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segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Não saias do meu horizonte


Sempre que ele chegava a casa, no cumprimento da oração diária, via-a absorta, a olhar para o nada de uma parede, sentada à secretária. Diante dela, um caderno de linhas aberto, algumas folhas já escritas, ele a anunciar-se (Já cheguei!), ela a sorrir-lhe da distância, mas permanecia imóvel, de caneta na mão. Lá fora, a luz numa diagonal crescente, ele a regressar da cozinha, com dois copos na mão, a convidá-la para a varanda, ela acede, segue-o num prolongar demasiado de movimentos, ainda um último olhar para a caneta. Agora, cada um na sua cadeira, lado a lado, ele a olhar para as ruas, em movimento de regresso, ela com o indistinto do horizonte, como se aí repousasse de alguma forma, sim, notava-se-lhe alguma leveza neste momento, ele também se apercebeu disso, encetou um diálogo de circunstância, a ausência de palavras potencia os ecos do mundo, ela respondia em monossílabos cortantes, e, de novo, a perder-se nas lonjuras. No fundo, ainda estava com a mesa, e a olhar através da caneta, perdida com aquele enredo de palavras (sim, qual o adjectivo para rematar aquela frase?), ele O que é hoje o jantar?, ela Sabes que tenho o mundo dentro de mim?, mas esta questão repousou-lhe nos lábios, afinal, o mundo dele um jantar, e ela a perseguir adjectivos, para expressar um existir demasiado. Ele, agora, demora-se a olhá-la, e questiona-se Quando te perdi? Mas é uma questão cansada, de quem apenas existe, e carece mais de jantar do que das lonjuras, por fim, levanta-se, ela permanece, uma mão segura o copo, a outra com dedos nervosos à volta da boca, como se dedilhassem uma melodia pontuada por palavras e notas musicais em harmonia. Na cozinha, ele abre o frigorífico, e avalia as possibilidades da refeição nocturna. Opta pela via da rapidez. É a escolha destes dias. Enquanto o micro-ondas se cumpre, telefona a um amigo para partilhar a angústia sentada na varanda, num silêncio de distâncias. Ela ainda ali, dedos à volta da boca, na outra mão a bebida intacta, vira-se para trás, o interior da casa difuso, a luz do mundo, aquela hora, já não diagonal, mas sim rasa, apesar de tudo, apercebe-se da silhueta dele, Sabes, tenho o mundo dentro de mim? Do interior, apenas a mecânica distante do micro-ondas. Ela, de súbito, sorri. Regressa para junto da caneta. Ele a mascarar as lamúrias telefónicas. Vê-a sentar-se, e a caneta num galope de planícies iluminadas, o semblante num sorriso, o dele em espanto, da cozinha, o aviso de jantar pronto, hesita, mas escolhe a prática. Ela noutro tempo, noutro lugar, entretanto, à mesa, ele a olhar o prato em frente que arrefece, o seu quase vazio, olha a porta, aguarda pela silhueta que se curva para uma folha de papel, de repente, pega naquele prato arrefecido, vai até à sala, e coloca-o na secretária, o galope afrouxa, talvez na planície agora uma luz diagonal, pousa a caneta, olha-o, o rosto dele a chamá-la, ela levanta-se, dá-lhe a mão, dedos entrelaçam-se no reforço de uma união sentida, o rosto dela pede-lhe compreensão, ele hesita no cansaço, sim, a fadiga, ter um prato arrefecido como horizonte ao jantar, ela reforça a união de dedos, deposita-lhe o rosto no peito, e murmura inaudivelmente Sabes, tenho o mundo dentro de mim, assim ficam durante algum tempo. Enquanto, lá fora, as luzes dos homens turvam o mapa dos céus.

 

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