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sábado, 18 de novembro de 2023

Que pena uma folha conter duas páginas…

 



Do que me lembro melhor, é do quarto, com as duas camas, a da minha mãe do lado da janela, quase sempre com a cortina corrida, em verdade, não me lembro, nem por uma só vez, de abrirmos a janela, só lá ia quando uma ambulância acordava o mundo com a sua dor, de resto, permanecia fechada, quase sempre com a cortina corrida, não sei por quanto tempo ali estive, talvez uns dois anos, talvez uns três, ou mais, não posso precisar, mas foi há tanto, há tanto que minha mãe ainda viva, sei que o prédio tinha três andares, ficava numa dessas ruas de Lisboa que apenas conhecem a sombra, seja manhã ou tarde, o elevador, que tinha uma armação metálica, com porta, bastante trabalhada, em cada andar, nunca o vi funcionar, acho que adormecera entre o segundo e o terceiro andares, restava-nos a escada, é curioso, a minha mãe jamais questionou a senhora velhota, a quem pagava o quarto, pelo adormecimento do elevador, acho que por, de vez em quando, se atrasar com as contas, a tal senhora também não tinha um rosto que suscitasse esse tipo de reclamações, ostentava, sempre, um avental próprio de quem se especializou em lides domésticas, regra geral, sobre o ombro direito, um pano de flanela, nas mãos, uma vassoura ou uma esfregona, assim que a minha mãe se aproximava, olhava de lado num mutismo desconfiado, como se, desde logo, impossibilitasse quaisquer pedidos, nem aquando do pagamento, a sua expressão se alterava, pegava nas amarrotadas notas para logo as enfiar num saquito de plástico transparente, que retirava, com sofreguidão, de um bolso que nunca percebi qual, a rapidez dos seus gestos contrastante com o peso do seu olhar, era viúva, mas, curiosamente, não sei bem porquê, percebia-se-lhe uma familiaridade com os gumes da vida, pois, sempre o ontem teimosamente a entrar por cada fresta do hoje, neste caso, talvez pelos gestos e por uma expressão para quem as vidas, nas margens dos passeios, nada escondem, quem sabe se por ali tenha andado, não sei, quem sabe, no entanto, hoje é dona de uma pensão, três andares, acho que uma dezena de quartos por piso, percebo que os outros hóspedes também familiarizados com as margens dos passeios, alguns vi por ali caídos, na altura pensei que dormissem, a minha mãe e as outras mulheres só trabalhavam de noite, antes de sair todo um ritual para se arranjar, quando o frio gritava por cobertores e aquecedor, eu muito espantada por ela sair como se fosse encontrar Verão, parecia imune ao correr das estações, as horas diante do espelho, os lábios e também o rosto com um excesso de cor, num todo que ditava qualquer coisa de carnavalesco, nunca lho disse, claro, aprendi a calar a voz que em mim pensava, os saltos dos sapatos a apelar a equilíbrios, a saia a exibir-lhe as carnes, tudo num excesso de ser, um ser caído, antes de sair, um cigarro nervoso, acredito que muitos outros se seguiriam, só me dizia Não demores a dormir, a tal voz que em mim pensava, embora aprendera a calar, pedia-lhe que, pelo menos, me passasse a mão pelo rosto, para me saber viva, mas tudo terminava com o baque irreversível da porta, só pedia a mão pelo rosto, nada mais, anos depois, aprendi a ternura de um beijo maternal, a minha face desconhecia tal coisa, e como ficou agradecida, porém, naquele quarto de pensão, numa dessas ruas de Lisboa que apenas conhecem a sombra, seja manhã ou tarde, bastava-me uma mão pelo rosto, era tudo o que tinha visto para traduzir aquilo a que chamavam coração, às vezes, a minha mãe chegava magoada, cheguei a ver-lhe a saia rasgada e os joelhos em sangue, tal como o rosto, de um dos lados, inchado, quando isso acontecia, saía do quarto, custava-me muito vê-la naquele estado, as pinturas carnavalescas deformadas pelas lágrimas acentuavam-lhe a queda, e também a idade, nunca lhe perguntei quem a magoara, talvez por, nessa altura, não lhe perguntar o que fazia, embora, numa zona de mim, algo me sussurrasse que não fosse uma coisa muito correcta, saía de noite, chegava de manhã, dormia o dia quase todo, após um copo de leite e umas bolachas, eu saía do quarto, juntava-me aos filhos das colegas da minha mãe, que também viviam na pensão, éramos, ao todo, uns seis, brincávamos o dia todo na rua, à espera que elas acordassem, de vez em quando, uma velhota, dos prédios em volta, chamava-nos para almoçar, achava curioso que não nos fazia quaisquer perguntas sem ser Querem mais? Está boa, a comida? Gostam? Antes de regressarmos aos nossos jogos na rua, onde outros já nem a alma procuravam, enchia-nos os bolsos de rebuçados, e dizia-nos Não os comam todos de uma vez… Olhem os dentes! Para mim, tudo isto era uma novidade, creio que para os outros também, da minha mãe, só ouvia Faz pouco barulho! Vai brincar para a rua… Sempre naquele tom ensonado, a voz arrastada, parecia, sinceramente, que arrastava móveis dentro de si, talvez se soubesse demasiado desarrumada, certo dia, um gato desaguou à porta da pensão, não sei porquê, mas aquele miar ecoou por mim, parecia pedir-me que lhe estendesse a mão, levei-o para o quarto, dividi o meu leite do pequeno-almoço, no fundo, a minha única refeição durante tantos e tantos dias, a minha mãe nem deu pelo gato, lembro-me de que numa manhã, não sei se fazia frio, se fazia calor, a sua cama, do lado da janela, vazia, não consigo explicar, mas dentro de mim um Inverno irreprimível, mais tarde, nesse dia, a polícia, vozes sussurradas e a compaixão a olhar-me, o calor do gato, ainda não lhe dera um nome, que agarrava com as poucas forças que reunia, a segurar-me a este lado do mundo, levaram-me para um sítio onde havia muitos miúdos da minha idade, nunca me perguntaram se para ali queria ir, em verdade, nunca me perguntaram nada, nem respostas me deram, a única coisa que lhes ouvi A tua mãe foi para o céu, ainda hoje não sei se foi para o céu, é possível que lá não gostem de pinturas carnavalescas e de carnes à mostra, é possível, antes de me levarem para o sítio onde havia muitos miúdos da minha idade, disseram-me que tinha de me despedir do meu gato, fechei-me no quarto, enchi-lhe o prato de leite, acho que ainda havia um resto, quando não nos ensinam as coisas, esquecemo-nos de que elas existem, isso também acontece com o comer, e abri-lhe a janela, após sorver pela última vez do prato, ele subiu para o parapeito, virou a cabeça na minha direcção, e não me lembro de mais, ainda hoje trago comigo aquele calor que me segurou a este lado do mundo, se houver um céu, sei quem por lá deve andar a esta hora…

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