Livros

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quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

A quem nasce pobre só resta o sonho

 


Antes de a questão perfurar a fragilidade inata do silêncio daquele lar, já ele a aguardava, ainda sentado, com uma revista aberta, mas a olhar, sem ouvir, a televisão, notícias, talvez porque sempre as mesmas, desemprego, crise, portas que se fecham, gente com malas a caminho de um qualquer lado, onde tecto sobre a cabeça e um pouco de pão na mesa, e sempre aquele sublimado medo, medo, medo a perpassar por entre as palavras, como se cansara disso, foi talvez quando, por fim, percebeu que tantos caem para necessariamente outros, poucos, muito poucos, se guindarem, uma história que caminha à mesma velocidade que o homem, de repente (Já estás pronto?) a voz dela em cada canto da casa, não era difícil, uma salita com vista para um diminuto quarto, num dos lados, um balcão divisor a proclamar o espaço de qualquer coisa relacionada com refeições, a timidez branca de uns escassos electrodomésticos a balbuciar a sua existência por entre os dois únicos bancos altos visíveis, ele levanta-se em nítida contrariedade, responde-lhe com um sumido Sim, dirige-se para a porta, a perna esquerda a demorar-se mais, como se o sapato em lentos acenos de adeus ao chão, aquela queda há uns anos, ela ainda hoje lhe censura a desatenção, coitado, como podia adivinhar uma sarjeta sem grade, a perna chão adentro, a chuva a turvar e a pesar o mundo, o corpo para diante, e uma fractura quase exposta, por ali ficou caído, nem ousou mexer-se, talvez por ter dado ouvidos aquela voz sem rosto que nos habita desde sempre, ainda houve vultos que passaram sem o olhar, alguns até estugaram o passo, enquanto ali esteve, de rosto na calçada, lembra-se de um carro, a mulher a aperceber-se de que ele, apela ao marido com voz e gestos, por segundos, ele reduz a marcha, mas a chuva crescente, o receio de qualquer coisa indefinível, o incómodo somado a uma inesperada perda de tempo, tudo isso fê-lo retomar o destino estrepitosamente, não obstante os enérgicos protestos da mulher, no banco de trás, o olhar da filha impassível, teria uns oito anos, ouvia o interior, mas nem pestanejava para aquele pedaço de passeio, quando o pai decide virar costas para o que lhe restava de humanidade, a criança ergue a mão de encontro ao vidro, em adeus, em perdão, em qualquer coisa que, do alto dos seus oito anos, fizesse aquele carro voltar atrás, tudo em vão, restou-lhe, num gesto, dizer o possível, ele percebeu, e agradeceu, foi talvez nesse momento que as dores ameaçaram submergi-lo e algo se desligou nele, o saber da natureza, acordou com a voz dela, ansiosa, preocupada, as luzes do tecto sucediam-se com rapidez, percebeu-a ofegante para o acompanhar, seguiram-se mais dez semanas de hospital, meses de fisioterapia, filas intermináveis de comprimidos, para não falar de dores, do abrupto adeus à privacidade, o seu único suporte nela, apesar de cada frase traduzir uma censura indizível pela sua distracção, já estavam naquela fase da vida de se resignarem com a paisagem da cama com um só travesseiro, ele sempre se sentiu incapaz de suster olhares, em diálogos preferia o horizonte dos sapatos, embora educado, respondia sempre, porém, nunca gostou de olhares incisivos, sentia que lhe despiam os pensamentos, para não falar daquele tipo de gente que gosta de agarrar o antebraço e sublinhar cada frase com uma rajada de cuspo, ela, pelo contrário, não padecia de escassez verbal, mas desde muito cedo se habituou a demorar na cozinha, e o facto de os pais pasteleiros só contribuiu, as formas cedo começaram a arredondar-se, a mãe ainda procurou travar, mas o pai Deixa a miúda! Coitadinha! Não vês que está em idade de crescimento? A mãe não se ficava Só se for para os lados! Talvez o seu espírito replicador fosse uma herança materna, a certa altura, já na adolescência, o pai a insistir com o médico para que lhe receitasse vitaminas, achava-a fraquita, o médico a ajeitar os óculos, a compor-se na cadeira, a responder em espanto O senhor só pode estar a brincar… Ela precisa é de fechar a boca à mesa! Não se fique com uma ideia errada, ela era forte, mas não excessivamente, depois, houve a doença do pai, primeiro, da mãe, a seguir, o tempo sempre desconheceu a palavra tréguas, quando se apercebeu, já ia bem lançada nos trintas, e, em verdade, nunca houve ninguém que a fizesse suspirar à lua e sonhar ao sol, conheceram-se na estação dos correios onde ela trabalhava, ele ia lá regularmente por ser assinante de uma revista, começaram a trocar impressões por causa do custo das coisas, da revista, dos selos, ela por trás de um balcão, seria excêntrico se ele aí procurasse um horizonte de sapatos, também não corria o risco de ela lhe agarrar o antebraço e de um dilúvio de cuspo, apesar da revista mensal, as conversas, de mês para mês, somavam frases, até que um encontro inesperado na bicha do supermercado, ele cavalheiro a deixá-la passar, ela agradada e nesse dia como precisava de desabafar, um desses dias em que percebemos que o mundo não faz sentido, sobretudo se for a paisagem de uma cama com um só travesseiro, de novo, a voz dela em cada canto da casa (Já estás pronto?), ele abre a porta, deita um olhar de saudade à revista pousada no braço do sofá, continua a chegar, agora à caixa-do-correio, todos os meses, sabe ao que vai, três horas de montras, ela a debitar o que gosta, por ora, a carteira só permite o verbo, a perna esquerda nem isso, no entanto, enquanto vê as cores das novidades, ela sonha, e, ao regressarem, pelo menos, a paisagem do mundo já se pinta com uma cama e dois travesseiros.

segunda-feira, 25 de dezembro de 2023



 ... a nossa compreensão das coisas é muito limitada, sempre vemos o mundo da ilha de nós...

in O lento esvoaçar das cortinas pela manhã

sábado, 16 de dezembro de 2023

Palavras para quê? É um astronauta português!

 



A primeira palavra que o ser-humano aprende, ao contrário do que muitos pensam, é Não. E porquê? Porque é da nossa natureza reagir perante a adversidade, quando, ao longo da vida, se ouve poucas vezes o Não, está potenciado o cenário para a indolência, preguiça, irresponsabilidade, e demais companheiras de curtas viagens… Hoje resolvi contar, nem por acaso, a história de uma personagem que tão pouco contemplada foi com o mágico Não, mais novo de meia-dúzia de irmãos, centrou em si, como habitual neste contexto, todo o mimo e atenção possíveis, com o Não diluído do horizonte, só resta mesmo empurrar a vida com a barriga, que, nem por acaso, se avolumou, de forma proporcional, ao somar das décadas, o liceu ficou por completar, porém, este facto logo sublimado por uma postura muito comum naqueles a quem os livros inclinam a cabeça para o chão do mundo: a arrogância do intelectual de pacotilha! Era vê-lo, rua acima, rua abaixo, com um volume, denso o suficiente, para não passar despercebido à vista alheia, quem ousa perguntar, ao portador de tal tijolo de letras, pela escolaridade? Pois, de facto, uma questão falaciosa, só um espírito elevado, guindado às mais intrincadas elucubrações do pensar, poderia carregar tal volume, durante meses, e meses, e meses, e meses, era vê-lo, rua acima, rua abaixo, com um volume, denso o suficiente, para não passar despercebido à vista alheia, debaixo do braço, se, por acaso, um incauto o questionasse se estava a gostar, olhava-o com o sorriso numa demasia artificial e uma expressão de desdém que, em silêncio, verbalizava: “Mas o que é que tens a ver com isso? Trago isto e pronto! Faz parte da indumentária, como o cachecol, fica bem e pronto! Daqui a pouco ainda descobre que não li uma linha, queres ver…” O tempo foi-lhe balsâmico neste particular, adicionou à expressão de desdém o clássico: “Esquece, isto não é para ti!” Uma vez mais: “Assim resolvo toda e qualquer possível dúvida destes intrometidos, pronto, já não chateiam mais, pronto…” Lá teve de aligeirar o peso daqueles tijolos debaixo do braço, a escoliose pressentia-se, assim passou para um pequeno rectângulo, e, com gáudio, anunciava a todos: Isto é um ganda filme, isto é um ganda filme, mas, esquece, não é para ti”, um dos bens mais raros da humanidade é a inteligência, por conseguinte, a maioria calava-se e acreditava piamente estar perante uma sumidade da sétima-arte, se aconselhava “Esquece, não é para ti”, o melhor seria respeitar, afinal, até estava a salvaguardar o bem-estar dos espíritos alheios, não se fossem perder nos labirintos de tão complexas obras, o seu trabalho, bom, na realidade, não é o conceito mais correcto para esta personagem, em verdade, só lhe foi apresentado há pouco, como dizia, passava umas horas do seu dia num negócio providenciado pelos pais, entrava e saía à hora que lhe aprouvesse, era vê-lo distribuir as máximas doutas: Isto é um ganda filme, isto é um ganda filme, mas, esquece, não é para ti”, como se milho pelos pombos, com o sorriso numa demasia artificial e uma expressão de desdém, até a indumentária procurava sublinhar o traço de irreverência, um James Dean com meio-século de atraso, oscilava entre umas jardineiras, com uma alça só abotoada, aqui está indubitavelmente sublinhada toda e qualquer originalidade, ou um calçado-plástico, geralmente usado por tarefeiros hospitalares, com os anos,  e a escoliose a acentuar-se, os tijolos passaram a ser trazidos numa malinha a tiracolo, já não valia a pena exibi-los, toda agente, nas imediações, o reconhecia como uma sumidade, da literatura ao cinema, desde que não lhe falassem de escola, habilitações-literárias, e afins, pois, o tal Não, mas isso é para os desvalidos do pensar, esses jamais podiam articular máximas como: “Isto é um ganda filme, isto é um ganda filme, mas, esquece, não é para ti”; no meio de tanta originalidade, a verdade é que a sua mundividência e consequentes opiniões estavam ao nível do metropolitano, a verdade, para ele, era um cabeçalho de jornal, apenas e só, mas calma, não podemos esquecer as jardineiras com uma só alça abotoada; os lanches também obedeciam a todo um ritual, ia à mercearia mais próxima abastecer-se de pão e queijo-fresco, dispunha tudo em cima da mesa, e para ali ficava, numa minúcia de cirurgião, a cortar as fatias, que logo iam rechear os pães previamente abertos, sem dúvida o momento sagrado da sua tarde, a vida, no seu caprichoso caudal, tarde ou cedo, irrompe na vida de cada um para ensinar o Não, esta personagem, como é natural, não fugiu à regra, se antes hostilizava, como podia, geralmente através da maledicência oca, sempre pelas costas, quem lhe procurava explicar o significado de Não, agora não teve alternativas, lá se fez ao caminho, para longe, muito longe, do rua acima, rua abaixo, dizem que foi para o exterior, contudo, e em abono da verdade, devo realçar que manteve o seu traço de originalidade, parece que o avistaram com um fato-de-astronauta, caro leitor, peço desculpa, mas só me resta dizer: “Esquece, não é para ti.”

sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

A ascensão dos medíocres

 


Não me lembro de como e onde tudo começou, no entanto, de repente, percebo-me de caneta na mão, um caderno de linhas aberto à frente, sozinho numa secretária, à minha volta mais secretárias, também ocupadas por uma só figura, era uma sala comprida, para o rectangular, do lado esquerdo, três grandes janelas envidraçadas iluminavam quanto baste todo o espaço, via uma grande ardósia sem qualquer escrito, e um sujeito, com um circunspecto ar professoral, deambulava, de mãos atrás das costas, por entre nós, regresso-me na hesitação compassada de idoso, já me lembro, foi à hora de jantar, meu pai a irromper, casa adentro, um prospecto na mão, a chamar-me, Já viste? Já viste? É a tua grande chance! Eu hesitante entre a sua entusiasmada expressão, os gestos largos, e, só no fim, a perceber-lhe o prospecto, ele a assentar as grandes mãos sobre os meus ombros, sempre que isso sucedia, diante de mim só a palavra responsabilidade, Percebeste? É a tua grande chance! Nisto, a estender-me o prospecto, que comunicava um concurso literário, o vencedor de uma composição, de tema-livre, era premiado com estudos pagos num país qualquer, confesso que já não me lembro qual, ao contrário de meu pai, permaneci em mim, numa qualquer zona indistinta entre o conforto de saber que uma porta se abre e o desconforto de uma voz longínqua (ou próxima?) que sussurrava insistentemente ser para outro, creio que minha mãe compreendeu os passos do meu pensar, nunca lhe vi o tal prospecto nas mãos, mas algo se colocara em movimento, e eu sabia que teria de o enfrentar, e quantas vezes meu pai o relembrou, ao assentar as grandes mãos sobre os meus ombros, sempre que isso sucedia, diante de mim só a palavra responsabilidade, Percebeste? É a tua grande chance! Desde o dia em que vi o prospecto, até à data do concurso, passou cerca de um mês, muitos foram os temas, durante esses cerca de trinta dias, que me passaram pela cabeça para a composição, actuais, passados, da minha vida (mas que interesse poderia ter a minha vida? Que experiências, com os meus quatorze anos, teria para partilhar? Ou para reflectir?), do meu bairro, sobre os meus pais, a minha escola, o beijo roubado, naquela tarde de chuva, à… Não, ela podia não gostar que… Pois, é melhor nem falar nisso, ainda pensei no meu primo, que emigrou para longe, foi, mais ou menos nessa altura, que tive a minha primeira lição com o mestre tempo, cerca de uma semana antes do grande dia, cansado dos gestos largos do meu pai, de ver, diante de mim, a palavra responsabilidade, enquanto as suas grandes mãos assentavam sobre os meus ombros, de não encontrar um tema para preencher, com dignidade, uma folha vazia, do olhar cúmplice da minha mãe, mas que apenas me devolvia o quão perdido estava, resolvi adormecer para o mundo, os meus pais nem estranharam que me tivesse deitado ainda resquícios de dia lá fora, atribuíram aos nervos, afinal, aproximava-se o dia, no meio de tudo isto, sempre achei curioso que nunca me tivessem perguntado que tema escolhera, não raras vezes, os dias ensinam a desaprender o essencial, por isso, tanto se cala, e depois, muito depois, tanto o silêncio grita, não adormeci logo, ainda umas voltas na cama, e, num repente, percebi que tema iria apaziguar o vazio de uma folha, sorri-me, o meu pensar já se podia levantar e pegar na sua mala, estava cheia, e a viagem adivinhava-se longa, o concurso ia dos doze aos dezasseis anos, era promovido pela câmara, havia dois da minha escola e três que conhecia de vista, também vieram miúdos de localidades próximas, dispúnhamos de duas horas, só precisei de uma, mas não podíamos sair antes, à porta, os meus pais e a ansiedade, assim que me viram, de novo, as grandes mãos sobre os meus ombros, eu a soletrar responsabilidade, Então, como correu? O que te parece? Procurei mitigar-lhes o nervosismo, respondi que Correu como esperava. Melhor não podia ter sido. Ficaram felizes com a luz do meu olhar, que traduzia, na perfeição, a confiança das palavras, os resultados só dali a seis semanas, confesso que, nesse período, o tempo pareceu sentar-se num qualquer banco de jardim, como um idoso que procura a sua sombra de dias idos, para saber-se hoje outro de um antes tão amanhecido, o de antes em energia, o de hoje em prudência, se alguma vez se pudessem encontrar… Os resultados chegaram por carta, meu pai, claro, não resistiu a rasgar nervosamente o envelope, não obstante as súplicas da minha mãe, que lhe relembrava ser o meu nome a ilustrar o destinatário, pelo menos, teve o cuidado de gritar o meu nome, por duas vezes, corri para a sala, e acompanhei o retirar da missiva do rasgado envelope, percebi de imediato o contexto, e o olhar da minha mãe, que, curiosamente, se derramava, aflito, sobre mim, nem por uma vez se desviou para o conteúdo do envelope, era só uma folha, com os nervos, o meu pai deixou-a escorregar das mãos, apanhou-a num ápice, eu olhava-o de respiração suspensa, enquanto sentia o olhar abraçado que minha mãe me dirigia, a expressão de meu pai tornou-se invernosa, atirou a folha sobre o tampo da mesa, enquanto ruminava desprezo e frases Eu sabia! Politiquices! Sempre a mesma trampa! Por isso, é que isto é o que é! Nunca vamos a lado nenhum! Peguei na folha sem me aperceber de que o fazia, nem sombras do meu nome, havia um vencedor e duas menções honrosas, no lugar do vencedor estava o nome de uma colega minha, agora, diante de mim, apenas a palavra espanto, tinha umas notas sofríveis, e conversas balizadas entre novelas e montras, não sei se o facto de ser filha do presidente de câmara ajudou na decisão, talvez se pudesse ler-lhe o texto, talvez, nunca o li, o regulamento dizia que seria público, ninguém lhe viu uma linha sequer, uma das menções honrosas foi para o filho de um sujeito que abriu uma fábrica no concelho, talvez fosse um interessante texto acerca de siderurgia, talvez, o outro foi para a filha de um engenheiro que veio a integrar a lista, para as futuras eleições, do actual autarca, antes de este assunto se calar definitivamente lá em casa, de novo, umas mãos grandes sobre os meus ombros, curioso, agora, diante de mim, surgiu a palavra paz, e a sua voz dizia É isto a vida, filho. Não te iludas… Que pena teres de viver nesta trampa. Mas não há outra coisa! Eu sei quem venceu! Tu também! Acredito que, daqui a muitos anos, haja olhos a passear pelas tuas linhas, enquanto que, destes infelizes, ninguém saberá o nome… Já agora, que tema escolheste?

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

O pântano da alternadeira


Já ouvi, em tempos, alguém afirmar que as rameiras ajudam à sobrevivência de muitos casamentos, pois, é possível, à luz desta premissa, hoje vamos falar de “O Pântano”, uma conhecida casa-de-alterne, gerida, como é natural nestes contextos, por uma hábil alternadeira, dizem as más-línguas que, há uns anos, soube ardilosamente envolver-se com um velho, de carácter deveras manhoso, dizia-se, por aquelas bandas, que a preparou cuidadosamente para o cargo, era uma mulher baixa, com umas ancas de égua, um rosto de suína deveras desagradável, o cabelo, se assim se podia denominar, uns fios sebosos num constante desalinho, quanto à indumentária, o normal de uma alternadeira, uma efémera tentativa de parecer o que não é, dos pés à cabeça nada lhe assentava condignamente, a rotunda volumetria apenas um desafio para as costuras, não havia dia em que o velho, de carácter deveras manhoso, não fosse visto a entrar na casa-de-alterne, apenas ia para contabilizar os proveitos, há muito que a natureza lhe vedara outras possibilidades, embora, pelo focinho manhoso, não se adivinhasse, por ali, alguém capaz de levar uma mulher às estrelas, gestos contidos, uma indumentária de sacristão-arrependido, embora aquele focinho-manhoso olhasse de soslaio tudo ao seu redor, era habitual ver as alternadeiras-fumadoras à porta, houve uma que rapidamente escalou na hierarquia do “Pântano”, já caminhava pelo Outono do viver, estranha esta ligação entre o alterne e o ocaso da existência, o imperativo cabelo pintado de louro, talvez acredite em mitos associados ao masculino, os incisivos-centrais escurecidos, quiçá do excesso de tabaco, o rosto assemelhava-se a um possível campo de arqueologia, tal a ruína e desolação gritantes, a expressão quotidiana também não trazia vestígios de luz ao quadro, o ar resignado de quem compreendeu, há tempo suficiente, que só lhe resta caminhar pelos subterrâneos do viver, tornou-se próxima de uma lésbica que lá aportou no departamento comercial, encarregada dos livros, todo o negócio, para prosperar, carece de um bom contabilista, diziam que esta era uma taumaturga das contas, como a maioria da sua espécie, cabelo-curto, sempre dá um ar másculo à coisa, também caminhava há muito pelo Outono da existência, uns óculos anacrónicos, convém para dar credibilidade a quem está próximo dos livros, pelo menos passa por entendida ao olhar dos outros, do pescoço para baixo passava por homem, o que muito lhe agradava, sublinhe-se, afinal gostava do mesmo que qualquer macho digno desse epíteto, do pescoço para cima, com aquela escassa neve em cima da cabeça, e rapada quase à militar na nuca, só lhe acentuava a inclinação, como já referido, tornou-se muito próxima da alternadeira dos incisivos-escurecidos, era vê-las, durante o dia, alterne quase sempre rima com noite, em longas conversas, vá-se lá saber porquê, apesar de os dentes-podres parecerem gostar do sexo-oposto, embora daí só colhessem desilusões, não por acaso o rosto assemelhar-se a um possível campo de arqueologia, talvez fosse o facto de o cabelo-curto estar encarregado dos livros, todo o final do mês era vê-la a correr para aquela nuca rapada quase à militar a perguntar-lhe pela percentagem que lhe cabia, mas nada se passava no “Pântano” sem o aval e o conhecimento do velho, de focinho-manhoso, quando a natureza subtrai a alegria essencial de um homem, embora, pelo focinho-manhoso, não se adivinhasse, por ali, alguém capaz de levar uma mulher às estrelas, gestos contidos, uma indumentária de sacristão-arrependido, os medíocres viram-se para o vil-metal e para a tentativa de logo asfixiar qualquer vislumbre de luz, alterne quase sempre rima com noite, e como o “Pântano” recrudescia com as primeiras sombras derramadas nos passeios pelos candeeiros iluminados, apesar do controle do focinho-manhoso, a hábil-alternadeira, com um rosto de suína deveras desagradável, o cabelo, se assim se podia denominar, uns fios sebosos num constante desalinho, geria a casa com um aparente à-vontade, foi ideia sua a de colocar o cabelo-curto, sempre dá um ar másculo à coisa, próxima dos livros, diziam ser uma taumaturga das contas, o focinho-manhoso não se opôs, só lhe interessava o avolumar da conta, já que o resto de si era uma subtracção galopante – temos, neste particular, de apartar a crescente volumetria da sua alternadeira, claro –, e sufocar qualquer vestígio de luz emergente, talvez um dia a luz irrompa pelo “Pântano” e o focinho-manhoso, com as suas alternadeiras, nem a memória cheguem…

 

segunda-feira, 27 de novembro de 2023

O Lou Ferrigno do Areal


Fui eu, confesso, que o apelidei de Lou Ferrigno, não por acaso, era a antítese paradigmática deste culturista, o aspecto, logo ao primeiro contacto, que dele ressaltava eram as gigantescas favolas, os incisivos-centrais conferiam-lhe uma indesmentível aura de Bugs-Bunny, não me recordo de o ver de boca-fechada, era-lhe, de facto, uma impossibilidade congénita, não sei porquê, mas agora que escrevo estas linhas sobre esta personagem, havia nele uma silenciada ansiedade que lhe estendêssemos uma ou mais cenouras, para logo materializar o porquê daquelas proeminências dentárias, tratava todos por senhor ou senhora, só depois o nome, um aspecto de ruralidade enternecedor, vestígios indeléveis das suas origens, os pais tinham um café, um eufemismo, em larguíssima percentagem, para tasca, era este o caso, é facílimo aferir se estamos perante um café ou uma tasca, se entrarmos, basta atender ao aspecto dos clientes em volta, para quem lá trabalha, se o número de cervejas, ou jolas, conforme o contexto, for o dobro, triplo ou quádruplo, superior ao de cafés, a resposta é elucidativa, fatalmente o nosso protagonista lá desaguou para trabalhar, quem não tem arte para desbravar o seu caminho, lá termina por seguir as pisadas paternas, a certa altura, resolveu melhorar algo em si, a magreza aliada à baixa-estatura só lhe acentuavam as gigantescas favolas, já que não as podia limar, nem aumentar a estatura, inscreveu-se num ginásio, foi vê-lo com a inevitável camisola-de-alças, uns ténis de linha-branca que gritavam mau-gosto à distância, e umas calças de pijama, ainda hoje penso não fugir à verdade, o pormenor de surgir de luvas postas também não pode ser descurado, como mais à frente veremos, peço, agora, ao leitor, um exercício de imaginação: um sujeito baixo, magríssimo, pálido, com umas favolas que, a qualquer momento, ameaçavam tocar no chão, um cabelo a suplicar por champô, tal a sua oleosidade, de camisola-de-alças, na vez de braços, surgiam dois palititos, calças-de-pijama coçadas, uns ténis a gritar azeite, e as luvas postas, já me esquecia, como se uma convicção calada: “Vamos a isto! Vamos lá levantar ferro!”; tudo na vida lá se cumpre, bem ou mal, desse modo, fez o seu percurso, assente numa premissa muito simples: a subserviência; assim se foi enturmando, arranjava, quer dizer, vendia filmes ainda por estrear, rapidamente granjeou uma razoável carteira-de-clientes, era vê-lo, pelos cantos do ginásio, em diálogos murmurados, a receber encomendas ou a realizar entregas, nesta altura, um negócio deveras escuso, veja-se bem: filmes ainda por estrear, que patifaria! Quanto ao objectivo de ali se ter inscrito, enfim, não se lhe podia exigir mais, com o tempo lá terá percebido que o seu desejo de aumento muscular, para mitigar as desmesuradas favolas, não se iria materializar, embora, cada vez que descalçava as luvas, a nuvem tóxica dali emanada atingisse violentamente o olfacto dos próximos, de tal forma que, entre o imperativo passo-atrás, para recuperar o equilíbrio, tal a brutalidade do golpe nas narinas, a procura de um ponto-de-fuga, o refrear do vómito, tudo se passava diante do seu apatetado-olhar que, claro, nada descortinava, certo dia, chegou com um ar-sonhador, felizmente para a humanidade as luvas já postas, e veio pedir um conselho: andava a trocar mensagens com uma brasileira, há umas semanas, e combinaram encontrar-se dentro de dias, queria saber se considerávamos seguro; eu assumi a dianteira e, em nome de todos, garanti que sim, era seguro, podia ir ao encontro da brasileira, num canto de mim, algo me dizia que aquelas dentuças, com o seu quê de mamute, intimidariam a mais rebuscada mente-criminosa, ficou feliz com o nosso aval ao seu encontro, antes desta temática encerrar, acrescentou: “Sabem como ela me chama agora? Meu cachorrão… Já viram? É a primeira vez que alguém me chama de cachorrão!” Estava visivelmente emocionado neste relato, imagino estas frases proferidas, por uma voz feminina, com aquele sotaque açucarado e quente, o cachorrão, sempre de boca aberta, salivava só de imaginar o encontro, ocorreu-me alertá-lo para não ousar ir de luvas-postas, muito menos retirá-las, se tal acontecesse, era ver a brasileira, entre o imperativo passo-atrás, para recuperar o equilíbrio, tal a brutalidade do golpe nas narinas, a procura de um ponto-de-fuga, o refrear do vómito, e um cachorrão, abandonado, de boca-aberta, no meio da rua, a assistir à morte de mais um sonho.

(28/11/23)


quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Gostaria de não cair no vazio da monotonia


 

Há muito que não passava por aquela janela, sem saber muito bem como, hoje fui lá dar, ali fiquei, parado, a olhá-la, por não sei quanto, ainda bem, gosto de desaprender o tempo, cada vez mais, talvez não seja bem isso, porque só se desaprende o tempo quando pousamos a mala do existir, e a janela, hoje, não sei porquê, parece-me mais longe, embora eu no mesmo ponto de antes, a olhá-la, por não sei quanto, de fora, tudo igual, ou talvez não, mas por dentro, de certeza que diferente da minha memória, a janela também hoje uma outra, porque o olhar, de antes, já tão longe, e a distância fê-lo outro, nem sei em que ponto se perdeu, sempre que nos apeamos no caminho, lá vem, despercebidamente, aquela questão, como se os seus passos sob o silêncio de sombras (E se tudo uma outra coisa?), é uma pergunta recorrente (E se tudo uma outra coisa?), não lhe sei responder, persisto na janela, nisto, um candeeiro da rua relembra-me noite, a janela, no entanto, ainda por iluminar, de repente, o lar chama-me por um dos bolsos, deixo-o tocar, aquele toque monocromático soou mais uma vez, mas eu, agora, só com a janela, e há quanto aqui não vinha, lentamente cedo aos apelos da memória, que começa a submergir-me naquele caudal caprichoso, de facto, há lugares onde regressamos para um pouco de calor, de uma outra forma, é bom quando olhamos as coisas com saudade, pelo menos, soubemo-nos vivos, sei que ela casou e, algum tempo depois, se divorciou, não estranhei o divórcio, no fundo, alegrei-me com isso, quando me contaram, claro que me revesti daquela expressão séria e condoída, é isso que esperam de nós, confesso que aprendi a representar tarde, mas agora, cá me vou arranjando com a principal ferramenta da vida em sociedade, ao contrário de mim, ela teve o engenho de não ter filhos, nunca a imaginei a protagonizar o difícil papel de mãe, há mulheres assim, como se pairassem sobre o nosso pensar, sei que, neste momento, vive sozinha, não é de espantar que saiba tanto, é o bom de encontrar rostos do tempo, falamos sempre virados para o que foi, se encontramos rostos do agora, falamos do amanhã, acho que é tão raro falar-se do momento, sempre preferi falar do que passou, talvez por não gostar de errar muito, é curioso, agora que penso nisso, lembro-me de que, numa certa madrugada, ela, num tom sonhador, a dizer-me que gostaria de não cair no vazio da monotonia, eu ouvia-a enquanto os meus dedos se perdiam pelos seus cabelos, quase a percebo aqui a meu lado a dizer-me, de novo, que gostaria de não cair no vazio da monotonia, se a tivesse percebido, talvez o hoje um outro, como é flagrante a nossa surdez e cegueira quando podemos escolher a direcção, parece que, teimosamente, deixamos que as correntes decidam a direcção do leme, sempre a cobardia de assumir um destino, daí que, bem mais tarde, regressemos a lugares como este, para levantar memórias com sabor a se, eu que também nunca gostei do vazio da monotonia, no entanto, quando ela, num tom sonhador, numa madrugada de Verão sem o ser, disse gostaria de não cair no vazio da monotonia, eu aquém do sentido, tantos passos atrás, lembro-me bem, não lhe respondi, continuei a perder-me com os seus cabelos, ela levantou-se, devagar, e foi até à madrugada, abriu a janela e inspirou, observei-a num espanto calado, por ela, pelo momento, pela madrugada que se insinuava no enlevo das cortinas, por, muito subterraneamente, saber que nos despedíamos, naquele instante, ela apresentara-me o futuro, eu, ignorante, permaneci nas faldas do conhecido, hoje, naquela janela, já não há cortinas enlevadas que permitem a passagem da madrugada, em verdade, nem sei quem lá mora, ela partiu anos depois daquela madrugada de Verão sem o ser, o suicídio do pai precipitou as coisas, os ventos dos negócios sopraram noutras direcções, a mãe teve de se despedir de coisas para viver com uma dignidade possível, mesmo assim, providenciou-lhe universidade, ela, sabiamente, nada desperdiçou, admiro-a por isso, e por muito mais, de repente, a noite entrou-lhe na vida e ela teve a paciência de esperar a manhã, talvez nisto resida o saber da existência, mas acredito que algo permaneça desarrumado em si, de novo, aquele toque monocromático, desta vez, atendo, Sim, filho, estou um pouco atrasado. Não, não esperem por mim para jantar. Diz à mãe que estou só a terminar aqui uma coisa… Tudo bem! Até já! Suspiro assim que as luzes do aparelho se diluem, como dizia, acredito que algo permaneça desarrumado nela, duvido que alguém tenha respondido àquela questão da madrugada gostaria de não cair no vazio da monotonia, um desejo impronunciável (ou seria um temor?), que ela verbalizou, num tom de sonho, pela madrugada que se insinuava no enlevo das cortinas, ligo o carro, ainda a janela, desço um pouco os vidros, sempre gostei do cheiro da noite, relembra-me que há sonhos pelo ar, retomo o caminho de casa, e se, ali chegado, dissesse à minha mulher gostaria de não cair no vazio da monotonia, disparate, seria ridículo, há pensamentos que pertencem a certas vozes, resta-me um se que se iluminará a cada madrugada, e eu, num espanto calado, limito-me a regressar a uma cansada questão: E se tudo uma outra coisa?

sábado, 18 de novembro de 2023

Que pena uma folha conter duas páginas…

 



Do que me lembro melhor, é do quarto, com as duas camas, a da minha mãe do lado da janela, quase sempre com a cortina corrida, em verdade, não me lembro, nem por uma só vez, de abrirmos a janela, só lá ia quando uma ambulância acordava o mundo com a sua dor, de resto, permanecia fechada, quase sempre com a cortina corrida, não sei por quanto tempo ali estive, talvez uns dois anos, talvez uns três, ou mais, não posso precisar, mas foi há tanto, há tanto que minha mãe ainda viva, sei que o prédio tinha três andares, ficava numa dessas ruas de Lisboa que apenas conhecem a sombra, seja manhã ou tarde, o elevador, que tinha uma armação metálica, com porta, bastante trabalhada, em cada andar, nunca o vi funcionar, acho que adormecera entre o segundo e o terceiro andares, restava-nos a escada, é curioso, a minha mãe jamais questionou a senhora velhota, a quem pagava o quarto, pelo adormecimento do elevador, acho que por, de vez em quando, se atrasar com as contas, a tal senhora também não tinha um rosto que suscitasse esse tipo de reclamações, ostentava, sempre, um avental próprio de quem se especializou em lides domésticas, regra geral, sobre o ombro direito, um pano de flanela, nas mãos, uma vassoura ou uma esfregona, assim que a minha mãe se aproximava, olhava de lado num mutismo desconfiado, como se, desde logo, impossibilitasse quaisquer pedidos, nem aquando do pagamento, a sua expressão se alterava, pegava nas amarrotadas notas para logo as enfiar num saquito de plástico transparente, que retirava, com sofreguidão, de um bolso que nunca percebi qual, a rapidez dos seus gestos contrastante com o peso do seu olhar, era viúva, mas, curiosamente, não sei bem porquê, percebia-se-lhe uma familiaridade com os gumes da vida, pois, sempre o ontem teimosamente a entrar por cada fresta do hoje, neste caso, talvez pelos gestos e por uma expressão para quem as vidas, nas margens dos passeios, nada escondem, quem sabe se por ali tenha andado, não sei, quem sabe, no entanto, hoje é dona de uma pensão, três andares, acho que uma dezena de quartos por piso, percebo que os outros hóspedes também familiarizados com as margens dos passeios, alguns vi por ali caídos, na altura pensei que dormissem, a minha mãe e as outras mulheres só trabalhavam de noite, antes de sair todo um ritual para se arranjar, quando o frio gritava por cobertores e aquecedor, eu muito espantada por ela sair como se fosse encontrar Verão, parecia imune ao correr das estações, as horas diante do espelho, os lábios e também o rosto com um excesso de cor, num todo que ditava qualquer coisa de carnavalesco, nunca lho disse, claro, aprendi a calar a voz que em mim pensava, os saltos dos sapatos a apelar a equilíbrios, a saia a exibir-lhe as carnes, tudo num excesso de ser, um ser caído, antes de sair, um cigarro nervoso, acredito que muitos outros se seguiriam, só me dizia Não demores a dormir, a tal voz que em mim pensava, embora aprendera a calar, pedia-lhe que, pelo menos, me passasse a mão pelo rosto, para me saber viva, mas tudo terminava com o baque irreversível da porta, só pedia a mão pelo rosto, nada mais, anos depois, aprendi a ternura de um beijo maternal, a minha face desconhecia tal coisa, e como ficou agradecida, porém, naquele quarto de pensão, numa dessas ruas de Lisboa que apenas conhecem a sombra, seja manhã ou tarde, bastava-me uma mão pelo rosto, era tudo o que tinha visto para traduzir aquilo a que chamavam coração, às vezes, a minha mãe chegava magoada, cheguei a ver-lhe a saia rasgada e os joelhos em sangue, tal como o rosto, de um dos lados, inchado, quando isso acontecia, saía do quarto, custava-me muito vê-la naquele estado, as pinturas carnavalescas deformadas pelas lágrimas acentuavam-lhe a queda, e também a idade, nunca lhe perguntei quem a magoara, talvez por, nessa altura, não lhe perguntar o que fazia, embora, numa zona de mim, algo me sussurrasse que não fosse uma coisa muito correcta, saía de noite, chegava de manhã, dormia o dia quase todo, após um copo de leite e umas bolachas, eu saía do quarto, juntava-me aos filhos das colegas da minha mãe, que também viviam na pensão, éramos, ao todo, uns seis, brincávamos o dia todo na rua, à espera que elas acordassem, de vez em quando, uma velhota, dos prédios em volta, chamava-nos para almoçar, achava curioso que não nos fazia quaisquer perguntas sem ser Querem mais? Está boa, a comida? Gostam? Antes de regressarmos aos nossos jogos na rua, onde outros já nem a alma procuravam, enchia-nos os bolsos de rebuçados, e dizia-nos Não os comam todos de uma vez… Olhem os dentes! Para mim, tudo isto era uma novidade, creio que para os outros também, da minha mãe, só ouvia Faz pouco barulho! Vai brincar para a rua… Sempre naquele tom ensonado, a voz arrastada, parecia, sinceramente, que arrastava móveis dentro de si, talvez se soubesse demasiado desarrumada, certo dia, um gato desaguou à porta da pensão, não sei porquê, mas aquele miar ecoou por mim, parecia pedir-me que lhe estendesse a mão, levei-o para o quarto, dividi o meu leite do pequeno-almoço, no fundo, a minha única refeição durante tantos e tantos dias, a minha mãe nem deu pelo gato, lembro-me de que numa manhã, não sei se fazia frio, se fazia calor, a sua cama, do lado da janela, vazia, não consigo explicar, mas dentro de mim um Inverno irreprimível, mais tarde, nesse dia, a polícia, vozes sussurradas e a compaixão a olhar-me, o calor do gato, ainda não lhe dera um nome, que agarrava com as poucas forças que reunia, a segurar-me a este lado do mundo, levaram-me para um sítio onde havia muitos miúdos da minha idade, nunca me perguntaram se para ali queria ir, em verdade, nunca me perguntaram nada, nem respostas me deram, a única coisa que lhes ouvi A tua mãe foi para o céu, ainda hoje não sei se foi para o céu, é possível que lá não gostem de pinturas carnavalescas e de carnes à mostra, é possível, antes de me levarem para o sítio onde havia muitos miúdos da minha idade, disseram-me que tinha de me despedir do meu gato, fechei-me no quarto, enchi-lhe o prato de leite, acho que ainda havia um resto, quando não nos ensinam as coisas, esquecemo-nos de que elas existem, isso também acontece com o comer, e abri-lhe a janela, após sorver pela última vez do prato, ele subiu para o parapeito, virou a cabeça na minha direcção, e não me lembro de mais, ainda hoje trago comigo aquele calor que me segurou a este lado do mundo, se houver um céu, sei quem por lá deve andar a esta hora…

domingo, 12 de novembro de 2023

Subterfúgio


 

Há uns tempos escrevi que o tempo não existe, a melhor prova disso é a memória, num repente, levanta-se-nos um momento ido, e ali estamos, como se nunca tivéssemos partido, mudado, daí o constrangimento quando nos cruzamos com rostos do passado, esta verdade em nós (ali estamos, como se nunca tivéssemos partido), mas jamais assumida (o tempo não existe), e, do nada, surgem-nos ao caminho episódios que julgávamos idos no rio do esquecimento, há uns dias deparei-me com um, da perplexidade inicial até um sorriso ainda demorou o seu devido tempo (ali estamos, como se nunca tivéssemos partido), andei, durante esse período, a matutar no título desta crónica, primeiramente pensei: “O carro-preto”, já lá iremos; como segunda hipótese: “Ruas desertas na madrugada”; andava pela feliz altura onde o horizonte se povoava de brinquedos, por outras palavras, de sonhos, quem troca um horizonte de sonhos por um de problemas? Pois, o mundo dos adultos é muito aborrecido, já o afirmava em criança, e como tinha razão, duas vezes por semana, uma amiga de família desaguava lá ao serão, o marido chegava mais tarde do trabalho, assim sempre tinha companhia no visionamento da novela, e não é de somenos um interlocutor para debater o rumo de tão pertinente história, eu pelo chão construía as minhas histórias, os meus universos, os adultos, no sofá, sorviam avidamente histórias e universos pré-fabricados por um écran, uma vez mais, achava aquilo aborrecidíssimo, olhava-os com genuíno terror e questionava-me se, algum dia, tornar-me-ia em algo semelhante… Que terror! Andava eu pensativo, pelo chão, no rumo a dar às minhas histórias, aos meus universos, quando ouço, no sofá, apreensão pelo atraso da amiga que ali desaguava duas vezes por semana ao serão, “Já devia ter chegado”, “Deve-se ter atrasado com qualquer coisa… Não tarda nada, está aí a tocar”, “Sim, tens razão, deve ser isso,” as agulhas num incessante tricotar enquanto o olhar sorvia cada instante da novela, ele com o jornal, embora as pálpebras ameaçassem um precipitar iminente, de repente, a campainha, as pálpebras recompõem-se, as agulhas persistem no seu incessante tricotar, eu abandono, por instantes, as minhas histórias, os meus universos, para abrir a porta, não sei porquê, mas sempre que olhava o esforço e sacrifício dos adultos em sair do sofá, a imagem de um guindaste povoava-me, a amiga surgiu-me, à porta, menos efusiva, até lhe denotei uma certa palidez, cumprimentou-me com a habitual festa pelos cabelos, que tanto me irritava, entrou, não tardou muito a sentar-se ao lado das incessantes agulhas, o jornal estava numa poltrona, eu prestes a regressar às minhas histórias, aos meus universos, entretanto ouço “Sim, um carro-preto seguiu-me até aqui”, as agulhas, desta vez, imobilizaram-se, as pálpebras subiram, embora se mantivessem em silêncio, só as agulhas “Tem a certeza? Não estará a fazer confusão? Quer, antes de mais, um copo-de-água para se acalmar?”, fiquei logo alerta com esta questão, pois, a imagem de um guindaste povoava-me, “Obrigado, não é preciso… Claro que tenho a certeza! Não há ninguém, a esta hora, pelas ruas… Seguiu-me com as luzes desligadas, muito devagarinho, e, vendo bem as coisas, não deve ter sido a primeira vez, porque sabia muito bem o meu percurso… Seguiu-me, vejam bem, até à entrada da vossa praceta!”, o jornal permaneceu em silêncio, talvez compreendesse ser aquele um drama feminino, as agulhas agudizavam a sua desconfiança para tal enredo, embora refreassem perante o olhar da visita, eu opto pela prática, vou até à janela em busca do misterioso carro-preto, pelas ruas apenas o silêncio da madrugada, a ideia de que tudo no mundo está no seu lugar,  como é enganador o silêncio da madrugada, nem um vulto no horizonte dali avistado, muito menos vestígios de ameaçadores carros-pretos, de luzes apagadas, em rondas persecutórias, ninguém se apercebera dos meus passos, também não o desejei, afinal era um assunto debatido no sofá, longe, muito longe, de um horizonte povoado de brinquedos, “Não quer ligar para a polícia?”, “Acha que vale a pena?”, pouco depois, lá veio, também do sofá, a funesta sentença para me deitar, intuí, desde logo, que não assistiria ao desfecho da história do “Carro-Preto”, não posso, aqui chegado, por um imperativo-de-consciência, deixar os leitores em suspenso, como agora é tão comum em filmes de qualidade duvidosa, o dia seguinte resolveu amanhecer sem tréguas para as sombras, com uma luz assim, carros-pretos, de luzes apagadas, a perseguir incautas velhotas, só no domínio do fantástico, como as circunstâncias mudam o nosso olhar sobre as coisas,  antes de entrar na cozinha, ouvi as agulhas, agora totalmente imóveis, virarem-se para o jornal, agora depositado em cima da mesa, “Sinceramente, onde já se viu isto?! A ser perseguida por um carro-preto! Quem se daria ao trabalho de a perseguir?! Isso queria ela! Ontem, nem sei como, lá consegui conter o riso…”, era uma conversa de sofá, ainda hoje desconhecem que a ouvi, peço-vos que fique entre nós, não quero, doravante, ir de castigo para a cama mais cedo.

(12/11/23)

segunda-feira, 6 de novembro de 2023

sábado, 4 de novembro de 2023

O sentido das coisas

 



Há perguntas que sempre o irritaram. Mas nenhuma supera aquela que o obriga a pensar-se (se está bem, como anda, o que tem feito), talvez porque obrigue a regressar, numa demasiada rapidez, ao agora, exactamente de onde ele parte sempre que possível, todos os dias, antes de regressar a casa, de mãos nos bolsos, passeio fora, lá vai, naquela passada que proclama um indisfarçável fastio pelas coisas do mundo, aquela frase que lhe ouviu há tanto, há tanto que lhe parece numa outra vida, e nós que tantas vezes morremos nesta para regressarmos sempre tão subtraídos, embora uns afirmem que regressamos sempre fortalecidos, tolos, apenas isso, a frase dela Eu não durmo com amigos, tão reveladora, lúcida, transparente, porém, na altura, ele aquém destas inferências, a levar as coisas para bem longe, sinal de que ela era séria, de confiança, responsável, felizmente com princípios e valores, isso é bom, muito bom, Eu não durmo com amigos, ainda hoje ressoa por ele, mas se, por um acaso, tivesse concedido o devido tempo à reflexão, talvez as coisas fossem numa outra direcção, como quase sempre acontece, aquela mania de pintarmos o mundo com as cores do nosso pensar, é possível que o Eu não durmo com amigos, em vez da colecção de qualidades que lhe procurou atribuir, significasse simplesmente que ele lhe provocava o sentir morno da amizade, apenas e só, longe em demasia dos mares encapelados e trovoados da paixão, apesar disso insistiu, Tudo bem. Eu compreendo…Mas podemos sair como amigos, certo? Se me deres tempo, talvez… Ela cedeu-lhe o tempo, e ele percebeu o alcance das palavras, de facto, só podiam provir de uma náufraga de mares deveras encapelados, naquela fase da vida em que, num repente, viramos costas à criança do ontem, para sermos uma qualquer coisa ainda por definir, ela depositou o seu coração nas mãos que lhe seguravam o olhar, quatro a cinco anos de namoro, lá por casa os pais encantados, rapaz de boas famílias, cursava Direito, o futuro à distância de uma esquina, casaram, ela com vinte anos, ele com mais quatro, percebia-se-lhes a chama em cada gesto, curiosamente, nas fotos desse dia sempre singular a harmonia ainda não encontrara uma porta, é compreensível, afinal é a passageira do tempo, dois anos depois, uma filha, as sombras, em redor da chama, a esmorecer, em verdade, a harmonia, por ali, nunca encontrou uma porta de entrada, o tempo a passar, ele sempre precisou de uma chama que lhe alimentasse os gestos, quando ela se apercebeu dessa faceta, já ele fins-de-semana sucessivos ausentes, alugara uma casa, nem sequer muito longe do lar original, ela recém-formada, também nos labirintos da justiça, como não podia deixar de ser, apesar da filha, teria nesta altura cerca de quatro anos, da casa, de toda uma forma de ver o mundo ao lado dele, de o seu nome lhe nascer nos lábios contrariando o pensar, avançou com o divórcio, para sua surpresa, foram os pais que a conduziram nessas diligências, sem muitas palavras direccionaram-lhe o olhar para o amanhã, de facto, resgataram-na para a vida, mas algo ficara soterrado para sempre nos escombros do ido, ela nunca partilhou isto, fez questão de guardar para si esta ideia que pairava no seu espírito à espera de uma forma, no fundo, é aquilo a que nós chamamos certeza, jamais voltaria a depositar o seu coração em quaisquer mãos, por muito que lhe tentassem segurar o olhar, em verdade, ela aprendera a olhar o amanhã, mas o seu coração jazia, para sempre, numa estrada poeirenta do ontem, foram uns amigos comuns que os apresentaram, desde então, ela sentou-se-lhe no pensar, dali não queria sair, nem ele queria que saísse, não se pode falar de uma simpatia à primeira vista, antes de um respeito, primeiro, por posições antagónicas face ao redor, ele de raízes profundas, ela conhecedora dos caprichos do vento, de certa forma, ele compreendeu-lhe o cansaço na face, soube-lhe, depois, a causa, a princípio, amigos, como quase sempre acontece, embora, para ele, fosse o início de um trajecto, após certa tarde de cinema, Não quer vir jantar a minha casa? Ela estacou, olhou-o demoradamente, o cansaço pela face tão visível àquela tão jovem hora nocturna, e a resposta Eu não durmo com amigos, lacónica, sem lugar a réplica, nesse momento, ele percebeu que o coração de uma mulher tem um lugar que só é ocupado uma vez, mesmo assim, não desistiu, ele estava a ficar fora de prazo, achava graça àquelas ideias que ela debitava tão contrárias às suas, soube ser paciente, a idade ensinara-lhe o tempo, certa manhã, surpreendera-a preenchendo-lhe o anelar, emudecida, beijou-lhe carinhosamente a face e pediu tempo, por esta altura, a filha perto da faculdade, o espelho cada vez mais uma sombra cinzenta, os passos mais desenhados, meses depois, aceitou, desta vez, a harmonia entrou pela porta da frente em cada fotografia, nem sinal de um resquício flamejante, de mãos nos bolsos, passeio fora, lá vai, naquela passada que proclama um indisfarçável fastio pelas coisas do mundo, a matutar naquela ideia: o coração de uma mulher tem um lugar que só é ocupado uma vez, sabia disso, mas insistiu, talvez consiga, no espaço que lhe coube, que ela, um dia, por lá se sente a seu lado a ver o mundo…

terça-feira, 31 de outubro de 2023

Adeus à saudade

 


Via-se, agora, diante de si, pelo vidro anoitecido, à sua volta vultos e vultos, alguns de pé, um cheiro a condensação em volta, do seu lado esquerdo, o barulho do saco-de-plástico ininterrupto, prefere nem olhar, a audição já é suficiente para o iminente liquidar da paciência, uma senhora hirta à sua frente, olhar nos sapatos, caminhava pela idade dos desencantos, a compreensão do adeus aos sonhos, no feminino é sempre mais doloroso, não fossem as fadas mulheres, olhou-a e reparou no anelar despido, só a marca se lhe gravara, e talvez não se diluísse, a biografia reflectida nos dedos, o saco-de-plástico sem dar tréguas, opta por um sonoro suspiro, mas insuficiente para a volumetria do barulho, nisto o regresso de um apelo, por tão familiar voz, “Não vás para lá! Ouve, vais arrepender-te! E a segurança, homem, e a segurança… Um vai-e-vem constante, a falta de espaço… Vais arrepender-te! Mas a decisão é tua!”, como tudo na vida, luz e sombras sucedem-se, de outro modo, agora, aqui, dá razão à tão familiar voz, há dois fins-de-semana, visitou essa e outras vozes, mais de duzentos quilómetros de ida, outros tantos de volta, chegaram por volta da hora de almoço, ela sempre com um pé-atrás na presença da sogra, parecia inato, tal como o ar inquiridor da velha, as crianças, dois rapazinhos, prontamente correram para os braços da avó, ela contemplou a cena ainda dentro do carro, ele já com um pé de fora, antes de cumprimentar a mãe, olhou em volta e inspirou, mas sempre uma tristeza a turvar-lhe a expressão, num canto de si tinha a esperança de se reencontrar, algures, por ali, em correrias, jogos, brincadeiras, a paisagem permanecia inalterada, apenas o ele de ontem fora subtraído, baixou o olhar consciente da derrota, talvez o mundo não sinta tanto assim a nossa falta, já com os dois pés fora do carro, encaminha-se para cumprimentar a mãe, ela com os dois pés ainda dentro do carro, por fim, abre a porta com parcimónia, a velhota mantinha-se de braços-abertos à espera do filho, só os baixou quando viu a nora dirigir-se-lhe, há hostilidades impronunciáveis e de fonte-incógnita, embora perdurem, e com o tempo recrudesçam, “E o pai, onde está?”, “Onde queres que esteja? No lugar do costume, lá em baixo, a tratar das hortas,” a frase ainda não lhe ressoava “… lá em baixo, a tratar das hortas,” com um gesto apontou-lhe para a lonjura, quando, neste momento, via-se, diante de si, pelo vidro anoitecido, à sua volta vultos e vultos, o saco-de-plástico, do seu lado esquerdo, acaba de proclamar tréguas, com as luzes exteriores, o seu rosto dilui-se do horizonte, um som demasiado artificial, portas abrem-se, uns saem numa pressa desmedida, outros entram para os seus lugares, numa cadência similar, o som demasiado artificial repete-se, as portas fecham-se, as luzes exteriores ficam para trás, de novo, , diante de si, pelo vidro anoitecido, o seu rosto, “Vou lá ter com ele!”, “Não queres comer nada antes? Entra, primeiro, um pouco, comes qualquer coisa e já vais ter com o teu pai…”, “Os miúdos entram contigo, devem ter fome, eu vou lá…”, “Eu vou contigo!”, o tom sem permissão para réplicas, a sogra olhou-a de lado, nada verbalizou, ele, de certa forma, aguardava esta frase, lá foram, pelo caminho detiveram-se na figueira onde, certa tarde, de um ontem, celebraram o seu amor, era Verão, a sombra afigurou-se-lhes convidativa, “Lembras-te de que foi aqui…”, “Sim, claro, mas não me arrependo de…”, “Não há um dia, em que não regresse…”, “Não vale  a pena falarmos, uma vez mais, dessa conversa”, “Porquê? Era imperativo irmos viver para a cidade?”, “Não quero discutir!”, “Ninguém está a discutir! Dialogar, para ti, é discutir? Uma boa forma de fugires da questão…”, “Repeti-te, até à exaustão, o único motivo para aqui ficares, era por não conseguires emancipar-te dos teus paizinhos! Repara: sempre que férias, feriados, vimos para aqui a correr! Não conhecemos outra coisa…”, “Sabes bem como está a saúde do meu pai, depois da trombose não foi o mesmo”, “Se não fosse isso, arranjarias outra desculpa”, “Não te bastou termos, por fim, mudado as nossas vidas para a cidade?”, “Eu mudei, tu não! Pensas que não reparo nos teus silêncios nocturnos à janela, que baixas o olhar para não cumprimentar os vizinhos, na expressão de rafeiro-abandonado quando sais e regressas do trabalho? Só alegria pela tua face quando para aqui vimos… Esta aldeola horrorosa perdida no meio do nada!”, olhou com saudade a sombra da figueira, ela não reparou, mas tinha razão num aspecto, o vidro-anoitecido, agora, devolvia-lhe a expressão de um rafeiro-abandonado, embora um tremeluzir no olhar indiciasse saber a direcção do lar, “Só daqui estar mais de uma hora, sinto-me a sufocar… Não há nada para fazer! Isto é um horror! Só moscas, casebres, galinhas, dejectos pelo chão, não compreendo, de todo, como podes achar alguma graça a isto…”, o pai reparou neles à distância, descansou a enxada entre as mãos, secou a testa com o lenço que trazia no bolso, e aguardou-os, ela acenou de uma distância segura, a terra revolvida desaconselhava a sua progressão com os saltos, o filho nem reparou, foi prontamente ao encontro do pai, “Estás infeliz, rapaz!”, nem ousou resposta, também não a conseguia construir, “Estás infeliz, rapaz!”, uma evidência diante de si, pelo vidro anoitecido, “Lembra-te: não foi por falta de aviso! Hoje desaprendeu-se de reparar na direcção do olhar do outro. E como é importante! Quando não se olha na mesma direcção… Chegaste aqui sozinho, e poucos passos faltavam…”, ela permanecia nas faldas daquele reencontro, nenhuma sílaba lhe chegava, também não se importava muito, limitara-se a um breve acenar para o sogro, as suas mãos não largaram a enxada, felizmente ali ainda tinha rede, foi-se recriando com as futilidades potenciadas pelo amo do hoje, o seu rosto dilui-se do horizonte, um som demasiado artificial, portas abrem-se, chegou a sua estação, uns saem numa pressa desmedida, junta-se ao cortejo, nisto o regresso de um conselho, por tão familiar voz, “Se há muito a perder? Sim, sem dúvida, mas nunca te esqueças do essencial: não te percas a ti! Quanto àqueles dois, enquanto tiverem um colo para correr, o mundo será uma Primavera.”

Pedro de Sá

(31/10/23)

sexta-feira, 27 de outubro de 2023


... não fosse o amor um jogo, dos mais traiçoeiros possíveis, onde o controle é uma ilusão e a queda a única realidade...

in Nascer

domingo, 22 de outubro de 2023


 

... sabia que era contra a leitura, por intuição, a resposta corroborou-o, argumentou que não devemos levar a existência a olhar para baixo, mas sim para as alturas, acrescentou que ler significa não viver...

in Nascer

EEEEEEEEiiiiiiiiiiiii


 

Andava no seu quotidiano, entre mesas, a servir, recolher moedas, devolver as necessárias para que boas contas, quando, de repente, ouve um arrastado e quase suplicante A… V… C…, olha o sujeito, sentado, camisa aberta até ao umbigo, de onde saía uma demasiada proeminência abdominal, numa palidez excessiva, sem saber bem porquê, o seu olhar no umbigo dilatado, tão similar ao da sua mulher, nos últimos meses de gravidez, uma circunferência onde cabia perfeitamente a moeda de maior valor em circulação, daquele exacto ponto não se distinguia se uma gravidez, se descuido alimentar, o arrastado e quase suplicante A… V… C… repetiu-se, a aflição tomou conta de si e foi lesto em aproximar-se do indivíduo, “Está tudo bem consigo? Quer que chame uma ambulância? Olhe para mim! Responda, por favor…”, neste ponto, o pânico ameaçava dominá-lo, só lhe faltava mesmo, no seu turno, um cliente falecer, o sujeito repetiu A… V… C… Tive há uns anos…”, no mesmo tom arrastado e quase suplicante, olhou-o com alívio, chegou a respirar fundo, embora a sua expressão não conseguisse maquilhar, por inteiro, a raiva que o susto lhe causara, tanto quanto a sua memória alcançava, seria a primeira vez que, ao tentarem passar-lhe uma informação, tamanho pânico lhe causaram, recuou um passo, olhou, com maior atenção, o indivíduo, já entrara no Inverno da existência, não obstante a camisa desabotoada até ao umbigo, denotava-se ter caminhado, durante anos, talvez décadas, pelas ex-colónias, há uma coloração, nas vestes de quem por lá respirou, muito própria, denotava-se um desmazelo generalizado, das roupas à aparência, a barba de dias, uma boina desbotada em desequilíbrios na cabeça, a camisa desabotoada até ao umbigo transparecia o desarranjo interior, contudo, um olhar mais atento compreenderia que havia sido outro, com laivos de galã, pois, a eterna incógnita do amanhã, temor de deuses e de homens, quem diria que este sujeito, sentado diante dele, de aspecto andrajoso, camisa desabotoada até ao umbigo, a emitir um arrastado e quase suplicante “A… V… C…”, rematado, há pouco, para seu alívio, com “A… V… C… Tive há uns anos…”, tivera ambições de galã? No dia seguinte, à mesma hora, lá entra ele, desta vez, o seu olhar acompanhou-lhe cada passo, compreensível, após o susto vespertino, apoiava-se numa bengala, só agora se apercebia de tal, senta-se numa mesa disponível, e, de imediato, começa a desabotoar a camisa, ele ainda olha interrogativamente para uma colega, que estava ao balcão, como resposta apenas um encolher de ombros, pois, para quê gastar verbo, de repente, entre o desabotoar, solta um EEEEEEEEiiiiiiiiiiiii, só dois ou três clientes olharam na direcção daquela mesa, ele na dúvida se ria ou lá fosse pedir contenção, o barrigão, nesta altura, já começava a despontar, entre o esforço dos botões, uma vez mais ecoa EEEEEEEEiiiiiiiiiiiii, achou que teria de refrear o entusiasmo, dirige-se para lá, a boina desbotada já sobre a mesa, “Ora boa-tarde! Então, é o habitual cafezinho?”, como se ali sozinho estivesse, solta um novo EEEEEEEEiiiiiiiiiiiii, levanta o olhar e diz-lhe: “Você hoje vai dar-me boleia para casa! Sabe, estou muito cansado,” não obstante estas palavras, olhou o indefinido e novo EEEEEEEEiiiiiiiiiiiii, neste ponto, o umbigo já era banhado pela luz do dia, uma vez mais, diante dele, aquela circunferência onde cabia perfeitamente a moeda de maior valor em circulação, tão similar à da sua mulher, nos últimos meses de gravidez, lá teve de anuir ao pedido de boleia, não lhe fosse chegar um arrastado e quase suplicante “A… V… C…”, havia uma questão que não pôde silenciar, “Mora aqui perto?”, presumia que sim, pelo sim, pelo não, os seus cálculos estavam no número de EEEEEEEEiiiiiiiiiiiii, que teria de ouvir até deixá-lo em casa.

Pedro de Sá

(22/10/23)

sábado, 21 de outubro de 2023

A angústia de se saber que amanhã é 2ª feira

 



Pela teimosa fresta do estore, que esperava pela reparação num amanhã de há dois anos, percebia-se uma manhã cinzenta, ele acordara há algum tempo, mas permanece ainda de olhos fechados, a fruir de uma imobilidade em que o mundo não entra no pensar, ela ainda insistia pelos lados do sono, apesar de já ouvir o aqui, por fim, ele levanta-se, o autoclismo ressoa pela casa, regressa à cama, ela a desistir dos lados do sono e a recebê-lo com satisfação no aqui, trocam umas frases codificadas, numa linguagem construída por anos de diálogos sussurrados ou gritados, assim é a vida a dois, um ténue equilíbrio entre faces encontradas ou nucas distantes, sob os lençóis, reencontram, de forma desapaixonada, talvez até mais mecânica, a vertigem dos sentidos, no entanto, o amadurecido compasso do sentir torna tudo mais satisfatório, é a compreensão do presente, após acordar os filhos, têm um casalinho, ele com dez, ela com oito, o pequeno-almoço, a limpeza da casa, o almoço, ele já sintonizado com as notícias da bola, Hoje tenho de estar em casa, o mais tardar, às seis, ela Logo hoje que eu queria ir ver aqueles cortinados! Essa porcaria não pode esperar? Ele prefere não responder, já sabe por onde ela caminha, pelos territórios da provocação, não, não vai ceder, de novo, pela segunda vez nesse dia, a compreensão do presente, é curioso, nem há um par de anos, ter-lhe-ia respondido numa prontidão liminar, hoje vira-se para o filho, como se nem sequer a tivesse ouvido, e questiona-o sobre a tarde de escuteiros, de seguida, vira-se para a filha e pergunta-lhe se está a gostar do almoço, a filha encolhe os ombros e responde-lhe Já tínhamos comido isto ontem ao jantar, ele retribui a espontaneidade da criança com uma festa pelos seus cabelos, afinal, verdade e crianças são velhos companheiros, e, de facto, os rissóis com arroz branco já provinham da refeição vespertina, mas o mês já ia longo, e os preços das coisas sempre a agigantar-se face aos vencimentos deles que permanecem numa estagnação de charco há tanto, ela, felizmente, só tem de atravessar duas ruas para chegar ao cabeleireiro, claro que sonha, um dia, abrir o seu, é curioso, nunca partilhou isto com ninguém, nem com ele, como se houvesse qualquer coisa de obsceno nesta coisa dos desejos, de impróprio, talvez os tempos ditem para que os esqueçamos, como se fosse possível a um pássaro queimar as suas próprias asas, é verdade que muitos se contentam em poder respirar, no entanto, ela pertencia àquele diminuto número que, antes de mais, gosta de escolher a direcção do seu olhar, ele, pelo contrário, tinha de atravessar grande parte da cidade para chegar ao restaurante onde servia à mesa, a ideia de, algum dia, abrir um restaurante seu, nunca se lhe deparou no caminho, não se pode dizer que desgostasse do trabalho, o contrário também seria uma falsidade, em verdade, cumpria com as suas obrigações profissionais num desencanto contido, com uma aura de inevitabilidade, no fundo, respirava, só olhava onde podia chegar e nunca onde ainda não chegou, por aí se faziam os seus dias, depois de almoço o café, ficava mesmo por baixo da casa deles, um primeiro-andar alugado, ela a sentir-se asfixiada entre aquelas paredes, sempre a queixar-se de ouvir o autoclismo dos vizinhos de cima e do lado, e também do aspirador, por vezes, os do lado em discussão, sobretudo aos fins-de-semana, a proximidade sempre a aguçar arestas, a presença do outro, na demasia daqueles dois dias entre a exiguidade de umas paredes, a despertar hostilidades desarrumadas, quando a percebe pelos territórios do queixume, concentra-se ainda mais na bola, afinal, nunca se apercebeu do autoclismo dos vizinhos de cima e do lado, nem do aspirador, tão pouco da habitual discussão, aos fins-de-semana, dos vizinhos laterias, e, se houvesse, não tinha nada que ver com isso, os miúdos acompanhavam-nos para receber uma pastilha, era o suficiente para cada um sorrir, a casa, a essa hora, já em sombras, as três janelas viradas a Norte, e o edifício em frente, com o dobro da altura, a não permitir tréguas de luz para aqueles lados, uma salita, dois quartos que mal dão para uma cama e um guarda-fatos, uma casa-de-banho que mais parecia um depósito de humidade, aquela torneira do lavatório sempre a pingar, quantas vezes ela lhe gritou (Quando é que te decides a arranjar a porcaria da torneira?), ele sempre (Estou à espera que o Zé me devolva a chave-inglesa… Não te preocupes que já a pedi de volta…), mas ela a preocupar-se cada vez mais, porque a fresta do estore aguarda a reparação num amanhã de há dois anos, e o Zé talvez venha a ser enterrado com a chave-inglesa deles, as sombras àquela hora, depois do café, já inundavam toda a casa, ele já de comando na mão, de olhinhos no sofá, antes que, ela numa tentativa salvífica Não queres, ao menos, ir às compras? Assim, já adiantava o almoço de amanhã… Contrariado, Tudo bem, mas vamos rápido, já sabes que… Nem ousa retorquir, ao menos já se levantara, o filho, com o seu orgulhoso traje de escuteiro, a despedir-se, ela a compor-lhe o lenço, num gesto a meio caminho entre o cansaço e o automático, nem vale a pena perguntar-lhe (Não te sabes ver ao espelho? Lavaste a cara? E os dentes?), nada, só quer dali fugir, antes que a bola comece, antes da gritaria, do rádio, da televisão, dos dois ligados simultaneamente, de nem lá fora encontrar um vestígio de sol, do sofá, daquele urro quando, três ou quatro horas depois, ele se tenta reerguer, queixa-se do joelho, do sofá demasiado baixo, da ciática, ela tão cansada daquela monocórdia, a filha contrariada em acompanhá-los (Não vamos demorar, pois não?), já sabia que a questão ecoaria durante todo o caminho, acompanhada, como sempre, da pressa dele pelo sofá, Vamos rápido, já sabes que… Saem para as compras, antes o multibanco, outra melodia extenuada, a contagem das possibilidades, mas amanhã, por esta hora, será ela a não querer levantar-se do sofá, nem dá conta do autoclismo dos vizinhos de cima e do lado, nem do aspirador, nem das discussões laterais, e talvez a casa tenha a luz suficiente, afinal o Norte tem os seus encantos, se a casa-de-banho tem humidade, ainda bem, é porque se toma por ali banho, quanto à torneira, o Zé há-de devolver a chave-inglesa, tem de se ter paciência e não apressar o amigo, e a fresta do estore, que saudades vai deixar, começa o olhar tudo do promontório de uma saudade imensa, até se vira para ele e pergunta Quanto é que ficaram os resultados? Ele pacientemente responde-lhe, enquanto pensa pois é, amanhã já é 2ª feira…