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domingo, 12 de novembro de 2023

Subterfúgio


 

Há uns tempos escrevi que o tempo não existe, a melhor prova disso é a memória, num repente, levanta-se-nos um momento ido, e ali estamos, como se nunca tivéssemos partido, mudado, daí o constrangimento quando nos cruzamos com rostos do passado, esta verdade em nós (ali estamos, como se nunca tivéssemos partido), mas jamais assumida (o tempo não existe), e, do nada, surgem-nos ao caminho episódios que julgávamos idos no rio do esquecimento, há uns dias deparei-me com um, da perplexidade inicial até um sorriso ainda demorou o seu devido tempo (ali estamos, como se nunca tivéssemos partido), andei, durante esse período, a matutar no título desta crónica, primeiramente pensei: “O carro-preto”, já lá iremos; como segunda hipótese: “Ruas desertas na madrugada”; andava pela feliz altura onde o horizonte se povoava de brinquedos, por outras palavras, de sonhos, quem troca um horizonte de sonhos por um de problemas? Pois, o mundo dos adultos é muito aborrecido, já o afirmava em criança, e como tinha razão, duas vezes por semana, uma amiga de família desaguava lá ao serão, o marido chegava mais tarde do trabalho, assim sempre tinha companhia no visionamento da novela, e não é de somenos um interlocutor para debater o rumo de tão pertinente história, eu pelo chão construía as minhas histórias, os meus universos, os adultos, no sofá, sorviam avidamente histórias e universos pré-fabricados por um écran, uma vez mais, achava aquilo aborrecidíssimo, olhava-os com genuíno terror e questionava-me se, algum dia, tornar-me-ia em algo semelhante… Que terror! Andava eu pensativo, pelo chão, no rumo a dar às minhas histórias, aos meus universos, quando ouço, no sofá, apreensão pelo atraso da amiga que ali desaguava duas vezes por semana ao serão, “Já devia ter chegado”, “Deve-se ter atrasado com qualquer coisa… Não tarda nada, está aí a tocar”, “Sim, tens razão, deve ser isso,” as agulhas num incessante tricotar enquanto o olhar sorvia cada instante da novela, ele com o jornal, embora as pálpebras ameaçassem um precipitar iminente, de repente, a campainha, as pálpebras recompõem-se, as agulhas persistem no seu incessante tricotar, eu abandono, por instantes, as minhas histórias, os meus universos, para abrir a porta, não sei porquê, mas sempre que olhava o esforço e sacrifício dos adultos em sair do sofá, a imagem de um guindaste povoava-me, a amiga surgiu-me, à porta, menos efusiva, até lhe denotei uma certa palidez, cumprimentou-me com a habitual festa pelos cabelos, que tanto me irritava, entrou, não tardou muito a sentar-se ao lado das incessantes agulhas, o jornal estava numa poltrona, eu prestes a regressar às minhas histórias, aos meus universos, entretanto ouço “Sim, um carro-preto seguiu-me até aqui”, as agulhas, desta vez, imobilizaram-se, as pálpebras subiram, embora se mantivessem em silêncio, só as agulhas “Tem a certeza? Não estará a fazer confusão? Quer, antes de mais, um copo-de-água para se acalmar?”, fiquei logo alerta com esta questão, pois, a imagem de um guindaste povoava-me, “Obrigado, não é preciso… Claro que tenho a certeza! Não há ninguém, a esta hora, pelas ruas… Seguiu-me com as luzes desligadas, muito devagarinho, e, vendo bem as coisas, não deve ter sido a primeira vez, porque sabia muito bem o meu percurso… Seguiu-me, vejam bem, até à entrada da vossa praceta!”, o jornal permaneceu em silêncio, talvez compreendesse ser aquele um drama feminino, as agulhas agudizavam a sua desconfiança para tal enredo, embora refreassem perante o olhar da visita, eu opto pela prática, vou até à janela em busca do misterioso carro-preto, pelas ruas apenas o silêncio da madrugada, a ideia de que tudo no mundo está no seu lugar,  como é enganador o silêncio da madrugada, nem um vulto no horizonte dali avistado, muito menos vestígios de ameaçadores carros-pretos, de luzes apagadas, em rondas persecutórias, ninguém se apercebera dos meus passos, também não o desejei, afinal era um assunto debatido no sofá, longe, muito longe, de um horizonte povoado de brinquedos, “Não quer ligar para a polícia?”, “Acha que vale a pena?”, pouco depois, lá veio, também do sofá, a funesta sentença para me deitar, intuí, desde logo, que não assistiria ao desfecho da história do “Carro-Preto”, não posso, aqui chegado, por um imperativo-de-consciência, deixar os leitores em suspenso, como agora é tão comum em filmes de qualidade duvidosa, o dia seguinte resolveu amanhecer sem tréguas para as sombras, com uma luz assim, carros-pretos, de luzes apagadas, a perseguir incautas velhotas, só no domínio do fantástico, como as circunstâncias mudam o nosso olhar sobre as coisas,  antes de entrar na cozinha, ouvi as agulhas, agora totalmente imóveis, virarem-se para o jornal, agora depositado em cima da mesa, “Sinceramente, onde já se viu isto?! A ser perseguida por um carro-preto! Quem se daria ao trabalho de a perseguir?! Isso queria ela! Ontem, nem sei como, lá consegui conter o riso…”, era uma conversa de sofá, ainda hoje desconhecem que a ouvi, peço-vos que fique entre nós, não quero, doravante, ir de castigo para a cama mais cedo.

(12/11/23)

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