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segunda-feira, 27 de novembro de 2023

O Lou Ferrigno do Areal


Fui eu, confesso, que o apelidei de Lou Ferrigno, não por acaso, era a antítese paradigmática deste culturista, o aspecto, logo ao primeiro contacto, que dele ressaltava eram as gigantescas favolas, os incisivos-centrais conferiam-lhe uma indesmentível aura de Bugs-Bunny, não me recordo de o ver de boca-fechada, era-lhe, de facto, uma impossibilidade congénita, não sei porquê, mas agora que escrevo estas linhas sobre esta personagem, havia nele uma silenciada ansiedade que lhe estendêssemos uma ou mais cenouras, para logo materializar o porquê daquelas proeminências dentárias, tratava todos por senhor ou senhora, só depois o nome, um aspecto de ruralidade enternecedor, vestígios indeléveis das suas origens, os pais tinham um café, um eufemismo, em larguíssima percentagem, para tasca, era este o caso, é facílimo aferir se estamos perante um café ou uma tasca, se entrarmos, basta atender ao aspecto dos clientes em volta, para quem lá trabalha, se o número de cervejas, ou jolas, conforme o contexto, for o dobro, triplo ou quádruplo, superior ao de cafés, a resposta é elucidativa, fatalmente o nosso protagonista lá desaguou para trabalhar, quem não tem arte para desbravar o seu caminho, lá termina por seguir as pisadas paternas, a certa altura, resolveu melhorar algo em si, a magreza aliada à baixa-estatura só lhe acentuavam as gigantescas favolas, já que não as podia limar, nem aumentar a estatura, inscreveu-se num ginásio, foi vê-lo com a inevitável camisola-de-alças, uns ténis de linha-branca que gritavam mau-gosto à distância, e umas calças de pijama, ainda hoje penso não fugir à verdade, o pormenor de surgir de luvas postas também não pode ser descurado, como mais à frente veremos, peço, agora, ao leitor, um exercício de imaginação: um sujeito baixo, magríssimo, pálido, com umas favolas que, a qualquer momento, ameaçavam tocar no chão, um cabelo a suplicar por champô, tal a sua oleosidade, de camisola-de-alças, na vez de braços, surgiam dois palititos, calças-de-pijama coçadas, uns ténis a gritar azeite, e as luvas postas, já me esquecia, como se uma convicção calada: “Vamos a isto! Vamos lá levantar ferro!”; tudo na vida lá se cumpre, bem ou mal, desse modo, fez o seu percurso, assente numa premissa muito simples: a subserviência; assim se foi enturmando, arranjava, quer dizer, vendia filmes ainda por estrear, rapidamente granjeou uma razoável carteira-de-clientes, era vê-lo, pelos cantos do ginásio, em diálogos murmurados, a receber encomendas ou a realizar entregas, nesta altura, um negócio deveras escuso, veja-se bem: filmes ainda por estrear, que patifaria! Quanto ao objectivo de ali se ter inscrito, enfim, não se lhe podia exigir mais, com o tempo lá terá percebido que o seu desejo de aumento muscular, para mitigar as desmesuradas favolas, não se iria materializar, embora, cada vez que descalçava as luvas, a nuvem tóxica dali emanada atingisse violentamente o olfacto dos próximos, de tal forma que, entre o imperativo passo-atrás, para recuperar o equilíbrio, tal a brutalidade do golpe nas narinas, a procura de um ponto-de-fuga, o refrear do vómito, tudo se passava diante do seu apatetado-olhar que, claro, nada descortinava, certo dia, chegou com um ar-sonhador, felizmente para a humanidade as luvas já postas, e veio pedir um conselho: andava a trocar mensagens com uma brasileira, há umas semanas, e combinaram encontrar-se dentro de dias, queria saber se considerávamos seguro; eu assumi a dianteira e, em nome de todos, garanti que sim, era seguro, podia ir ao encontro da brasileira, num canto de mim, algo me dizia que aquelas dentuças, com o seu quê de mamute, intimidariam a mais rebuscada mente-criminosa, ficou feliz com o nosso aval ao seu encontro, antes desta temática encerrar, acrescentou: “Sabem como ela me chama agora? Meu cachorrão… Já viram? É a primeira vez que alguém me chama de cachorrão!” Estava visivelmente emocionado neste relato, imagino estas frases proferidas, por uma voz feminina, com aquele sotaque açucarado e quente, o cachorrão, sempre de boca aberta, salivava só de imaginar o encontro, ocorreu-me alertá-lo para não ousar ir de luvas-postas, muito menos retirá-las, se tal acontecesse, era ver a brasileira, entre o imperativo passo-atrás, para recuperar o equilíbrio, tal a brutalidade do golpe nas narinas, a procura de um ponto-de-fuga, o refrear do vómito, e um cachorrão, abandonado, de boca-aberta, no meio da rua, a assistir à morte de mais um sonho.

(28/11/23)


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