra e atomiza os homens, viu-se diante da vertigem de si, da impossibilidade de uma harmonia, com ela, com a localidade, o desfrutar de um descanso em período estival, abrira a porta à intranquilidade, desde então, jamais o abandonaria, até há umas semanas… Quer mais razões? Demorei a regressar, procurava incessantemente páginas suas que correspondessem ao que acabara de ouvir, Bom, mas o que relatou aconteceu, pelo que percebi, há décadas… Logo, não percebo o que… Interrompeu-me abruptamente, Quer que repita? Pois bem, eu repito: “abrira a porta à intranquilidade”. Assim que se instala em nós, torna-se um inquilino, além de indesejado, vitalício. A dada altura, escreveu um conto, ou crónica como ele sempre designou, com o título: “O homem do sorriso triste”. Onde acha que bebeu este título? Pois, pois é, na imagem do espelho. Se procura, para o seu trabalho, passagens autobiográficas, esta é talvez a mais significativa de todas. Sim, escusa de perguntar, ele tinha um sorriso triste. Por vezes, a gargalhada podia ser sonora, mas ostentava, quase sempre, um pálido sorriso, que assumia, de certa forma, contornos de último baluarte do seu “eu”, pensei em quanta dor por ali sentida, creio que me leu o pensar, Certo dia, acho até que foi numa discussão, ele disse a alguém (não quero desvelar mais a sua privacidade): “Escrevo porque sou infeliz!” Regresso àquele estado de consciência absoluta, ao mergulhar em demasia na realidade, ao contrário da maioria, que se dispersa com facilidade na superfície das coisas, desde a mais singela futilidade, às saídas, bares, noitadas e afins, viagens ocas para fotos de exibição, festas ocasionais onde se celebra apenas uma fuga momentânea ao tédio de existir, encontros fugazes sem tempo para se olhar, ele compreendeu, num determinado momento, talvez cedo demais, que, por muito que corresse, levar-se-ia sempre consigo… E ele não se dava nada bem consigo mesmo! E foi isso que plasmou em folhas e folhas! Está a compreender? Esta noção fundamental de que não há fuga de nós próprios! Como vê, algo tão simples, tão palpável, essencial, mas que quase todos procuram escamotear, como se fosse uma chaga que imperativamente devesse ser encoberta. Sinceramente, talvez não tenha conseguido sobreviver a si mesmo, a escrita, por uns tempos, ainda atenuou este confronto, mas era uma alma demasiado desarrumada. Silenciou-se, talvez à espera que eu erguesse uma questão, contudo, nesse instante, eu olhava as folhas amarrotadas onde rabiscava os apontamentos da sua prelecção, receava, confesso, que nem para mim fossem inteligíveis, pelo seu silêncio, achei que exigia minha atenção, levantei o olhar, emiti uma onomatopeia através da garganta, não fica mal e dá sempre ênfase ao que se vai dizer, Pois… De facto… Nem sei como lhe agradecer! Superou muito as minhas melhores expectativas! Tem, de facto, um conhecimento, sobre a sua pessoa e obra, ímpar! Resolvo levantar-me, acho que, mais um minuto, naquela tortuosa posição, e só sairia dali de ambulância, em verdade, quando me ergui creio ter ouvido uma vértebra a estalar, a hora de deixar este homem dos livros regressar ao seu universo de páginas infinitas tinha chegado, da minha parte, tinha dezenas de folhas preenchidas com notas e esquemas, avizinhava-se muito trabalho pela frente para ordenar tudo aquilo, de forma mais lenta, a farta cabeleira prateada ergueu-se, mesmo de pé, não perdia aquela aura de majestade resignada, por momentos atravessou-me o pensar a ideia de que sabia bem demais onde terminam as fugas do “eu”, de novo ostentava o seu sorriso límpido, Você é leitor! Durante uns tempos, ele também insistiu em sê-lo, até que a vida o levou para o outro lado, o de escritor. Assim se cumpria a sua essência: no acto criativo. É difícil habitar as duas margens: leitor e escritor: recriar e criar. Foi-lhe penoso, desde que descobriu a sua voz, ou vozes, não mais retirar prazer do acto de leitura. Pareceu-lhe, contou-me um dia, que lhe tinham obstruído um caminho. E como gostava, noite adentro, de se embrenhar num livro. Só que, depois de naufragar na outra margem, deu por si, durante uma leitura, a corrigir, a escrutinar, a criticar, até a reescrever, sim, deixou de retirar prazer da leitura, pareceu-lhe, de certa forma, que era uma casa onde somente ficava à entrada, como se o resto lhe fosse vedado. Desde então, a inquietude instalou-se, o tempo afigurou-se-lhe algo distinto: tudo era contabilizado em torno da escrita. Não quero, com isto, dizer que não cumprisse com todas as suas obrigações, das familiares às profissionais, contudo, desde que encetámos a nossa conversa, sentei-o logo na sala do ”eu” dele, para, daí, compreender a desarmonia instalada, e, se for até à sua varanda, olhe a paisagem por ele contemplada, como vê, tenho razão, só amanhecia quando pegava na caneta. Estendi-lhe a mão, Está na minha hora. Se tiver paciência, gostava de regressar ainda uma vez. Nem que seja para lhe entregar uma cópia do meu trabalho. Respondeu-me, como seria de esperar, polidamente, mas não refreou o entusiasmo quanto a ter o seu exemplar da tese, isso alegrou-me, foi revigorante, resolvi devolver a cortesia, Da outra vez, por acaso, escapou-me. Tinha muito gosto em ler um dos seus livros. Embora poesia não seja o meu forte… Agora foi o seu rosto a transparecer um entusiasmo contido, acrescentei Denota-se-lhe, não por acaso, um orgulho muito particular na sua poesia, deixei-o embaraçado, mas sabia que a resposta não tardaria, Pois… De facto… E eu que quis escrever um romance… Deus legou-me a poesia, e a ele a prosa. Creio que foi justo! Uma vez mais, o longo corredor, em sombras, diante de mim, não sei porquê, soava-me a despedida, percorrê-lo sempre me pareceu um rito iniciático, como se um teste de sombras a um aspirante da luz, talvez por isso o entusiasmo com que o percorria, muito subcutaneamente ali sentia-me bem, quantos lugares, neste mundo, reúnem lombadas e lombadas do chão ao tecto, alguém com um sorriso límpido, um olhar que transparece uma compreensão sapiente e, ao mesmo tempo, uma curiosidade, quase infantil, em conhecer o outro, um ar de majestade resignada, e, não menos importante, uma entoação que parece iluminar cada sílaba? Sorri, uma vez mais, à porta de grades que protegia o elevador, enquanto descia, a sua última frase ainda ressoava por mim Nós somos enquanto formos, à primeira vista, pareceu-me uma redundância, quase um lugar-comum indigno de tão nobre figura, contudo, repetiu a frase e com especial ênfase Nunca se esqueça: Nós somos enquanto formos! O eco apanhou-me já o elevador quase no rés-do-chão, e acompanhou-me durante dias, confesso que demorei o meu tempo, sempre o necessário de cada um, a compreender-lhe a essência. Marcámos o encontro, de tarde, numa esplanada à beira-mar, a escolha de um espaço neutro não terá sido por acaso, o Verão já arrumara a mala e abria a porta, a sua partida era iminente, estava sol, mas uma incómoda brisa arrefecia-nos, ao mesmo tempo, pensar e sentir, como não nos conhecíamos optámos pelo habitual, cor da camisola ou por nos telefonarmos na altura, reconhecimento, àquela hora, felizmente, a esplanada não estava cheia, antes, porém, deixei-me estar, por uns instantes, a olhar o mar, começava a adquirir aquele tom prateado dos meses invernosos, avizinhava-se igualmente mais tumultuoso, antes do frio, sempre me pareceu que descia sobre as coisas uma saudação de adeus, em mim nascia melancolia, nestes momentos, até o mais ínfimo movimento me custava, apetecia abandonar-me ao instante para compreender onde me perdera… Confesso, agora, que nada me havia preparado para o que iria ouvir no resto dessa tarde, ainda hoje, quando olho para trás, não sei se o que me chocou mais foi o relato em si ou o tom pesaroso emprestado à narrativa. À minha espera estava uma mulher, não foi nada fácil marcar este encontro, revelou-se esquiva, reticente, desconfortável, em regressar ao passado, mais à frente, far-se-á luz sobre os porquês, não sigo, confesso, nestes meus escritos, a cronologia das entrevistas, porém, desde já, faço uma ressalva, a última foi, de facto, a primeira, e a que me possibilitou angariar a maioria destes contactos, àqueles que me acusarem de imprecisão, por não obedecer ao imperativo cronológico, eu respondo que cumpro imperativos de outra ordem, de oferecer, ao leitor, um quadro abrangente e simultaneamente profundo de quem foi esta complexa figura que me espelhou nos seus escritos. E foi igualmente propositado transparecer apenas um singelo esboço dos entrevistados, guiei os meus passos por salvaguardar escrupulosamente a sua privacidade, já lhes basta estarem retratados em múltiplas das suas páginas, identifiquei-a pela camisola vermelha, por sinal, única de momento, além de que estava só a uma mesa, com uma chávena de café, talvez arrefecida, à sua frente, observei-a por uns momentos, era mais velha que eu, claro, teria perto da idade dele se ainda por aqui caminhasse, pelos gestos abúlicos indiciava ser viajante da praga do hoje, depressões e afins, ainda conservava algum encanto do ontem, embora cada vez mais ténue, não sei porquê, mas pareceu-me alguém, mesmo de onde estava, que poderia ter ido sempre mais além, em qualquer domínio da vida, do profissional ao afectivo, como se, de alguma forma, toda a vida estivesse com o pensar e sentir oprimidos, foi uma ideia que se me atravessou, aproximei-me, cumprimentei-a, ela retribuiu educadamente, convidou-me logo a sentar, porém, nos seus gestos e voz denotava-se-lhe, agora mais palpável, abulia, a voz até saía ligeiramente arrastada, parecia estar num lugar distante, só seu, comecei por agradecer ter aceitado dar o seu contributo para o meu trabalho, achei curioso que, ao contrário de alguns, nunca questionou quem dera o seu contacto, de seguida, procurei despertá-la um pouco da sua letargia, Sabe que entra, como personagem, em variadíssimos dos seus escritos? Por momentos, foi percorrida por um assomo de energia, pareceu-me até vê-la a ruborescer, acho que gostou desse facto, afinal, nem todos têm esse privilégio, A sério? Não fazia ideia! Sabia que ele se tinha tornado escritor, eu a corrigi-la mentalmente, como se alguém se tornasse escritor, pois, as tais coisas, ou se nasce ou não, mesmo assim, resolvo corrigi-la com delicadeza, Sim, é verdade, ele descobriu-se escritor. Foi algum conhecido comum que lhe contou? A abulia regressava-lhe, a voz arrastada, Sabe como é, ouve-se uma coisa aqui, outra ali, vamos confirmar… Afinal, a net serve para alguma coisa, não é? Perdia-se, agora, com o mar, deixei-me estar a olhá-la, a luz da hora atenuava o tempo no seu rosto, nisto, um vulto do meu lado direito a perguntar-me se queria alguma coisa, tratava-se de um jovem, desengonçado, com a roupa dois números acima, a camisola nodoada e com gritos de reforma em vários pontos, num total aquém de modos para o contexto, é possível que o próprio nunca venha a ter consciência do contexto, optei igualmente por um café, talvez por perceber que ser-lhe-ia uma tarefa exequível, ela regressa-se e preenche o silêncio, Ele gostava do mar. Volta e meia, entediado, dizia-me “Anda! Vamos!”, subia-lhe para a mota e só parávamos aqui, diante do mar… Acho que o acalmava, gostava de a ouvir, parecia, no fundo, estar a descrever a vivência da sua analepse interior, de facto, neste momento, ela viajava por si, achei curioso não ter questionado as minhas pretensões, foi como se as intuísse, Ele era diferente! Havia nele, simultaneamente, uma alegria contagiante e uma tristeza melancólica, tão estranho… Por vezes, dava-lhe, subitamente, para revisitar lugares do passado, como se vivesse em vários tempos, não sei se me faço entender… Talvez fosse o contrário, e quisesse apenas trazer o ontem ao hoje. Às vezes, à noite, circulávamos sem destino, e, quando dava por mim, caminhávamos por lugares da sua infância, fascinava-me a sua memória, logo eu, que nunca fui parente da saudade! De repente, o meu horizonte preenchido por duas ou três nódoas que me deixam um café bem à minha frente, ela permanecia com o azul ou a olhar-se num ontem de há muito, nem ousei interrompê-la, creio que, se tivesse mandado alguém no meu lugar, ela teria a mesma atitude, parecia carente em falar de si, talvez para compreender o ponto exacto em que errou no caminho do seu viver, Encontrávamo-nos mais à noite. Acredito que conheça o contexto, certo? Durou apenas quatro ou cinco meses, resolvi intervir, Para ele, pelos vistos, durou mais, ela parece ter gostado da minha observação, prosseguiu Eu sei porquê! Acredite que, para mim, também. Nessa altura, embora jovem, estava muito desorganizada interiormente. Aconteceu-me, não sei se sabe, aquele grande disparate, ele, como deve saber, já que está a fazer este estudo, foi um dos que me socorreu, neste ponto, perdi-a, não sabia, de todo, do que falava, contudo, optei por não a interromper, não lhe queria cortar o desfiar de memórias, Acho que ficou muito impressionado com tudo aquilo. Depois disso, creio que até me evitava. Sei que houve, como é normal nestes casos, várias correntes sobre o sucedido… Ele preferiu, como sempre, refugiar-se na ironia e na piada fácil. De certa forma, era o seu manto protector face à realidade, talvez a conhecesse bem demais e procurasse proteger-se. Até que, certa tarde, não sei porquê, confesso que não me recordo do contexto, olhámo-nos e percebemo-nos almas solitárias, disso lembro-me bem, fomos ao cinema, bem à noite, devia ser a última sessão, sabe, agora que falo nisto, é curioso, as memórias levantam-se, o que eu gostava de andar de mota com ele! Uma vez disse-lho, sei que era sensível ao elogio, falávamos e falávamos noite adentro, mas ele nunca abordou aquele episódio que tanto o impressionou. Talvez o quisesse exorcizar de si, eu também nunca abordei o facto de saber que o seu coração já tinha a forma de um rosto, não se pode dizer que fossem tabus, mas havia um pacto sublimado que ambos respeitámos. E tínhamos tanto para dizer um ao outro. Sabe, hoje, sim, compreendo a relevância dele na minha vida, quando o conheci, não era só o meu coração que possuía a forma de um rosto, acho que a minha alma também o teria, ele, é curioso, nunca falou do assunto, foi totalmente impassível face à minha fixação, sim, não se tratava de amor, e, como ele não desceu da sua torre de orgulho, fui eu que a tive de subir, lá do alto, percebi quão ridículo era o objecto dos meus devaneios, aí passámos à risada, o riso esvazia, quando dei por mim, estava curada! Neste particular, houve várias tentativas para me libertarem da minha fixação, só que nenhuma me obrigou a subir uma torre, nem teve a subtileza de me fazer rir lá do alto, Não refreei o meu pensar Então, por que se afastaram? Continuava absorta com o azul ondulante entardecido, a luz da hora conferia-lhe ao rosto serenidade, como se por ali jamais houvesse grandes desorganizações interiores, Ao certo, não sei… Mas, ao olhar para trás, recordo um momento que tudo podia mudar. De facto, a nossa vida acaba por ser a soma de todas as singularidades, porém, umas são mais esdrúxulas… Houve uma altura em que andámos mais agitados, ele devido ao rosto que lhe modelava o sentir, eu, claro, pelo vazio súbito no meu horizonte, afinal, o riso esvazia, é certo, mas, antes, sempre tinha um palhaço triste a ocupar-me o pensar, certa noite, levantou-se a hipótese de rumarmos a Norte, de moto, claro, apenas o puro desejo de partir, optámos pelo Norte por ele ter lá família, já viu, quantas vezes, numa vida, cumprimos, no instante seguinte, um desejo nascido do acaso? Deviam ser umas vinte e duas horas quando decidimos, num repente, a nossa insatisfação face à nossa circunstância, e que, talvez, se fôssemos para longe, encontrássemos a ansiada harmonia… Começámos, desde logo, a tomar as devidas providências, afinal, o que interessava era partir, dinheiro necessário, roupa, mochilas, dormíamos sob estrelas se necessário, estava tudo acertado, cada um recolheu à sua casa a informar os pais, eu exigia-me partir, precisava de contemplar outro cenário para continuar a respirar, contudo, após a anuência paterna, quando nos reunimos de novo, ele surgiu-me reticente, “Já viste a distância? As horas de condução? O desconforto…”, percebi tudo! Eu estava disposta a dormir com ele sob estrelas, porém, o argumento de horas em viagem e desconforto foi por ele apresentado… Pois, a vida é isto, no último instante, ele não deu o passo que faltava, desconheço se não quis dar, se não o soube dar ou simplesmente receou fazê-lo, o certo é que, depois dessa noite, algo se diluiu entre nós, pareceu-me vê-lo a afastar-se, a afastar-se, cada vez mais distante, mas não ia só, a seu lado, sempre o rosto que lhe norteava o sentir, e eu para ali fiquei, num abandono desamparado, refém de uma fatalidade de segunda opção que não mais podia suportar. A sua escolha há muito se cumprira, se é que chegou a haver alguma, parece-me, às vezes, que, nesta vida, somos apenas figurantes de um guião que nos sempre é ocultado, ou chegamos tarde às coisas, ou já não as queremos, ou simplesmente perdemo-las por inépcia… Creio, com toda a sinceridade, que se tivéssemos viajado nessa noite, fosse para Norte, Sul, Este ou Oeste, hoje seríamos outros, não sei o que dói mais, se ter consciência do momento preciso em que tudo poderia ser uma outra coisa, se o contrário, ou, em última instância, pensar que tudo estava determinado… Sinceramente, não sei. Ele era comodista, sobretudo com a higiene e o dormir, sabia que nunca acampou? Não pude refrear espanto, Mas o seu segundo romance descreve precisamente uma viagem, de quatro jovens, durante três dias, por uma serra, no fundo, claro, trata-se de uma viagem iniciática, mas a forma de descrever as tendas, sacos-cama, e todo o contexto envolvente, diria ser de alguém deveras familiarizado com o meio… Ela riu-se com vivacidade, tinha um riso contagiante, ao fim de todo este tempo de conversa, foi o primeiro aspecto que verdadeiramente lhe achei sedutor, Nada disso! Era obcecado com a higiene! E dormir sem ser numa cama... Acho que nunca lhe passou pela cabeça! Sem ser naquela noite, rumo a Norte, em que concordámos ter as estrelas como tecto. Daí pertinência daquele momento! Está a compreender? Se nos metêssemos à estrada, naquela madrugada, hoje seríamos outros, ela tinha razão, há momentos que duram uma vida, se um pouco mais de atenção, acuidade às coisas, ao acontecer, talvez um hoje diferente, esta mulher, diante de mim, com o sol já em despedidas da sua face, dissertava sobre algo tão fundamental como o instante, a ínfima parte de um todo chamado vida, mas tudo é presente: a saudade respira no aqui, as escolhas habitam no momento, o sonho viaja no sono de agora… Respondi-lhe É possível. Disse-me, há pouco, que, a partir daí, as coisas esfriaram um pouco entre vocês, olhou à volta, talvez pela camisola nodoada e com gritos de reforma em vários pontos, questionei Quer pedir mais alguma coisa? Se quiser, vou lá dentro chamá-lo, levantou a mão para me sossegar num gesto, Deixe estar, não tarda nada, ele já regressa, inspirou e expirou o necessário, o olhar sempre nas águas ondulantes agora pintadas de adeus, Houve intromissões, parece que a nossa cumplicidade começou a incomodar, houve até alguém, a certa altura, que disse “Caramba! Onde está um, está o outro”, depois veio a malícia, sabe, nem me queria alongar muito nestas recordações, mas só para ficar com uma ligeira ideia do desenrolar das coisas, e, aqui sim, fui muito culpada, confesso-o. Certa noite, um conhecido comum, é curioso, há coisas que só o tempo ilumina, mas assim que a sua luz incide, em nós apenas compreensão, não há outro conceito possível, como dizia, esse asco, apelido-o assim devido à claridade do tempo, infelizmente, na altura, estava muito aquém destas inferências, a pedir para falar comigo, eu, como é natural, a anuir, de seguida, destilou veneno sobre as intenções dele, que nunca passaria de personagem secundária na sua vida, a relembrar-me o rosto que assumia os contornos do seu sentir, de novo, diante de mim, a fatalidade de segunda opção, os ascos deste viver sabem trabalhar os nossos temores, fui uma idiota e acreditei no infeliz, ele, desde o início, percebeu as intenções do asco, porém, e num paradoxo gritante com a sua postura usual, manteve-se à margem do acontecer, não interveio, não falou comigo, claro que o asco continuo a dar-lhe palmadinhas nas costas, como se, por um minuto sequer, julgasse tê-lo enganado… Creio que, ainda hoje, ele terá um desprezo visceral por este infeliz, são figuras tétricas que nos surgem ao caminho e apenas nos tentam subtrair, mas, de certa forma, muito nas suas funduras, a sua apatia, face ao asco, ter-se-á devido a uma outra razão, ele terá compreendido que chegara a hora de me dizer adeus, daí que deixasse aquele Judas cumprir os seus propósitos. Repito: acredito que, ainda hoje, sinta repulsa pelo infeliz devido às suas intenções, que assentavam apenas na inveja! As consequências, como lhe disse há pouco, talvez fossem ao encontro dos seus desígnios. Contudo, nos seus juízos, sempre privilegiou a intenção. Apesar da idade, as suas convicções tinham raízes de idoso, no fim, a decisão era sua, e deixava isso bem vincado. Sabe, como ele era invejado! E apercebi-me, naquelas noites infindas, em que partilhámos sonhos e sentires, que ele intuía, com tristeza, este facto. Não padecia deste mal, era demasiado competitivo para se frustrar na maledicência, procurava sempre ir além, daí o seu inigualável espírito de sacrifício, a singular disciplina, a consagração, por exemplo, ao desporto, resolvo esclarecer uma dúvida, Agora que fala nisso, alguma vez o questionou acerca daquela obsessão com o corpo? Entretanto, consigo localizar a camisola nodoada, peço-lhe mais um café, ela opta por uma água, de repente, uma gaivota clama por algo, talvez pela noite chegada, agora, no seu rosto, reflectem-se as luzes do restaurante, ela, inebriada pela narrativa, nem se apercebera de que já conversávamos sob estrelas, como tanto ansiou numa sempre adiada viagem a Norte, há anos e anos, sinto que a brisa nos arrefecera a um desconforto sentido, pergunto-lhe se não quer ir para dentro, ela concorda, faço sinal à camisola nodoada de que vamos entrar, lentamente a esplanada foi-se despindo, neste momento, mais cadeiras que gente, uns partiram, outros continuaram a conversa, talvez dos contextos mais díspares, no interior iluminado do restaurante, procurámos uma mesa virada para o mar, peço desculpa, em verdade esta procura foi inteiramente dela, ficámos, por instantes, a olhar o horizonte em silêncio, o astro já mergulhara nas águas, de um lado as estrelas multiplicavam-se como se ecos de sonhos por sonhar, do outro ainda vestígios de luz, talvez o dia já caminhasse estrada fora, mas olhasse para trás uma última vez, tudo estava em serenidade, das águas aos céus, os corações humanos pertencem a uma outra realidade, o meu em harmonia com as águas, o dela, neste momento, não sei, o seu olhar, no entanto, sempre naquele resquício de luz lá no horizonte, talvez já não tivesse sonhos por sonhar, Questionou há pouco sobre a obsessão dele com o corpo. Não susteve uma discreta risada, Bom, de facto, tem fotos diametralmente opostas à imagem que idealizamos de um escritor. Mas ele era tudo isso e muito mais! Repare, só é obcecado com o corpo quem não está em paz com o que tem, parece uma redundância, mas não é… Sim, ele vivia muito seriamente, talvez em demasia, até para a idade, o desporto, alimentação, horas de sono, mas não podemos descurar o contexto, a influência do cinema, os ídolos masculinos de então, há quem pense, e sei de vários casos, que essa obsessão foi fruto daquilo, percebe, não é… Mas não! Antes disso, era igual! Eu, pelo contrário, admiro, e muito, a sua perseverança após aquela fatalidade… Ela entrava em terrenos que eu ansiava explorar, Agora que fala nisso, como foi que viveu esse conturbado período? Sei que, um pouco antes, já se tinham afastado. Mas calculo que o tenha ido visitar ao hospital… Ela olhou-me de frente, Claro que sim! Era uma ruína do rapaz que conheci! Se imaginasse um pesadelo para alguém, o que ele viveu superava em muito! Às inimagináveis dores físicas, só de falar arrepio-me toda, acresce-lhe o desgosto, neste ponto, não sei como sobreviveu! Lá está, a vaidade com o físico, e, depois de tudo, conseguiu ficar com a mente sã… Deixe-me recuar um pouco, àquelas noites em que deambulávamos, noite fora, de moto, certa vez, descobrimos um bar onde passavam somente a música e nós assumíamos as vezes do cantor, eu, claro, avancei, ele deixou-se estar a ouvir-me, ainda o instiguei, mas era escusado, pois é, havia situações em que a timidez o vencia, eram, sobretudo, músicas da nossa meninice, anos oitenta, repare, nós, adolescentes na altura, já éramos passageiros da nostalgia… Uma das primeiras coisas de que gostei nele foi o facto de ouvir a mesma música que eu, confesso que não o esperava, o desporto que praticava indiciava outras paragens musicais, mas não, gostávamos das mesmas canções, às vezes, ficávamos somente deitados, de luzes apagadas, madrugada dentro, a ouvir canções que se sucediam em acordes melosos e letras sentidas, não há dúvida de que nos sentíamos bem um com o outro (e como isso é raro!), nessa altura, eu já subira à sua torre e me ria, lá do alto, do palhaço triste, a única sombra entre nós provinha do seu lado, o rosto que modelava o seu sentir, e eu que exasperava com papéis secundários, não podia continuar, tinha de exigir mais para mim, não podia contentar-me em ser a perpétua sombra de um móvel esconso num Domingo à tarde… Daí que nos fôssemos afastando, é curioso, sempre que falo em distância, surge-me a imagem de alguém que fica num cais a olhar o barco que se afasta, afasta, até que basta um dedo para o encobrir do horizonte, foi um pouco assim, escusa de me perguntar se não pensei em lutar por ele, era derrota anunciada, jamais a deixaria, fosse por mim ou qualquer outra, no fim, por muito que vivêssemos, tenho a certeza de que permaneceria a seu lado. Dali jamais se demoveria. Compreendi que ela era uma dessas pessoas para quem a felicidade não mora no amanhã, mas no ontem, embora disso não tivesse consciência, daí o seu desamparo, a sua inquietude, mas também não a quis esclarecer desse singelo facto, de momento, não era esse o meu papel, além de que podia perpassar uma errónea imagem de petulância, Há pouco referiu que, depois daquilo, ele ficou uma ruína do rapaz que conheceu… Foi visitá-lo, certo? A voz continuava a sair-lhe ligeiramente arrastada, Sim, claro. Era a minha obrigação. Às horas de visita era muita gente. Nunca vi! A maioria, como é óbvio, vistas daqui as coisas, era o ver para crer… Além, claro, do inconfessável prazer de o ver caído, insisto, a vaidade do físico, e a desmesurada inveja alheia, porque, repare, ele foi atingido no coração da sua alma, pior é dificílimo de conceber, meses antes, tinha sido eu hospitalizada, algo de muito ligeiro, apenas uma contusão num pé, e, depois, soube-me tão bem, ele levava-me ao colo, às cavalitas, uma vez, lembro-me bem, estavam ambos os elevadores avariados, trouxe-me do rés-do-chão até ao oitavo andar, sabe, quem estava próxima dele sentia uma segurança, uma harmonia, e ele que nunca encontrou tais desígnios no seu curto viver, embora tanto os procurasse, bom, estou, de novo, a divagar… Desculpe! Percebi que quer, agora, abordar aquele fatídico período. Custa-me falar disso, percebe, não é? Anuí verticalmente com o rosto, Eu ia visitá-lo ao final do dia. Permitiam-lhe receber visitas fora do horário normal, era uma atenção que faziam, devido à tragédia que lhe aconteceu e, claro, à sua idade… Levava-o, às vezes, de cadeira de rodas, ainda não conseguia andar, não sei se sabe, quase perdia uma perna, para o exterior, às vezes até ao portão do hospital, tão estranho, três ou quatro semanas antes, ele a subir oito andares comigo às cavalitas! Num instante, uma vida muda, passamos a ser um outro, como se o de antes nunca tivesse existido, daí a relevância de uma foto, para atestar que não enlouquecemos… Percebi-lhe, aos primeiros olhares, uma miríade de emoções, entre a alegria de me ver e a dor infinda de se saber sentado, esmagado de encontro aos seus sonhos moribundos, mas é curioso, assim que trocávamos as primeiras frases, restabelecíamos a nossa singular empatia, que nos levava, madrugadas infindas, a confidenciarmos a alma, enquanto ouvíamos melodias que nos relembravam quantos já fomos nesta vida… O fechar de olhos não me passou despercebido. Resolvo intervir para a redireccionar, Há pouco, disse que encontrou uma ruína do rapaz que conheceu, ela percebeu a minha impaciência, notei-lhe um traço pesaroso pelo rosto, Talvez o termo ruína seja demasiado forte… Mas, a verdade, é que não encontro outro. Para ter uma ideia, ele perdeu mais de vinte quilos, em cerca de duas semanas, além, claro, de uma palidez excessiva pela brutal hemorragia, aquando do embate, as consequentes anestesias, operações, o próprio internamento, o estar confinado a uma cadeira de rodas, sim, sem dúvida, repito, era uma ruína do rapaz que conheci, se, antes, quem estava próxima dele sentia uma segurança, uma harmonia, agora, apenas uma desmesurada compaixão, e nada lhe passava despercebido, seguia-nos o olhar quase obsessivamente, compreendeu que, em cada um que o visitava, o olhar seguia os passos do pensamento, e desaguava sempre num vazio de ser… Compreendi que, daí em diante, seria o olhar dos outros a espelhar a permanente ausência nascida do acaso. Como se uma sentença sem crime! Apenas, um dia que, para ele, não devia ter amanhecido… Por momentos, via-o a contemplar, em pupilas alheias, uma dor tão sua, é curioso, quando quase nos esquecemos do nosso fardo, vem alguém de fora relembrar que algures o deixámos caído, como se de uma iniquidade se tratasse. Só tinha mais uma questão para lhe colocar, Ficou surpreendida com… Deixou o mar pelo meu olhar, Está a falar do seu… De novo, o meu rosto em movimentos verticais, É curioso. Sempre foi um tema que o obcecou. Afirmou, tantas vezes, que não tinha medo da morte. Uma das coisas que se falava, na altura, lá no hospital, é que ele não queria ser socorrido, chegou até a insultar quem lhe fez o garrote. Não é incrível? Caído no asfalto, a perder litros de sangue, após sofrer um embate daquela amplitude, e ainda encontrou forças para vociferar com quem procurava segurá-lo a este lado das coisas… Levantei-me, as costas já me doíam há um bom bocado, uma das pernas ameaçava dormência, estiquei-a de imediato, ela olhou-me de cima a baixo, entre a surpresa por me ter levantado e um certo desprezo por tê-la deixado a meio de uma frase, presenteei-a com o sorriso mais límpido que pude conceber, Peço desculpa, mas as minhas costas já não podiam mais… E estas cadeiras são tão desconfortáveis! As nódoas, assim que me levantei, surgiram do nada, disparei prontamente A conta, por favor! Ela, entretanto, também se levantara, a tirar o porta-moedas da carteira, estendi, de imediato, uma nota às nodoas, que a retirou da minha mão sem o elementar com licença, nada que me espantasse numa nódoa, acrescentei É para pagar tudo, neste ponto, ela ainda procurou construir um protesto, porém, mantive a minha intransigência, além disso tive de esperar pelo troco, afinal, sempre é mais fácil somar nódoas numa camisola, saímos, arrefecera, ela Agradeço os cafés. Não havia necessidade, argumentei É o mínimo pelo seu tempo. Veio de carro? Ela com um semblante de derrota, como se contrariada por ter de regressar ao aqui, respondeu secamente, Sim, está daquele lado, perguntei-lhe se me podia deixar na estação, Claro! Gostei da prontidão da sua resposta e do facto de não ter havido estranhezas por ali ter chegado sem viatura própria, normalmente começava o inquérito (Não tens carro? Já sei, chumbaste na condução… Não me digas que foi no código! Os teus velhos não te pagam a carta? És daqueles antipoluição? Por isso andas a pé?), mas ela ficou-se apenas por um espontâneo Claro, caminhámos pelo paredão anoitecido, resolvo povoar silêncios Leu algum dos seus livros? Ela não demorou na resposta Confesso que não. Nunca fui muito de ler. Se me perguntar se tive curiosidade, claro que sim… Quando saiu o primeiro livro, quem o conhecia pensou que fosse sobre aquele fatídico dia, depois, para quem não domina as letras, veio a desilusão, não tinha nada a ver, além, claro, da sua escrita não ser nada fácil... Quem foi à procura de lamechice ou de mexericos deu-se mal. De certa forma, foi bem feito. Subimos a escada até ao parque, aquela hora já despovoado, ela apontou na direcção onde tinha estacionado, não sei porquê, mas não a imaginava com outro carro, não se pode dizer que fosse velho, novo também não, tinha um utilitário, ligeiramente desleixado, mas ainda apresentável, que colava, na perfeição, com a imagem que ela deixou, intuí que a maternidade sempre constituiu um sonho, mais correctamente uma utopia, um amanhã permanente até compreender que se tornou um irreversível ontem, este é o alimento de muitos sonhos, abstracções que nos alimentam o viver e, mais tarde, acabam por anoitecer a cor dos nossos dias, não tanto pelo que não foi e podia ter sido, mas pelo que efectivamente já não pode ser, o interior da viatura correspondia à imagem exterior, desleixado, mas ainda assim decente, tinha uma condução agradável, prática e segura, durante o trajecto não falámos dele, perguntou-me se a tese ia adiantada, volta e meia, percebia-lhe ausências, pois, a praga do hoje, como se desligasse do aqui, ou talvez não fosse nada disso e somente mais uma característica sua, entre outras, afinal, arrastava ligeiramente os pés a andar, respirava notoriamente pela boca, tinha sempre os ombros ligeiramente encolhidos, devia proporcionar um desconforto inerente às contracturas, mantive a primeira impressão, pareceu-me alguém que sempre podia ter dado mais um passo, mas ficou aquém, por este ou aquele motivo, de tudo nesta coisa do viver, com sinceridade não acredito que fosse feliz, deu-me pistas, ao longo da conversa, de que se perdera de si na incessante voragem dos dias, acontece com muita gente, o problema é que muitos não compreendem esta elementar verdade, ela, porém, tinha-a bem presente, já avistava a luz da estação, ao fundo da rua, estaria a uns duzentos metros, quando, de novo, ela regressa ao passado, quem sabe se para iluminar um pouco mais a noite deste presente, Numa das visitas, lá no hospital, lembro-me tão bem, cheguei a ficar gelada, ele vira-se para mim, sabe, tinha uma franqueza desarmante, e eu apreciava isso, hoje então, que saudades de encontrar alguém que não tivesse esquecido a franqueza, bom, mas como lhe estava a contar, ele vira-se para mim, num tom quase confidencial, e declara: “Se não fosse cobarde, matava-me!” O que mais me impressionou não foi o conteúdo da frase, a entoação, foi simplesmente a evidência de que ele dizia a verdade: “Se não fosse cobarde, matava-me!” Não, não pense que o tentei dissuadir com ideias ocas de vãs esperanças e de amanhãs melhores, até porque não sou o melhor exemplo para tal contexto, permaneci em silêncio e limitei-me a estender-lhe a mão, a partir daqui, desenhou-se-me um quadro no pensar, ele acolheu a sua mão enquanto um sentir de sal desenhava-lhe um traço direito face abaixo, como um sonho caído pelo chão do mundo, ela talvez o tivesse querido abraçar, mas não o fez, afinal, já se perdera de si.

 

A Ideia


Regresso-me com a minha imagem demasiado nítida diante de mim, uma nitidez gritante, viajava à janela, mas no horizonte, pela noite lá fora, só a minha face que olhava e olhava-se, fechei os olhos e tentei fazer um ponto de situação do meu trabalho, impressionou-me a franqueza desta mulher, teria sido fácil, noutras circunstâncias, apaixonar-me por alguém assim, compreendo-o, alguém que nos recoloca o futuro à frente, por vezes, basta a possibilidade para nascer um sorriso, antes de fechar a porta do carro, ela Espero, com toda a sinceridade, que tenha êxito. Por si e por ele. Baixei-me e olhei-a, nasceu-me espontaneamente uma questão Tem alguma fotografia com ele? Ela entreabriu os lábios de espanto, como se lhe relembrassem uma evidência, Bom, não sei… De facto, é possível… Lembro-me, claro, de tirarmos fotos juntos… Vou procurar, depois digo-lhe… Ela também guardou uma questão para mim Custa-lhe regressar a casa, não é verdade? Sabe, com ele, sucedia o mesmo… Uma vez até me disse que cada regresso a casa, ao final do dia, constituía, para si, uma derrota, reabro os olhos e dou comigo a olhar-me, sem concessões, pelo vidro anoitecido, reflicto nestas palavras, e compreendo que ela, que nunca lhe leu uma linha sequer, tinha um conhecimento de quem ele foi muito superior a qualquer exegeta da sua obra, só me restou Pois… Quem sabe? É capaz de ter toda a razão, e, bem cá por dentro, naqueles lugares que estão sempre num além-verbo, afinal, a alma não é o lugar das palavras, assistia, do vidro, a mais uma derrota por me saber a caminho de um lar que nunca foi o meu, um lugar de silêncios, de silêncios não, de sentires omitidos, de palavras sufocadas, de gestos frios, não me recordo há quantos anos meus pais encetaram a sua guerra particular, creio que foi por aqui, depois de África, sempre ouvi dizer, em certas vozes, que lá residia o paraíso, como se fosse possível haver disso num lugar pisado por homens, meu pai pertencia a este diapasão, há coisas que, para continuarmos a respirar, preferimos colocar num lugar, por enquanto, inominável, algures entre a revolta do sucedido e a saudade pelo que foi, o seu sentir pelos anos de África caminhava por aqui, minha mãe, pelo contrário, era uma sobrevivente, e uma das principais características inerentes a quem for digno deste epíteto é a capacidade de adaptação, nesse aspecto, ela não ficava aquém em nada, não lhe era facilmente identificável qualquer vestígio da sua passagem por Angola, talvez a mania das grandezas, algo transversal à maioria dos retornados, os lugares-comuns em que inevitavelmente caíam nas conversas (Sabe, lá tinha uma quinta, quase precisava de um dia para a percorrer de carro! E criadagem? Tinha quase uma dezena só dentro de casa! Conhecia gente muito importante! Você nem imagina! Tinha muitos amigos! Ainda tenho…), não se pense, todavia, que procurava ocultar essa fase da vida, apenas adaptou-se a toda uma nova realidade e não olhou para trás, ele, coitado, pelo contrário, alguém uma vez lhe disse: Parece que te subtraíram a alma, homem! E sempre que possível, fazia ecoar África onde estivesse, fosse numa manhã de Novembro, Hoje está um cacimbo! A caminho do trabalho, Tenho de me despachar ou perco o machimbombo, aos domingos, impreterivelmente ao almoço, a inevitável muamba de galinha, quantas vezes a discussão pela falta de um ingrediente, creio que, com quatro anos, de tanto ouvir que faltava o óleo de palma ou os quiabos, já sabia a receita de cor, e sempre que, uma visita dessas paragens lá por casa, ecoava no gira-discos o som bem tropical do Duo Ouro Negro enquanto os rostos transpareciam, na perfeição, a parcela que fora subtraída da alma, minha mãe acompanhava-o por estes ecos, mas o seu rosto mantinha-se impassível, creio que, se emergisse um som distinto do gira-discos, a sua expressão facial seria idêntica, por acaso, ou talvez por pudor, nunca a questionaram, pelo menos diante de mim, se gostou dos seus anos de África, eu, em verdade, nunca o soube, quando, volta e meia, folheava os meus álbuns de criança, e olhava-me, sem me reconhecer, naquelas terras pejadas de palmeiras (não havia foto na rua onde não aparecesse, pelo menos, uma palmeira), ao colo de alguém, a dar os primeiros passos, no baptismo, não a sentia esfuziante, cumpria o seu papel social como o faria hoje duas ruas abaixo da nossa, com o tempo, e como era longo nesses primeiros anos, ao contrário de agora, que vivo num outro tempo, para mim, ininteligível, às vezes, parece-me que os relógios do ontem paravam para respirar, enquanto os de hoje viraram costas ao homem, como dizia, eles, mais do que eu, afinal, cheguei com apenas dois aniversários cumpridos, foram estigmatizados com o rótulo de retornados, e quão profunda era a sua dor, por várias razões: só retorna quem foi derrotado, o vitorioso, pelo contrário, regressa; retornaram a uma agora terra desconhecida, nem uma palmeira no horizonte; tiveram de se confinar a viver numa exígua prateleira, da janela apenas a desumanização dos tijolos do prédio em frente, o alcatrão da rua, volta e meia, povoado por sacos de plástico, repletos de lixo, caídos do único caixote da praceta; o próprio clima, distinto do tropical, a espartilhar hábitos e ousadias; e a vida que ficou para trás, como sonho abandonado na distância de uma doce madrugada, uma casa, trabalho, amigos, em alguns casos, amores, tudo por um nada… Houve quem não aceitasse que lhe interrompessem o viver, e, no que lhe restava de autonomia, optasse por um fim. É de respeitar! Meu pai deixou-se ir, em verdade, nunca gostou que o arrancassem dos sonhos, daí que coleccionasse despedimentos e possíveis empregos por se recusar a trabalhar de manhã, à noite, coloria copos para logo lhes devolver a transparência, dizia que ajudava a esquecer a vida que lhe roubaram, por sinal, a única que se dispôs a viver, foi minha mãe, contaram-me mais tarde, que correu para as inenarráveis bichas do IARN, e lá passou, literalmente, dias, em pé, sem contabilizar uma só refeição, nas primeiras semanas ele nem sequer saiu do quarto, permaneceu deitado, alimentou-se de garrafas que ajudavam a confundir a memória, foi assim que conseguiu sobreviver a esse período, disseram-me que nem o estore se levantou, permaneceu corrido a ocultar que tudo mudara à sua volta, creio que ele não o levantou, nesses primeiros dias, por outro motivo, um temor profundo: o de não encontrar, no espaço do olhar, uma só palmeira para lhe relembrar que já existira… Já minha irmã, seis anos mais nova, dava os primeiros passos, quando, após mais uma muamba, por isso, devia ser Domingo, o telefone, meus pais cumpriam com o imperativo do café após o almoço, eu teria perto de oito anos, atendo, do outro lado uma voz ríspida, escudada no anonimato, terreiro dos cobardes, a vomitar Porcaria de retornados! Nunca deviam ter voltado! Pensam o quê? Que ainda estão em África? Apesar de não me recordar se teria sete ou oito anos, sei que, nessa ocasião, mantive a educação recebida de meus pais, daí não ter descido ao terreiro dos cobardes, e ter-me limitado a desligar o telefone. Relatei o sucedido, assim que chegaram do café, não lhes foi difícil descortinar o autor da vil chamada, neste caso, foi uma autora, era a vizinha do rés-do-chão, uma criatura com sonhos à altura do andar que ocupava, antagónicos com a fanfarronice inata dos retornados, duas realidades opostas que necessariamente acabariam por colidir, mas não houve um confronto directo, um bater à porta, um pedido de satisfações, nada, tudo muito velado, diria mesmo que recalcado, assim eram dados os passos no meu lar, ainda hoje, desconheço se aquela vil criatura, que talvez já nem esteja entre nós, o que não a torna, em nada, menos vil, apesar desta mania lusitana de, quase de imediato, beatificar todo e qualquer defunto (Até era boa pessoa… Lá tinha o seu feitio, mas quem não o tem? Coitado! Chegou a sua vez… De certeza que já se arrependeu do mal que fez… Certamente nem teve intenção, e afinal de contas, quem somos nós para julgar?), soube que fora, no mesmo dia, desvelada, provinha do profundo interior alentejano, analfabeta chegou, analfabeta partiu, embora soubesse utilizar, e bem, telefones, uma vida como dona de casa, pouco mais, só o marido trabalhava, nunca soube em quê, ia e vinha a pé, por ali nunca houve viaturas próprias, é curioso, nunca lhe ouvi a voz, apesar de tanto o ver, assim que chegava do trabalho, postava-se à janela, e dali só saía para jantar e dormir, o resto do tempo dedicava à vida dos outros, quem entrava, saía, com quem, a que horas, como, onde, apesar da minha precoce idade, e de não me importar que espiassem as minhas habilidades com a bola, questionava-me se era aquilo que me esperava quando chegasse a adulto, o facto, em si mesmo, de me tornar adulto já me aterrorizava, bastava olhar os meus pais, duas, agora distintas, realidades que, por fatalidade, ocupavam o mesmo espaço, ele a olhar para trás, a sonhar com o cacimbo da manhã angolana, com uma Cuca na geleira, com as cores dos céus de África, enquanto ela só presente, nem vestígios de saudade, sim, esteve ali, trabalhou, casou, teve o primeiro filho, e depois? Foi obrigada a abandonar tudo e a recomeçar, do nada, demasiado longe, num outro ponto do mundo, uma vez, num desses Domingos de muamba, uma amiga mais incisiva colocou-lhe a questão das saudades de Angola, de tal forma, que minha mãe se viu encurralada, porém, não tardou a responder e com um laconismo que deixou todos, saudosistas ou não, definitivamente calados: Sabe, recomeçar do nada dá muito trabalho. Quase não tenho tempo para mim, quanto mais para saudades. Minha mãe, nessa tarde, quase enterrara, por completo, os anos de África lá por casa. Embora a muamba continuasse a ser cozinhada ao Domingo. Meu pai acabou por se reajustar, numa altura em que as regras ainda não se tinham inteiramente esboroado, com dois filhos por criar, só lhes restou sublimar diferenças e partilhar, talvez não sonhos, mas, pelo menos, o mesmo tecto, assim emergiu aquela estranha incomunicabilidade, que nos tornou desconhecidos, apesar de partilhamos os mesmos tão escassos metros quadrados. Com os anos, o nosso mecanismo de sobrevivência readapta-se, defendendo-nos, mostrando-nos outros caminhos, interesses, de forma a não permitir que o conceito de morte possa transpor os portais das ideias, porém, minha irmã sempre foi diferente, talvez essa ideia já se tivesse hospedado antes mesmo de respirar, um fim-de-semana era penoso, não é fácil o convívio de quatro estrangeiros em pouco mais de setenta metros quadrados, e o Domingo, depois da muamba, as sombras num estatismo desesperante, como se ali estivéssemos condenados a um estar petrificado, meus pais, o paradigmático espelho de uma impronunciada derrota, não percebia se de sentires, se de sonhos, mas olhava-os, sentenciados àquele sofá, a devorar qualquer boçalidade que surgisse no écran, às vezes, afiguravam-se-me dois náufragos condenados a um tortuoso entendimento pela sobrevivência, minha irmã no seu mundo, que se revelou, no fim, tão pouco colorido, eu, antes dos livros, procurei outras formas de fugir àquele desesperante estatismo das sombras, depois da muamba, aos Domingos, de tarde, ainda hoje, numa qualquer divisão de mim, o desconforto aos Domingos, logo, diante de mim, a imagem daquele sofá, como uma condenação que os esperasse, que os fizesse atravessar continentes, para ali os agrilhoar, as boçalidades que o écran debitava eram as únicas vozes audíveis dentro daquelas paredes, a certa altura, também eu me deixei ir na corrente, tudo o resto estava condenado ao malogro, éramos estranhos que somente partilhávamos tecto e mesa, e assim permaneceríamos. Logo à entrada de casa, do lado esquerdo, minha mãe colocara uma camilha, redonda, a coroá-la estava um vaso, com um rebento de palmeira, há horizontes que teimamos em não largar, tinha uma reverência especial por este canto da casa, o sol ainda ali conseguia chegar, apesar da marquise, parecia que os seus longos dedos agraciavam as folhas da jovem planta, como se a incentivasse a ser, é a sombra cilíndrica da camilha, com a sua coroa vegetal, que mais tenho presente, parecia adormecida na carpete, com uma expressão de desdém para a nossa impronunciada dor, talvez não tivesse sido um acaso que levou minha irmã a pintar, de escarlate, aquele canto aquando da sua primeira estigmatização… Foi ao terceiro telefonema, e após elencar exaustivamente as minhas razões, que ouvi um sumido sim. Combinei visitá-la na sua residência, para o efeito, tive de me deslocar ao Norte do país, porém, à última hora, e talvez para me facilitar as coisas, ela tenha optado por uma conhecida pastelaria, na avenida contígua à estação. Há muito que não saía de Lisboa, por momentos, comecei a reflectir nas coisas que ia adiando, creio que a minha expressão se turvou, ainda pelos vinte e poucos, e já somava tanta coisa inconclusa, certa vez ele escreveu “Seduzimo-nos por brindar ao que foi, e esquecemo-nos de brindar ao que poderia ter sido”, como o compreendo, a alma pesava-lhe tanto, até que não a susteve mais… Viajei de comboio, cerca de duas horas, mas, como expectável, cheguei com um atraso de trinta minutos, há quarenta e três anos que nada é viável neste pseudo-país, é normal quando se vive num permanente faz de conta, e a única realidade é o incontornável açambarcar dos salteadores engravatados que tomaram o poder num tal de Abril, saí numa encantatória estação que contrastava a alvura das paredes com os tons azulados dos múltiplos azulejos que ilustravam cenas típicas da região, da arte xávega, onde o trabalho braçal se gravava no rosto dos homens, que procuravam arrancar o pão de cada dia às inclementes águas do oceano, aos campos agrícolas, que, indiferentes às estações, aguardam a mão humana para reiniciar o secular ciclo de povoar a mesa de cada lar, resolvo ir a pé, poupo os bolsos, já de si tão magros, e simultaneamente aproveito para conhecer a cidade, à medida que desço a avenida da estação, relembro uma das suas crónicas, a personagem central era daqui, um viúvo que diariamente tomava as suas refeições sempre no mesmo restaurante, se o conseguir localizar dou lá um salto, as coisas só adquirem valor quando lhes atribuímos um significado, e uma mesa e cadeira deixam de ser apenas uma mesa e cadeira quando alguém resolve contar a história de quem lá se sentou, neste caso, para se esquecer de si, um vento frio devolve-me à minha circunstância de passeio, avenida fora, até que, trinta ou quarenta metros à minha frente, do lado esquerdo, identifiquei a pastelaria, apesar da meia hora de atraso do comboio, estou vinte minutos adiantado, dei o intervalo de uma hora, já a contar com os imponderáveis, entro, sou, de imediato, invadido por uma atmosfera doce que me faz salivar, à minha volta, um entra e sai constante de gente, o barulho também é considerável, vozes, chávenas, máquinas de café, começo a questionar-me se será o local apropriado para esta entrevista, procuro, no meio do burburinho geral, uma mesa mais reservada, visualizo uma, junto à janela, que se me afigura ligeiramente apartada do barulho vigente, espero que propicie um diálogo que venha ao encontro das minhas expectativas e que, por fim, ilumine um dos períodos mais obnubilados do seu existir… Sentei-me, coloquei o bloco de notas em cima da mesa, um dos elementos que me identificava, o outro, neste caso, prendia-se com a cor do meu casaco, não demorou muito até que um empregado, de gestos largos e modos apressados, me perguntasse o que iria ser, pedi-lhe, para já, um café, saiu precipitadamente, como se, da sua corrida, dependesse um oculto e nobre desígnio, assim se movimentava, em constates aceleramentos olímpicos, revia as notas da última entrevista, quando Boa tarde! Calculo que seja o senhor da tese sobre… Levantei o olhar, à minha frente estava uma senhora, já caminhava pelo anoitecer da vida, embora preservasse, algures em si, uma jovialidade latente, que, com a posterior conversa, pude corroborar, anuí enquanto me erguia para a cumprimentar, Sim… Desculpe, estava a rever umas notas… Puxei logo de uma cadeira, agradeceu e sentou-se, reparei que não era uma prisioneira de modas, estava para além disso, o que só lhe conferia dignidade, agradeci a sua presença, reforcei que o seu contributo será inestimável para o meu trabalho, afigurou-se-me sensível ao elogio, percebi que gostava de holofotes, aclarou a garganta, um inevitável tique que se iria repetir demasiado, Bom, prontifiquei-me a atendê-lo por respeito à memória do meu… Gostaria que não revelasse o nosso parentesco! Acedi prontamente, continuou Acho, sinceramente, que o meu contributo teria a sua total aprovação. Sabe porquê? Respondi, como sempre sucede nos casos de ignorar as razões, com o repetido movimento horizontal da cabeça, Por causa dos livros! Ele, para si, nada queria, agora, para os livros, queria tudo! Sempre assim foi… Perguntei-lhe se tomava alguma coisa, se vinha muito ali, procurei aligeirar-lhe a tensão, desde que chegou, embora não a conhecesse, percebi-lhe um certo desconforto, demorou pouco até que, pela mão do empregado, de gestos largos e modos apressados, a água das pedras pousou, num aceleramento olímpico, na mesa, à sua frente, bebeu um pouco, aclarou a garganta, pois, o inevitável tique, os óculos, suspensos numa corrente, oscilavam à medida que gesticulava, questionei-me se seriam peça decorativa ou uma elementar necessidade, no seu caso, como não era refém de modas, a questão logo se esfumou, sempre foi motivo de alegria conhecer alguém que vivesse apartado de modas ou tendências, tinha logo a minha admiração, afinal, tratava-se de um espírito livre, estava para além do espartilho da imagem, e, nestes últimos tempos, cada vez mais curvamo-nos ao deus da imagem, como se de um imperativo se tratasse, para compreender por onde caminha o homem, basta olhar à oferta comercial, e no hoje quase tudo se cinge à estrita esfera da imagem, da aparente eterna juventude, no rosto ou a colorir os sempre inconvenientes brancos, que mais relembram velórios e defuntos, aos açaimes para corrigir aquele canino rebelde que logo estraga o mais esforçado e artificial sorriso, àquele miraculoso comprimido que, a três semanas da praia, promete exterminar o inconveniente pneu que, sem se saber como, desde há um ano, parece ter duplicado, pois, cada um foge de si, e é uma corrida, sem destino, para ver quem se distancia mais da sua verdade… Primeiro, apoiou as mãos nos joelhos, depois, inclinou-se para a frente, e sem hesitações, nem vislumbre do inevitável aclarar de garganta, disse-me Bom, calculo que o meu contributo, para o seu estimado trabalho, não tenha tanto que ver com a produção literária, mas sim com aspectos biográficos, e, se não estou em erro, com um período muito específico da sua vida… Esta sua introdução surpreendeu-me, percebi que é daquelas pessoas que nunca perde de vista o leme, por muito que indicie o contrário, opto por uma franqueza desarmada, Sim, tem toda a razão. Já lhe expus, ao telefone, a temática do meu trabalho, no que puder contribuir, só lhe posso agradecer, encheu o copo de água, por momentos, pareceu olhar um qualquer ponto indefinível, talvez a água borbulhante, talvez o trânsito no exterior, talvez instigasse o ontem a acordar no hoje, embora trouxesse, na bagagem, demasiada dor… Foi numa tarde de Junho, não me leve a mal, mas, como lhe disse anteriormente, por uma questão de pudor, vou escusar-me a ser precisa com datas e afins, o telefone, não sei porquê, mas pareceu-me um toque funesto, era a minha… Bom, percebe, não é? A informar-me o que tinha sucedido, primeiro, o espanto, seguiu-se-lhe a incredulidade, depois, bem, caímos em nós, metemo-nos no carro, e viemos tão depressa quanto possível, sabe, se me perguntasse um pormenor dessa viagem, ainda são cerca de duas horas e meia, não consigo relembrar de nada, como se não tivesse ocorrido… É tão estranho! Há coisas que vivemos, mas parece que nem lá estivemos, como se tivéssemos partido para um qualquer canto de nós, e aqui deixássemos a carne a assistir ao suceder das coisas… Olhando para esses momentos, é o que eu sinto, não recordo uma só frase trocada com o meu marido, durante essas duas horas e meia, o nosso pensar estava, sobretudo, com o meu cunhado (já me descaí, agradeço que, na versão final do seu trabalho, subtraia as minhas indiscrições), não sei porquê, mas sempre me pareceu o elemento mais frágil, como se chamasse a si as dores de todos, repare, era ele que corria risco de vida, nem sabíamos se estaria vivo quando chegássemos, mas temíamos pelo meu cunhado, e acredite numa coisa, foi um homem que eu vi envelhecer décadas num espaço de semanas, ela, apesar da teatralidade de choros e gritos, sempre foi mais forte, bem mais, afinal, quem representa não sente assim tanto, é tudo uma questão de espaço… As consequências tragicamente gravaram-se-lhe na carne, e também na alma, neste ponto, não sei se por defesa, se para delimitar uma certa distância face à narrativa, de forma a ser-lhe exequível prosseguir, assumiu um tom revestido de total frieza, quase como se lesse a notícia de um qualquer pasquim matutino, Foi, como já deve saber, um embate frontal, parece que estava em despique com um tipo num carro, que, numa curva infinda, o encostou para que chocasse com o automóvel que vinha, em sentido contrário, na outra faixa, neste ponto, não me passou despercebido, parou para inspirar e seguiu-se uma longa expiração, nem vestígios, por ora, do inevitável e insistente aclarar de garganta, Apanhou-lhe todo o lado esquerdo… Tive de interromper, Pelo que apurei, não ia sozinho na moto, olhou-me com espanto, Pois não! Vejo que se documentou muito bem! Já lá vamos… Como dizia, apanhou-lhe todo o lado esquerdo, o braço foi logo ali dilacerado, segundo os bombeiros, foi parar a umas largas dezenas de metros, a perna quase seguiu o mesmo destino, como deve calcular, quase morreu da hemorragia, mas alguém, com a presença de espírito necessária, fez-lhe, logo ali, um garrote… Soube que, muito depois, já ele caminhava de novo, chegou a ter a morada desse criminoso (sim, porque, de facto, tratou-se de uma tentativa de homicídio), a ideia de justiça própria ainda lhe pairou por uns dias, mas optou por ter futuro, percebe, não é? Acho que foi uma prova de enorme sensatez, porém, essa não foi uma escolha ligeira, devido a isso, houve qualquer coisa mais a desaguar-lhe naquele rio de sangue, nessa tarde de Junho, no asfalto… Talvez ele nunca tenha ultrapassado o facto de, por qualquer meio, não se ter feito justiça! Nova pausa, o rosto turvava-se-lhe um pouco, a postura assumia um ar doloroso, O que lhe acabo de relatar, como é óbvio, foi-me contado no hospital, e mais tarde pelo próprio, o meu cunhado, coitado, incapaz de articular uma sílaba, sempre que procurava enfatizar um aspecto, erguia a mão direita com os dedos bem esticados, a minha irmã (por favor, peço-lhe, não se esqueça de apagar as minhas indiscrições) caída numa cadeira, mas já havia por lá muita gente, familiares do meu cunhado, gente conhecida dele, sim, os tais pseudo-amigos, sempre que cheira a morte, os corvos são os primeiros a aparecer, foram esses que nos relataram, sabe, houve até quem fizesse gáudio nos aspectos mais gráficos da narrativa, escudando-se, claro, no facto de ter sobrevivido, ou seja, o indecoro do tom dissimulado pelo moralismo do valor da vida, sabe, nesses momentos, somos assolados por uma torrente tal que o pensar parte para longe, somos apenas ouvir, só depois, muito depois, o pensar regressa, tacteante, com receio do que possa encontrar… Encheu o copo, bebeu lentamente, como se, a cada gole, arrumasse ideias e emoções, Como seria expectável, esteve em coma. Ficou internado, três dias, nos cuidados intensivos, depois mudou duas vezes de hospital, pareceu, de facto, a velha história, de Pilatos para Herodes, e vice-versa, até que o fixaram num perto de casa, diante daquele naufrágio geral, onde cada um se obstinou em irmanar-se com a sua dor, num mutismo apenas interrompido, volta e meia, por lágrimas e soluços, virei-me para o meu marido e disse-lhe que iria ficar durante o necessário… Não os podia abandonar! Vali-me da minha situação profissional para conseguir estar à sua cabeceira durante a convalescença e posterior recobro. Olhando para trás, compreendo que não o conhecia de todo, conhecer no sentido real da coisa (só conhecemos alguém quando lhe compreendemos os desejos, não há outra forma, por muito que se tente argumentar em contrário), uma vez que praticamente o vi nascer e acompanhei o seu crescimento, porém, foi durante aquela longa agonia que efectivamente fiquei a saber quem ele era. Imagine um jovem que ama desporto, consagra-se a uma modalidade que, nem por acaso, visa modelar a plástica corporal, da alimentação ao estilo de vida saudável, pois, um narcisismo bem enraizado, para lhe compor o quadro, acresce que parte considerável das companhias provêm deste contexto, para sintetizar, vivia a idade do mito, claro que o cinema teve uma fortíssima influência, quando, num repente, após dobrar uma das infindáveis esquinas da vida, se vê num catre hospitalar, com uma irreversível ausência de um dos lados, e um cérebro que teimava em iludir o coração e a alma… À nossa volta começaram a servir refeições com pretensões a jantar, uma sopa requentada e uma sandes num pão sequíssimo, que ameaçava desfazer-se em migalhas a cada instante, ela seguiu o meu olhar, percebeu, uma vez mais, que o tempo desconhece a saudade, olhou-me um pouco atrapalhada Meu Deus! Já é de noite! E ficou tanto por dizer! Eu a concordar, não podia estar mais certa! Na realidade, nunca se diz tudo. Afinal, vivemos dentro de nós, como é possível dizer ao outro tudo o que se passa por aqui? Ela continuou Veio de Lisboa, propositadamente, para falar comigo, e, no fim de contas, pouco lhe adiantei… No chão, ao lado da cadeira, tinha a minha mochila, calculara que uma tarde seria insuficiente para o que esta senhora teria para me contar, descansei-a e mostrei-lhe a mochila, Não se preocupe! Vim prevenido. Se, amanhã, tiver a amabilidade de me conceder parte da sua tarde, a resposta, afirmativa, foi pronta, acrescentei que ficaria numa pensão, desse modo, daria uma volta para conhecer a cidade, claro que insistiu para que pernoitasse em sua casa, assim, apresentar-me-ia o marido, que também poderia dar o seu contributo para o meu trabalho, agradeci, como é natural, porém, esquivei-me nas horas, no transtorno, e, finalmente, na urgência de me recolher para organizar as informações tortuosamente vertidas em papel, este era sempre um argumento irrefutável, ela concordou, combinámos, para a tarde seguinte, à mesma hora, nesta mesa. Acompanhei-a à saída, embora antes disputássemos quem pagava a conta, neste ponto, foi peremptória Primeiro, está na minha terra, segundo, tenho idade para ser sua avó, por conseguinte, sou eu que pago! Lá fora, dentro do carro, de jornal aberto, mas a dormitar, estava o marido, fez questão de o apresentar, procurou disfarçar, o melhor que pôde, o súbito despertar, ambos reforçaram a sua hospitalidade, todavia, era imperativo que regressasse à minha solidão, que caminhasse pelas ruas anoitecidas da cidade, que encontrasse um quarto, em conta, mas minimamente acolhedor, numa pensão, que organizasse a informação hoje recolhida, entretanto, cada vez se adensava mais a dúvida em mim: se estes fragmentos reunidos farão um todo coerente? Ofereceram-se para me levar, declinei com o argumento de que precisava de caminhar, afinal, foram horas de comboio e depois o café que se prolongou, por fim, cederam, fiquei a ver o carro a afastar-se, em sucessivas hesitações, pois, a idade ensina a prudência, logo uma buzina a povoar em demasia o ar, e um jovem irado pelo soluçar diante de si, duas fases da vida, tão distintas, que se encontram na mesma rua, no mesmo sentido, porém, apesar das hesitações, a meta avizinha-se bem mais próxima para os ocupantes dessa viatura, de mochila ao ombro, mãos nos bolsos pelo ar arrefecido, desço a rua em direcção ao centro, sem meta à vista, de facto, precisava de caminhar, agiliza-me o pensar, a voz sem voz que me habita, que jamais se cala, a voz do meu pensar, olho os transeuntes, percebo que estou longe de casa, como se houvesse um não sei bem o quê que evidenciasse no rosto, jeitos e costumes a nossa proveniência, embora houvesse, como é natural, aspectos transversais, e no hoje preside aquela imagem de que tudo está bem, de que não caímos, e eu a pensar como somos tão miseráveis, como naqueles momentos que antecedem o sono, em que estamos sozinhos, diante da nossa alma, e tudo emerge, compreendemos, então, o malogro do tempo, afinal, não há passado, nem presente e futuro, tudo vive em nós, à espera de um sono, para nos aportar num qualquer caprichoso destino. Acabei por abordar um taxista, perguntei-lhe se conhecia uma pensão agradável e barata, lá me indicou uma, ficava a uns trezentos metros de onde me encontrava, dirigi-me logo para lá, precisava de repousar, nada de luxos, mas higiénica e funcional, era do que precisava, deixei-me cair na cama, assim fiquei durante o necessário, a imagem dele num catre hospitalar, acompanhada de uma frase que não me largava, há dias em que o demónio resolve caminhar pelo mundo dos homens, e naquela entoação que iluminava sílabas, com a perfeita noção de que estarei para sempre na soleira de tal sofrimento, como os outros jazem no tapete do meu, só o candeeiro, por cima do lugar da mesa-de-cabeceira, aceso, a decoração correspondia àquilo que se espera de um lugar de passagem, de facto, não se espera de um apeadeiro grandes comodidades, apenas o necessário para que a viagem prossiga, pela janela aberta recebia o respirar da cidade, que ia, a pouco e pouco, serenando, serenando, até se tornar um eco longínquo. O comboio balançava naquela cadência ritmada metálica, viajava de costas, da inevitável dor de cabeça à consequente náusea era uma questão de minutos, há muito que devia saber da lotaria dos lugares nas viagens de comboio, impunha-se-me a prudência, mas parece que, nesta vida, há lugares onde sempre caímos, nem ousei pegar nos apontamentos, ler ainda menos, aproveitei para recuar umas horas, àquela mesa, junto à janela, de novo, a atmosfera doce que me fez salivar, voltei a ser primeiro, menos de dez minutos depois, ela chegou, o mesmo estilo desprendido da véspera, os óculos no mesmo lugar, suspensos pela corrente, após frases de cortesia, se gostei da cidade, se fiquei bem acomodado, a sua indignação por me ter esquivado a almoçar com eles, até que, após a ter recolocado no ponto interrompido da narrativa (A sua última frase, pelos meus apontamentos, foi: um cérebro que teimava em iludir o coração e a alma… O que quis dizer ao certo?), a garganta, de novo, audível, pois, o tique, Sabe que havia fila para o ver? Havia quem esperasse horas! Pois, eu bem sei, é muito fácil compadecer-nos com o mal dos outros, mas é extremamente difícil alegrarmo-nos com o seu bem, nessa altura, ele estava tão aquém desta verdade, e de muitas outras, a sua única verdade, naquele fatídico momento, assentava numa crescente vã esperança de que estivesse mergulhado no maior pesadelo da sua vida. Mas para quem está confinado a um leito hospitalar, a olhar, pela primeira vez, a frieza branca da cal daquelas paredes, que à noite parecem amplificar as inaudíveis dores da alma (e como a sua lhe doía!), talvez um rosto familiar mitigasse o naufrágio de se ser, ou talvez relembrasse o quanto se afastou de uma outra vida… Foi durante os primeiros cinco dias, após sair do coma, ao acordar sempre a ilusão de que tudo estava bem, o cérebro insistia numa harmonia (como se nenhum demónio tivesse caminhado pela terra dos homens, pensava eu...), depois a visão corrobora a irreversível ausência, repare, cinco dias seguidos, num momento de profunda dor confessou-me: “Se isto não me enlouqueceu, creio que nada o fará”. E as dores! Sabe, eu estive à sua cabeceira, e posso assegurar-lhe que ele padeceu horrores inimagináveis! Acredite: não sei como pôde voltar a sorrir… Com as semanas, as visitas foram-se diluindo (sempre “o ver para crer”, mas hospital rima com carência, e todos acabam por ser bem-vindos, quem tem a alma dilacerada está aquém de juízos de intenções), diluindo, até se reduzirem apenas ao núcleo mais próximo, longe, muito longe, de filas infindáveis, horas de espera, e uma máscara condizente com a ocasião (geralmente, um ar deveras pesaroso, de onde saíam frases entrecortadas, como se por ali houvesse resquícios de uma genuína emoção) – é o expectável: afinal, o espectáculo terminara, havia que partir para outra… Disse-lhe que, para seu grande pesar, acabou por ser espectadora privilegiada desses momentos, pôde percepcionar como se deu a sua gradação interior face ao crescente Inverno exterior, neste ponto, ela recua na cronologia, Eu regressava para a sua cabeceira após aquele constante entra e sai de gente, porém, após as duas primeiras semanas, não vi necessidade de o deixar, afinal, éramos já tão poucos, certa vez, acordava de um descanso forçado, a medicação, como deve calcular, era monstruosa, um arco-íris de lamelas e lamelas, sem contar com o ininterrupto soro, como dizia, ele acordava e, de novo, confrontava-se com a indiscritível crua dureza da sua situação, a inominável ausência, mais tarde denominá-la-ia de “omnipresente ausência”, a impossibilidade de se levantar, pois, a perna, quase a perdia, nesses momentos, disfarçava o sentir, vinha ao encontro da minha ideia, um pudor de sentimentos que só uma folha branca podia desvelar, felizmente a minha interlocutora era de verbo fácil, olhava a janela, sempre que recuperava a consciência, começava por perguntar “Ainda é de dia? É de manhã ou de tarde?”, por fim, “Que horas são?”, uma sequência que eu já conhecia, numa dessas vezes, repare, nunca antes o tinha feito, falou-me dos instantes logo após o embate, com uma clareza que logo percebi não se tratar de qualquer devaneio, “Lembro-me do azul, de uma paz nunca antes sentida, de um estar para além disto… Senti-me tão bem: nem com calor, nem com frio, nada! Apenas uma harmonia, se isso é morrer, creio que estava mais do que pronto! As nossas iniquidades, ódios, raivas, rancores, mágoas, tudo tão longe… Tão relativizado: como se perdessem substância. Mas o outro lado de se ser também: as paixões, os amores, os afectos, tudo igualmente com a distância: como se ali houvesse apenas lugar para a harmonia. Tão estranho! Nunca senti nada assim! E dali não queria regressar.” E acrescentou: “Eu devia ter ali ficado, naquela estrada, onde tanto do meu sangue se derramou. Ninguém me consegue destruir esta ideia!” Embora estes acontecimentos estejam diluídos ao longo da sua obra, e, verdade se diga, requer minudência e algum conhecimento da sua biografia para os identificar, fiquei siderado com tal frontalidade, é certo que o fez com uma familiar próxima, ainda assim, perante tantas máscaras que colocou ao longo da sua obra, e, pelos vistos, também na vida real, pelo que já pude inferir nas minhas pesquisas, personagens que entravam e saíam de cena como veículos que já não servissem os seus propósitos, pela imagem que dele construí, custa-me a crer que tenha desvelado a sua alma, perante alguém, desta forma, “mas hospital rima com carência, e todos acabam por ser bem-vindos”, felizmente não conheço o contexto, até àquele fatídico dia, ele também não, é natural que carecesse de um porto onde ancorar tanta e tanta dor desordenada. Uma vez mais, os óculos balouçavam, Tanto que ele me repetiu: “Destruí a minha vida! Destruí a minha vida! Já não tenho qualquer futuro…” Veja bem: ainda teve, como visita, um conhecido, pois, os tais pseudo-amigos, que, na sua infinita ignorância, lhe disse: “Se isso me acontecesse, suicidava-me!” Não imagina as barbaridades que eu e ele ouvimos! E bem sei que ele as gravou todas! Não sei se, para um dia, as devolver, uma por uma, em alguns casos já o fez, este, por acaso, foi um deles, se para se certificar, pela enésima vez, da ignorância do homem. O comboio persistia no seu balouçar, naquela cadência ritmada metálica, fechei os olhos, mitigava a dor de cabeça, e ajudava-me a recordar os pontos essenciais da entrevista, devido ao teor senti-me, em certos pontos, constrangido em tirar notas, confiei na memória, já me atraiçoou, é certo, mas continua com um saldo muito positivo, com o decorrer da conversa, houve uma dúvida que se materializou em palavras, Em algum momento, ele compreendeu essa fatalidade como destino? Lancei a questão, em verdade, de múltipla leitura, contudo, tive o privilégio de estar perante quem compreendeu os meus passos, Lamento, mas, nesse ponto, não sou a pessoa indicada para lhe responder. Seria necessário um conhecimento mais aprofundado da sua pessoa, e anterior àquela data. Como lhe disse, antes daquele funesto dia, tínhamos somente uma superficial relação de familiares que se encontram para as festas anuais. Mas a minha… Não sei se ela estaria disposta a recebê-lo. Se quiser, posso falar-lhe. Estaria interessado? Acha que seria positivo, para o seu trabalho, entrevistá-la? Procurei maquilhar o entusiasmo, não sei porquê, mas, desde que me penso, sempre tive este hábito, como se, de alguma forma, perante a minha inacção, o outro me soubesse à sua mercê, olhei um qualquer ponto indistinto da sala, usava, nestas ocasiões, sempre o mesmo extenuado guião, arrastei a voz com um semblante que transparecia indiferença e algum desinteresse, e respondi-lhe Sim, é possível que esteja. Talvez consiga trazer uma nova luz ao muito que já foi dito. Contudo, havia algo que sempre me acabava por trair, uma questão, um entusiasmo irreprimível, uma entoação mais cantada, Acha que ela estaria disposta? Encolheu os ombros, Depende do momento. Nunca conheci, debaixo deste céu, ninguém com humor tão inconstante… Mas com estranhos procura disfarçar, o fel sempre o guardou para os mais próximos. Combinámos que me contactava assim que houvesse novidades. Mas a sua expressão deu-me esperança, acrescentou algo que já antes ouvira Ele aprovaria o seu trabalho! Tenho quase a certeza… Quando reflecti no autor a trabalhar na tese, um dos aspectos que mais pesou na escolha foi a minha identificação com o mesmo. Ser-me-ia penoso trabalhar alguém que não me oferecesse espelho. Optei por um nacional devido a uma maior facilidade de fontes, sendo contemporâneo esta questão claramente exponencia-se. O primeiro contacto, em verdade, que tive com a sua obra, não foi na montra de uma livraria em Braga, por pudor, cito este, que, na realidade, foi o terceiro ou quarto, após o doloroso fim de uma relação (como anteriormente referi, já lá iremos, quando voltar à temática de rostos e entardeceres), pesquisava fórmulas para ultrapassar tal sofrimento, confesso que, em momentos assim, apesar de tantos livros lidos e milhares de páginas estudadas, acabamos por cair em lugares-comuns, na incessante busca por uma fórmula rápida e eficaz que alivie uma dor demasiada, entre as muitas citações que se me depararam, houve uma que me prendeu olhar e pensar em simultâneo, alguém, para se declarar a quem perdera, numa derradeira tentativa de reconciliação, dizia Hoje, ao regressar a casa, abriguei-me, da chuva, debaixo de um toldo, por acaso era uma livraria, para passar o tempo, olhei a montra, foi aí que reparei no título de um livro, traduzia, na perfeição, o meu desejo da hora: “Queria rever o teu rosto ao entardecer”. Não sei obviamente se este sujeito foi bem-sucedido na sua tentativa de reconciliação, mas aquela frase entranhou-se-me: Queria rever o teu rosto ao entardecer, porque também eu queria rever um rosto ao entardecer, já lá iremos, rever um rosto, creio que todos já desejámos, porém, o entardecer é o momento que só deve iluminar, a nosso lado, rostos que espelhem o significado essencial do vocábulo Amor. Não fosse o entardecer uma promessa, como ele escreveu certa vez Descem estrelas, levantam-se sonhos. Idealizei, para a minha tese, duas possíveis formas: tratar obra a obra e relevar os aspectos biográficos em cada uma; ou analisar a biografia e recorrer, mediante o contexto, à obra em questão: como é natural, e pelo que anteriormente expôs, optei pela última hipótese. O meu orientador ofereceu alguma resistência, desde o início, até na escolha do autor, não o tinha lido, logo, teria trabalho redobrado, regra geral, gostam de calcorrear caminhos bem conhecidos: oferece-lhes segurança, alimenta-lhes o ego, e, por último, não os obriga a confrontarem-se com a sua infinita ignorância. Mas eu tinha, há muito, a escolha realizada. Só depois procurei um orientador, que, pelo menos, não me desorientasse muito. Por norma, quando se fala em biografia, relaciona-se com os factos da vida de alguém, onde, quando, como: nasceu, viveu, casou, morreu; neste aspecto, sempre tive outro entendimento: creio que é impossível escrever a biografia de alguém! Afinal, quantas vidas temos? Quantas vezes um sim pronunciado é um não que se cala, e vice-versa? Recordo-me, agora, de uma frase sua: Somos cemitérios de afectos, e de sonhos, acrescento eu. A nossa passagem por aqui ocorre essencialmente na nossa mente: vontade, desejo, crença, sentir, amor, ódio, asco, desejo, desilusão, medo, esperança, toda a paleta de emoções, que nos torna nesta estranha e fascinante coisa chamada de humana, jamais poder-se-á verter integralmente por palavras, ainda menos pela voz de um outro. Nunca tive pretensões a tal, nem tenho, o meu caminho é outro, fazer a ponte entre as palavras que o escritor nos legou e a sua Biografia Interior de então. É costume ouvir-se que os dedos de uma mão sobejam para contar os nossos verdadeiros amigos, a minha questão vai numa outra direcção, Será que os dedos de uma mão sobejam para contar as pessoas efectivamente importantes na nossa vida? Na biografia em apreço, ou em qualquer outra, a questão subsiste: Quem foram os vultos que, de facto, o influenciaram no percurso? Neste particular, partimos sempre em busca de influências positivas, contudo, muitas vezes, ou quase todas, as negativas pesam sempre mais. O mal pesa sempre mais. Tem um carácter indelével. Assim que alguém, mesmo por um motivo ínfimo, nos desilude, logo a nossa memória arquiva esse momento como algo a perdurar. Há ainda aqueles que afirmam prontamente, para quem os queira ouvir, Eu esqueço logo tudo isso. Tendo a relativizar as coisas, pois, não há dúvida de que são de verbo fácil, contudo, ao mínimo escolho no caminho, são os primeiros a atravessar a estrada… Somos tão estranhos! Tratando-se de um escritor, como é natural, procura-se sempre figuras que deixaram a sua marca no percurso intelectual, nas temáticas romanescas, ou até que delinearam o estilo da prosa. Mas eu procurei inverter esta extenuada lógica, também não tenho laivos de inovador, de demiurgo, muito menos de trazer qualquer nova luz às coisas, apenas tenciono, e disso jamais abdicarei, ser fiel às minhas convicções. A nossa existência tem início com a nossa memória, que, por sua vez, é iluminada pela palavra, a partir daí, somos, em grande parte, o resultado das nossas escolhas, e é na liberdade da escolha que se ilumina muito da Biografia Interior. Este é o lastro sobre o qual pretendo edificar as minhas ideias. Como é natural, não tive grande liberdade na escolha dos entrevistados, primeiro, porque alguns dos potenciais já partiram, segundo, dependi sempre da sua boa vontade. Mas nunca excluí ninguém à partida, basta atentar na primeira entrevistada, tão pouco me centrei somente em teóricos ou colegas de ofício, dos quais, ainda por cima, tão má impressão ele tinha, procurei, sim, abarcar, tanto quanto possível, os seus passos em vida, de forma a lançar pontes para a multiplicidade de temáticas que plasmou em papel, é curioso, creio que, se fosse vivo, ter-se-ia recusado a colaborar no meu trabalho, não sei porquê, mas é uma mera impressão. Aceitou receber-me por volta das quatorze e trinta, disse-me que, uma hora depois, já tinha agenda cheia, pelo telefone percebi-lhe alguma surpresa, talvez mesmo incredulidade, como se não percebesse em que ponto me podia ajudar num trabalho deste teor. Sempre considerei a pontualidade um ponto de honra, a campainha do seu gabinete soou exactamente às quatorze e trinta minutos, ficava num desses bairros revitalizados da cidade, onde o antigo e tradicional cedem lugar, talvez com demasiada rapidez, aos ditames estéticos do hoje, no lugar das antigas tascas surgem sucursais de actuais cadeias de café, que se reproduzem numa lógica de espiral, que, de tão repetida no seu resultado, só suscita náusea e indiferença, por vezes, vejo, em mim, a expressão alheada e indiferente de minha irmã, também a gente que vem habitar estes bairros se assemelha, como se sentissem gáudio no facto de serem clones, de aspecto, no traje, nos gestos e modos, cegos a conduzir cegos, creio que nunca, em toda a história, o homem amou tanto os seus grilhões como neste preciso momento! Foi o próprio que me abriu a porta, assim que o vi, percebi que estava diante dele, quase dispensava apresentações, há vozes que só podiam provir de determinados rostos, como se uma harmonia das coisas, já que há tantas dissonâncias, de imediato, convidou-me a entrar, quando pesquisei o seu nome, soube que se tinha dedicado integralmente às modernas artes fisioterapêuticas (embora todas reclamem o seu carácter ancestral), entrei para o que devia ser a sala de espera, dois sofás, ao centro, uma mesinha de vidro, com três ou quatro revistas, deveras anacrónicas por sinal, sentou-se, indicou-me o sofá à sua frente, era um desses indivíduos com quem simpatizamos à primeira, talvez por não se esconder muito, algo tão raro no hoje, desconhecia formalismos, dos gestos ao verbo, denotei-lhe logo o tique de repetidamente ajustar os óculos, talvez o escape para um nervosismo excessivo, afinal, todos padecemos sempre de algo, por muito que se maquilhe o inverso, começou por me dizer Ouça, não sei se vem ao engano… Sinceramente, não sei se o posso ajudar, nem de que forma, com o trabalho como o seu… Há sempre um véu de respeitabilidade quando falamos de teses académicas, termos que nos remetem sempre para compêndios desmesurados, repletos de vocábulos e conceitos intrincados, acessíveis apenas a espíritos iluminados, depositados em bibliotecas labirínticas, onde o sol nem à porta passa, repeti-lhe, pausadamente, as minhas pretensões, reforcei que buscava somente genuinidade, nada mais, todavia, houve uma dúvida que se lhe levantou, e, para prosseguirmos, teve de ser debelada, Pelo que posso perceber, para me vir procurar, é porque tive alguma importância na vida dele, certo? De imediato, acenei, ele prosseguiu, É que não vejo como! Sinceramente, apesar da amizade que nos ligou, fortalecida, claro, depois daquilo… Sugeri-lhe que recuasse ao período anterior àquele fatídico dia, Num trabalho como o que tinha, bom, na verdade, nessa altura, tinha dois trabalhos, distintos, por sinal, mal saía de um ia para o outro, conheci muita gente, mas há sempre uns que nos tocam mais, como é evidente, talvez por nos revermos em quem fomos, e eu, de certa forma, revi-me naquele puto, cheio de sonhos, vivia para o desporto, queria ser um novo Schwarzenegger, e tinha potencial, isso torna tudo mais pesado em relação à tal data… É curioso, aquilo aconteceu três anos depois de ele frequentar o ginásio, mas, de facto, foi a coisa mais marcante… Como se o antes se tivesse varrido da memória, agora que penso nisso, foi uma coisa tão pesada, mexeu muito connosco, com ele, então, nem posso imaginar, ou talvez possa, sabe, acredito que nada provém do acaso, se aquilo não tivesse acontecido, hoje você não estaria aqui, sentado diante de mim, a realizar esse trabalho, neste ponto, reflecti onde já teria ouvido isto, como se uma urgência, de sangue pelo chão, para se alterar o rumo de uma vida, Ali desaguavam muitos jovens, e não só, claro, provenientes de diferentes extractos, conhecia bem o pai dele, excelente pessoa, com um temperamento distinto do filho, mais calmo, menos temperamental, volta e meia, pedia-me que o relembrasse dos estudos, mas ele só queria treinar, ambicionava ir para os Estados Unidos, seguir as pisadas do seu ídolo desportivo e cinematográfico, lá cumpria com a minha parte, mas o puto tinha resposta pronta e com piada, certa vez, cheguei a oferecer-lhe dois livros, há uns tempos falámos disso, ele relembrou-me que foram do Hemingway, tinha cá uma memória, é curioso, na altura, apesar de puto, percebi-lhe respeito, até alguma familiaridade com livros e escritores, pois, como comecei por lhe dizer, ali desaguava todo o tipo de gente, porém, alguns tornaram-se praticamente família. Até que chegou aquele dia, só tive conhecimento na manhã seguinte, como deve saber, aquilo aconteceu num feriado, lembro-me de ter ficado com uma dor de cabeça monumental, não se falava de outra coisa, claro que a consequência daquilo empolava todo o dramatismo, ouvia-se as mais variadas teorias do acidente, os porquês, havia até quem afirmasse peremptoriamente que ele se queria suicidar! Pouca gente treinou por aqueles dias, como se constituísse uma heresia, resolvi visitá-lo, mal pudesse receber visitas, quando guiava a caminho do hospital, só me queria certificar de uma coisa mal o visse, se viesse ao encontro das minhas expectativas, a minha decisão estava tomada. Quando cheguei, lembro-me do ambiente pesadíssimo, os pais, nem lhe digo nada, mas não me queria descentrar da minha resolução, assim que entrei no quarto, e ele me viu, percebi logo, aproximei-me, confesso que tive de teatralizar o ar decidido e a passada resoluta, não queria ceder à emoção, baixei-me e segredei-lhe uma promessa ao ouvido. Não retive a curiosidade e perguntei-lhe se a podia partilhar, Confesso que não queria, afinal, há coisas que não têm de cair no domínio público, posso apenas adiantar-lhe que só buscava uma coisa para saber se podia avançar com a minha promessa: perceber se, no seu olhar, se tinha apagado aquela centelha de irreverência, isso só acontece quando a vida nos derrota por inteiro, não acreditei, apesar da brutal violência, que a vida o vencesse, muito menos com aquela idade… Mesmo agora, foi ele que quis virar costas à vida, como se, primeiro, se risse na cara, para, depois, a ignorar de vez, falava inclinado para a frente, sempre a ajeitar os óculos, tinha uma voz gutural, era, de facto, alguém a quem se podia confidenciar algo com toda a segurança, um desses raros indivíduos que, quase de certeza, não nos deixaria desamparados numa frente de batalha, regressei à sua entrada no quarto do hospital, àquele momento tão particular em que reprimiu as emoções, procurei que pormenorizasse um pouco mais, lancei-lhe a premissa Imagino o que lhe deve ter custado! Ver um jovem saudável, forte, musculado, com a vida pela frente, reduzido a um enfermo, a um destroço, num leito hospitalar… A sua fronte enrugou-se, o olhar focou-se ao mesmo tempo que se iluminava, como se acompanhasse o acender das interiores divisões da memória, Engana-se! Não, não consegue imaginar! Por muitas e bonitas páginas que escreva sobre ele, ou melhor, sobre os seus livros, jamais conseguirá imaginar o que aquilo constituiu para mim, quanto mais para ele! Dois dias antes, ele tinha segurado uma barra com cento e sessenta quilos! Algo que, numa fracção de segundos, lhe foi completamente retirado do horizonte! Repito: não, você não consegue imaginar… Jamais conseguirá! Desculpe, não queria ser tão brusco… Tranquilizei-o, enalteci a sua sinceridade, pedi-lhe para continuar, antes de prosseguir, claro, os óculos e olhou de relance o pulso, pois, ali estava o tirano do homem, as horas, ainda dispúnhamos de uns trinta minutos, Deve ser das coisas mais dolorosas, adormecermos sentindo-nos o Super-Homem e despertarmos uma ruína… Consegue imaginar isto? Só se dedica a um desporto que visa a plástica corporal, neste caso hipertrofia muscular, quem, de facto, tem uma relação complexa com o corpo. Não me refiro, como é óbvio, àqueles casos de complexos de alguma ordem, aqui é precisamente o oposto: a complexa relação com o corpo resulta de uma incessante procura em o aperfeiçoar. Então, estamos perante alguém que está nos antípodas de Narciso, já que padece de uma permanente insatisfação, o seu olhar jamais repousará na própria imagem, por estar permanentemente toldado pelo véu da autocrítica, desse modo, viajo pelo meu pensar, e acredito que a sua insatisfação fosse bem mais profunda, até mesmo circunstancial, o corpo foi um veículo de expressão, talvez uma forma de se demarcar, uma mensagem, para si e para o exterior, de alguém que procura um ideal, que não se satisfaz com o monótono aquém, só depois, muito depois, veio a escrita. Ele continuou, na companhia do incessante ajeitar dos óculos, Mas repare, por norma, há quem diga que é um desporto de brutamontes, esta coisa de levantar pesos, claro que nos ríamos das flores que debitavam tais enormidades. O desporto, seja que modalidade for, ajuda a formar um carácter: dá disciplina e espírito de sacrifício! Não há escola melhor! E, neste particular, ele foi um aluno de excelência. Daí que, após certificar-me de que aquela centelha ainda tremeluzia no seu olhar, lhe tenha verbalizado uma promessa, sucumbi, uma vez mais, à curiosidade, por muito deselegante que pudesse parecer, Já percebi que não me vai contar…, riu-se, compreendi que, desde o início, estava resoluto em levar a sua narrativa até ao fim, Não se aflija, vou contar-lhe, afinal, após este tempo todo, foi o único que me veio falar dele, bom, em verdade, veio pelos seus livros, mas também não vejo motivo melhor para alguém ser lembrado… Como lhe dizia, baixei-me e segredei-lhe uma promessa ao ouvido, “Não te preocupes! Vais voltar a ser o que eras! Tens a minha palavra!”, somente lhe disse isto, olhou-me com uma fé imensa, quase como se esta frase fosse o alimento para uma alma faminta, limitou-se a anuir com o olhar, pouco mais podia mobilizar nesta altura, saí, descansei os pais como pude, e foi-me embora. É curioso, não vi, nos pais, nem vislumbres de fé alguma, quando me limitei a repetir as mesmas palavras que lhe dissera, como se duvidassem de tudo, das potencialidades dele, minhas, de toda a gente, como se tudo se tivesse acabado… Também já não eram novos, mas, mesmo assim, ele carecia de um porto, mais do que nunca, e não me pareceu… Olhou, de novo, o pulso, levantou o rosto, pelo trejeito percebi que o tempo findara, levantei-me prontamente, ele pareceu-me espantado com o meu repentismo, Calma! Ainda dispomos de uns minutos. Reforcei que não o queria incomodar, insistiu para que me sentasse novamente, e que, se necessário fosse, viria ao meu encontro para terminar a sua parte, agradeci e sentei-me, E, sim, foi lá no ginásio que se recuperou! Saiu do hospital, um mês depois de ali entrar com um prognóstico bem reservado, a andar, sem o auxílio de muleta! Como sempre acontece nestes casos, encaminharam-no para a fisioterapia em Alcoitão. Apanhou uma incompetente que se pôs a forçar-lhe a perna, felizmente, ele tinha, por experiência própria, conhecimento suficiente de músculos e tendões para perceber os malefícios que aquela infeliz lhe estava a causar, agora repare: entrou lá pelo próprio pé, mas saiu de muleta! De facto, há famas que assentam mais nos silêncios do que nas palavras… Sabe, houve até um grandessíssimo suíno a dizer-lhe que não voltaria a andar normalmente! Veja bem os talhantes que trabalham nesses sítios! Pois é, tanta coisa que nos foge à compreensão, imagine se fosse outra pessoa, jovem ou velha, a ouvir isto, em vez daquele jovem que ainda detinha uma centelha a tremeluzir no olhar? Três meses depois, já treinava perna como dantes! Contou-me que chegou a passar por este hospital para falar com o talhante, mas o suíno teve a felicidade de ele possuir uma péssima memória visual. Concordei, tentei visualizar aquele jovem, habituado a arenas de desporto, a entrar, agora, num cenário de dor, resignação, desesperança, onde a preocupação primeira, sem se perceber muito bem o porquê, é quebrar o que resta do espírito de quem ali chega. Paralisias, amputações, dor, muita dor, gritada, calada, sentida, reprimida, até as sombras daquele lugar são repositórios de dor, no fundo, ali desaguava um longo e profundo caudal de sofrimento, chegou a escrever uma crónica, pelo que pude perceber baseada na sua passagem por este exemplar de inferno, de um africano que caiu do coqueiro, cuja sentença, não, nestes cenários não se trata de diagnósticos, mas sim de efectivas sentenças a cumprir, no presente caso foi o que lhe resta da vida sentado numa cadeira. Apesar disso, enfrentava as manhãs de exercícios, sob os ditames dos infelizes algozes, sempre com um sorriso, uma tranquilidade desconcertante, como se ali estivesse apenas de passagem, num desses lugares onde, momentaneamente e por necessidade, se abrigou de uma chuva repentina, logo o sol voltava, e, de novo, regressaria à estrada, sei que ele admirou esta postura, trocavam, sempre que os algozes permitiam, algumas frases, fez-lhe bem encontrar, por ali, alguém que sorria para tudo aquilo, como se estivesse para além de sentenças, como se olhasse tudo de cima, talvez de um coqueiro bem alto, numa praia de cenário postal, a sentir a brisa salgada no rosto, e ainda por aí permanecesse, longe, bem longe, de algozes e suas sentenças. Havia uma questão que, não sei bem porquê, ainda não tinha colocado, talvez por não ter um destinatário específico, talvez por pudor da minha parte, acho que entrava em terreno lodoso, mas se havia alguém que compreendesse, na plenitude, esta questão, estava agora diante de mim, E, por acaso, sabe como ele reagiu diante do espelho? A pergunta saiu-me de chofre, sem vestígios de entoação, receei que, a meio, me arrependesse, como esperava, ele não se mostrou surpreendido, encarou-a com naturalidade, isso descansou-me, de forma alguma quis passar por intrometido, como vasculhador de memórias, já que isso, ainda para mais, seria diametralmente oposto aos meus objectivos, Bom, nesse ponto, não lhe posso dar uma resposta esclarecedora. Ele sempre foi muito cioso da sua privacidade. Como lhe disse anteriormente, cumpri com a minha palavra, ele recuperou a vaidade, o amor-próprio, como lhe queira chamar, regressou ao espelho como anteriormente, quanto às consequências daquele dia, velou-as para sempre em público, creio, não me pergunte porquê, que em privado também, como se as tivesse subtraído da sua alma, foi a forma que encontrou de prosseguir o seu caminho, agora, pergunto eu: quem o pode censurar? Quem faria melhor? Pois, a resposta já nasce com a pergunta! Desta vez, foi ele que se levantou, secundei-o, de forma alguma queria atrasar o seu trabalho, reiterou a sua disponibilidade para, caso precisasse, novamente me receber, antes de sair, quase em confidência, acrescentou Em verdade, ele começou a despedir-se da vida nesse fatídico dia. Por muitas centelhas que ostentasse no olhar, muitas mais ter-se-ão apagado… Não sei se me faço entender… É impossível que muito dele não tenha morrido, por ali, naquela tarde. E acredite numa coisa: ninguém, minimamente lúcido, se espantou com o seu fim. Apertou-me a mão com o mesmo vigor da entrada, talvez com mais, agradeceu-me a possibilidade de regressar àqueles dias do passado, apesar de uma altura tão dolorosa, de o recordar, percebia-se nitidamente a amizade que lhe nutria, por mais que uma vez, o olhar coloriu-se de sentir ao falar daquele obscuro período, mais de que o entrevistar, gostei deveras de o conhecer, saí para o mundo, quis caminhar, a imagem de minha irmã, vinda de um qualquer adormecido canto de mim, povoou-me o pensar, o meu trabalho, neste momento, versava a dor, talvez por isso o seu rosto, nunca fomos muito próximos, não obstante habitarmos mais de duas décadas a mesma casa, mas tão pouco nos falávamos, não por hostilidade ou antipatia, ainda hoje desconheço o porquê de minha irmã constituir uma estranha, calamos tanto o sentir, como ele o sabia, talvez daí o meu fascínio pela sua obra, essa percepção de insularidade de que somos feitos, como se a palavra constituísse uma insuficiência para nos conhecermos, minha irmã e suas crises, confesso que me cansei daquelas chamadas de atenção, que afinal eram bem mais que isso, uma mão que se estendia para se tornar visível aos olhos de um outro, uma tentativa de se saber, não esperou que o mundo lhe apresentasse a dor, já trazia tanta dentro de si, talvez demasiada, limitou-se a deixá-la caminhar livremente pelo seu corpo, como se gravasse uma geografia muito particular, não compreendi, na altura, o porquê, afastei-me ainda mais, por vergonha, culpa, no fundo, tudo aquilo era-me incompreensível, várias vezes, os pseudo-entendidos nesta coisa da mente com o seu veredicto de histeria feminina, sempre me pareceu insuficiente, contudo, calei-me e foi aí que me tornei cúmplice do seu mal. Ao contrário de minha irmã, que trazia o mal dentro de si, como uma semente que incessantemente germinava (não me lembro de a ver sorrir, há uns tempos, dediquei uma tarde, longe dos olhares inquisidores de meus pais, a folhear álbuns antigos, em todas as fotos ela surge com uma expressão alheada, indiferente, creio que, se o cenário mudasse, a sua face manter-se-ia inalterável, parecia habitar num outro lugar e ali ter esquecido o corpo, tão estranho, houve outro pormenor, não sei se um acaso, que me saltou à vista, existia sempre um espaço entre ela e nós, como se uma distância de segurança, uma confissão calada e simbólica de que não nos sentia como sua família), o mal foi-lhe apresentado, num repente desta coisa de nome vida, por inteiro, sem aviso, nada, embateu nele e deixou-o quase para sempre caído, nem tempo para a necessária compreensão do acontecer (apenas o frio confronto com a inevitabilidade, com a morte de quem foi e o outro do hoje, apenas um estranho que o olhava do espelho, magro, pálido, enfermo, receoso do instante seguinte, e ele insistia em encontrar-se, tudo em vão, diante de si somente um destroço do que havia sido, e o vislumbre que dessa ruína ter-se-ia de reerguer, física e emocionalmente), tanto que demorou, cerca de uma semana, a perceber que era real, a ausência que teimava em ocultar-se pelo sentir, quando penso nisto, nas descrições realizadas, umas mais contidas, outras que cavalgaram o tropel do sangue, por muito que se argumente em contrário, o fascínio imemorial por esta seiva da vida e simultaneamente caminho do morrer, tantas enormidades que eu ouvi, o problema é que ele as viveu, dilacerado que estava no catre hospitalar, as boçalidades devem ter-lhe chovido inclementemente, acredito que, em alguns casos, terá nutrido compaixão, ter-se-á remetido a um sorriso (sempre a dúvida: seria sincero? Seria desdenhoso?), na esperança de que o silêncio fosse lesto no seu regresso, carecia tanto de se reencontrar, de perceber e perceber-se, começou a percepcionar a similitude destas duas questões, a primeira certeza que lhe adveio ao espírito foi a de que, no contexto de então, estava diante de todos os seus demónios, como se o tivessem, sem ele saber como, aprisionado ali diante deles, personificados nos seus mais enraizados temores, medos, receios, pavores, pânicos, incertezas, como é natural, de início, evitou olhá-los, embora os sentisse a passearem-se bem perto, os risinhos jocosos, até mesmo as sucessivas provocações, nunca é fácil olhar de frente aquilo que a alma obscurece, afinal, terá as suas razões, porém, no actual contexto, estava refém de tudo, não tinha possibilidade de fuga, eles ali permaneciam, bem à sua frente, dia e noite, sem lugar a tréguas, após analisar a situação, optou por confrontos individuais, assim, cada um teria a sua vez, claro que foi o mais acertado e produtivo, dada a sua circunstância, além de que tempo não lhe faltava, a desconstrução de qualquer temor começa com a sua compreensão, que, por sua vez, nos reporta à génese, foi este o percurso/confronto que o ocupou, dia e noite, nos longos silêncios daquela divisória branca, como se despida de qualquer vestígio de sentir, quando ali havia tanto sentimento desregrado, apesar de identificados e, de certa forma, espartilhados, os demónios continuaram a acompanhá-lo (basta atentarmos no seu fim, talvez, nestes últimos tempos, finalmente o tenham derrotado), porém, durante esses dias, regressaram, neutralizados, a um qualquer lugar obscurecido da sua alma, volta e meia, escapavam, interpunham-se no caminho, gritavam-lhe os seus mais profundos receios, ele estacava, enquanto a alma lhe doía, recompunha-se, seguia caminho enquanto o demónio regressava a uma sombra desocupada, os inclementes sussurros acompanhá-lo-iam no que restava dos seus dias, neste lado de cá das coisas, porém, ao contrário de muitos, talvez demasiados, conhecia os seus demónios, havia uns, pela idade, que já tinham lugar cativo, apesar disso, sempre que se insinuavam no seu caminho, sob uma outra roupagem, atacava-os com toda a brutalidade, como se lhes decretasse que jamais deviam ter existido, era tudo que lhes podia fazer, daí a violência visceral que utilizava, já que o passado é a memória do caminho, ao menos o presente é mutável, mas tem um carácter tão fugidio, pela constância de se tornar um irreversível pretérito. Aproveitei para me sentar no banco daquele jardim, estava desocupado, apesar do lago em frente, tão raro, sempre que desejo, encontrar um banco de jardim à minha espera, talvez por não estar à sombra, mesmo assim, aproveito e sento-me, a tarde vai a meio, por ali reformados e donas de casa, vigilantes, com as suas crianças, de passagem alguns casais de namorados, percebia-se claramente, pela velocidade do caminhar, em que fase iam da relação, olhava, sem olhar, à minha volta, e procurava, como ultimamente me tem acontecido, sempre que termino uma entrevista para a minha tese, reflectir no que ouvira, parece-me que, num fugaz instante, ele foi forçado a deixar de ser quem era para se tornar um outro, por inerência, foi arrancado ao seu mundo e largado num lugar estranho, hostil, onde só havia espaço para a dor, nada mais, é inconcebível a dimensão de tal sofrimento, como pode alguém não mudar depois de experimentar algo assim? Uma experiência tão radicalmente dolorosa, que mexe, de forma tão brutal, com todo o nosso ser, mas pode uma vida cingir-se a um instante? Não terá sido essa mudança de rumo que o terá levado à escrita? Ou o escritor sempre lá esteve? Talvez sim, só que adormecido… Nunca gostei de possibilidades, somente de factos, daí não ser um criador, apenas um vivente, dir-me-ão que ler é criar, sim, concordo em parte, mas construímos sob premissas de outrem, e isto é igualmente incontornável, de repente, um velho exalta-se por causa de um cabeçalho, gesticula com ferocidade, o que está a seu lado permanece impassível, o do banco em frente tenta acalmá-lo com gestos conciliadores, tudo infrutífero, o velho brada impropérios, atira com o jornal ao chão, pelo que percebi, acabara de ler a notícia de mais um qualquer corte nas reformas, ou talvez fosse a subida do preço de qualquer bem essencial, a sua ira estaria balizada entre estas duas possibilidades, uma mulher, que empurrava um carrinho de bebé, resolveu desviar a sua rota, assim que se apercebeu dos gritos do velho que, entretanto, se levantara, o do banco em frente acorreu para o acalmar e simultaneamente silenciar, o outro permaneceu como até aí: impassível, como se nada se passasse ou como se tudo fosse infrutífero, ou, de certa forma, os gritos do outro personificavam a sua silenciada ira interior, é possível… Por fim, o velho regressou ao banco, de mãos no rosto, não por vergonha dos seus actos, mas talvez por desespero dos que não possa fazer, o do banco em frente permaneceu, em pé, à sua frente, para o sossegar, o do lado, finalmente, rompeu a sua impassibilidade, colocou-lhe a mão no ombro, e confortou-o como pôde e sabe, a brisa vespertina ameaçava levar as folhas caídas do jornal, primeiro uma, logo de seguida duas ou três, o jornal resumia-se já a um amontoado de folhas desdobradas, resolvo intervir, levanto-me, junto-as, e devolvo o desordenado conjunto ao trio de velhotes, o da ira permaneceu prostrado, com as mãos no rosto, certamente nem se terá apercebido da minha presença, não o podia censurar, só nos resta respeitar a forma que cada um encontra de enfrentar os seus demónios, e, infelizmente, há demónios que são comuns a muitos, o problema é que são poucos a reconhecerem este singelo facto, os outros dois agradeceram as amarrotadas folhas e, quase num sussurro, pediram desculpa pelo espectáculo de há pouco, retorqui que não houve qualquer problema, sorri-lhes e regressei ao meu lugar, ao se aperceber de que a confusão cessara, a mulher do carrinho de bebé regressa placidamente, o velho já se reerguera, respirava fundo, o outro já reocupara o banco em frente, pensei nos motivos que levam alguém, daquela idade, a ter um acesso colérico, de tal ordem, em público, de certeza que teria motivos bem sólidos, sempre esta mania de nos limitarmos a ver as coisas conforme o mundo as mostra, o problema é que a nossa visão é sempre parcelar, daí a relevância do pensar, que nos possibilita ir bastante além do ver, talvez, nesse preciso momento, a mulher do velho colérico se contraísse em dores num quarto hospitalar, um rectângulo branco despido de sonhos e ilusões, que nos grita, até à alma, que dali ninguém sai igual, como se só soubesse subtrair, as expensas em medicação e internamento avolumam-se incessantemente, embora fiquem bastante aquém da sua preocupação, ela era o seu tudo, se ainda por aqui andava era para estar a seu lado, agora, pelas manhãs, apenas um doloroso vazio a seu lado na cama, num silêncio demasiado arrefecido, até ouve o inquieto respirar do seu próprio pensamento, quando, até há umas semanas, ela constantemente a interpelá-lo, ora por causa do artigo de uma revista, ora por causa da filha que aparenta um ar desalentado, embora insista em dizer que tudo vai bem, como se almejasse enganar um coração de mãe, o marido, que trabalha numa imobiliária, a deixar o lugar vago, na mesa, à hora do jantar, primeiro, era esporadicamente, um cliente que só podia àquela hora, é quando sai do trabalho, depois, um congresso, ela em espanto (congresso de imobiliárias?! Deve ser um desfile de interessantíssimos oradores e respectivas temáticas…), por fim, a questão remuneratória que passou a ser por objectivos, assim, ele a trabalhar mais horas, afinal, nada cai do céu, para além disso, o problema asmático do miúdo, a necessidade da natação, pois, mais uma despesa, e o carro dela, velhinho, que passa mais tempo com o capô levantado na oficina do que na estrada, a cadeira dele passou a estar desocupada os cinco dias da semana, ela, que nunca esqueceu o seu orgulho, há quem lhe chame amor-próprio, a nunca escrutinar a veracidade das suas desculpas, como se lhe fosse indiferente, em verdade, no início doeu, até porque, nas manhãs dos fins-de-semana, ele avidamente a procurá-la, ela gostava, ainda nutria por ele fortes reminiscências daquele sentir dos inícios, que a fez desistir do curso de letras, tão perto do fim, por causa da inesperada gravidez, os pais revoltados, não pela gravidez, mas pelo curso abandonado, apesar das reservas em relação ao sujeito, na altura, vendia carros em segunda mão, não tinha ido além do nono ano, o pai proclamava bem alto lá por casa Um tipo com esses horizontes, nunca irá além do tubo de escape, ela defendia-o com veemência, o pai ria-se, claro, as cores do amor iluminam qualquer noite deste mundo, a mãe abstinha-se de intervir, já havia demasiada discórdia, embora estivesse alinhada com a posição do marido,  ela jamais devia ter largado o curso, o tempo deu razão ao veredicto paterno, o sujeito coleccionou empregos, tudo no âmbito das vendas, detinha aquele peculiar verbo escorreito e estéril de ilusionista, capaz de vender sonhos ainda por sonhar, o pai Vais-te arrepender amargamente! Esse sujeito não tem coluna vertebral! E, de facto, nestes últimos tempos, a profecia paterna a cumprir-se, nas manhãs de fim-de-semana, nem vestígios de avidez ou de despertares ansiosos, nada, ele permanece num sono imperturbável do seu lado da cama, nem um gesto de afecto para amostra, ela aparentemente impassível para o exterior, quando, por dentro, soterrada em pontos de interrogação, e a voz do pai a ecoar em todos os cantos de si Vais-te arrepender amargamente! Esse sujeito não tem coluna vertebral! Nunca atravessou a entrada do hospital para ver a sogra, em verdade, se lhe perguntassem onde ela estava internada, não saberia o que responder, ou talvez soubesse, uma vez que era pródigo em argumentos de pacotilha, dominava, como poucos, aquele peculiar verbo escorreito e estéril de ilusionista, foi num Domingo de manhã, que ele zarpou daquele porto, como sobrevivente que era, estava habituado a ter a mala ligeira, não houve lugar a palavras nem a olhares, ela quedou-se pelo quarto, distraiu-se com afazeres, quando ouviu a chave de casa ser depositada no pratinho de vidro, da mesa de entrada, e a porta fechar-se, sentiu-se renascer, os pontos de interrogação que a povoavam diluíram-se de vez, já nada sentia por ele, apenas indiferença, poder-se-ia dizer que estava exangue de sentimentos, trabalhava numa agência de viagens, apesar do curso interrompido, sempre se ajeitava em línguas, nos últimos tempos foi ela que providenciou a natação do filho, a medicação para a asma, e passou a andar de transportes públicos, ao menos assim, o seu carro passava mais tempo de capô fechado, e, no frigorífico, cada prateleira, no mínimo, estaria povoada por um bem de primeira necessidade. É possível que o velho tivesse tropeçado na notícia de mais um previsível corte nas pensões, ele, que nunca se ajeitara com números, sabe pormenorizadamente quanto pode gastar por dia, para não cair no desconforto da fome, embora não lhe fosse nenhuma estranha, este momento do viver, que devia ser de balanço e repouso, tornou-se num sinuoso trilho de sobrevivência, nunca procurou diálogos para além da sua circunstância, fosse o cepticismo que o dominava, o orgulho em se pensar auto-suficiente, a energia que o habitava a impeli-lo a enfrentar as arestas do viver, ou, no fundo, saber que alguém dialogava também por ele, a ideia de que chegara a sua vez, de dialogar por dois, ou quatro, a sua filha e neto tão desamparados naquele minúsculo apartamentozito, lá para o subúrbio do subúrbio, a asma do miúdo, a natação, tanto quis oferecer um carro à filha, o dela sempre na oficina, de capô levantado, não se lembra de o ver circular, nestes anos todos, talvez consiga, com algum esforço, recordar-se de uma, é possível que chegue às duas vezes, e saber que o asco em nada contribui, os proventos dos ocasionais trabalhos dirigidos integralmente à actual amante, que os destinará às recentíssimas unhas artificiais ou, quem sabe, a colorir, uma vez mais, madeixas, por tudo isto a sua desesperada ira, desta feita não conseguiu reprimi-la, esboroou-se a educação, etiqueta, tudo o que nos mecaniza nesta vida em sociedade, que nos faz antecipar acções muito antes de as praticarmos, por serem as que os outros esperam de nós, não, desta vez, o velho rugiu uma velha raiva, talvez a mais profunda que podemos carregar: olhar para trás e saber onde, de facto, falhámos; por outras palavras: quando estávamos ao leme do acontecer e rotundamente errámos. Levantei-me, antes de me afastar, olhei à minha volta, o trio de velhotes regressara às cartas, a mulher do carrinho de bebé, agora, sentada à beira do lago, tudo estava em harmonia, talvez fosse uma ilusão, é possível, o problema da nossa sempre parcelar visão, deixei o jardim, uma frase dele surge-me de um qualquer nada Em que dia faz anos que estou morto? Lembramo-nos, quase sempre, do dia de anos de alguém, mas do dia da morte… Por exemplo, Pessoa, decorei com facilidade o dia do seu nascimento, 13 de Junho de 1888, o ano da morte também, 1935, mas o dia já não, mesmo familiares, amigos, que tenham partido, em termos de datas, fica a do aniversário, que, no fundo, celebra a vida, mesmo quando se encetam relações, namoro, casamento, celebra-se o início, poucos se recordarão da data do términus, quer isto dizer que fomos feitos para a vida, apesar de, na nossa essência, carregarmos essa obscena ideia da morte, ele, por exemplo, tinha mais presente o dia em que aquilo sucedeu, do que propriamente o dia do seu aniversário, que, segundo consta, abominava particularmente, como se já não devesse cá estar, uma ideia que se lhe formou e acabou por se enraizar, pelo que pude compreender, ele achava que devia ter morrido naquele dia, ponto final. E, o que é certo, todos os testemunhos são unânimes em detectar-lhe uma certa distância face ao acontecer, um contínuo desapaixonar da vida, como se a tal centelha no olhar, a que alguns fizeram alusão, se fosse extinguindo, irreversivelmente, até apenas restar o esboço de um sorriso que traduzia a indiferença que lhe ia no espírito. Conhecia essa expressão. Vislumbrara-a há muito, num rosto tão próximo, minha irmã, sempre com a distância, de nós, dos outros, de tudo, nem se podia afirmar, como sucede em muitos casos, que habitasse um mundo só seu, um desses lugares, somente por nós conhecido, onde nos refugiamos quando o mundo uma borrasca imensa, cheguei à sua dor pelo acontecer, tal como meus pais, porém, ainda hoje, desconheço a sua génese. Ao contrário dele, que se lhe gravou, mais no espírito do que na carne, no tal dia em que o demónio resolveu caminhar pela terra dos homens, e resolveu atravessar-se-lhe no caminho, acho que o inconformismo só é possível a quem olha para além da sua circunstância, e não estou a falar de alienados, mas sim de quem compreende tão radicalmente o seu contexto que, ao não se conciliar com o mesmo, resolve transformar-se… Só que, para ele, isso não bastou. Em relação a minha irmã, creio que simplesmente nunca quis ser. Nessa mesma noite, recebo uma chamada, pela voz rapidamente cheguei ao rosto, sempre me foi mais fácil conciliar vozes com rostos do que o inverso, talvez porque um rosto oculte melhor o sentir do que uma voz, Sim, ela está disposta a recebê-lo. Terá de vir cá outra vez. Imagino o transtorno que isso lhe deva causar! Desta vez, fica em nossa casa! E não aceitamos desculpas! Lembre-se: de início, ela vai parecer-lhe hostil e desinteressada, é tudo teatro, no fundo, está morta para o receber… Agradeci com a cordialidade possível, aqui chegado, compreendi que esta seria a última entrevista. E, sem dúvida, a mais difícil, por fim, ia conhecer a personagem central do seu melhor romance. Cumpre-me informar, neste momento da narrativa, e após a longa conversa que tivemos, que não irei transcrever, a seu pedido, qualquer excerto. Espero que os caríssimos leitores não fiquem desapontados. Vou procurar traduzir, da melhor forma possível, as impressões que retirei deste encontro. Peço, desde já, desculpa, se aqui chegaram na vossa leitura, por este contratempo, e relembro que, ao contrário dele, não sou escritor, apenas um curioso que perseguiu, o melhor que pôde e sabe, as suas palavras. De novo, vi-me no comboio a caminho, pela segunda vez, daquela cidade, onde o sol teimava em esconder-se, um lugar tão diferente de Lisboa, de aparência encantadora e singela, mas um olhar mais arguto percepcionava, de imediato, a velada hostilidade com que encaravam um estranho, não gostaria de ali morar, há uns tempos, li algures que, em certos casos, para nos encontrarmos, precisamos das múltiplas ruas de uma grande urbe, creio que pertenço a esta tribo, careço daquele rumorejar de fundo, que só uma metrópole proporciona, para me sentir em casa, enquanto o comboio balouçava, dava por mim a recriar-lhe os passos, sei que ele também desembarcou, por diversas vezes, naquela mesma estação, de uma alvura extrema, apenas atenuada pela azulejaria de tons azuis, ao cimo da avenida, única, por sinal, digna desse epíteto por aqueles lados, sei que, ali, apenas encontrou as sombras de um sol oculto, mas isso são outras histórias, de facto, não me posso dispersar, nem domino assim tão bem o verbo para esse efeito, como dizia, o encontro ficou marcado para a mesma pastelaria, apesar da insistência, preferi assim, não queria, de forma alguma, incomodar, cheguei primeiro, sentei-me, não na mesma mesa da última vez, por estar ocupada, mas ligeiramente ao lado, ela chegou, pelo braço da familiar, como anteriormente disse, comprometi-me em manter alguma privacidade, que foi bastante efusiva nas saudações, confesso que gostei de a rever, porém, queria furtar-me a pernoitar na sua casa, nunca gostei de abusar da confiança, além de que, como alguém me ensinou, quanto mais se conhece alguém, mais matamos a ideia, pois, como dizia, ela chegou acompanhada pela simpática familiar, avaliei-a à medida que se aproximava, perguntei-me se teria consciência de já ter sido guindada a personagem literária, tinha um semblante singularmente carregadíssimo, a familiar procedeu às apresentações e deixou-nos, ela sentou-se, com alguma formalidade, resolvi falar de trivialidades, sempre a forma mais escorreita de aligeirar o ambiente, à medida que lhe dava protagonismo, o seu semblante tornava-se primaveril, começava a percebê-la, gostava de palco, falámos da inevitável temática que preenche o silêncio dos estranhos, o estado do tempo, até que, com a devida subtileza, o introduzi na conversa, com a naturalidade possível disse-lhe que ele era muito solar, detestava aquele clima pardacento, triste, enevoado, ela, de imediato, concordou, não percebi se alinhou na mudança de direcção do diálogo ou se foi genuína a responder, mas sopesando bem as coisas, inclino-me para a primeira, contou-me o amor dele pelo Verão, pela praia, algo bastante evidente na sua obra, como anteriormente já fora referido, o elemento marítimo, percebia-se-lhe, na expressão, um antagonismo de sentires, algures entre um genuíno orgulho e um profundo pesar, interessou-me mais este último, procurei explorá-lo como pude, sempre com a devida precaução, afinal, era daquelas pessoas que não largava, com facilidade, as rédeas do acontecer, após o diálogo ziguezaguear por diversas temáticas, aspectos da infância, alguns já conhecia, a sua profunda ternura pela escola primária (bem patente na crónica: Foi no alto de uma colina, que aprendi a olhar o mundo), da juventude, gostos, por diversas vezes reforçou a particularidade do seu temperamento, comecei, lentamente, a descortinar a conexão entre o genuíno orgulho e o profundo pesar, no seu entender, ele tardou a realizar as coisas, chegaram-lhe fora de prazo, souberam-lhe a anacronismos, tantos familiares e amigos já finados, nem puderam testemunhar a fonte dos seus orgulhos, se fosse, pelo menos, uma década antes, agora, da sua parte, tão poucos para presenciarem, alguns até já desprovidos de lucidez, não, foi tarde, demasiado até, mas, pelo menos, apareceram essas luzes tardias, daí esta ambivalência no seu rosto, a sua magreza também não me passou despercebida, era uma magreza orgulhosa, de alguém que refreia apetites ainda por uma silhueta, não obstante ser habitante do inverno da vida, sinal de orgulho e amor-próprio, percebia-se-lhe a cada gesto, desde o início, impressionou-me a assimetria de personalidades entre ela e a sua familiar, apesar de tão próximas pelo sangue (de facto, e como ele um dia escreveu, Cada um nasce com a sua forma), a espontaneidade de uma contrasta com o gesto penosamente reflectido da outra, por um lado, o ser, por outro, o querer, embora, em ambos os casos, as humildes origens potenciem alguma desmedida de horizontes, perceptível em frases ou temáticas recorrentemente trazidas à mesa, tão velho quanto o caminhar do homem, quanto mais nos falta algo, mais falamos dele, a certa altura, percebi que teria de agitar as águas ou a conversa não sairia do conforto de zonas iluminadas, disse-lhe Os mortos não sonham, percebeu os meus passos, mas vetou-os, disse-me que pouco podia acrescentar ao tanto que eu já ouvira, que era apenas uma velha cansada, desgostosa, em luto com a vida, que tanto a subtraíra, no fundo, nem percebia porque acedera a encontrar-se comigo, tentava encurralar-me, teria de recuar e devolver-lhe o protagonismo, respondeu-me Não sei se os mortos sonham, eu é que o deixei de fazer há muito…, devolvido o palco, ela recuperava o ânimo, por momentos, até parecia simpática, agradavelmente dialogante, era daquelas pessoas que disfarçava bem quando lhe faltava o pé em certas temáticas, remetia-se ao silêncio e limitava-se a anuir, porém, eu queria regressar ainda nesse final de tarde e o diálogo andava somente em círculos, por vontade dela, como é evidente, nas entrelinhas deixara bem claro que jamais largaria as rédeas, a dada altura, ocorreu-me que, de facto, ela pouco podia adiantar-me, enquanto personagem está tão bem explanada em Do outro lado do rio, há uma margem, o impacto que teve nas vidas à sua volta, e tão profundo foi na construção de silêncios, para mim, enquanto estudioso da sua obra, considerei reconfortante conhecê-la, simplesmente para corroborar as suas palavras e visão das coisas, não se desagua na palavra por um acaso, já no comboio, entre este lado das coisas e o outro, percebi que só se chega à palavra pelo silêncio, quando tanto grita em nós, por sentires tão desordenados, num lugar onde só cabe o passado, que apenas nos resta sentar a um canto, pegar numa folha, na caneta, e procurar devolver, se possível, harmonia ao que realmente somos. O ininterrupto balouçar despertou-me, ali era-me difícil conciliar o sono, lá fora somente a noite do mundo, como se tudo tivesse partido para um outro lugar, e só nós, viajantes daquele comboio, para corroborar que nem tudo foi uma ilusão, de novo, o vidro devolvia o que me julgava ser, para além disso, apenas as trevas que escureciam as evidências vindouras da sempre ansiada manhã, deixei-me estar, não a ver-me no omnipresente vidro, mas num estar sem ver, é quando caminhamos pelas paisagens de nós, àquela hora, pelo menos na minha carruagem, apenas metade dos lugares ocupados, era um dia a meio da semana, tão estranho, aquele comboio parecia a única certeza numa desoladora irrealidade, em sobressalto, olhei à minha volta, também para me saber, uns com o inevitável jornal, outros dormitavam, o omnipresente rectângulo do hoje entretinha uma boa percentagem, aquietei-me, ou talvez não, e regressei ao vidro, a mim, às trevas que pintavam de irrealidade o mundo anoitecido, é curioso, depois de olhar à minha volta, foi a contemplar a silenciosa harmonia da madrugada que sosseguei. De repente, vinda não sei de onde, uma viela empedrada diante de mim, mais ou menos a meio, havia uma loja esconsa, quase sem montra, após a entrada, dois degraus, que se desciam com reverência, ali, à nossa frente, um universo de papel à altura dos sonhos, um desses, raros, lugares, interdito a adultos, pelo menos àqueles que esqueceram a cor da meninice, lembro-me tão bem, íamos quase em excursão, apesar de não sermos muitos, afinal, ler, fosse o que fosse, sempre custou, ao alfarrabista de banda desenhada, era um velhote de estatura média, magro, confesso que nunca lhe conheci a voz, do alto dos meus oito anos, olhava-o com admiração, não sei porquê, mas sempre me pareceu que ele tratava por tu os meus heróis e super-heróis preferidos, talvez fosse um familiar distante, quiçá um primo longínquo, estou mesmo a vê-lo, pelo menos uma vez por mês, a pegar no telefone, a ligar ao Peter Parker para saber como vão os estudos, a saúde da tia May, se ela não se tem esquecido da medicação, ou ao Matt Murdock, para ver como anda o escritório de advocacia, se a clientela tem aumentado, é possível que também não se esqueça do Michel Vaillant, se já fez as pazes com o irmão, no fundo, sempre associei o seu silêncio a uma timidez infantil, vasculhávamos a loja toda, e nunca lhe ouvimos uma censura, ao contrário de todos os adultos, a começar pelos nossos pais (Está quieto! Por acaso, alguém te deu ordem para mexer?! Cala-te! Já disseste bom-dia? Alguém vê com as mãos? Vais entrar, e Deus te livre que toques em alguma coisa!), é verdade, houve uma altura em que os pais educavam os filhos, por estranho que pareça, depois, infiltraram-se umas teorias de pacotilha, a mando de interesses escusos, e a anarquia bateu à porta de cada um de nós, resta-nos, claro, a liberdade de a deixar ou não entrar, como dizia, aquele era um dos raros lugares onde, de facto, nos sentíamos adultos, clientes respeitados e livremente à procura de um artigo que pudesse interessar, sem a mínima repreensão, enquanto por ali deambulávamos, ele permanecia atrás do balcão, em arrumações, por vezes, em leituras, fascinava-me observar aquela superfície calva debruçada para uma revista, aos quadradinhos, que, até então, julgávamos ser unicamente para a nossa idade, como se, subitamente, alguém restituísse dignidade a algo só por nós reconhecido, era como se assistíssemos a uma epifania, creio, com sinceridade, que muitos de nós pensámos o mesmo, porém, nunca o verbalizámos (Que pena o nosso pai não ser  como o alfarrabista!), os quadradinhos, durante a minha meninice, preencheram-me os silêncios lá de casa, por ali partilhava amarguras, anseios, erigia a minha colorida realidade, tão distinta dos adultos, que, praticamente em cada frase, repetiam os termos pagar e factura, não sabia o que eram, contudo, não sei porquê, afiguravam-se-me imagens cinzentas e nos antípodas da simpatia, era também comum a crítica àquele mundo aos quadrados, que consumia com avidez (Quando é que começas a ler livros a sério? E deixas essas porcarias? Com a tua idade, já tinha lido… Sinceramente, achas que, com essas coisas cheias de fantasia, vais a algum lado?), confesso que magoava, sobretudo pela flagrante ignorância do que ali acontecia, afinal, o Peter Parker desdobrava-se a tirar fotos para pagar as facturas que lhe enchiam a caixa-do-correio, além dos medicamentos para a Tia May, o Clark Kent estava destinado a uma dramática orfandade, antes de tecer quaisquer críticas, julgo que os adultos deveriam, isso sim, conhecer as coisas, e, verdade se diga, quase todos, nas tais coisas cheias de fantasia, estavam fatalmente destinados a um frio desamparo afectivo: Bruce Wayne, Peter Parker, Matt Murdock, Clark Kent, Tarzan, só para citar alguns… Acredito que se houvesse mais superfícies calvas debruçadas para uma revista aos quadradinhos talvez, é possível que sim, as coisas fossem um pouco diferentes neste lado de cá do acontecer. Hoje, naquela viela empedrada, que pouco mudou com os anos, nem vestígios do alfarrabista, nem daquele colorido universo de papel, a loja, com os dois degraus, após a entrada, está lá sem estar, quando ali chego, passo para o outro lado, há lugares assim, que nos foram subtraídos do sentir, nunca mais soube da superfície calva que se debruçava para um colorido universo aos quadradinhos, creio que a perdi quando, também eu, e tão prematuramente, me afastei de histórias de desamparos afectivos (talvez por que as vivesse há muito) e de facturas por pagar, ouvi dizer que partiu sorridente durante o sono, e se juntou à sua mulher, que o aguardava há quase uma década, é reconfortante, apesar de tudo, quando ouvimos algo assim, como se um sentido para o aqui, sorri-me ao relembrá-lo, atrás do balcão, de testa franzida debruçado para o mesmo horizonte que nós, é tão reconfortante quando encontramos alguém que olha na mesma direcção, como se também um sentido para o aqui, porém, enquanto o pensar caminhava por estes lados, uma questão levantou-se-me: que imagem guardamos antes de alguém que parte? Nunca anteriormente esta questão se me atravessara, confesso não me recordar de nada concreto, apesar das várias despedidas a que fora instado a comparecer, cada um que parte não subtrai, pelo contrário, adiciona: saudade, alegria, tristeza, palavras, gestos, no fundo, memórias.


A Escrita


Sabia que estava noutro lugar. Um desses sítios que, até então, não fazem parte da nossa vida. Tentei compreendê-lo com o possível momentâneo de mim: o olhar. Apenas percebi uma brancura excessiva, de facto, estava longe de minha casa. Ou de qualquer outro lar. Fui-me percebendo: sempre a geografia da dor. Estava deitada há algum tempo. Quanto? Não sei. Talvez tivesse dormido um pouco. O que me despertou? As dores? Sim. Não, o barulho. Mas também as dores. Talvez tudo somado. E sempre um vai e vem constante de batas brancas. Outros, deitados como eu, entravam em salas, de portas de saloon, a velocidades de cenários de asfalto. E eu permanecia ali, numa maca, encostada a uma parede, com um gotejar, provindo das alturas, ininterrupto braço adentro. O movimento não cessava. Tento levantar um pouco a cabeça, para compreender melhor o espaço. Logo uma mão sorridente trata de me serenar de encontro à almofada. Ouço um expressivo Acalme-se, está quase, e eu, numa resignação indefesa, de regresso à horizontalidade branca. De repente, uma dor excruciante brota-me dos estigmas. Uma dor de fogo, no fundo, uma dor de raiz. Apercebo-me, agora, da minha imobilidade. Afinal, já ali tinha estado. Aquando da primeira estigmatização. E, por ali, não queriam mais cordeiros sacrificiais. Sim, esta foi mais uma tentativa. Nessa manhã, tivera um teste de Português. Correra-me muito bem. Almoçara, num cafezito próximo da escola, com umas colegas. Conversas de liceu, algures entre rapazes e moda, tudo numa superficialidade excessiva, só possível a quem não olha para além da sua sombra, representei, o melhor que pude, interesse, apesar de sentir que pisava um país longínquo. Findo o almoço, ele acompanhou-me a casa. Sempre diligente. Talvez demasiado atencioso. Hoje estás longe, recordo-me da sua voz, nitidamente apreensiva, a dizer-me isto, estás longe, sim, há muito que estou longe, ele a dar-me a mão, passeio fora, com um orgulho indesmentível, traduzido num sorriso sem recuo, eu de expressão amarelecida, a seu lado, ora a tentar acompanhar-lhe o passo, acelerado pelo entusiasmo, ora em guerra declarada com aquela estúpida madeixa, que testa incessantemente os meus reflexos e a minha paciência. Deixa-me à porta de casa, significa beijo prolongado, ele sorrisos, eu longe, ele entusiasmo, eu numa nostalgia muda, Logo, queres ir ao café?, eu a pensar que logo é tão longe, mas respondo que sim, porque apenas pretendo silêncio, ele parte, felizmente, e com ele leva aquela alegria de risos tolos e falares altos. Entro em casa. Dirijo-me ao meu quarto. Pouso a mochila no sítio de todos os dias. Vou à cozinha e preparo um lanche. Nisto toca o telemóvel. É a minha mãe, Sim, está tudo bem. O teste? Correu bem. Sim, saiu a matéria que esperava. Queres que vá aos correios? Tudo bem. Sim, não me esqueço de pôr o peixe a descongelar para o jantar. Não, não me vou esquecer. Vou já tratar disso. Não te preocupes. Após o peixe, fui até à casa de banho. Retirei a pulseira preta do pulso esquerdo. Baixei o olhar para a brancura do lavatório. E deliciei-me com o quadro escarlate que desenhei naquela tela de uma brancura obscena. Nada senti, a não ser a frieza do metal trazido da cozinha. Isto quanto aos sentires exteriores. Porque, interiormente, sentia-me a submergir no rio da vida, e, sim, chorava, por uma alegria reencontrada, e os passos do meu coração aceleravam passeio fora rumo a um horizonte pintado pela cor do meu ser. Apercebo-me, sem saber como, de que lá fora já a noite. Sempre associara noite a frio. Não sabia porquê. As batas brancas continuavam o seu trânsito de metrópole. Eu cada vez mais baixa. Sentia-me a afundar. De repente, um sorriso, apenas um sorriso sem olhar, dedos que me conheciam o rosto, e um cheiro de infância, eu compreendo, de onde estava a olhá-lo, que ele nunca pronunciou a palavra porquê. Sentou-se, apenas para estar mais próximo. Mas, neste momento, parecia num entretanto algures entre o sonho e o aqui, olhava a dor como uma saudade deixada na margem, deixei-me ir, numa corrente que prometia esquecimento, deixei-me ir, apenas inclinei a cabeça, não sei porquê, mas um grito emudecido ecoou pelos cantos do que sou (Não te mexas!), respeitei o imperativo, talvez o grito proviesse de um ainda desconhecido, cedi ao apelo do calor, que me prometia leveza, deixei-me ir, e adormeci… Esta cena repetiu-se mais três ou quatro vezes. Possivelmente na quarta, um rosto familiar, debruçado sobre mim, ostentava um sorriso em ruínas, meu pai, sua mão pelos meus cabelos, numa lentidão de caminhante entre destroços, tentei uma frase, mas o sentir sobrepôs-se, a barragem da razão e o consequente silêncio, nele, também ameaçava fissuras, havia naquele rosto uma sombra de derrota, o seu olhar a evitar-me os pulsos, apesar de lhe erguer a mão num gesto sem voz, meu pai, meu pai, ali, à cabeceira de minha cama, disfarçado de hospital, um esforço para o reconhecer, a falar-me pela ponta dos dedos que ondulam por meus cabelos, percebo-lhes palavras de um espanto desgostoso, Porquê? Falhámos nalguma coisa? Sempre te demos tudo… Talvez seja esse o problema, demos-te em demasia, compreendo, num cinzento de mim, que, quando sair, tudo igual, Sou pobre, meu pai. Sou uma mendiga. Não se oferece um casaco, a quem morre por dentro, os seus dedos aquietam-se, os lábios pousam na minha testa, um dever é para se cumprir, sobretudo se houver plateia, antes de se retirar, do seu olhar apenas um espanto desgostoso, nada mais, persiste com o casaco, não consegue sair de si, daí aquela genuína surpresa por ter de se apear, um indesejado obstáculo na jornada, a minha mão de regresso ao leito, olho-a como um despojo de intenções, quando me apercebo, meu pai já à porta, agora, a fechá-la, no esmero de quem esconde um objecto defeituoso numa qualquer despensa, reparei que, à medida que se aproximava da porta, os passos mais leves, por fim, pelos vidros, apenas a nuca, sabia que não olharia para trás. Nesse dia, não houve mais visitas. Estava sozinha num quarto de paredes brancas: espelho perfeito do meu pensar. Nem uma ideia por mim nascia. Nada. Muito menos, um sentir, a não ser pousar a mala, numa qualquer berma, de tudo que me fizesse vincar os pés no chão do mundo. Queria ir, apenas e só. Partir para um lugar que desconhecesse definitivamente o que é o amanhã. Uma noite que caminhasse infatigavelmente pelos dias. Algures por aí. Um lugar de silêncios, onde todas as vozes se calassem, e nem a saudade dos seus ecos se levantasse. Algures por aí. Nem frio, nem calor, apenas um estar, onde me soubesse, mas onde simultaneamente me fosse esquecendo, algures por aí… A cama do lado permanecia imaculadamente feita. Como se a ordem das coisas ainda não lhe tivesse encontrado um ocupante. Não devia tardar muito. Afinal, o nosso destino é cair. O apelo do sono só com a noite. Começava a afastar-me do lugar da dor, sob o desígnio de analgésicos. Nem dois minutos após a saída de meu pai, já uma enfermeira transpunha a porta, com uma energia que se me afigurava obscena face à minha condição, após as primeiras frases, adivinhei o rumo da conversa, Já viu em que estado deixou a sua família? Coitados! Já tem idade para ter juizinho, não acha? Diga-me lá a verdade, foi algum desgosto amoroso? Os exames correram mal? Não se preocupe, isto fica entre nós, optei pelo ramo que me traduzia o vento, para lá da janela, a enfermeira persistiu com o monólogo, creio que nem se apercebeu do meu silêncio, findos os afazeres, Não se preocupe. Isso é da idade. Um dia ainda se vai rir de tudo isto. Olhe que há gente muito pior… Eu, incrédula, fitei-a, percebi o mundo que nos separava. A sua incontinência verbal num flagrante contraste com a imobilidade do cérebro. Há quem diga que virei costas à felicidade. Mas é errado. Só se pode virar costas ao conhecido. Creio que tudo começou num dia de férias, há uns anos, no Verão. Ao contrário da maioria, chegado o calor estival, meus pais rumavam a Norte. No fundo, mais por influência do meu pai. Creio que o Sul lhe despertava reminiscências de uma outra vida, que, para seu infortúnio, e talvez nosso, obrigaram-no a largar, nesse momento, questiono eu, Quanto dele terá morrido? Instalávamo-nos sempre na mesma pensão, de dois andares, um edifício verde desbotado, numa rua anterior à marginal, daquela cidade do litoral nortenho. Meu pai argumentava com a qualidade do ar e das águas, a simpatia das gentes, e os preços em conta. Terminava a argumentação sempre da mesma forma Para confusão, já me chega o resto do ano… A mim e ao meu irmão, só nos restava segui-los, de ombros derrotados, a contemplar o vidro traseiro do carro que nos distanciava, cada vez mais, do Sul. Já sabíamos que, no início de cada ano lectivo, iríamos ouvir os relatos, intermináveis, dos nossos colegas que rumaram a Sul, falavam de águas tépidas, meigas, de um calor que abraçava a noite, de vários idiomas irmanados a uma mesma mesa, nós, fascinados, ouvíamos aquelas narrativas enquanto a nossa imaginação construía o possível sonhado de cada palavra. Quando chegava a nossa vez, contornávamos águas frias, bravas, um vento desconfortável que invadia a noite, aquela estranha fusão de português e francês que se multiplicava incessantemente, deveras excêntrica, mas interessante, socorríamo-nos de um assunto em voga, logo as atenções se dispersavam, e, por fim, ficávamos sós, no longe do nosso interior, a contemplar a imagem sonhada que cada palavra semeou… Ainda hoje, para mim, Sul rima com sonho. Mas, sim, de regresso àquele dia, que se me colou à pele da memória, como aquelas marcas indeléveis de nome tempo. A rotina daquelas duas semanas era inflexível. Descíamos para a primeira refeição às oito horas, hoje compreendo-lhe a humildade, leite e café ou sumo (não bem sumo, mais um pó que se diluía em água, para lhe dar cor), pão com doce ou manteiga, na altura sabia-me a mundo, por ser longe de casa, de seguida, praia, em múltiplas ocasiões, socorria-me de uma camisola, meu pai sentava-se numa cadeira que levava debaixo do braço a ler o jornal, minha mãe, na toalha, com uma revista de vidas bem distantes da sua, todavia, antes de tudo, armava-se o guarda-sol, outras vezes, no seu lugar, um cata-vento, meu pai, uns largos minutos, a esvaziar um frasco de protector solar nas costas sardentas de minha mãe, eu com a imagem de um protector eólico, na minha pele, ainda hoje, a dor omnipresente das vergastadas de areia, meu irmão, seis anos mais velho, procurava enturmar-se em jogos de futebol, quando não, permanecia num mutismo obstinado, que gritava o desprazer daqueles dias, eu com a camisola, passos suficientes para sentir água sob os pés, já era o suficiente, tal a intimidação que me inspirava aquele rugido líquido, olhar os outros, perder-me neles, talvez tivessem um lugar para mim… Às onze e trinta, regressávamos para o almoço, também na pensão, excepcionalmente, meu pai optava por um restaurante, as refeições decorriam sob o jugo de uma alegria sintética, nossos pais sorridentes, como se padecessem de uma alienação patológica, colocavam-nos questões sucessivas, num estatismo esquemático, como se cumprissem um guião escrito por mão doutrem, acerca da escola, se estávamos a gostar da estadia, até da comida, sempre que este rito se iniciava, centrava-me no esvaziar da garrafa sobre a mesa, não era assim tão rápido, aquele inusitado interesse por nós, obedecia a outras raízes, quase sempre, como se em sintonia, as nossas respostas balizavam-se entre ombros a tactear os lóbulos e um horizonte de pratos, acho que eles nem se apercebiam do nosso fastio, ou talvez estivessem para além disso, finda a refeição, cumpriam uma sesta, meu irmão saía, por vezes, passeio fora, não sei para onde ia, porém, compreendia tão bem do que se afastava, via-o a deambular, de mãos nos bolsos, pela marginal, meu irmão, creio que, em verdade, nunca retirou as mãos dos bolsos para a vida, nem perdeu aquele passo deambulante, um dia partiu (ou ter-se-á perdido nalgum passeio do mundo?), ou talvez fosse eu a partir, olhávamo-nos, mas tão pouco nos falámos, havia tanto silêncio entre nós, éramos quatro estranhos a partilhar um tecto, desde aí, só o revi uma vez, mas isto sucedeu mais tarde, ou talvez não, afinal, as coisas nascem sempre muito antes de o serem, eu permanecia numa sala, com televisão e revistas, contudo, perdia-me sempre com a janela, algo em nós sussurrava a importância daquelas sestas para os nossos pais, talvez procurassem, no fundo da algibeira do sentir, uma memória esquecida no caminho… Àquela hora, nunca subíamos. Como se afirmássemos uma posição. Pelo menos, a sesta não cumpríamos. Por volta das dezasseis horas, desciam, meu pai, de novo, com a cadeira debaixo do braço, minha mãe, com o seu chapéu de palha, saco a tiracolo, revistas e bronzeadores em luta pela visibilidade, umas vezes desciam ensonados, outras ostentavam aquele entusiasmo alienado do almoço, meu irmão já os aguardava à entrada, ou não tardaria a aparecer, comecei a compreender que, após essas deambulações, se lhe somava uma lentidão galopante ao mutismo obstinado, seguia-se mais praia, até às dezoito horas, reocupavam-se posições, guarda-sol em vez de cata-vento, ou o inverso, esvaziava-se mais uma embalagem de protector solar pelas costas sardentas de minha mãe, no meu pensamento, de novo, a embalagem de um protector eólico, dei comigo, várias vezes, a suplicar que o tempo acelerasse, como se a minha solução estivesse miraculosamente a jusante, quando, sempre o soube, residia numa sombra demasiado oculta de mim, o regresso dava-se sob mais vergastadas de areia, sentidas sobretudo nos tornozelos, afinal, camisolas e toalhas sempre têm utilidade numa praia, após o jantar, regra geral, as efusões do almoço esbatiam-se, é compreensível pela hora e por toda a animação de mais um dia, que não admitia variações, balizado entre pensão e praia, seguia-se um passeio marginal fora, de vez em quando, um gelado, algodão doce, meu irmão ausentava-se com o pretexto de uns novos amigos, da sala de jogos, com aquele clima tão animado de férias só seria possível aos meus pais anuírem, quanto a mim, refém da ausência de pretextos, só me restava segui-los, consciente do opróbrio daquela não assumida derrota colectiva, chegado a um determinado ponto, regressavam, como se a vida fosse caminhar sob o sorriso da nossa sombra, e eu, nesses momentos, a sentir-me órfã de uma janela… A pensão disponibilizava duas casas-de-banho, por andar, para serventia dos hóspedes. Meu pai costumava dizer que a pensão era humilde, mas muito limpa. Em certa medida, estava certo. E, para eles, era um sacrifício, já que tinham de alugar três quartos. Pertencia a um casal idoso. Tinham o cuidado de perguntar, várias vezes ao dia, se tudo estava bem. Não lhes posso negar a simpatia. Eu é que era já uma imensa sombra. Ali se estabeleceram aquando do regresso à metrópole, após mais de duas décadas de África (começava a visualizar o porquê daquela pensão, meu pai rejuvenescia diante do meu incrédulo olhar), onde se conheceram, ele encantou-se com aquela aparente segurança, que mal disfarçava a criança que, até hoje, se recusa a caminhar às escuras pela casa, mais duas solidões originaram um casamento, não há assim tantos anos tudo desaguava em casamento, no que respeita a partilhar vidas, depois começaram as dúvidas, as inevitáveis questões atiradas de fora, a cada instante, como pedras em feridas ainda por cicatrizar, Então, para quando um herdeiro? Não me digam que não está no vosso horizonte? Preferem menino ou menina? Não acham que já está na altura? Estão a deixar para muito tarde… Não vos parece? Assim era, mal saíam de casa, pedras vindas de todo e qualquer lado, algumas bem traiçoeiras, como doíam, ela pensou ser a fonte do problema, não se esquivou, pelo contrário, médico, exames, do seu lado, tudo estava bem, era uma fonte segura, afinal, ele é que… Nunca lhe mostrou qualquer exame, escondeu-os no fundo de uma gaveta muito sua, de roupa interior, até que, certo dia, resolveu mesmo deitá-los no lixo mais próximo, entre eles nunca houve acusações nem censuras por isto, ela, ainda hoje, não sabe se ele tem consciência da sua infertilidade, talvez sim, mas é apenas uma suposição, é curioso, mais de quarenta anos a partilhar tectos e lençóis e fica tanta coisa silenciada entre um homem e uma mulher, no fundo, ambos perceberam que já bastavam as inclementes pedradas exteriores, como doíam, não era preciso, entre eles, elevar os ecos da dor, quando aterraram na metrópole, obrigados por uma súbita incerteza que se instalou em cada canto da sua, e de todos os outros, existência, nada traziam, bolsos famintos, olhares caídos, o amanhã apenas um medo, olhavam os outros regressados nas mesmas circunstâncias, e perceberam que, dos anos de África, ao menos, traziam, pelas mãos, o fruto de algo chamado amor, eles nem esse desígnio atingiram, mesmo assim, lá seguiram em frente, como não podia deixar de ser, mais de quarenta anos a partilhar tectos e lençóis e fica tanta coisa silenciada entre um homem e uma mulher, à noite, antes do sono assumir o leme do pensar, ela incessantemente revisitava o passado, e assim percebia a outra que se negara ser, ou que a vida lhe subtraíra, no fundo, todos podíamos ser outros, eu talvez não, creio que seria a mesma, esta sombra que me enegrece tanto do que sou, mesmo nas fotos, sempre um semi-sorriso, quantas vezes minha mãe (Ri-te, miúda!), e eu a distender os lábios sem clarear o pensamento, daí as coisas numa artificialidade de apenas pose, nada mais, ela insistia, mais alto (Ri-te, miúda!), tudo em vão. Antes de me deitar, nessa noite (ao certo quando foi?), senti-me asfixiar, como se tudo me oprimisse, móveis, cortinas, portas, candeeiros, ruas, pessoas… Saí para a casa de banho, de copo e escova dos dentes na mão, o ar do corredor mitigou aquela sensação, felizmente uma estava livre, entro de chofre, o copo escorrega-me, o pânico gritado de cacos recém-nascidos perpassa o meu sistema nervoso, irreflectidamente, baixo-me para os silenciar, a dado momento, corto-me num deles, só o calor escarlate me desperta essa evidência, foi no indicador direito, comprimo-o entre os lábios, assim me deixo estar, de pé, sobre o lavatório, diante daquele grande e velho espelho, não sei porquê, mas num espelho pressente-se a idade pela quantidade de olhares que já suportou, enquanto me olho, compreendo a minha respiração suavizada, como se aquela seiva me despertasse de uma letargia imemorial, de vez em quando, a única lâmpada da divisão em movimentos de sono, pela minúscula janela, sempre a encontrei aberta, o canto rouco e afirmativo do mar, curioso, quanto mais próximo, mais distante se afigura, talvez por iluminar um som de nós há muito… De repente, passos no corredor, alguém tenta esta porta, o trinco ainda resiste, dirige-se para a outra, apercebo-me de que ainda seguro o caco onde me cortei, olho o indicador, a seiva secou, aproximo uma ponta aguçada, da ruína do meu copo, do indicador sarado (ou enfermo?), passo-a, numa lentidão carinhosa, embora tímida, a pele a abrir-se, eu a olhar e a conhecer-me, afinal, eu sou isto, o meu interior a abrir-se diante de mim, sob um líquido véu escarlate, tudo como se ultimasse, a pincel, um pormenor teimoso, inspiro ao frio contacto do vidro na minha pele, segue-se-lhe aquele calor pulsante, e o sal líquido, de felicidade, precipita-se pelo meu rosto, o que os outros gritavam ser uma dor obscena, para mim, constitui a devolução de um sentido, compreendo, à vista daquele lavatório, de um branco envergonhado que se encolhe a cada gota vermelha que de mim jorra, uma outra geografia, distinta da que me rodeia, daquela casa de banho anacrónica, do segundo andar de uma humilde pensão, numa cidade costeira do Norte do país, repito o movimento, agora com uma outra ponta, mais aguçada, subsiste a lentidão, porém, mergulho um pouco mais no que sou, sinto aquele frio inexorável caminhar por mim, desde a extremidade do indicador, a redesenhar o meu mapa, dar-me a mão, abrir a porta daquela casa de banho anacrónica, do segundo andar daquela humilde pensão, numa cidade costeira do Norte do país, levar-me até à marginal, murmurar-me, numa voz segura e doce, que eu não vou precisar mais de janelas, distendo os lábios, o branco envergonhado quase se dissipou do meu horizonte, ainda aquela voz a ecoar na noite, a dizer-me que, amanhã, pelo menos, não vai haver rotinas inflexíveis, praia com cadeiras debaixo do braço, chapéus de palha, protectores solares derramados em superfícies sardentas, revistas de vidas distantes, mas de vazios similares, jogos de futebol, e mutismos obstinados… Não, doravante, tudo será diferente. É apenas uma questão de geografia e sentido. Não me lembro de quanto tempo ali permaneci, de pé, sobre o lavatório. Risos emudecidos e lágrimas cantadas alternaram-se sob o olhar indulgente daquele espelho, como é verdade, num espelho pressente-se a idade pela quantidade de olhares que já suportou, torna-se inviável explicitar a alguém que é possível tanger a textura dos sonhos, que naufraguei na ilha do meu eu, e o mundo, agora, é um lugar longe… Acho que regressei ao meu quarto apenas quando um canto matinal me despertou. Percebi, pela janela sempre aberta daquela divisão, que a vida, lá fora, recomeçava. Estava deitada no soalho frio, o indicador enrolado em papel higiénico, não me lembro de o fazer, à vista deste, amarrotado à volta do dedo, percepciona-se a batalha nocturna entre o escarlate, que se procurou libertar, e o branco, que o tentou reprimir, levantei-me no possível da fraqueza, tentei devolver o branco à superfície das coisas, apaguei a trémula luz, e saí. Só bem mais tarde, descobri que meu irmão buscava o mesmo, embora seguisse por outros trilhos. Ao pequeno-almoço, de novo, partilhado, à mesma mesa, por quatro estranhos, entre uma chávena de café com leite, uma sandes de manteiga ou doce, surgiu a questão do meu dedo. Julgo que tenha sido meu pai. Desculpei-me com a porta e escondi o rosto com a chávena. Enquanto bebia, senti o olhar do meu irmão, nada lhe era impeditivo, sim, compreendeu que eu embarcara para a ilha do eu, tal como ele já o fizera no ontem de há muito. No decorrer da manhã seguinte, o destino cumpriu-se, alguém caíra, e passei a ter companhia. Era ligeiramente mais velha que eu, o entra e sai do quarto acentuou-se, mesmo fora do horário de visitas, há quem sempre consiga fazer as suas regras. É curioso, todos somos uma história, mas há lugares em que isso assume a pertinência de um rosto. Este é um desses lugares. Afinal, só ali chega quem caiu. E todos querem saber que passo falhou para… Parece que a história dela circulava na imprensa. Discoteca, sexta-feira à noite, no regresso, já de madrugada, tudo num excesso, copos que se tornaram transparentes, barulho, fumo, velocidade, vozes incessantes no carro, curvas, cansaço, foi encontrado no fundo de uma ravina, das cinco ocupantes só ela respirava, os exames ao sangue corroboraram os excessos, sobretudo para quem tinha de realizar tantas curvas, as autoridades, já vigilantes, apenas aguardam que ela se levante, o choque inicial das outras famílias a ceder lugar à revolta, troquei as primeiras frases com ela para povoar aquele silêncio asfixiante que se instalava na divisão após a partida dos familiares, foi dela a iniciativa, a perguntar-me se precisava de alguma coisa, talvez por já se erguer, de momento, isso era-me vedado, pela fraqueza, pela omnipresença do soro, quem sabe por outros receios… Disse-lhe que não, e agradeci, mas cumprira-se o objectivo: as nossas vozes conheceram-se. Ela tinha mais três ou quatro anos que eu, já andava na faculdade, economia, se bem que, neste momento, se ocupasse de outras contas, de quatro vozes que se silenciaram, para sempre, no interior do seu carro, tinha, pelo que percebia, apesar da nossa horizontalidade, mais ou menos, a minha estatura, era para o louro, talvez com a ajuda de colorantes, à primeira vista, não se lhe percebia o porquê de ali estar, apenas, após os primeiros passos, lhe compreendi o coxear, e a face direita ligeiramente esfacelada, li-lhe gestos ansiosos, é natural, atendendo ao contexto, no entanto, não me passou despercebida uma certa teatralização, aquela estranha urgência que muitos têm de transparecer luz e bonança, mesmo que se movam entre despojos, somos estranhos para nós mesmos, como, então, podemos reclamar a compreensão alheia? Só percebemos a noite, quando o mundo uma sombra imensa, por aqui, dores em forma de voz, um lamento, de vez em quando, caminha penosamente pelo corredor, vindo de outros quartos, um respeito, feito da matéria do silêncio, segue-se àquela caminhada, como se um imperativo ético, há normas que só se apreendem na vivência, na experienciação, na verdade singular da dor. Já distinguia o rosto de duas ou três enfermeiras. Sempre a diferença neste auxílio da destrinça. A que agora entra no quarto não é muito alta, apesar da minha situação de horizontalidade percebo-o, não sei bem porquê, já que os outros tão para além da infantilidade deste meu estádio, percebo-lhe as lonjuras das raízes pelo rosto, mas não pelos modos, e ainda menos pela dicção, cumpria com os procedimentos da hora nocturna, temperatura, pressão arterial, após correr a cortina, é curioso, estas práticas não exortam à privacidade, mas ela nem vacilava, cada gesto seu pertencia-nos, o seu profissionalismo transmitia-nos a noção de singularidade, e como isso era reconfortante num lugar de múltiplas vozes, apesar de uma só dor… As questões que me colocava não iam além da minha circunstância, contudo, percebia-lhe uma censura sublimada nos gestos e na voz, sim, o leito de um quarto asséptico é um bom lugar para se aguçar a visão, resolvi erguer o olhar, antes mesmo de o fazer, ela já em sorrisos, como se o desprezo ornamentado em candura, antes de abrir a cortina, virou-se para mim e apenas uma frase O problema é que a menina sabe que vale muito mais do que isso… Na altura, a frase pareceu-me de circunstância, talvez por eu não estar preparada. Há frases que requerem a luz do tempo. Esta foi uma delas. Não sei bem de onde esta ideia me chegou, mas sempre me senti eivada de tragédia. Ainda de tarde, quando meu pai, sobre a cabeceira da cama, a sufocar emoções, eu a seguir-lhe as pisadas, a compreender o esforço daquele equilíbrio, por fim, a desistir, a sentar-me na berma desse caminho, não, meu pai, por aí não o vou seguir, sabe, Sou eivada de tragédia, como é verdade, nunca me ri como os outros, em verdade, nunca compreendi os passos daqueles que me rodeavam, sempre me senti mais velha, como se ouvisse os doces murmúrios das sombras, e, então sim, sentada na discrição de um canto, reiniciava a desconstrução das ilusões vendidas no mundo deles. No fundo, sempre senti um cansaço de tudo, apesar de lhe desconhecer a génese, ainda me lembro, uma manhã de sol, no recreio da escola, teria os meus seis ou sete anos, as minhas colegas sempre com aquele elástico, entrava no jogo apenas para lhes esconder a minha estranheza, os rapazes com a bola, um deles, no entanto, sempre que possível, olhava-me, eu retribuía, até lhe perceber vazio, não, não desejo, para mim, Verões em praias a Norte, sestas alternadas com fugazes instantes de sabor a ontem, desejo-me a vida, sob que forma for, mesmo transfigurada numa frieza aguçada metálica, que se limita a redesenhar a geografia do meu ser. Quem sabe se, certo dia, ele a entrar em casa, com as miúdas, eu a subir uma colina, a distância a aumentar, a aumentar, incessantemente, as suas vozes só um longínquo eco, frases entrecortadas com soluços (Meu Deus! Meu Deus! O que foste fazer?), talvez uma das miúdas à porta do quarto, a assistir ao desaguar do meu ser, espero que não, sei que não me irão perdoar, pelo menos tão cedo, um dia, bem para a frente, aos primeiros grisalhos, é quando as desilusões começam a desequilibrar, para o seu lado, o saldo de uma vida, iniciar-se-á o processo de compreensão, quanto a ti, suprimimos, por uns tempos, as nossas solidões, contudo, a minha regressava, creio que, de facto, nunca partiu, sempre aqui esteve comigo, acompanhou-me em cada passo, tenho de ir, ouço minha avó a chamar-me, está ali, um pouco mais acima, talvez precise de ajuda com a lenha, tenho mesmo de ir, Adeus, perdoa-me, se conseguires… Não aguentava mais saber o dia a seguir… O seu rosto turvou-se-me pelo sentir do olhar, tanto chovia em mim, senti-lhe o calor, quando me abraçou, pareceu-me o abraço de uma vida, mas já era tarde, estava de saída, aqueceu-me ligeiramente, embora eu já tão fria, não tenho a certeza, quero acreditar que sim, acho que consegui pronunciar Adeus… A chave caiu com estrépito, como sempre sucedia, na mesa de entrada, talvez por isso, ela se soubesse em casa. Descalçou-se. Percorreu o corredor, sempre na sombra, manhã ou tarde, e deitou-se, de costas, na cama. Deixou-se estar. Olhos para o pensar não pensante. De repente, sem saber porquê, percebeu que nunca fizera tal coisa, chegar a casa, a meio da tarde, e ir assim deitar-se. Gostou daquele sabor a novo. Deixou-se estar, olhos fechados, a ouvir o possível do mundo àquela hora, vozes aqui e ali, uma televisão, não sabe onde, se no andar de cima, se em baixo, a derramar vazios, lá fora, a cadência incessante do trânsito, como se um rio de outros caudais, um cão na distância, pareceu-lhe, não sabe porquê, estar na margem oposta da existência, apesar disso, com um olhar sem estranheza, ou talvez não, de súbito, o telefone de casa, ela a irritar-se com aquela inesperada intromissão, contudo, nem ousa mover-se, quem a poderia ali saber, àquela hora, felizmente não insiste por muito, sempre as amarras do real, lentamente, uma imagem foi germinando por si, agradou-lhe, pensou em cumpri-la, há tanto que não caminhava por essas paragens, o cão persiste na distância, a imagem a ganhar-lhe terreno ao pensamento, por outras palavras, a ideia ganha cor no pensar, e há tanto que não caminha por essas paragens, como se regressasse a um doce lugar do ontem, no armário da casa-de-banho, na terceira gaveta do lado esquerdo, envolto em plástico, está o objecto, uma vez, ele, sem que ela saiba como, deu com aquilo, ainda a questionou, ela disse que era para os calos, felizmente que ele nunca teve inclinação para inquiridor, logo a atenção se lhe centrou num outro circunstancial, várias vezes, durante a noite, já ele dormia profundamente, ela se sentiu tentada, mas algo, não sabe bem o quê, a reteve, não se pode falar de uma crise de consciência, não, nada disso, talvez a verdade caminhe mais pelo receio de por aí se perder de vez, no entanto, a esta hora da tarde ninguém dorme profundamente seu lado, antes de ele regressar com as miúdas, ela ainda dispõe de cerca de três horas, num repente levanta-se, já de pé, sente uma ligeira tontura, tal a rapidez com que transitou de um estar horizontal para um estar vertical, surpreendeu-se pelo facto de o gesto – o erguer-se – quase anteceder a decisão, deixou os labirintos do pensar assim que se apercebeu de que abria a terceira gaveta do lado esquerdo, do armário da casa-de-banho. Retirou o objecto, envolto em plástico, abriu a gaveta das toalhas e pegou numa, antes de se deitar, despiu a camisa. Deitada de lado, com o pulso sobre uma toalha, deteve-se, por momentos, a olhá-lo, ali estava desenhada toda uma geografia que a conduziu até este instante, sem aquele mapa não teria encontrado o caminho para ali chegar, ter-lhe-ia sido impossível, sabe-o, mas também conhece a impossibilidade de comunicar tal singularidade, seria como dialogar de uma margem demasiado distante, ou comunicar com alguém na ininteligibilidade de um outro idioma e desaguar na exiguidade de gestos sempre singulares que apenas antecedem a derrota, simbolizada num encolher de ombros, antes de mais, dobra a toalha cuidadosamente, esquecera-se de o fazer, não quer pistas no lençol, de novo, deitada de lado, agora sim, percorre com a ponta fria e metálica do objecto um dos percursos ali desenhados, fecha os olhos, aquela súbita frieza na pele fá-la entreabrir os lábios de um quase prazer, memórias acordam em si, talvez despertadas pela familiaridade de há muito daquele frio, talvez daquela extremidade aguçada, chega a um cruzamento, envereda por outro caminho? Inaugura um novo? Deixa-se estar, pensante, o mundo já um lugar longe, primeiro, muito lentamente, força a ponta metálica de encontro à pele, ainda se denota alguma resistência, isto agrada-lhe, nunca gostou de gratuitidade na vida, até que um calor nascido de si, corre para o mundo, pintando-o de escarlate, agora, ela já nem passado, nem futuro, o presente sempre uma ilusão, não se pode dizer que viaje, está algures numa distância sentida das coisas, onde tudo, afinal, se compreende, como em pequenina, quando, pela mão da avó, via a aldeia do monte sobranceiro, dali tudo tinha um sentido, uma harmonia descia sobre o mundo, espantava-se por a velha se centrar apenas em apanhar lenha, curvada para a terra, talvez se tivesse cansado de tanto olhar a sua aldeia, quem sabe, ou talvez nunca se tenha colocado estas questões, não quis acreditar nisto, uma tarde, desciam o monte carregadas de lenha, e a velha povoou o silêncio, como se relembrasse algo para si mesma, Até aos dez, custa a passar. Os vinte chegam mais depressa do que esperas, mas ainda lhes sentes o sabor… Depois, parece que o tempo desacelera, como se precisasse de um embalo para atingir os trinta. Aqui chegados, é muito curioso, porque te deitas a festejar os trinta e acordas a saber que tens quarenta. Sim, o tempo é um viajante infatigável, a partir daqui, minha querida, é um constante galope, e o que fazemos para não nos perdermos? Pois é, agarramo-nos ao que pudermos, por isso, é que a maioria escolhe o que mais perdurou: a meninice. Sempre que lá estivermos em cima, demora-te quanto quiseres a olhar a aldeia, é bom que guardes essa imagem… Talvez um dia, precises de regressar. Roda o objecto, agora é o gume que lhe rasga a pele, nada de novo, era este o seu sistema, perfurava a carne com a ponta, depois, rodava o objecto, e redesenhava um novo mapa em si, sentia-se bem, ao ponto de sempre lhe caírem lágrimas simultâneas à nascente escarlate do pulso, umas provinham da alma, outras do ser… Todas de uma dor. Deixou-se adormecer. Foi uma dor quente, como se uma queimadura, a despertá-la. Estava revigorada. Feliz, não, mas sabia, pelo menos, durante uns tempos, que não precisaria de enveredar por certos trilhos. Ainda deitada, certificou-se da ligadura que fizera um pouco antes de adormecer, apesar de aqui e ali umas ameaças de escarlate, cumprira o seu propósito de estancar o sangue. Deixou-a estar. Levantou-se, ele e as miúdas não tardariam muito. Pôs a toalha para lavar. E, de seguida, assegurou-se de limpar quaisquer resquícios da sua circunstância de há pouco… Por fim, deteve-se diante de um espelho. Não se penteou, não se compôs, nada, limitou-se a olhar para o que aquele rectângulo deitado devolvia de si, quando nos olhamos a um espelho, vemo-nos sempre com a cor do nosso pensamento de então, e, nesse momento, ela não pensava em nada, via-se, e ver não é pensar, tal como pegar num objecto não é dar-lhe uso, lentamente começou a analisar-se, contudo, em verdade, nunca gostou de se olhar, talvez por sempre encontrar algo que a desagradasse, desde uma madeixa fora do sítio, a uma incómoda borbulha que não lhe libertava a atenção, uma palidez excessiva, o desagrado do penteado, achar-se anafada, outras ocasiões, notou-se macilenta, por ali, a harmonia nunca encontrou a porta de entrada, hoje, não sabe porquê, via-se com todas as idades, como se não se estranhasse, mas se compreendesse, num estar muito para além do espanto de se descobrir, não se sorriu, de certa forma, nutriu, pela imagem, compaixão, por há pouco, pelo ontem, pela toalha escondida à pressa, pela mentira, por todo um mapa tortuoso gravado em cada pulso, pelo rosto, reflectido no espelho, que se começa a cobrir de entardecer, pelas filhas que chegam dali a pouco, por ele, que nunca questionou a obsessão por pulseiras, ou talvez ainda não tenha encontrado as palavras, uma formulação adequada àquelas geografias de sentires demasiados, deixou-se ainda por ali estar, apesar da luz oblíqua da tarde finda a entrar pela janela, a lâmpada da casa-de-banho acesa, antes de virar costas, um último olhar àquela estranha que a olhava, apagou a luz, saiu, só uma palavra ecoou por si, enquanto uma dor lhe subia do pulso esquerdo, como se uma queimadura de há minutos, a palavra desolação… Ele chegou com as miúdas perto da hora de jantar, ela, sentada num banco, na marquise da cozinha, de volta da roupa para lavar, as miúdas cumprimentaram-na da entrada, ela retribuiu, tal como a ele, não se demorou muito com os cumprimentos, logo recentrou a sua atenção na roupa, se lhe perguntassem em que momento as coisas assim se encaminharam, no fundo, talvez tivesse uma ideia. Há questões que, assim que se levantam no nosso caminho, parece que se tornam em inseparáveis companheiros de viagem, assim foi, numa certa manhã de Sábado, quando após o cumprimento da intimidade de uma vida a dois, para ela, e talvez para ele, se tratasse, naquela altura das suas vidas, de uma mera necessidade, como se de um aprazível relaxamento, levantava ele os estores, e ela, ainda deitada, observava-o numa distância de primeira vez, já não se sentia atraída, nem resquícios daquele carinho, de um certo companheirismo, de que tanto ouvira falar, nada, após levantar o estore, dirigiu-se para a casa-de-banho, ela continuou a segui-lo com o olhar, não se pode dizer que fosse gordo, havia, nele, uma flagrante flacidez que traduzia, na perfeição, a vida do hoje, uma constante troca de cadeiras, do pequeno-almoço na cozinha para o carro, após um absurdo de tempo em filas e buzinadelas, segue-se a manhã no escritório, sentado à secretária, a pausa para almoço, se assim se pode chamar àquela sandes de ovo com uma verdura quase bolorenta, engolida a custo, sentado ao balcão da cafetaria mais próxima, regresso ao escritório para o período da tarde, de novo, sentado à secretária, o carro, outro tempo absurdo em filas e buzinadelas, casa, jantar, o sofá, quase adormece, desperta um pouco, a boçalidade na televisão engolida como se por ali um qualquer sentido da existência, por fim, a cama, de cadeira em cadeira até ao deitar, assim se vive o hoje, achou que tinha mais sinais, sobretudo nas costas, a sua palidez inata ajudava a este tipo de deduções, nunca foi atlético, nem impetuoso, longe disso, mas percebia-se-lhe que os ombros descaíam, cada vez mais, para a frente, as pernas descarnadas, num estranho efeito global de galináceo, de facto, só a cintura se desenvolvera com os anos, após o autoclismo, percebeu o chuveiro, deitou-se de costas e fechou os olhos, gostava de assim estar, acalmava-a, no quarto ao lado, as miúdas ainda dormiam, regra geral, nessas manhãs de fim-de-semana, acordavam-se, ele abraçava-a, procurava-lhe os lábios, e o resto vinha com o respirar da natureza, ela reflectia nisto e compreendia há quanto o coração se afastara deste palco… De facto, tudo se resumia ao cumprimento de uma necessidade. Apenas e só. De repente, a campainha. Ela, logo, irritada, afinal, se ele tinha a chave porquê tocar, ou talvez fosse uma das miúdas, na pressa de se anunciar, na precipitação da idade, apesar de ela já tanto as alertar, encaminha-se para a porta enquanto a vontade lhe foge para as costas, abre-a, assim que a vêem, o cumprimento, um beijo tímido na face da mãe, primeiro, a mais nova, andaria pelos seis, de seguida, a mais velha, tinha feito oito há uns meses, por fim, ele, carregado de sacos, apenas um Olá, nada mais, nem esboça um gesto de ajuda com os sacos, em verdade, a dor também a impedia, o jantar, quase sempre uma refeição leve, dominado por questões escolares das miúdas, ele muito interventivo, as miúdas correspondiam com entusiasmo ao seu interesse pela temática, ela observava, nas faldas de tais questões, como se numa incompreensão inata por tais contextos, por outras palavras, nem se lhe deparava um problema de linguagem, era mais de direcção do olhar, no fundo, ela debruçava-se sobre outras paisagens, é curioso, estranhava-os, porém, do lado deles, não havia qualquer sentimento dessa ordem, pelo contrário, havia uma aceitação imbuída de esperança, sempre aquela mão, pousada na fronte, a permitir que o olhar deambule por paisagens tão suas, talvez numa aldeia contemplada de um promontório, no entanto, ela já nem passado, nem futuro, e sabe, há muito, que o presente sempre uma ilusão, daí o seu permanente desencontro… Nem por uma vez, durante toda a refeição, questionou o que quer que fosse sobre o dia de escola das filhas, ouvia e observava-os, ele, tinha de concordar, representava bem o papel que se atribuíra, o paradigma de pai, atencioso, até em excesso, todo ouvidos para as observações mais comezinhas das criancinhas, por diversas vezes, a faca pousada, para a mão suportar o queixo e as consequentes anuências do rosto que acompanhavam os relatos infantis, como se, desse modo, as encorajasse ao verbo, ela a pensar em que momento é que um filho conhece o pai (Será em adulto? Ou ao primeiro não? Talvez quando envelheça? Ou na saudade de uma mão já não guiar a sua?), ela sabe onde ele passou o final de tarde, no mesmo lugar desde há uns seis meses, nunca lhe disse, é melhor assim, nem ciúme sente, em verdade, o único sentimento que lhe suscita é um certo alívio, pela distância, pelo tempo concedido, acima de tudo, pelo silêncio, soube-o desde o primeiro telefonema fora de horas, o resto da história foi simples, afinal, há sempre alguém à procura de um bom ouvinte. Ou talvez tudo seja uma efabulação sua, que é o mais provável, para se justificar na senda desta infelicidade, afinal, uma mente desorganizada tende a obscurecer o pensar. Ele, neste momento, trabalha no ramo imobiliário, ainda teve direito a uma ligeira indemnização quando subtraíram o seu posto de trabalho nos correios, de facto, o seu carácter prático fê-lo olhar, desde muito cedo, o trabalho de frente, e, ressalve-se, é daqueles que tem um orgulho genuíno no seu trabalho, como se cada gesto, palavra, olhar, trocado com um cliente, obedecesse a um minucioso estudo prévio, de facto, dizia muitas vezes, Na vida, a representação é tudo, como ela o percebia, como ela o percebia, neste ponto, e em muitos outros, a distância era tanta, sempre achou curioso o facto de, não obstante ele vender ou alugar casas, eles viverem num exíguo apartamento de três assoalhadas, com mais de três décadas, que alugaram pouco antes do sempre adiado casamento, a única casa-de-banho com um permanente odor a humidade, do bidé nem água quente, a tampa da sanita lascada num dos lados, na cozinha haver móveis com portas que teimam em ficar abertas, por muita força que se lhes aplique, o corredor, dia ou noite, numa sombra constante, a sala, um pequeno quadrado preenchido com uma mesa, quatro cadeiras, um sofá e a inevitável televisão, e já tinham de se acautelar para não tropeçarem, daí que a varanda, por insistência dele, logo convertida em marquise, ela ainda se opôs, mas, nestes casos, o argumento da necessidade de espaço é fulminante, e cinco metros quadrados, neste contexto, bem que podem constituir um oásis revitalizante, a vista, de qualquer uma das divisões, como é expectável em qualquer subúrbio, é para o prédio em frente, onde outras vidas se desenrolam diante dos seus olhos, sem nunca haver tempo para se olharem e se perguntarem, ao menos, pelo nome, após o jantar, ela, como era seu hábito, na escuridão da cozinha, cigarro aceso, olhava as vidas em frente, percebia-lhes os passos pelas divisões iluminadas, assim ficava durante o necessário, acalmava-a projectar-se naquelas vidas, porque tristemente nunca saímos de nós, ela já o sabia, aprendera-o muito cedo, olhar o mundo da janela do eu (quantas vezes dali tentou sair?), lançar-se pelos caminhos da terra, correr, correr, desenfreadamente, chegar a um lugar novo, aprazível, primeiro, tempo de recuperar o fôlego, de mãos nos joelhos, a respiração descompassada, esperar, esperar mais um pouco, até que se harmonize, por fim, erguer-se, a paisagem alterara-se, até a luz diferente, isso agrada-lhe, a respiração agora a serenar, decide ir ao encontro das coisas, lentamente, algo se interpõe, numa lenta materialização, de novo, diante de si, a velha janela do seu eu… Quantas vezes isto se repetiu? As necessárias, até ela compreender que é simultaneamente sua prisioneira e sua carcereira, ponto de partida e ponto de chegada, actriz do seu drama e espectadora, ideia e forma, pensante e pensada, porém, a questão e nunca a resposta… Após o jantar, como é seu hábito, a cozinha já em sombras, ombro encostado ao frio de um azulejo, cigarro oscilante entre a boca e a anca, olha vidas, aquelas que se desenrolam no prédio em frente, de tanto as ver, começa a familiarizar-se com alguns rostos, o casal idoso do segundo andar, denotava-se, de onde estava, o império de silêncio que reinava naquele lar, percebia-se a televisão, contudo, nem por uma vez viu aquele ecrã ligado, talvez por só assistir ao tempo da refeição, ora ele levantava-se e a servia, ora ela em gestos de uma ternura contida a atendê-lo, assim se revezavam, quem vive o Inverno da vida compreende, de uma outra forma, a importância de cada gesto de calor, achava curioso que tão pouco falassem, talvez tudo já estivesse dito, ou talvez falassem numa outra linguagem, achava mais plausível esta possibilidade, sem dúvida, noutro andar, o terceiro, percebia um casal com um filho, no entanto, havia um quarto que nunca se iluminava, pela decoração, perceptível pela luz do dia, deduzia-se que de um outro filho, por vezes, sem nunca o iluminar, durante a noite, a mulher ali desaguava, curiosamente, também se encostava à soleira da porta, o corpo recortado pela luz proveniente do corredor atrás de si, a olhar os objectos, na secretária, nas prateleiras, mas, acima de tudo, continha aquele olhar soluçado perante a devolução do vazio, ela, de onde estava, da cozinha igualmente em sombras, ombro encostado ao frio de um azulejo, cigarro oscilante entre a boca e a anca, nunca percebeu a causa daquela divisão por iluminar, nem que idade teria o filho desde que a luz se deixou de acender, porém, é diário o desaguar daquela mulher ao vazio silenciado agora por iluminar, nunca por ali viu o homem (marido?), nem o outro miúdo, assim que a mulher virava costas, talvez num cansaço de conter olhares soluçados, fechava, num gesto contrariado, e com uma lentidão denunciada, a porta atrás de si. Era indesmentível a curiosidade nela suscitada pelo desaparecido habitante daquele quarto, colocava-se questões atrás de questões seguidas de possíveis respostas. Se tivesse outro feitio, talvez abordasse uma vizinha acerca daquela divisão por iluminar, não havia de faltar teorias e quem evidentemente detivesse a verdade dos factos, no entanto, ela não tem esse outro feitio… Preferia silenciar-se e observar, enquanto pensava no tanto de incomunicável que há em cada um, apesar da linguagem, dos afectos, do olhar, do gesto, há tanto em nós que permanece algures entre o silêncio do pensar e do sentir, e o tempo, esse rio incessante, apenas contribui para o avolumar dessa incomunicabilidade. Para a compreendermos, esta afigura-se uma teoria possível, a da insularidade, talvez ela se visse como uma ilha, com a sua própria geografia, fauna, flora, clima, daí a estranheza sempre que se deparava com um outro, ou talvez não fosse bem assim… Se nos detivéssemos, por fugazes instantes, a percorrer-lhe o rosto, enquanto ela olhava, do outro lado da rua, no terceiro andar, o desaguar daquela mulher ao vazio silenciado sempre por iluminar, perceber-lhe-íamos o desamparo, tal o tropel de emoções que a dominavam, por outras palavras, o incomunicável sempre procura a luz de um Sentido, e, naquele rosto, a dor olhada era também a sua dor, daí o recato da sombra, a carência de um apoio, na forma do frio de um azulejo ou de um cigarro oscilante entre a boca e a anca, por fim, o terror da consciência de um vazio… Quando o cigarro já um resto de cinza fria, sabia que tinha de regressar às divisões iluminadas de sua casa, no prédio em frente, a esta hora, ou estores corridos ou divisões sempre na escuridão, apesar da característica diária deste momento, para ela, era sempre lancinante ter de enfrentar o rosto dos seus, como se tivéssemos algo só nosso neste mundo, nem nós nos pertencemos, pensava ela, se assim fosse, o pensar seria um servo obediente, contudo, muito pelo contrário, o pensar caminha sempre à nossa frente, depara-se, na sala, com o quadro habitual de um dia de semana, ou de outro qualquer, há muito que, naquela casa, semana e descanso não se distinguem, ele sentado diante da televisão, quase adormecido, uma imagem tão cansada para si, por vezes, pensava nunca ter partido, como se fosse uma laje de um qualquer porto deste mundo, onde chovem dor e saudades de igual forma, as filhas, com um jogo, deitadas no chão, absorvidas como se nem amanhã, naquele estado só possível na meninice, nem se apercebem da sua entrada, no fundo, ela não se importa, dirige-se para o seu lugar, as coisas são assim, é da sua natureza, todos acabamos por ter um lugar, senta-se, ele nem entreabre um olho, mantém-se impassível, a televisão continua a debitar uma qualquer boçalidade, nada de novo, vivemos a era da estupidez, que estranhos desígnios nos conduziram a um tempo em que se valora o mais grosseiro, o mais estupidificante, será o prenúncio da morte da razão? Ela, agora, sentada, por escassos momentos, com a televisão, de facto, há ali qualquer coisa de hipnotizante, os olhos como viajantes sedentos daquela fonte iluminada, contudo, rapidamente se reorganiza, há muito que se distanciara da realidade que os outos tanto insistem em nos oferecer, como se de uma fatalidade se tratasse, é curioso, tantos caminhos no mundo e tudo a desaguar numa só perspectiva, não, ela virou costas a tudo isso numa noite esquecida de há tanto, as filhas ainda com um qualquer jogo, deitadas no chão, absorvidas como se nem amanhã, naquele estado só possível na meninice, cruza os braços, inclina-se para elas, com o rosto sorridente, por fugazes momentos, vê-se a estender a mão para lhes acariciar os cabelos, a imagem capitula simultânea à ideia, levanta-se, as filhas com o jogo, nem a olham, ele continua sentado diante da televisão, quase adormecido, como é óbvio, também não a olha… Regressa ao quarto. Antes de abandonar a sala, ainda pensou em dizer às filhas que já eram horas de se deitarem, o pensar é sempre plural em relação ao gesto, nada fez, limitou-se a sair, deixou tudo atrás de si incólume, como se nunca ali tivesse estado, no fundo, como se não existisse. Acontecia-lhe, muitas vezes, olhar o presente de uma varanda do passado, e pensar que o serão do hoje não diverge tanto assim dos serões idos em casa dos pais, o apartamento nos subúrbios, a vista para as marquises em frente, a rua semeada de carros, os barulhos vizinhos numa proximidade demasiado familiar, a saudade de horizonte que, como um veneno, enfraquece o sonho, ela no quarto na companhia de música, ou com um bloco de notas e uma caneta a desenhar ruínas de sonhos, sem saber um porquê, mas algo lhe ditava os passos da mão, se ao menos o bloco ainda por perto, mas nem isso, uma noite olhou-o e, num gesto que apenas é um grito calado por amor, aproximou-o de um isqueiro, abriu a janela, e deixou-o cair, numa lentidão encantatória, para o passeio, de onde estava, ficou a ver o papel, agora iluminado em tons de laranja, amarelo, azuis, a contorcer-se numa dor muito sua, até nada restar do que foi, a não ser a própria ruína. Na sala, a omnipresente televisão, os pais, o sofá, volta e meia, a vizinha da frente, quando o marido, polícia, de plantão, ela, coitada, não gostava de estar sozinha, muito menos de ver a telenovela sem ninguém para lhe responder aos comentários, o irmão somente uma ausência em crescendo, dizia aos pais, após o jantar, Vou só até ali ao café. Até já! A mãe logo, se dia de semana, Não te demores que amanhã é dia de escola, como resposta apenas o baque da porta e o eco apressado de degraus descidos à pressa, o pai nem isso, recostado numa ponta do sofá, embalado por aquele sotaque de outras paragens, que a televisão debitava incessantemente durante quase todo o serão. O irmão a tornar-se, com o tempo, um espaço por ocupar, à mesa, no quarto escurecido por um estore de costas voltadas para o dia, no carro, por fim, nas suas vidas, mal se lhe via o rosto, sempre velado por um livro, trocara a família pela tribo dos livros, talvez nessas paragens encontrasse compreensão, como se, num conjunto rectangular de folhas, estivesse a possibilidade de alguém nos ouvir… Há quem diga que sim. E ela, tal como agora, consigo mesma, lá fora, o mundo já uma noite imensa, um silêncio sobre as coisas que somente desperta gritos adormecidos. Fingia dormir, desde há tanto, talvez demasiado, sempre que ele entrava no quarto, ela, de costas voltadas, para o lugar vazio e frio que ele vinha ocupar, viajava ao sabor do seu pensar, o único possível, quando lhe percebia os passos, mantinha-se impassível, fechava os olhos, ou mantinha-os abertos, ele, regra geral, nunca acendia a luz, e revelava passos respeitosos, ela, por seu lado, nunca soube se o seu fingido sono fora percebido, cada um no espaço que o existir lhe destina, e aí edifica as suas muralhas face ao restante, mesmo que partilhe o lugar de onde se levantam os sonhos. Nessa noite, em particular, e não sabe bem o porquê, ela gostou que ele não se tivesse demorado muito. Chegou cerca de quarenta minutos depois. Talvez a visão, daquele quarto sempre por iluminar, no prédio em frente, a tenha abalado. É possível. Hoje, ela grata por aquele calor sentido nas costas. Basta-lhe sabê-lo ali. Não se pense que ele se lhe tornou indiferente. Nada disso! Tudo é sempre uma outra coisa. Conheceram-se através de amigos comuns há pouco mais de uma década. Ela andava em Belas-Artes, como podia andar noutra coisa qualquer, perdera-se muito cedo da vida, ou talvez nunca tenha chegado a entrar na carruagem do aqui, ele trabalhava nos correios, fora obrigado a apanhar com rapidez o comboio da vida, de facto, a fome acelera a compreensão das coisas, talvez o melhor estímulo para a ansiada maturidade, se eu olhava a vida, ele era um caminhante, olhar, caminhar, páginas opostas talvez de uma mesma folha, a última memória do pai data do seu oitavo aniversário, não tanto a imagem do pai, só reteve, como sempre acontece, a impressão, que mais não é que um todo resultante de inúmeras partes, no seu caso, uma voz, alegre, que se sobrepunha às restantes, aquele jeito sôfrego de lhe pegar ao colo, como se quisesse que ele crescesse rápido, a insistente mão pelos cabelos, que o chateava, por constantemente o despentear, por fim, a pistola, de fulminantes, prateada, que tanto o alegrou, o presente favorito do seu oitavo aniversário, talvez da sua meninice, muito brincou com aquela pistola, também foi o derradeiro presente do pai, e a memória da última vez que o viu, disseram, depois, que havia emigrado para a Venezuela, lá por casa não se falava nisso, certa vez, ouviu a mãe dizer a uma vizinha, Não me leve a mal, mas não comento ausentes, teria ele uns dez anos, contudo, percebeu perfeitamente de quem falava a mãe, é curioso, há várias velocidades para crescermos, mas é sempre a vida a escolher… Não se lembra por quanto, porém, antes de adormecer, ouvia, proveniente do quarto da mãe, uma dor chorada, nada o podia ferir mais, parecia-lhe ser uma dor incurável, o irmão, dois anos mais novo, aquém destas evidências, já dormia há muito, simultaneamente, ele aprendia o mundo enquanto dor. Certa tarde, a mãe regressou mais cedo do trabalho, era recepcionista num consultório dentário, ele e o irmão brincavam na rua com os miúdos vizinhos, entrou e saiu várias vezes do prédio. Nessa noite, perceberam que a fotografia do pai fora subtraída lá de casa, da mesa-de-cabeceira da mãe, passando pela camilha do corredor, até ao armário de vidro da sala de jantar. Nem vestígios. Como se a sua existência, pelo menos daquele mundo, tivesse sido apagada. Nem uma palavra foi dita sobre o sucedido. Sempre que o seu olhar o traía, derramando-se sobre um espaço onde, outrora, pontificava uma fotografia do pai, corrigia, de imediato, a direcção do olhar, e aguardava que o pensamento lhe seguisse os passos. Com o tempo, perceberia esta impossibilidade. Aos fins-de-semana, a mãe à volta do fogão, ouviram-na, diversas vezes, proclamar bem alto Aos meus filhos, não há-de faltar o essencial, e foi verdade, nunca lhes faltou comida na mesa, um tecto sobre as cabeças, roupa para o frio, e sapatos nos pés, daí que aproveitasse, todo o tempo livre, a fazer bolos para fora, começou com queques de manteiga, ao princípio apenas para a vizinhança, depois derivou para queijadas de leite, que foram igualmente bem acolhidas, ele, no que podia, ajudava-a, passava longas horas, por vezes noite adentro, sobretudo de Sábado para Domingo, com ela na cozinha, cumprindo ordens, Deita-me, ali, um litro de leite; Passa-me a colher de pau; Chega-me a manteiga; Despeja-me, naquela travessa, meio quilo de açúcar; o estado frenético em que a mãe se encontrava não lhe passou despercebido, como se toda aquela agitação servisse para não relembrar algo, no fundo, talvez lhe desviasse a direcção do sentir da única forma que foi possível, e, numa prece muito sua, suplicava que o pensar lhe seguisse os passos. Assim se conseguiu harmonizar o aconchego do estômago e cumprir com as impreteríveis exigências mensais que aportam sob a forma de envelopes. Com o tempo, o seu carácter prático começou a distanciá-lo da escola, sempre a velha questão, há várias velocidades para crescermos, mas é sempre a vida a escolher, a mãe percebeu-lhe a distância dos livros, assim sendo, ficou encarregado dos bolos, pelo menos, de Sábado para Domingo, a confecção já não se escondia das suas mãos, trazer o irmão da escola também era uma competência sua, por vezes, as compras, algumas vizinhas, no ócio da tarde, entre o fecha e não fecha a porta, mais uma palavra, outra que se recata, comentava-se que Aquele miúdo nem tempo tem para brincar… Não acha, vizinha? O que me diz disto? Em certas ocasiões, para se alimentar uma conversa, evitar que a porta se feche já, e olhemos o espelho do nosso vazio, verbalizamos as suposições mais recônditas que nos habitam, mesmo que se chamem, apenas, desconfianças, Sabe, nem sei como lhe pegar… É tão aborrecido que… Bom, aqui vai, mas, por favor, pela sua saúde, não comente com ninguém. Ouvi dizer que ela tem um, bom, chamemos-lhe ”namorado”. Dizem que já lhe fazia a corte ainda o marido por cá. É uma coisa antiga. Sim, um dos dentistas lá do consultório onde ela trabalha. Está a ver a coisa, não é? Agora que o marido desapareceu neste mundo de Deus, é bom de ver… Nada a impede… Parece que, depois do trabalho, se encontram numa pensão. Pois, exacto, ele é casado. No meio de tudo isto, só tenho pena dos miúdos. Sobretudo do mais velho, ainda tão pequenino, e já com o peso do governo de uma casa sobre aqueles ombrinhos tão tísicos… Já viu se não fosse ele? O que seria daquela casa? É ele que tem a responsabilidade de ir buscar o mais novo à escola. Onde é que já se viu isto? Sinceramente! Não, vizinha, por favor, isto não tem defesa possível. Coitada daquela criança! Falo do mais velho. O outro ainda é pequenino. Se tenho a certeza? Só falo do que sei! Assim se modela um esboço, o resto é sempre tarefa do tempo, de uma conversa ociosa de soleira de porta ao recreio da escola, nem dois dias, quando, na disputa sempre acalorada da bola, um colega sai magoado, ainda no chão, atira-lhe à cara, Vê-se mesmo que tens falta de pai! O que vale é que a tua mãe anda a trabalhar, e muito, para te arranjar um… Não acabou a frase, é natural, só quem perde é que pode compreender, na plenitude, aquilo que permanece, porém, não foram as palavras que o feriram, nem o facto de se reportar à sua mãe, foi o tom, desdenhoso e simultaneamente panfletário, como se aguardasse o primeiro revés para o golpear, de facto, não terminou a frase, um vigoroso e certeiro murro na cara interrompeu-lhe o verbo, apesar de ainda não se ter levantado, o resto decorreu como normalmente sucede nestes contextos, mais murros e pontapés trocados, uma assistência sedenta, projectos de os apartar, até que um adulto providencial põe fim ao acontecimento do dia, pelo menos, naquele recreio, foi de certeza. Decidiu, antes de sair da escola, nada contar em casa. De facto, somos seres muito curiosos, havia uma indesmentível centelha de orgulho em si, pela cena da tarde, afinal, defendera a honra de sua mãe, nada mais louvável, e só esperava, como é óbvio, algum reconhecimento por tal acto, contudo, ao chegar a casa, apenas o aguardavam recriminações, tudo se lhe desenrolou nos antípodas do expectável, a escola telefonara para o emprego da mãe a dar conta do sucedido, Achas bem, andares à pancada? Por acaso, és algum arruaceiro? É para isto que faço tantos sacrifícios? (Neste ponto, ele pensou em dar início à sua apologia, se, de facto, a mãe afirmava fazer tantos sacrifícios por eles, o colega insinuara precisamente o contrário, e num tom, lá está, aquele desdenhar panfletário que o inundou de cólera, onde nas entrelinhas sublimava, numa nitidez ofuscante, a distância entre os passos da mãe e os de uma qualquer via dolorosa, contudo, silenciou-se… A dúvida instalava-se!) Achas correcto? Sinceramente, diz-me: achas correcto? E, se faz favor, quando falo contigo, olha-me nos olhos! Escusas de fazer essa cara de enjoado! É uma vergonha! Repito: agora, deste em arruaceiro? Foi essa a educação que te demos? (A forma plural ecoou repetidamente pelas suas funduras, a educação que te demos, a educação que te demos, a educação que te demos, como se possuído por uma espiral obsessiva, olhou atentamente a mãe, para se certificar de alguma sombra de arrependimento por esta última questão, ou, em última análise, de consciência do que acabara de dizer, porém, nada encontrou, a não ser, diante si, uma máscara forçada de indignação e de cólera contida.) Foi essa a educação que te demos? Meu Deus, nesta altura, teria ele já uns doze anos, desde o oitavo aniversário que nada daquela insistente mão pelos cabelos, que o chateava, por constantemente o despentear, a pistola, de fulminantes, prateada, uma relíquia guardada com esmero, como se uma derradeira memória de alguém demasiado querido que partira, contudo, nada não é o termo correcto, porque fica sempre algo, afinal, todos temos um último porto de nome memória, e é para aí que tudo converge quando se dilui do mar visível. E houve tantos gumes da vida a relembrar aquela ausência: desde a compaixão carregada dos gestos e olhares dos vizinhos, aos longos telefonemas nocturnos da avó, era uma questão de minutos até se ouvirem os soluços descompassados da mãe, aquela cadeira obstinadamente vazia à hora das refeições, sempre que um olhar incauto por ali passeava, logo toda e qualquer conversa cessava, até que, numa tarde, a mãe tratou de afastar a cadeira para bem longe dos seus olhares e consequentes pensamentos, uma tentativa, coitada, talvez fosse sua intenção, de lhes higienizar a alma, o dia do pai, tão celebrado nas escolas, que, para eles, apenas constituía uma tortura anunciada, começava, logo pela manhã, com a indecorosa e repetida exposição da palavra pai sob quase todas as formas sensoriais, houve anos em que chegaram a pensar afundar-se numa qualquer forma de paternidade, tal a cadência obstinada com que ouviam o vocábulo, e a pergunta fatal, a que logo se seguiam outras, quando, ao lado dos colegas uma figura que, para eles, apenas uma impressão cada vez mais esfumada, sempre sós perante quem celebrava uma incompreensão, E o teu pai? Não veio porquê? Por fim, o limiar de uma funesta conclusão, Afinal, tens ou não pai… Na ânsia de perceber o ponto de partida, seja do que for, regra geral tendemos a recuar, recuar, recuar, e acabamos por passá-lo despercebidamente, tal a voragem no recuo, o carácter prático, que muitos salientam ser uma qualidade sua, mais não é do que uma consequência da forma como ele teve de pegar na vida. Cansado de assistir a incompreensões celebradas, quase como se o agrilhoassem para assistir a um filme, falado num idioma obscuro, sem legendagem, fê-lo desgostar destes contextos, as repetidas chegadas tardias da mãe, tudo por fazer em casa, o auxílio ao irmão, ir buscá-lo à escola, desenrascar refeições, acentuou essa sua visão do mundo enquanto um lugar desordenado, e, em adulto, quando procurou alguém para caminhar a seu lado, foi no olhar de minha irmã que se demorou, ela apreciou essa pausa, a primeira troca de frases, os primeiros passos a dois, lembro-me quando o levou lá a casa para o apresentar, percebi o agrado de meus pais, não obstante a sua simplicidade de horizontes, tanto a vida lhe subtraíra, porém, ele aprendera uma singular arte: a de ouvinte. No seu contexto laboral, compreendera que todos têm sempre algo por dizer, calamos tanta coisa, até que, um dia, o potencial receptor já uma memória, e a frase permanece suspensa em nós, numa crescente amargura por não ter sido ouvida no destino. Davam longos passeios, não creio que povoassem muito os silêncios, minha irmã nunca deixou o leme do acontecer, pelo contrário, conduziu as coisas sob os ditames dos seus caprichos, encontrara a personagem ideal para o seu guião, percebia-se-lhe, por vezes, uma expressão enfadada pelo excesso de atenção que ele lhe dispensava, no fundo, nada demovia aquela expressão do seu rosto, parecia-lhe inata, seguiu-se o namoro, o casamento esteve quase para acontecer no civil, por vontade dela, mas foi adiado, já não me recordo porquê, depois a primeira filha, a segunda, pelo meio ainda perdeu um, ia para o quarto mês de gestação, foi muito estranho, nada o faria prever, meus pais pouco me adiantaram, também não me interessou particularmente, nunca lhe compreendi as estigmatizações, há outras formas de sublimarmos dias em que o demónio resolve caminhar pelo mundo dos homens.

Foi num dia de semana, talvez uma quarta-feira, ele a entrar em casa, com as miúdas, eu a subir uma colina, a distância a aumentar, a aumentar, incessantemente, as suas vozes só um longínquo eco, frases entrecortadas com soluços (Meu Deus! Meu Deus! O que foste fazer?), talvez uma das miúdas à porta do quarto, a assistir ao desaguar do meu ser, espero que não, sei que não me irão perdoar, pelo menos tão cedo, um dia, bem para a frente, aos primeiros grisalhos, é quando as desilusões começam a desequilibrar, para o seu lado, o saldo de uma vida, iniciar-se-á o processo de compreensão, quanto a ti, suprimimos, por uns tempos, as nossas solidões, contudo, a minha regressava, creio que, de facto, nunca partiu, sempre aqui esteve comigo, acompanhou-me em cada passo, tenho de ir, ouço minha Avó a chamar-me, está ali, um pouco mais acima, talvez precise de ajuda com a lenha.

Pedro de Sá

(08/10/17)