Livros

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quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

domingo, 20 de dezembro de 2020

O céu não tem lugar na terra



Hoje nada foi como havia sido. Não houve batalhas com o relógio, nem pressas, nem aquelas corridas olímpicas e a medalha do transporte desejado, tudo um torvelinho e, quando sombras extenuadas na calçada, projectadas por sorumbáticos candeeiros, o mundo sobre os ombros. E ainda os filhos para ir buscar à escola, a correr à sua frente, ela no espanto daquela demasiada energia, como se a súbita liberdade fosse vitamínica, ela a arrastar-se atrás deles, as advertências entrecortadas com a carência de fôlego, a distância a crescer, por fim, um berro imobilizador. Segue-se a janta, ele aparece uns minutos antes, não há perguntas, ela prefere-o entre copos (talvez demasiados) e amigos, que de volta aos braços daquela, com rosto de brisas e cintura de Verão, que o ausentou uns meses de casa. Sim, por ali andou, ela chegou a recear… Mas o lar prevaleceu… Grande ilusão! No fundo, ela conhece a verdade, mas soterrou-a para voltar a caminhar. Quantas verdades jazem a nossos pés? Foi ela que se cansou. Afinal, por quanto tempo um rosto de brisas contempla um olhar outonal? Por conseguinte, a cintura invernosa reaprendeu os passos do lar. Assim que ouviu a chave, nessa noite, ela desligou o candeeiro, encostou o rosto à almofada para lhe depositar a tristeza salgada, fingiu-se adormecida, e sorriu. Ele deitou-se a seu lado, numa lentidão algures entre o receio e a vergonha. Os dias seguintes pautaram-se por um silêncio de reaprendizagem. Sim, ninguém se levanta em voz alta. Após umas semanas, e com as brisas já pretéritas, por ali as coisas no seu lugar. Até que numa tarde, ela encontra-o à mesa da cozinha, um envelope no chão, como se aquela brancura rectangular encerrasse um grito, a olhar uma carta no abandono de quem já não ouve amanhãs. A partir dali, passou a atrasar-se cada vez mais para a janta. Os passos do lar faziam-se entre cantigas e tropeções. Por fim, num certo dia, um fémur cedeu. No branco leito hospitalar, fez votos de abstinência. Ela, de novo, em sorrisos, só o queria de regresso. Já ele se arrastava, entre o quarto e a cozinha, compassado pelo gemido metálico das muletas, quando ela surge inesperadamente para o almoço. Ele vira-se surpreso: Então? Mas a surpresa rapidamente desvanece-se-lhe do rosto, perante aquela expressão de terror, de quem se sabe na despensa da vida, que ela ostentava. Quase esqueceu as muletas para ir ao seu encontro. Ela demorou na procura das palavras, sempre que os soluços permitiam, uma frase desaguava. Estranhou as colegas à porta da fábrica, logo nessa manhã, havia encomendas anteriores para finalizar, a cancela da entrada para baixo, não lhe passou despercebida, como se aquele vermelho e branco, hoje, a ferissem de uma forma singular. Um grito uníssono ecoava daquelas dezenas de gargantas (Deixem-nos trabalhar! Deixem-nos trabalhar!), ela acrescentou numa surdina tímida, como se um eco para si (Temos filhos… Temos filhos…). Não se recorda de ter regressado. Por vezes, caminhamos de costas. Isto acontece quando não aceitamos o destino, e o pensar foge dos movimentos. E agora?, foi a questão de dias naquela casa. E agora? Logo emergiu uma outra guerra com o relógio, nos dias seguintes. Parecia que os ponteiros se haviam enferrujado, tal a relutância de movimentos. Sim, muitos dias cabiam num dia. Familiarizou-se com diversas rotinas. Ele, com o tempo, esquecia-se, cada vez mais, das muletas. Iam buscar os filhos juntos. Por vezes, davam as mãos. Afinal, viviam a noite da vida. E, pelo menos, não se queriam perder.


quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

Há noites em que os móveis gritam


 


Há dias assim. Em que, na sombra de um corredor, a luz de uma memória. E eu passado, sim, o incómodo presente, como algures uma dor que inquieta, latejante, a doçura do ido, talvez por compreender que não a saboreei, ando sem me aperceber, ora num lugar, já noutro, os cenários diferem, mas eu comigo, como se uma praga, sento-me, no cadeirão em frente, senta-se-me o pensar, olha-me, os ombros curvam-se-me, e agora? Lá fora, um outro cenário, mas, diante de mim, naquele cadeirão, aquelas ideias, quase orgânicas, afundam-se-me olhos adentro, como se aguardassem o mais ténue movimento para me seguirem. Alguém se me dirige, naqueles cumprimentos que, de tão forçados, quase ecoa um debitar calórico pelos ares, ouço frases de calçada, surpreendo-me no mesmo registo, como se, é isso, eu um outro, corro atrás da esterilidade linguística, afinal, eu não sou isso, mas algo se lança aos meus pés, eu por terra, continuo num automatismo de passeios, é verdade, estou derrotado. Neste momento, rodo a chave na inglória de mais um regresso silencioso. Dentro deste lugar que ocupo, continuo com gestos não de mim. Deixei de acender as luzes. Melhor assim. Na mesa, de madeira, redonda, ainda jaz aquela carta. Quantas vezes a reli? Talvez movido pelo espanto da incompreensão… À mesma hora, hoje, vou pegar-lhe de novo. Foi há quanto tempo? É estranha a nossa relação com os dias. De repente, sem que nos apercebamos, perdemos o rasto! Para onde foram? Bem sei… Mas, sim, a carta, chegou a sua hora. Mudança é sinónimo de velocidade. Sim, o de repente… E eu com a imagem de um corpo a mergulhar: de um mundo para outro. Ela a avisar-me com olhares e atitudes. Eu a não acreditar. Ela com a pressa, eu com passos de bengala. Fica mais um pouco esta noite!, dizia-lhe para o fim, ela Sabes que não posso! Eu a acreditar, talvez o trabalho, umas horas extra no escritório, uns trocos a mais sempre benéficos para o sorriso, mas nem trocos nem sorrisos de volta… Apenas umas linhas em cima de uma mesa, de madeira, redonda. Logo esta noite. Eu com a carta. Esta noite não! Tento o telefone. O piar prolonga-se em mim como o eco de um não arrastado. Por fim, capitulo. Ela à minha frente Tenta perceber. És uma pessoa especial. Foi uma honra ter-te conhecido. Mas… Já não diante de mim, apenas uma carta. Regresso ao telefone, aos piares arrastados, ecos prolongados de uma voz ausente, ela a insistir Guardo-te como uma boa memória, mas eu presente, nunca passado, e ela já no futuro, desencontros temporais, insisto Fica mais um pouco. Vamos tomar um café, ela, Por favor, não insistas. Assim nem uma boa recordação serás. Levanta-se, dá uns passos, à minha frente, apenas o abandono do meu pensar, ao meu redor, o indistinto do tempo a avolumar-se, eu Pensa bem. Anda, vamos lá tomar um café. Ela já na porta, o singular baque de menos uma entrada, diante de mim, sentado, o vazio que me ocupava, agora, uma vez mais, insisto com estes piares suplicantes, até que se silenciam em reticências sonoras. Pouso a carta com a mão fria. Talvez tenha despertado. Há noites que se fizeram para não estarmos sós. Mas, nesta casa, demasiado barulho: o baque de uma porta, os insistentes piares arrastados, a recusa de um café (Foi uma honra ter-te conhecido), eu Onde vais? e a resposta em forma de som de entrada desvanecida. À minha frente, já nada. O som do relógio da vizinha. Que horas são? Não as contei. Costumava fazê-lo. Olho, agora, a mesa, de madeira, redonda. Não há nada em cima. Quando é que ela decidiu partir? Sim, percebo. Ela disse-me tudo, entre olhares hesitantes e palavras desviadas. Eu Fica mais um pouco. Já é de noite. Perdi o tempo. Fecho os olhos. Talvez, sim, é verdade, sinta um calor próximo de mim.


segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Não saias do meu horizonte


Sempre que ele chegava a casa, no cumprimento da oração diária, via-a absorta, a olhar para o nada de uma parede, sentada à secretária. Diante dela, um caderno de linhas aberto, algumas folhas já escritas, ele a anunciar-se (Já cheguei!), ela a sorrir-lhe da distância, mas permanecia imóvel, de caneta na mão. Lá fora, a luz numa diagonal crescente, ele a regressar da cozinha, com dois copos na mão, a convidá-la para a varanda, ela acede, segue-o num prolongar demasiado de movimentos, ainda um último olhar para a caneta. Agora, cada um na sua cadeira, lado a lado, ele a olhar para as ruas, em movimento de regresso, ela com o indistinto do horizonte, como se aí repousasse de alguma forma, sim, notava-se-lhe alguma leveza neste momento, ele também se apercebeu disso, encetou um diálogo de circunstância, a ausência de palavras potencia os ecos do mundo, ela respondia em monossílabos cortantes, e, de novo, a perder-se nas lonjuras. No fundo, ainda estava com a mesa, e a olhar através da caneta, perdida com aquele enredo de palavras (sim, qual o adjectivo para rematar aquela frase?), ele O que é hoje o jantar?, ela Sabes que tenho o mundo dentro de mim?, mas esta questão repousou-lhe nos lábios, afinal, o mundo dele um jantar, e ela a perseguir adjectivos, para expressar um existir demasiado. Ele, agora, demora-se a olhá-la, e questiona-se Quando te perdi? Mas é uma questão cansada, de quem apenas existe, e carece mais de jantar do que das lonjuras, por fim, levanta-se, ela permanece, uma mão segura o copo, a outra com dedos nervosos à volta da boca, como se dedilhassem uma melodia pontuada por palavras e notas musicais em harmonia. Na cozinha, ele abre o frigorífico, e avalia as possibilidades da refeição nocturna. Opta pela via da rapidez. É a escolha destes dias. Enquanto o micro-ondas se cumpre, telefona a um amigo para partilhar a angústia sentada na varanda, num silêncio de distâncias. Ela ainda ali, dedos à volta da boca, na outra mão a bebida intacta, vira-se para trás, o interior da casa difuso, a luz do mundo, aquela hora, já não diagonal, mas sim rasa, apesar de tudo, apercebe-se da silhueta dele, Sabes, tenho o mundo dentro de mim? Do interior, apenas a mecânica distante do micro-ondas. Ela, de súbito, sorri. Regressa para junto da caneta. Ele a mascarar as lamúrias telefónicas. Vê-a sentar-se, e a caneta num galope de planícies iluminadas, o semblante num sorriso, o dele em espanto, da cozinha, o aviso de jantar pronto, hesita, mas escolhe a prática. Ela noutro tempo, noutro lugar, entretanto, à mesa, ele a olhar o prato em frente que arrefece, o seu quase vazio, olha a porta, aguarda pela silhueta que se curva para uma folha de papel, de repente, pega naquele prato arrefecido, vai até à sala, e coloca-o na secretária, o galope afrouxa, talvez na planície agora uma luz diagonal, pousa a caneta, olha-o, o rosto dele a chamá-la, ela levanta-se, dá-lhe a mão, dedos entrelaçam-se no reforço de uma união sentida, o rosto dela pede-lhe compreensão, ele hesita no cansaço, sim, a fadiga, ter um prato arrefecido como horizonte ao jantar, ela reforça a união de dedos, deposita-lhe o rosto no peito, e murmura inaudivelmente Sabes, tenho o mundo dentro de mim, assim ficam durante algum tempo. Enquanto, lá fora, as luzes dos homens turvam o mapa dos céus.