Livros

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quarta-feira, 26 de julho de 2023

terça-feira, 25 de julho de 2023



... não fosse a vida uma constante despedida, caminhamos de adeus em adeus...

in Nascer

sábado, 22 de julho de 2023




... a madrugada chamava-nos, há coisa mais bela que o apelo da madrugada?

in Nascer

quinta-feira, 20 de julho de 2023



 ... quando cheira a desgraça, tudo acorre para se certificar da sua veracidade, como se, o facto de ver o outro caído, os erguesse um pouco mais da terra...

in Nascer

domingo, 16 de julho de 2023

 



Percebo, muito a custo, que o infinito é um lugar lá atrás, hoje é tudo balizado, trabalho, férias, horários, compras, contas, mais contas, contas ainda, data-limite para as pagar, despertador a arrancar-nos de um lugar tão além, à noite nem vislumbres do sono, e ninguém se senta diante de mim e pergunta: És feliz?

in Nascer

sexta-feira, 14 de julho de 2023

O LIVRO DA MINHA VIDA:


A Insustentável Leveza do Ser (Milan Kundera)

 Em matéria de livros, assim como em outros contextos da vida, o singular tem dificuldade em entrar. Desse modo, quando a Paula, gentilmente, me desafiou para escrever acerca do Livro da minha vida, confesso a minha dificuldade. Logo me surgiram luminosos títulos que, de facto, fazem parte incontornável da minha biografia intelectual (desde A Náusea, de Sartre; As Velas Ardem até ao Fim, de Márai – cujo o título original é: Cinzas; A Pérola, de Steinbeck; Por Favor, não Matem a Cotovia, de Harper Lee – o único livro que escreveu; A Morte de Ivan Ilitch, de Tolstói; Noites Brancas, de Dostoiévski; Até ao Fim, de Vergílio Ferreira; mais recentemente, Na Praia de Chesil, de Ian McEwan; ou Nunca me Deixes, de Kazuo Ishiguro). E sem querer ser demasiado exaustivo, porque muitos outros títulos deveriam figurar entre os supracitados, a minha escolha recaiu no livro que, até hoje, mais me deslumbrou sob todos os aspectos: A Insustentável Leveza do Ser, de Milan Kundera.

Para começar, o título, no meu entendimento, é o mais belo da história da literatura. Não só pela sua aparente antítese, mas pela relação desta com o profundo conceito de Ser. O livro começa com uma questão: e se o postulado nietzschiano do Eterno Retorno fosse uma realidade? Por outras palavras, se cada um de nós estivesse condenado a reviver a sua vida, com cada instante de dor e de alegria, ad aeternum, como seria? Esta é uma questão que, sem dúvida, encerra, em si mesma, um abismo de reflexões de ordem vária. Por conseguinte, o romance inicia-se com um convite à reflexão. De seguida, são-nos apresentadas as personagens centrais: Tomás e Teresa. Tomás, a aparente força que se revela fraqueza; Teresa, a aparente fraqueza que se traduz em força. É com estas dicotomias: força/fraqueza; peso/leveza; corpo/alma, que Kundera tece este magistral romance, que, no fundo, nos devolve o espelho da nossa complexa essência. Muitos quiseram apelidar este livro de romance geracional. Um erro de uma grosseria sem precedentes. Este é, claramente, um livro rumo à eternidade. Porque, apesar de o seu contexto assentar na Primavera de 68 em Praga, as temáticas kunderianas são universais.

Philip Kaufmann adaptou este romance ao cinema, com os brilhantes Daniel Day Lewis e Juliette Binoche. Apesar de se tratar de um belíssimo filme, neste caso, como em muitos outros, fica bastante aquém do livro.

Li este livro há cerca de 13 anos. Foi o meu segundo livro de Kundera. O primeiro foi A Imortalidade. É, de facto, um dos meus autores de eleição. Li a sua obra na totalidade: tanto a romanesca, como a ensaística. Como imagem autoral, Kundera divide os seus livros em 7 partes. Naturalmente, este não foge à regra. Ainda hoje, subsistem imagens vívidas deste livro, e, sempre que alguém pronuncia a palavra anacrónica, sorrio.

A tristeza queria dizer: estamos na última paragem. A felicidade queria dizer: estamos os dois juntos. Estas duas frases surgem muito perto do final. Não quis, nesta minha breve recensão, desvelar em demasia a história. Porque, como em todos os grandes livros, acaba por ser o menos significativo. O que fica, manifestamente, das grandes obras, é uma outra forma de olhar a realidade. Um novo despertar. Como se fôssemos, novamente, apresentados ao mundo. Não sei se estamos todos numa última paragem. Se estivermos, que olhemos para a felicidade próxima. Pode ser que, como sugere Kundera, se ouçam violinos por perto e alguma borboleta levante o seu voo.

 

 

quarta-feira, 12 de julho de 2023


 ... a principal característica da beleza é que a contemplamos sempre como se primeira vez...

in Nascer

segunda-feira, 10 de julho de 2023

Ó filha, ó filha…

 


Hoje cumpro uma promessa, há uns tempos alguém me disse que esta personagem merecia umas linhas, na altura concordei, porém, o tempo na sua marcha inclemente, e eu sempre com a cabeça noutros projectos, até que “De hoje não passa!”, pensei, mas de potências sem acto está o mundo cheio, tinha de consubstanciar “De hoje não passa!”, sempre que falamos de alguém, primeiramente expressamos apenas impressões, por aqui iniciarei a minha narrativa, foi num desses lugares do hoje onde se cultiva a aparência, de forma sublimada diz-se a saúde, a boa forma-física, tudo eufemismos para subtrair a vaidade, por outras palavras, a verdade, os grilhões do politicamente-correcto há quarenta-e-nove anos que asfixiam esta apatetada e acrítica sociedade, enfim, como dizia, acedia-se a esse espaço por uma porta-de-correr, assim que se fechou, logo a sua voz a preencher em pleno a sala, quem o conhecia não estranhava aquela espontaneidade, o tom desgarrado da voz, todavia, foi a naturalidade com que falava de aspectos tão pessoais, enquanto, usualmente, se diz “Olá! Como está?”, ele, da entrada da sala, para um conhecido, “Ó filha! Nem imaginas… Nem sei como aqui consegui chegar! Vamos lá ver se consigo treinar alguma coisa de jeito. Não é que passei a noite toda na casa-de-banho…”, bom, para poupar os caros leitores a certos pormenores, mais dos intestinos e menos da literatura, este nosso protagonista sofreu um forte desarranjo-intestinal, parece, segundo palavras do próprio, que a mãe lhe comprara um saco de gomas, como ainda não recuperara totalmente de um desgosto amoroso, acompanhou o episódio vespertino da telenovela adoçando o paladar, já que o sentir tão invernoso estava, como resultado, uma madrugada de sobressalto entre a cama e o sanitário, há dramas que, tarde ou cedo, acabam por bater à porta de todos, porém, ainda não totalmente restabelecido, ali estava para aprimorar a sua forma-física, o que mais ressaltava da sua figura era a exuberante fita na cabeça, um flagrante anacronismo que, de certa forma, me fez a infância sentar-se a meu lado, figuras com Bjorn Borg, Leroy Johnson de “Fama”, em verdade, nunca fui muito apreciador da série, eu e a dança não somos muito próximos, no entanto, havia quem, de forma insistente, o chamasse de “Hello Kitty”, tinha uma vaga ideia da boneca, talvez concordasse pelos trejeitos efeminados, como a infância ainda se mantinha sentada a meu lado, resistia ao baptismo, a boneca japonesa não tinha uma fita, mas sim um laço, questões de fundo que não devem ser descuradas, a insistência foi tanta, e como eu já baptizara tantas personagens, acabei por ceder, embora, mais à frente, acabasse por rebaptizar de forma eloquente, como quase  sempre acontece nestes casos, a figura materna é prevalecente, vivia somente com esta, trabalhava na frutaria do bairro, era comum queixar-se, naquele tom desgarrado, das clientes mais chatas, “Já fartinho dela, só lhe disse: Ó filha, se não quiser levar a fruta, alguém leva”, “É com cada uma que uma pessoa atura!”, “Ora vejam só esta minha vida!”, mas havia uma  sombra por partir do seu rosto, pois, o tal desgosto amoroso, certa tarde queixava-se de que esse namorado era ligeiramente agressivo e impetuoso, “Ó filha, até já me deixou com marcas…”, isto, como é óbvio, naquele tom desgarrado, para quem quisesse ouvir, a sua obsessão, na altura, junto do instrutor, era com os glúteos, a consternação e mal-estar do profissional, a questões como: “Diga-me lá os exercícios para melhorar os glúteos? Não acha que estou com o rabo descaído?”, por demais evidentes, só a nossa personagem não se apercebia, talvez, na sua fértil imaginação, pensasse que, melhorando essa zona do corpo, o namorado regressasse para junto de si, e assim, quem sabe, acabassem juntos, de mão dada, a assistir  à telenovela, enquanto partilhavam um saco de gomas, e no caso de ele ficar ligeiramente agressivo ou impetuoso, só lhe diria: “Ó filha, abre lá boquinha e saboreia esta goma, para agressividades já me chegam as velhas pindéricas que aturo todos os dias.”

Pedro de Sá

(10/07/23)

domingo, 9 de julho de 2023

Quando todos merecem um tecto

 


A primeira vez que o vi, não me recordo se foi de manhã ou de tarde, apenas guardo na memória o céu cinzento e uns riscos nas vidraças provenientes das alturas, olhava eu para o fundo da rua, estávamos naquela época de luzes e concordância, tão raro neste lugar mais propício a sombras e costas voltadas, mas, dizia eu, olhava para o fundo da rua, ainda não chegara aos dez, apesar do peso dos sessenta, na tristeza do pensar, há tempo suficiente, afinal, talvez fosse de tarde, aguardava por um regresso, no fundo, todos aguardamos por algo, não fosse viver esperar, quando, num repente, o meu olhar me conduziu logo abaixo da janela, ali estava, encolhido, entre dois carros, como se orasse para que o esquecessem, mas, simultaneamente, o seu arfar inquieto indiciava uma procura de calor, talvez de compreensão, é sabido, no entanto, que esta habita sempre num porto ainda por atracar, esqueci-me do fundo da rua, do peso dos sessenta na tristeza do pensar, olhar e pensar em comunhão logo abaixo da janela, nunca, antes, o tinha visto por estes lados, de vez em quando, erguia a cabeça num nítido esforço à cautela dos ruídos que nasciam por todo o lado, para logo se recostar entre os dois carros, como se orasse para que o esquecessem, mas, simultaneamente, o seu arfar inquieto indiciava uma procura de calor, talvez de compreensão, e eu que também almejava o mesmo, daí o meu olhar pelo fundo da rua, numa espera, como se soubesse, já nessa altura, que a casa do meu olhar seria para sempre no fundo de uma qualquer rua, não sei bem como aconteceu, contudo, ele levantou os olhos à altura dos meus, ainda hoje desconfio que também ele esperava por alguma coisa no fundo de uma qualquer rua, talvez o meu pensar fizesse demasiado barulho, desci, era o que podia fazer, assim que saí para a rua, saudou-me da única forma lhe possível, porém, não saiu do seu lugar, entre os dois carros, como se providenciasse a noite, aproximei-me, estendi-lhe a mão, não havia dúvidas, éramos amigos de há muito, sentei-me ao lado e ficámos um bom bocado à conversa, falámos de esperar, tempo, e de fundos de rua, convenci-o a deslocar-se para debaixo de uma varanda, acedeu, é curioso, não me exigiu um porquê, limitou-se a seguir-me, providenciei-lhe uma ceia rápida, talvez demasiado rápida, de facto, estávamos na altura da aprendizagem do frio e as noites elucidavam-nos a distância das estrelas, trouxe-lhe um tapete velho de algures, agradeceu numa humildade espontânea e deitou-se, ainda conversámos um pouco, até que a voz de minha mãe ressoou por todo o quarteirão obrigando-me a regressar, nessa noite, falei-lhe do meu novo amigo que dormia sobre um tapete, debaixo de uma varanda do nosso prédio, aproveitei enquanto tratava da louça do jantar, era a melhor altura para atender aos meus desejos, sempre achei, não sei bem porquê, que, nessas alturas, ela queria que o tempo trocasse o andar pelo correr, percebi-lhe aquela peculiar atenção distraída às minhas palavras, isso sucedia quando ansiava que eu mudasse rapidamente de assunto, lembrei-lhe que estávamos na época de luzes e concordância, tão raro neste lugar mais propício a sombras e costas voltadas, mandou-me falar com o meu pai, lá fui para a sala, àquela hora, todo ele com aquele programa aborrecidíssimo em que só falavam e falavam, mas percebia-se logo que nada iam resolver, ou então apareciam pessoas a chorar, com cartazes, onde chamavam a atenção para a fome dos filhos, também havia gente com metralhadoras num país estrangeiro, no entanto, via-se logo que não eram de brincar, no dia seguinte, os rostos mudavam, porém, tudo se repetia, não sei porquê, mas sempre desconfiei que esse programa, a que o meu pai assistia com um quê de receio, estaria condenado àquele guião e apenas a mudar de rostos, repeti-lhe a história do meu novo amigo, que dormia sobre um tapete, debaixo de uma varanda do nosso prédio, por uns instantes, a sua atenção em mim, sempre que isso sucedia, sentia-me capaz de tocar sonhos, lembrei-lhe, igualmente, que estávamos na época de luzes e concordância, tão raro neste lugar mais propício a sombras e costas voltadas, enquanto lhe falava, reparei no reflexo tremeluzente, das luzes lá de casa, serpenteando árvore acima, no seu rosto, como se lhe ditassem compreensão, levantou-se, virou costas àquele condenado guião que apenas mudava de rostos, dirigiu-se para a porta, vestiu um casaco, perguntou-me se também queria ir, enquanto descíamos, pôs-me a mão sobre o ombro, e contou-me histórias de esperar, do tempo, e de olhar fundos de rua…

sexta-feira, 7 de julho de 2023


... já reparaste: esta é uma das delícias do ontem: basta pouco para sermos felizes, no fundo, basta sermos, como, a dado momento do nosso trajecto, trocamos o ser pelo parecer?

in Nascer

segunda-feira, 3 de julho de 2023

ANOITECEU


 

PEDRO DE SÁ


 

ANOITECEU

 


Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia.

                                                                                                              Mateus (5, 7)

 

Creio que lemos para não nos sentirmos sós.

(Anónimo)

 

O passado nunca fica onde o deixámos.

(Anónimo)



ÍNDICE 

 

AMANHECER

ENTARDECER

ANOITECEU


 

  

AMANHECER

  

Aquilo que muitos chamam de decisões, em verdade, é caminhar pela única via possível, não há qualquer deliberação, tudo flui na naturalidade do acontecer, num momento da minha vida, muitos enalteceram (em surdina, claro, por estes lados o elogio sempre foi deveras inflaccionado) um gesto meu, como se, após uma longuíssima reflexão, tivesse optado por uma compaixão superior, nada disso, repito, não houve qualquer escolha, uma vez que, para mim, não havia outras possibilidades. Mas não me parece que esteja a começar bem a minha narrativa, esqueci-me do essencial: abrir a porta, proceder às apresentações e convidar o leitor a entrar, assim começa toda a história, por outras palavras “Era uma vez…” Quando olho para trás, sobretudo para a minha infância, só me ocorre uma palavra: silêncio. As refeições eram ocasiões lancinantes para mim, meus pais e irmão (cinco anos mais velho) num mutismo contrastante com os esgares e roncos nascidos do mastigar (acto tão primitivo, rudimentar, por muito que se maquilhe com mesas pomposas, etiquetas de pacotilha, talheres dourados, guardanapos de seda, copos de cristal), e uma questão sentava-se-me no pensar: em que circunstância, numa vida partilhada, morrem as palavras? Com o tempo, percebi o crescente silêncio às refeições, e não só, não me lembro, confesso, de um gesto de ternura entre meus pais, uma brincadeira, nunca comentei isto com o meu irmão, os cinco anos de diferença, nas duas primeiras décadas de vida, tornam-nos habitantes de continentes distintos, além, claro, da diferença de género, creio que ele não se apercebia destas singularidades, parecia caminhar numa realidade muito sua, imune às arestas da vida, fascinava-me essa sua distância das coisas, como se tudo lhe fosse indiferente, se as refeições fossem densamente povoadas por frases ininterruptas, em vez daquele asfixiante silêncio, a sua expressão seria a mesma, não duvido, hoje somos dois estranhos, cumprimentamo-nos quando nos vemos, apenas e só, como faço com os vizinhos, embora veja estes com mais frequência, não sei em que momento, naquela casa, cada um de nós se virou para si mesmo, neste aspecto, considero-me a mais inocente, uma vez que, como última a chegar, deparei-me com um cenário há muito construído, apenas me limitei a adaptar ao decurso da narrativa, segundo dizem, cheguei por acidente, já não era esperada, dito de outra forma, desejada, não é simpático ouvirmos isto, como se estivéssemos numa festa sem convite, mas, volta e meia, quando olhava, talvez mais demoradamente, os grisalhos de minha mãe, essa frase ecoava (…”cheguei por acidente, já não era esperada…”), vinda, por vezes, de fonte incógnita, afinal, era na minha memória que ressurgia (…”cheguei por acidente, já não era esperada…”), se procurar por meu irmão nesses tempos, mais tarde também, apenas capas de livros a ocultar-lhe o rosto, mesmo à mesa fazia-se acompanhar pela leitura de então, como se de uma bengala, até aos dez anos achava normal, depois começaram a nascer-me questões numa sucessão quase vertiginosa, embora todas partissem e regressassem ao silêncio. Foi pouco antes da faculdade, estaria a terminar o liceu, quando soube, pela voz de minha mãe, da partida, definitiva, de meu pai, foi antes de jantar, estava no quarto com os afazeres escolares, ouço um ligeiro toque na porta a anunciar que ia entrar, ergo o rosto da secretária para lá, ficava do lado direito, e procuro a voz (afinal, ali imperava o silêncio) para “Sim, entra…”, reticente lá abriu a porta, entrou, como se coxeasse, percebi-lhe, de imediato, uma acentuada sombra pelo rosto, nunca tal sucedera, denotava-se-lhe nos passos um quase esforço por equilíbrio, até chegar à minha cama e aí se sentar, de mãos pousadas nos joelhos olhou-me e “Filha, temos de conversar…”, não sei porquê, soube cada palavra que ia proferir, “O teu pai… Bom, o teu pai vai sair de casa…”, sabia-lhe as palavras, porém, assim que se sustiveram, entre nós, amplificadas pelo silêncio entardecido da casa, um sentir de incredulidade nasceu-me, pensei, tão estranho, tão estranho, saber-lhe as palavras e agora incrédula para as mesmas, olhei-a, sentada na minha cama, ainda de mãos nos joelhos, “Mas porquê?”, olhou em volta como se procurasse palavras que lhe ordenassem o sentir, após o necessário, uma vez mais levantou o rosto “Sabes, já não tínhamos conversa. Chega uma altura, na vida de todos os casais, mais cedo ou mais tarde, que isso sucede. Nessa circunstância, ou se procura o mundo do outro, para o verbo continuar a servir de ponte, ou o silêncio tornar-se-á ensurdecedor. Creio que, no nosso caso, foi por aqui… Éramos dois estranhos a partilhar leito e tecto. Apenas isso. Talvez ainda tenhamos ido a tempo de salvar qualquer coisa…”, espantou-me o tom analítico das suas palavras, nem dor, saudade, mágoa, nada, apenas procurava iluminar factos como se não fosse uma das protagonistas, intuí-lhe somente cansaço, indubitavelmente, a postura indiciava isso mesmo, a necessidade de se sentar, o desalento das mãos nos joelhos, parecia ter completado uma longa e dolorosa jornada, “Mas continuará a visitar e a acompanhar-vos, claro. Em nada vos faltará!”, enquanto falava, compreendi, de súbito, que não tinha memória de uma conversa, foi mais tarde, tão mais tarde, que alguém se vira para mim e diz “Devias escrever um livro!”, no momento foi como se abrissem uma janela desconhecida, embora frequentasse a casa há muito, uma perspectiva nova de um cenário cansado, “Devias escrever um livro!”, quanta dor se iria derramar sobre a brancura das páginas, ficariam indelevelmente maculadas, e que teria eu para contar assim de tão interessante? Como disse, a sugestão chegou-me da parte de uma colega de trabalho, era hora de regresso, falávamos de trivialidades, ela baixa-se pela carteira, ergue-se, enquanto ajeita a alça, olha-me diferente e diz-me (“Devias escrever um livro!”), assim, do nada, o espanto pela frase descontextualizada levou-me algum tempo a compreendê-la na sua plenitude, como se tal fosse possível, como desvelar a intenção do outro? O porquê de subitamente ser lançada tal sugestão? Entre cabides, malas, casacos, na hora de regresso ao lar. Lar? O que é isso de lar? Quando um prenúncio de regresso pelo mundo anoitecido, um sentir de orfandade aloja-se-me no sentir, ou talvez nunca dali tenha partido, como se fosse um conceito que ignorasse (e não ignoro? Lar? O que é isso de lar?), em verdade, nunca houve, debaixo deste céu, um lugar onde me sentisse em casa, onde regressar me apaziguasse o pensamento, vejo, agora, pressa à minha volta, pelas ruas percebemos o turvar dos céus, enquanto os candeeiros procuram contrariar, alumiando o possível, a ordem natural do acontecer, ouvia, ainda há pouco, sentada à secretária, “Vais ficar a fazer serão? Não vais para casa?” ou “Vais ficar a fazer serão? Então, até amanhã…”, malas quase arrancadas do chão, luzes apagadas com ferocidade, casacos vestidos sem olhar (não sei porquê, mas afigurou-se-me o oposto, em tempo e cerimónia, do gesto matinal), desarmoniosos passos por uma ansiada fuga (para onde?), tudo ao meu redor numa dessintonia veloz, e uma constância gritada (“Despacha-te! Despacha-te! Despacha-te!”) de uns para os outros, restavam dois ou três, não às secretárias, talvez olhassem o vazio de existir por mais um dia, quando resolvo levantar-me (“Não, não vou ficar a fazer serão…”), vou até ao cabide retirar o casaco, aí ouço, na espantada lonjura de mim, aquela frase, regresso à secretária pela mala, por fim, saio, creio que ainda ficara um, olhava as ruas anoitecidas pela janela, talvez espelhassem o desalento da sua alma, porém, o vazio da minha já me preenchia o bastante, desço até à garagem do edifício, aí chegada, sempre um esforço para relembrar onde o carro, como me pesa o pensar a esta hora, no fundo, pesa-me mais o existir que o pensar, ou talvez o inexistir, afinal, os passos contrariam-me os desejos, apesar de tudo, agrada-me a sensação de estar sentada atrás de um volante, a ilusão de um leme, apenas isso, a ilusão, há muito que a vida me ensinara algo tão fundamental: a haver um Inferno, não será um lugar assim tão longe do aqui, talvez pelo facto de a vida tanto gostar de se rir da nossa vontade, porém, o facto de, agora, neste exíguo espaço, na distância da minha realidade (as músicas sucedem-se fazendo-me caminhar pelas paisagens de mim, mostrando-me quantas já fui nesta vida, talvez não tantas assim, apenas os horizontes fossem mudando…), e na proximidade da dos outros, as ruas, a esta hora, povoadas de viaturas rumo a um sentido inequívoco (Lar? O que é isso de lar?), não sei porquê, a imagem daquele colega (olhava as ruas anoitecidas pela janela, talvez espelhassem o desalento da sua alma) regressa-me, será que ainda por lá continua? Deixo-me ir neste indolente cortejo, volta e meia um buzinar enraivecido, no fundo, mais um grito desesperado para ser salvo desta absurda corrente, resta-me a música, e quem eu fui, neste momento, ecoa uma que me relembra quando olhava o mundo com esperança (meu Deus! De facto, já fui tantas!), leva-me para amanheceres, uma confiança indefectível nos meus passos, hoje, que ironia, à minha volta apenas uma noite imensa e gritos desesperados (na distância da minha realidade e na proximidade da dos outros), ainda tenho, pelo menos, mais quarenta minutos neste pára e arranca até casa, amanhã tudo se repetirá, creio que sem um único desvio, e compreendo-me uma derrotada, mais uma vencida a quem a existência, na sua incessante ferocidade, empalideceu os sonhos, regresso-me com outra sonoridade, levanta-me memórias com aroma a ilusão, às vezes, confesso, questiono a sua veracidade, tal a perfeição desse acontecer, eu também outra, nessa fase os sonhos já se tinham turvado, porém, ao som destes acordes materializavam-se perante a minha incredulidade, daí a minha apatia, quando a venço, já a vida, na sua incessante ferocidade, tudo destruía, por aqui viajo, de longínquos amanheceres até ao arruinar de sonhos, sem sair deste exíguo espaço, e a lancinante dor de saber que amanhã tudo se repetirá, creio que sem um único desvio, agora, à minha frente, a ponte, regressa-me uma ideia com a idade do meu pensar, dizer adeus ao aqui, muitos apelidam de desistência, cobardia, fuga, nada disso, apenas a estupidez encontra uma voz, sempre considerei um acto de profunda coragem, de arrojo, um passo sem regresso para o desconhecido, no fundo, para a Verdade, e nunca será de desistência, mas sim de afirmação, porque só nos opomos ao Ser, logo, virar costas à vida é simultaneamente um acto de exaltação, e esta noite afigura-se-me a ideal para… Nem por acaso, neste instante, estou a meio da ponte, uma das melodias que elegi para o adeus ao aqui pelo ar, baixo o vidro, a noite nem está fria, estou tão afundada na minha dor que nem me vou aperceber, uma dor que me acompanhou cada respirar, tão poucas vezes se aquietou, vou regressar-me na sua companhia, saber-lhe a génese, talvez por lá se esqueça de mim e eu relembre o conceito de lar, continuo parada no meio da ponte, abro a porta do carro, chegou a hora do regresso, de repente compreendo-me uma privilegiada, ao menos tenho a possibilidade de escolher a hora, são vinte e trinta e três, passo o gradeamento para o outro lado, ouço gritos e múltiplas buzinadelas ao longe, tão ao longe, estou tão afundada na minha dor que nem me apercebo de uma mão estendida em súplica para me ater ao aqui, é tarde, estou cansada, muito cansada, só me resta um passo para cumprir o regresso. Mas se tudo fosse uma outra coisa… Se em vez de passar o gradeamento, a meio da ponte, eu permanecesse sentada atrás de um volante, a ilusão de um leme, e começasse a gizar o livro que me sugeriram escrever, mas eu nunca escrevi nada, sem ser, claro, o que a escolaridade me obrigou e menoridades quotidianas, como, de repente, posso alçar-me a tal empreitada (“Devias escrever um livro!”)? Como fazê-lo? O que tenho para contar? Eu nunca gostei de ler, ao contrário de meu irmão, o rosto sempre velado pela capa de um livro, achava perda de tempo, preferia viver, e os livros obrigatórios na escola, aborrecidíssimos, só me faziam bocejar, neste ponto, não me passou despercebido que as capas a velar o rosto de meu irmão não provinham de programas escolares, porém, a ideia enraizou-se-me, e germinou, não sei porquê, quase como se um imperativo de outra ordem, agora que reflicto nisto, eu nem ousei responder-lhe (“Devias escrever um livro!”), como se há muito a esperasse, um velho e poeirento espelho num subterrâneo de mim que não visitara e onde, de repente, me descubro, mas vou deixar-me de delongas, tenho algo em mim para verter numa folha de papel, porém, que história vou contar? A do silêncio da minha família? Os ecos dos mastigares às refeições? Quando olhamos o passado, num repente, por norma levantam-se dois ou três momentos de felicidade, pouco mais, reporto-me, claro, a espíritos elevados, que compreendem a felicidade como um estado de plenitude, os tolos conseguiam enumerar bem mais, mas não é com esses que vou ocupar a minha narrativa, curiosamente, se fizermos um balanço do caminho percorrido, procuramos luz, quase como uma justificação ao facto de aqui estarmos (como se nos disséssemos “Sim, valeu a pena”), pelo contrário, se falarmos tristeza, erguer-se-ão bem mais que dois ou três, há quem olhe para trás e vislumbre apenas uma longa noite, por aqui me situo, porém, há uma imagem que me povoa, uma indesejada inquilina que se alojou na alma, minha mãe sentada, de mãos nos joelhos, na minha cama, o paradigma da prostração, a informar-me da partida de meu pai (“Sabes, já não tínhamos conversa. Chega uma altura, na vida de todos os casais, mais cedo ou mais tarde, que isso sucede. Nessa circunstância, ou se procura o mundo do outro, para o verbo continuar a servir de ponte, ou o silêncio tornar-se-á ensurdecedor. Creio que, no nosso caso, foi por aqui…”), como tinha razão, eu, na altura, aquém de tais desígnios, limitei-me a ouvi-la, de onde estava, à secretária, mas lembro-me bem, cresceu-me uma onda de compaixão, quis abraçá-la, confortá-la, secar-lhe as verticais linhas salgadas que lhe desciam pelo rosto, contudo, permaneci imóvel, vencida pelo pudor, creio que nem a expressão consegui alterar, afinal, era habitante de um lar de silêncios, desde ali, pouco se alterou na rotina lá de casa, apenas denotei ainda menos ecos, afinal os passos de meu pai foram noutra direcção, aqui chegados, cresceu-me uma certeza: éramos de facto estranhos a partilhar um tecto! Como pôde, num repente da vida, deixar-nos, sem sequer uma palavra? Em verdade, doeu-me mais a ausência de um “adeus”, do que propriamente a sua partida. A facilidade com que se vira costas é proporcional ao carácter! Da parte de meu irmão, apenas registei, creio, a mudança da capa que lhe velava o rosto, pouco mais, minha mãe deve tê-lo informado igualmente no seu quarto, não raras vezes, enquanto arrumava a louça, apetecia-me partir um, dois ou mais pratos, para haver um pouco de barulho entre aquela paredes, no fundo, para me sentir viva, desconheço o porquê daquele naufrágio, ou talvez não, neste particular, as palavras daquela tarde, prostrada, com as mãos nos joelhos, espelharam o acontecer, conheceram-se no interior, eram de aldeias próximas, um percurso natural (em verdade, não sei o que é), o namoro, casamento, o apelo da cidade, porém, foi nele que mais ecoou, ela sempre reticente, os pais, a carência de horizontes, rostos conhecidos, acabou por ceder, e mudaram-se, ele bibliotecário, ela também na autarquia, mas noutro departamento, aquando férias ou fins-de-semana prolongados, de imediato, ela apontava à aldeia, pelos pais, sogros, um problema com a delimitação de uma terra, tudo era pretexto, ele contra-argumentava com um novo restaurante, de aromas e paladares longínquos, que deviam experimentar, os bilhetes mais baratos, para o futebol, que um colega arranjara, a estreia de um filme há muito ansiado, tudo era motivo para não regressar, inversamente tudo nela gritava por horizontes de há tanto, aqui começaram a olhar em direcções opostas (algum dia olharam na mesma? Os equívocos, pois, os equívocos…), e a caminhar também, desconheço se entre eles chegou a haver paixão, pelos relatos chegados da sua história, por avós e conhecidos, não me parece, embora a paixão não seja mensurável, o amor, num determinado sentido, sim, pode ser mensurável, a paixão não, é como uma febre de que somos acometidos, só há um horizonte, nada mais, o resto do mundo torna-se um acessório inútil, desde que me lembro, nos seus gestos e olhares, nem resquícios de um incêndio ido, uma distância e lisura no trato inversamente proporcionais a fogos e tormentas, acho que foi nos olhares, talvez por não se demorarem assim tanto, é natural, ela almejava distâncias, ele um labirinto ruidoso onde se pudesse esconder, ou perder, foi minha avó materna, certa noite, diante da lareira, que, não sei a que propósito, levantou a questão, foi depois daquela tarde, prostrada, mãos nos joelhos, desde então, sempre que a carteira permitia, rumávamos para a aldeia, regra geral, somente eu e minha mãe, nessa altura, meu irmão já na faculdade, cursava letras, escolha óbvia, curioso, às vezes acreditava que ele ia às aulas para ver se os professores ensinavam bem, outras esperava somente que os anos passassem para levantar o canudo, mas falava de um serão de lareira, um serão com sabor a meninice, pensava eu, as ondulantes chamas despertavam a menina adormecida no rosto de minha mãe, percebia-lhe uma alegria aquietada, tão distante de mãos nos joelhos, lembro-me bem, meu avô já se deitara, hábitos de há muito, neste mundo existem lugares onde a vida começa cedo, minha avó com a tenaz a juntar toros foragidos para o lume não esmorecer, olha o rosto da filha, sem nunca largar a tenaz, e “Já pensaste, tudo podia ser bem diferente… Bastava que, naquele dia, o…”, a frase silenciou-se-lhe porque o olhar a lembrou da minha presença, ao ouvi-la, desenhou-se sonho na face da filha, para meu espanto, respondeu “É bem verdade, minha mãe, é bem verdade”, bastava um gesto ter-se aquietado, um olhar demorado, talvez um passo subtraído, e o hoje uma soma distinta do ontem, minha avó  prosseguiu, não sei porquê, intuí que iam abrir divisões por mim desconhecidas, apesar de, desde sempre, conhecer a fachada do edifício, “Ninguém estava preparado para aquilo! Bem sei, vou repetir-me, mas há dias que nunca deviam ter existido! Esse foi um dos tais! Eu sabia onde vocês se encontravam, no lagar-seco, não é verdade? (Li um espanto infantil no olhar de minha mãe, como se lhe revelassem algo encoberto há pouco, e, realmente, foi há tanto, quase numa outra existência, que as palavras de sua mãe traziam para o agora, como se tudo ainda respirasse.) O teu pai nem desconfiava. Mas, sinceramente, nunca me ralei muito, bastava ver-vos a caminhar juntos, sabia que iam em direcção ao amanhã. Quantas vezes não sonhei com o vosso casamento? Já nem falo da mãe dele! Até nos tratávamos por comadres! Gente boa! Honrada! Pobres, mas limpos, se é que me faço entender… Por norma, os ricos não são dignos deste adjectivo, alguma vez ouviste de alguém dizer-se rico, mas limpo? Pois, lá está, não têm essa dignidade, afinal, não há dinheiro limpo! Desde a primária que vocês criaram o vosso mundo, até uma linguagem própria, ainda me lembro quando fizeram a casa na árvore, nesse Verão não voltaram a descer, eram muito miúdos, não nos preocupámos, houve uma altura, confesso, que vos vimos mais como irmãos, porém, não sei se te lembras, certa tarde regressávamos do rio, ele orgulhoso com o cesto cheio de lagostins, subíamos a colina, era Agosto, iam à minha frente, tu extenuada com o balde, ele pousa o cesto, acaricia-te o rosto, coloca o balde dentro do cesto, e leva-o colina acima, teria os seus onze anos, tu andarias pelos nove, nesse momento, compreendi que muito cedo foste coroada rainha, ele legara-te o seu coração, tempos depois, irias retribuir, mas ainda demoraste, é curioso hoje estar com esta conversa, se não fossem as actuais circunstâncias, provavelmente nunca a teríamos, desculpa-me se reabro uma ferida demasiado antiga e profunda, contudo, foste tão cedo coroada e a vida logo te destronou, e hoje és uma náufraga à mercê de uma corrente indistinta…” Continuava a ajeitar os inquietos toros que insistiam em ater-se ao aqui, não os compreendia, sempre me seduziram as cinzas, a jornada cumprida, prosseguiu, havia mais divisões encerradas, “Admirei-me quando, após o almoço, o vi partir com os demais, naquele Setembro, para a vindima, lembro-me bem, vocês disfarçavam a vinda do lagar-seco, o teu pai, coitado, ainda te via com dois ou três anos, sabes, é muito duro para um homem ter uma filha, acaba por sentir-se trocado, acredita, é muito doloroso, há mulheres que sofrem do mesmo com os filhos, mas, nessa fase, a meta do liceu já nos vossos horizontes, uma altura em que a natureza nos norteia os passos, a fase mais bela da vida, a juventude, uma fase indistinta entre duas realidades, a infância (o sonho) e a maturidade (a compreensão dos impossíveis), neste palco jogam-se os logros e as dores, repito, da mais bela fase da vida (a ânsia de tanger fantasias), meu Deus, o que para aqui vai… Bom, ele não era para ir, o teu pai, o vizinho e mais dois ajudantes lá foram, estes no atrelado, vocês, como sempre, abraçados, de repente, contra tudo o que seria expectável, como se uma chuva de Verão, ele beija-te e corre atrás do tractor, ainda não se afastara muito, olho-te e a tua expressão traduzia simultaneamente espanto, incredulidade e orgulho, por ele, nesse momento, procurar a outra realidade (a compreensão dos impossíveis), como se, através desse gesto, proclamasse que te esperava no amanhã, daí juntar-se aos homens que iam em busca “do pão nosso de cada dia” na forma do sagrado fruto da vinha, como ele correu, nenhum dos que lá ia se apercebeu da sua aproximação, ainda menos o teu pai, que ia ao volante, não lhe foi difícil, em corrida, ladear o tractor, talvez esse facto o tivesse descontraído em demasia, daí o salto…”, ainda com a tenaz, chegada a este ponto da narrativa, os silêncios sobrepuseram-se às palavras, percebi que não as procurava, antes pretendia ocultá-las, em verdade, não desejava reabrir uma ferida demasiado antiga e profunda, é possível que ao ladear o tractor, meu avô nem se apercebera de ter sido ladeado, com uma inesperada rapidez, esmorecesse-lhe a atenção, daí o salto ter sido descoordenado, o escorregar de uma perna, a queda de costas, a marcha da máquina impassível, indiferente, fria, apesar do mundo suspenso, sobretudo o vizinho, mais os dois ajudantes, que assistiam incrédulos, do atrelado, ao carácter irreversível dos acontecimentos, o terror calou-os, contudo, um, em esforço, ainda se esticou e pousou uma desesperada mão no ombro do meu avô para que parasse, alguém relatou isto, mas era tarde, a roda de trás dilacerava-lhe a perna, um pouco acima do joelho, o solavanco fê-lo imobilizar a viatura, o terror, entretanto, dera lugar ao pânico, e vozes levantaram-se em dessintonia, “Tu não esboçaste um gesto. Permaneceste imóvel, o teu olhar dizia adeus ao mundo, de certa forma, compreendias que algo se quebrava, coloquei-te as mãos nos ombros, lembras-te? Ainda hoje não sei se para me apoiar, se para te suster, pois, não sei… Estavas fria, petrificada, compreendi, naquele instante, que não amparava a minha filha, mas uma velha mulher, tão mais velha que eu, parecia encerrar em si toda a dor do mundo… Olhei-te discretamente, confesso que não tive coragem de te encarar, sim, é verdade, o teu olhar dizia adeus ao mundo, o vizinho e os dois ajudantes saltaram com a rapidez possível do atrelado, meu avô permaneceu sentado, de mãos na cabeça, a olhar a estrada que se pintava de escarlate, à sua volta o negro do alcatrão ia dando lugar à indescritível vermelhidão do sangue, simultaneamente símbolo de vida e morte, desde esse dia, o sono foi-lhe destruído, talvez a imagem da perna dilacerada, um pouco acima do joelho, uma massa mastigada de sangue, carne, osso, coberta por uma fina camada de ganga, que não ocultava a tragédia ocorrida, lhe regressasse, todas as noites, logo após fechar os olhos, como havia salientado, ele caiu de costas, porém, foi a cabeça a primeiramente embater no asfalto, a ambulância, médicos, enfermeiros, os gritos e vozes dissonantes à volta, tudo centrado na massa mastigada de sangue, carne, osso, coberta por uma fina camada de ganga, um dos ajudantes tirou o cinto e firmou um garrote, poucos compreenderam o seu gesto, tentava arrancar dos braços da morte aquele jovem, “Parece que foi há pouco. Avançaste, nem com lentidão nem com rapidez, apenas com um vigor resoluto, aproximaste-te dele caído, fiquei de onde estava a observar, nem um dedo consegui mobilizar, baixaste-te com uma graciosidade alada, como se todo o amor do mundo te fizesse descer à terra, ajoelhaste-te junto do seu rosto, nem olhaste a perna, parecias ter intuído o drama, passaste-lhe, num cuidado desmedido, a mão pelos cabelos, ainda hoje penso que, de cada vez, lhe murmuravas “Adeus… Adeus… Adeus… Nem uma lágrima derramaste naquela tarde, depois irias desmoronar”, de facto, minha mãe intuiu o drama, o embate da nuca no asfalto deixou marcas indeléveis, fractura craniana com sequelas irreversíveis, além da amputação traumática da perna ser irrecuperável, ainda hoje seria, acredito, esteve duas semanas nos cuidados intensivos, uma madrugada o telefone ressoou, sempre acreditei que o seu toque traduzia o conteúdo da mensagem, aquele era indubitavelmente funesto, a hora só adensava essa impressão, foi minha avó quem levantou o auscultador, cessando aquele estridente apelo arrastado, de minha mãe, naquele momento, só a luz do quarto acesa, meu avô permaneceu deitado, olhava um qualquer ponto indistinto no tecto, talvez se questionasse porque não travou para olhar o rosto sorridente que o ladeava, todos, naquela casa, perceberam cada sílaba daquele estridente apelo arrastado na madrugada, nem trinta segundos minha avó segurou o auscultador, após pousá-lo, dirigiu-se para o quarto de minha mãe, apesar da porta fechada, percebeu a luz acesa, hesitou em bater à porta, nem o gesto conseguiu imaginar, regressou ao seu, a porta ficara aberta, a luz também acesa, do fundo do longo corredor observou a silhueta deitada e imóvel do marido, continuava a olhar o tecto, um qualquer ponto indistinto, após fechar a porta, murmurou “Era do hospital. Acaba de falecer.” Deitou-se, nada mais foi dito nessa madrugada, embora ambos fossem povoados pelos mesmos pensamentos: “Tudo podia ser tão diferente… Tudo podia ser tão diferente… Bastava que…” É tão desmesurada a distância entre o pensar e o agir, aquele salto descoordenado, por exemplo, como um rapaz do campo, após tão facilmente, numa curta corrida, ladear um tractor em marcha, falha a sua execução? Por que paragens caminharia o seu pensar? Quão longínquo estaria da sua circunstância? O funeral foi um dia depois, às onze da manhã, a dor e o cortejo negro num flagrante contraste com a luminosidade excessiva do dia, além do calor liquefazer, por completo, o possível do horizonte – havia questões murmuradas acerca do porquê de meu avô não ter visto um rosto a ladeá-lo, como tal foi possível? De imediato, em surdina, houve vozes que aventaram o seu desagrado pelo namoro, a constante presença do rapaz –, meu avô, ao contrário da etiqueta, entrou antes da mulher e filha, com uma dor altiva, que se reflectia no rosto e gestos, dirigiu-se prontamente aos pais do rapaz, cercados por vultos de negro que somente lhes adensavam a dor, “Lembras-te de pouco, acredito… Ias apoiada em mim, daí a lentidão da nossa marcha, o teu pai, resoluto, nem nos esperou, foi directo aos compadres, já havia mexericos por não ter parado o tractor, esta gente é assim! Que fazer? Tudo é motivo para expelir o veneno que lhes corrói a alma, como se assim ficassem mais leves das culpas, a comadre, sentada a um canto, levantava o rosto com visível dificuldade, mas não deixava de cumprimentar e agradecer a quem ali foi prestar tributo ao seu único filho, a sua dor, contudo, era tão profunda e desmesurada que se lhe percebia, ao vislumbrar o rosto, uma queda iminente, o compadre, pelo contrário, estava uns metros à frente, de pé, abraçava e cumprimentava todos os que se aproximavam, numa imagem de força, pois, uma imagem, como se uma muralha antes da mulher, sentada a um canto, exangue, como se tivessem partido de si todas as razões para aqui continuar, parámos quando o teu pai se aproximou do compadre, creio que tudo parou, quando algo vai contra os nossos desejos é inata a procura de uma justificação, por outras palavras, de um culpado, mas ele nem hesitou, avançou ao encontro do teu pai, abriu mais os braços, e ali ficaram dois homens, endurecidos pelos Invernos da vida, a chorar, abraçados, o incompreensível do acontecer, houve quem afirmasse ter ouvido o compadre perguntar ao teu pai: “Depois disto, ainda acreditas em Deus?” Como resposta apenas o silêncio, olhou para trás e mandou-nos avançar para cumprirmos o nosso dever. Foste tu a assumir a dianteira, o compadre ajoelhou-se para te abraçar, como se implorasse perdão por não ter sido suficiente a proteger o filho, e desmoronou-se em lágrimas, passavas-lhe a mão pela cabeça para confortá-lo, como o fizeras há dois dias com o filho caído na estrada, ajudaste-o a reerguer-se, se não fosse com a tua ajuda, aquele homem permaneceria caído, demorámos a alcançar a comadre, cercada por véus negros, não a víamos por continuar sentada, uma vez mais, avançaste, como por milagre, levantou-se e foi ao teu encontro, como se visse o filho, em pranto, repetiu-te ao ouvido (“Perdoa-nos, filha! Perdoa-nos, filha! Perdoa-nos, filha! Não vamos cumprir com o vosso casamento… Acredita: jamais alguém te amará como ele! Jamais! A nossa vida acabou! Hoje, eu e o meu marido também morremos. Daqui para a frente, limitamo-nos a respirar e pouco mais… Quanto a ti, tem cuidado, não procures sarar à pressa a ferida que carregas no peito. Talvez ainda a possas abrir mais…), por fim, foi a tua vez de desabar, um oceano desceu-te pelos olhos, compreendi o porquê, a mãe dele trouxe-te à realidade ao apontar-te o futuro, o lugar onde infelizmente jamais o encontrarias, e apercebeste-te subitamente desse facto, aí foste vencida pela dor, foi angustiante assistir ao vosso sofrimento partilhado, seria a tua vez de encontrar o chão não fosse estares amparada pelos seus fragilizados braços, procurou, tanto quanto podia, secar-te o rosto, mas compreendeu a impossibilidade, as vossas dores equivaliam-se, se um homem entra no mundo por uma mulher, dele quer sair amparado por outra, aquela que elegeu para lhe acompanhar os passos, não havia dúvidas de que, no coração daquela mulher, eras a eleita do filho, desde sempre, insistia em secar-te o rosto, por fim, com um miraculoso quase sorriso, disse: “Lembra-te: não procures sarar à pressa a ferida que carregas no peito. Mas não a cultives. Muito cedo, a vida anoiteceu para ti, mas vai haver amanhãs… Há sempre um amanhã após a madrugada, por muito que demore a chegar…”, beijou-te a testa e regressou ao seu lugar, procurei aproximar-me para cumprir o meu dever, contudo, logo foi cercada e quase engolida por múltiplos véus negros.” Uma questão nasceu-me: o que sabemos do outro? Minha mãe, tão cedo a vida dilacerou-a, de facto, já havia uma sombra no seu rosto, talvez eu só tenha reparado naquela tarde, sentada diante de mim, de mãos nos joelhos, vistas daqui as coisas, acho que estaria mais preocupada comigo, como reagiria à partida de meu pai, do que propriamente consigo, afinal, quantas vezes, numa vida, o coração vence a razão? Compreendo que não foi com meu pai, vistas daqui as coisas, ainda bem, não revelou ser digno de tal, de forma alguma conseguiu sarar a lancinante ferida que ela trazia no peito, ainda ecos de minha avó, com o tempo, o rosto difuso, mas a voz mais nítida, continua a acompanhar-nos até ao último adeus, “Mais ou menos dois meses depois, partiram. Venderam tudo e foram-se embora. Houve quem falasse no estrangeiro, Suíça ou França, também se falou no Brasil, a verdade é que nunca mais os vimos. Embora o filho ali esteja sepultado. Não há relatos de visitas à campa, compreende-se, é no peito que carregamos os mortos. Daí que saiba, há muito, que nunca amaste o homem com quem vieste a constituir família. Mais te digo: o facto de se ter ido embora, para ti, foi um alívio. Não falo dos teus filhos, mas sim de ti! No teu íntimo, libertaste-te de um peso… E que peso! Três anos após aquela fatídica manhã, curioso, agora que falo nisto, nem me recordo que destino teve o maldito tractor… Apenas sei que o teu pai nunca mais conduziu nenhum! Bom, como dizia, três anos depois, seria Sábado de tarde, ele à porta, a insistir para o acompanhares a uma matiné que iam organizar no centro cívico, olhavas-me hesitante, como se me pedisses que arranjasse uma desculpa de última hora, não te podia socorrer, há decisões que cada um deve tomar por inteiro, jamais devemos intervir, sobretudo com os filhos, e lá o acompanhaste, fiquei a ver-vos do portão, ele falava, falava, falava, tu só anuías, por educação, pareceu-me, não sei porquê, que só o teu corpo o acompanhava, magro, desarticulado, uma marcha robótica, a tua alma estaria sentada no ramo de uma árvore, ou a meu lado, a acompanhar-lhes os passos, compreendi, nesse momento, que a felicidade te era impossível. Tive esperanças, confesso, quando ele começou a rondar a casa, a acompanhar-te até ao portão, de olhar embevecido e lentos gestos, porém, nessa tarde de Sábado, tudo se esboroou, no momento em que te viraste para trás e o teu olhar se fixou num certo ponto da estrada, não, não ias ser feliz, muito menos ao lado desse palrador sem espessura, precisavas de povoar os silêncios em demasia que te habitavam, cumpriu esse propósito, por uns tempos, creio, suavizou a tua expressão, mas, em verdade, nunca chegou a amanhecer a tua alma, estou errada?”, o rosto de minha mãe permaneceu com a mesma luminosidade ondulante, minha avó sabia há muito ler silêncios, a filha tornara-se uma habitante destes, são aqueles que compreendem a desmedida distância entre o querer e o acontecer, por outras palavras: entre sonho e realidade; se a vida cedo a subtraiu do essencial, restou-lhe deixar-se ir, muito subterraneamente equacionou cessar tudo, não encontrava a mínima razão para respirar, contudo, apercebeu-se da sua fraqueza em dar o passo essencial, pouco depois, compreendeu tratar-se de cobardia, indiscutivelmente, era demasiado cobarde para cumprir com a sua saída voluntária de palco, que fazer? Nunca é fácil olharmos as nossas fraquezas, então quando condicionam os nossos desejos torna-se ainda mais doloroso, assim sendo, o desejo de saída de palco de minha mãe viu-se vedado por uma fraqueza sua, talvez inata, porém, nunca foi de explosões, de exteriorizar muito as cores da alma, alegrias histriónicas, era uma habitante da discrição, por infortúnio, somou-lhe o silêncio. Diante do espelho de si e após tudo sopesar, optou por deixar-se ir na voragem dos dias, se assim não fosse, hoje aqui não estaria a narrar os seus passos, nos dias que se seguiram àquela lancinante manhã, muito se discutiu acerca da sua reacção face ao local onde tudo se desenrolou, se deviam evitar seguir por aquela estrada, se ela se descontrolaria, se, se… Quando o pisca esquerdo da carrinha indicava a futura manobra, embora o destino (a mercearia onde se iam abastecer mensalmente) ficasse bem mais próximo, caso virassem à direita, cerca de oitocentos metros, a voz dela numa quase evidência (“Por que é que não vamos pelo caminho habitual? Têm de ir a mais algum lado?”), não foi tanto o conteúdo da questão, mas a naturalidade somada a uma evidência que os deixou tolhidos, como se nada, por ali, tivesse acontecido, nenhum símbolo se levantasse no pensar, “A tua voz, dessa manhã, ainda aqui, sabes? Senti um indescritível orgulho por ti, minha filha. Sem traumas, pavores, receios, medos, nada… A tua voz soou num espanto natural, nascido da mais elementar evidência (“Por que é que não vamos pelo caminho habitual?”), fiquei tão orgulhosa, embora vislumbrasse o trilho que percorreras: resolveste assimilar, em ti, toda a dor do sucedido. Foste cautelosa e não deixaste derramar nada à tua volta, daí não encontrares, no mundo, vestígios do sucedido. Corrige-me se estou enganada!”, minha mãe continuava, perdida, com o olhar a reflectir as ondulantes chamas que buscavam as alturas, o silêncio tem o dom de não levantar mais questões, minha avó sabia-o há tanto, compreenderam, quando ouviram a pergunta da filha (“Por que é que não vamos pelo caminho habitual?”), nessa manhã, enquanto a luz do pisca audível na sua habitual cadência, que não tinham de intervir no acontecimento mais radical da sua vida, limitaram-se a assistir, impassivelmente, no conforto da plateia, ao terror inicial dar lugar à mais profunda das dores, foi tal a evidência do acontecer que nem tenha passado pela fase da incredulidade, não houve tempo, espaço, nada, os factos assolaram-na sem bater à porta do “eu”, limitaram-se a  irromper com toda a ferocidade e inclemência da vida, por conseguinte, só ela poder-se-ia reerguer, quando estimaram dois anos para o efeito, qual o seu espanto ao ouvir aquela matinal questão, mas iludiram-se, ou acharam mais conveniente que assim fosse, no fim de contas, era necessário que se continuasse a respirar naquela casa, prosseguir com a vida, havia muita coisa pendente, dívidas a serem cobradas, prazos para cumprir, um possível investimento em análise, pois, quantas vezes a ilusão não ajuda a retomar o caminho? E não há maior ilusão de que um amanhã melhor. Foi o que aconteceu, certo é que, desde então, minha mãe passou a caminhar sobre a terra com demasiados ecos em si, como uma casa despida de móveis, sem vidros nas janelas, por onde os ventos se passeiam relembrando vazio, “Vou confessar-te uma coisa. A noite sempre aligeira o verbo. Aprendi, cedo, que o dia é para trabalhar, bom, falava em confissões, cá vai: nunca gostei dele! Não me espanta o vosso desenlace… Toda a aldeia sabia do sucedido, e, desde o início, ele obstinava-se em ignorar o vazio que te assolava, como se, à força, te virasse o rosto para o futuro, não quero com isto negar que teve efeitos positivos, contudo, parecia-me, não sei porquê, querer enterrar essa importantíssima parte da tua biografia, talvez a mais importante, isso é prática de quem quer alterar a identidade do outro. Além daquela recorrente conversa das vantagens de viver na cidade, lembras-te? Não importa o que estivesse a fazer, interrompia de imediato só para o olhar, e não era com boa cara, lá se refreava um pouco, todavia, acho que ele também nunca gostou muito de mim, isto geralmente acontece quando, desde o início, somos apanhados sem máscara perante alguém, ou por descuido, acidente, deixar cair, preguiça de a repor, a verdade é que nunca achei que te fosse fazer feliz. Tens o direito de me atirar à cara o porquê de não te ter avisado na altura, simplesmente respondia-te que nunca me senti no direito de intervir em juízo alheio, ainda menos no delicado campo do sentir. Realmente nunca pensei que desse em namoro, menos ainda em casamento, percebi que o cântico “das vantagens da vida citadina” começou a afigurar-se deveras sedutor, já não te era possível olhar aquele lado da estrada, disfarçavas dentro do possível, mas assimilaras cada fragmento de dor daquele dia, esse foi o teu equívoco: julgaste que bastava partir! Grande erro! Levamo-nos sempre connosco, com o tempo, também ele se apercebeu de que jamais entrara no teu peito, no fundo, nem sequer lhe abriste a porta, ele também não soube soar a campainha, limitou-se, do lado de fora, a conversar contigo à janela, meia-dúzia de banalidades, entediada como estavas, foste uma extraordinária ouvinte, ele entusiasmou-se, lá fez o seu número circense, pensou que gostaste, seguiram-se-lhe outros, quando o via aproximar-se só pensava Pobre tolo! Nunca irás conseguir entrar-lhe no coração! Ele insistiu, insistiu, insistiu, de falta de perseverança não o podemos acusar, e acabaste por enlear-te num equívoco, talvez o maior da tua vida, a ilusão de que irias povoar o vazio interior, sucedeu o inverso, como é óbvio, apenas aumentaste os ecos, quando ele estava caído no alcatrão, e tu, ajoelhada, passavas-lhe a mão pelos cabelos, não era só dele que te despedias, era também da tua felicidade. De certa forma, isto foi uma distracção, não duvides, de te confrontares com algo essencial: a impossibilidade de seres feliz! Nem a maternidade foi capaz de devolver o brilho que te via quando caminhavas a seu lado, vocês eram um, sempre em risos, confidências, cumplicidades, também se zangavam, como é natural, mas, no vosso caso, o orgulho não tinha quaisquer hipóteses com o amor, não se cansavam de olhar, às vezes parecia que o mundo invejava o vosso sentir, quando vinham do lagar-seco, nos últimos tempos, já jogavam no tabuleiro dos adultos, havia qualquer coisa na vossa expressão, não sei o quê, pareciam descidos dos céus”, percebi que minha avó se continha quando “lagar-seco” lhe aflorava aos lábios, talvez o pudor, minha mãe com uma expressão sonhada, debruçada para o passado, ainda hoje seu presente, afinal trazia-o no peito, mais tarde, bem mais tarde, as questões nascidas nesta noite irromperiam em mim numa sucessão vertiginosa (Se nunca o amou, porquê o casamento? E dois filhos? Não bastava um infeliz? Como pôde suportar? Firmar uma existência sem vestígios de sentir?), disciplinei-me para nunca nutrir compaixão por meu pai, não seria digno, entrou num contexto previamente conhecido, talvez a ilusão de que a faria esquecê-lo, pobre iludido, ambicionar conhecer o coração de uma mulher, cada um leva o seu tempo a compreender a matemática da existência, a maioria nem vislumbres destas singelezas, uma dor, talvez mais correctamente uma inquietude, alojou-se-me naquele difuso espaço entre pensar e sentir, afinal o grande amor da mãe um outro, um encolher de ombros e a coisa resolvida, porém, conheço-me o suficiente para saber que não é assim, as coisas que se me alojam naquele difuso espaço, entre pensar e sentir, são as que mais se demoram, creio que meu irmão longe, tão longe, destes factos, ou talvez não, quando terá resolvido esconder-se do mundo através da capa de um livro? Neste ponto, só me posso valer das perspectivas alheias, sempre lhe vi só capas, conhecia tantos títulos e escritores, era habitual ouvir que tinha uma boa cultura geral para a idade, eu preferia conhecer meu irmão, saber quem ele era, o porquê de ocultar o rosto num livro, cinco anos mais velho, apanhei-lhe a biografia já em curso, não era de saídas, de desporto, nem de namoros, pouca coisa o mobilizava, a não ser os livros, de onde lhe nascera tal fascínio? Nem como estudante se destacava por aí além, apenas regular, nunca repetiu qualquer ano, contudo, para tanta voragem de letras, esperar-se-ia algo mais, embora no Português estivesse acima da média, não se pode dizer que fosse conversador, apenas respondia quando necessário, só há pouco o compreendi, muito curioso, demorei a chegar onde tão prematuramente ele ancorou, todos carecemos de uma “fuga” ao aqui: amor, paixão, ódio, trabalho, dinheiro, religião, saúde, droga, arte, desporto, política, filhos, animal de estimação, moda, consumo, televisão, coleccionismo, comida, viajar, filantropia, misantropia, autocomiseração, memórias, raiva, tudo serve para algo essencial: a distracção de nós mesmos, como se um permanente adiar do confronto entre “o eu e o eu”, foi-me tão fácil, neste contexto, encontrar as saídas dos meus pais, para ele, trabalho, ela uma permanente refém das memórias, como se também jazesse para sempre no certo ponto de uma estrada, restava eu (Qual seria a minha opção de fuga? Ou ir-me-ia confrontar comigo mesma?), estas e ouras questões assolaram-me durante demasiado, quase se tornaram orgânicas, partes constituintes de mim, numa fase inicial nem questionava abdicar da primeira possibilidade,  era, para mim, um facto consumado, tal como morrer, a seu tempo compreendi, imperceptivelmente, que me enleava em planos de fuga, confesso ter somado tantos, e continuo a fazê-lo, foi uma frase a trazer-me esta compreensão (“Devias escrever um livro!”), naquelas paredes de silêncio, meu irmão optou por esticar o braço e puxar uma lombada da prateleira, poder-se-ia dizer que foi a opção mais fácil e a possível, contudo, pelo que apurei, teria menos de uma década e meia quando resolveu partir da sua circunstância, uma inusitada partida, e escolheu a senda das letras, em tão precoce idade poucos se atreveriam a caminhar por aí, mesmo mais tarde outras vias são bem mais populares e concorridas, creio que aquele silêncio o ensurdecia, o asfixiava, tinha de partir, o socorro na forma de um gesto fê-lo levantar  o braço e puxar uma lombada, como se um apoio ou uma janela para um horizonte de vozes e melodias, onde possivelmente alguém se sentasse diante de si e lhe perguntasse: “Quem és tu?” Em verdade, eu não sei o que fez meu irmão velar o rosto com a capa de um livro, por outras palavras, partir do quotidiano, também nunca lhe perguntei, as diferenças de idade e de género não concorriam para a proximidade, mas foi o silêncio reinante que, por ali, mais sufocou gestos e palavras, com o tempo, reparei que a volumetria dos livros se ia adensando, talvez fosse proporcional à nossa crescente insularidade naquele lar, fixei muitos dos títulos no lugar do seu rosto, achava alguns bem curiosos, claro que gostaria de saber a trama, porém, eu queria a vida, e só longe dali ser-me-ia possível encontrá-la, e o tempo, pois, via-o para ali deitado, a virar páginas, sentia uma angústia crescer-me por desperdiçar a existência daquela forma, o carácter irrecuperável do tempo diante dos meus olhos, apetecia-me gritar-lhe, arrancar-lhe o livro das mãos e atirá-lo pela janela, mas nunca esbocei tal gesto, não tinha esse direito e ainda menos a autoridade para tal, assim sendo, à superfície tudo se mantinha imperturbável, contudo, pensar e sentir num tumulto incessantes, pelo menos em mim, como vivemos mediante “eternidades circunstanciais”, olhamos as coisas sempre numa perspectiva de imutabilidade, há primeiramente uma tendência de aceitar a realidade tal como nos surge, daí o permanente adiar do confronto, com o meu irmão, do porquê do livro,

 

ENTARDECER

 

Desperto e compreendo que não desejo viver, permaneço de olhos fechados, no desespero de saber que este é o mais doloroso dia da semana, Domingo, desde miúda, nunca gostei do Domingo, uma antipatia que se foi fortalecendo com o tempo, creio que o próprio dia também não gostava de mim, olhava-o no terror de como havia de lhe sobreviver? Ele ainda dormia, um respirar pesado, só costas, abri os olhos e fixei o tecto por pouco, o pensar rapidamente levou-me para outras paragens, para uma sensação de infância, um medo recorrente, o de acordar e ser a única habitante do mundo, todos teriam partido, sem adeus nem porquê, para algum lado, sem adeus nem porquê, eu percorria, primeiro, a casa, de divisão em divisão, chamava meus pais, para meu terror, nada, nem me ocorria gritar o nome de meu irmão, creio que não transpunha a barreira de uma capa, porém, o seu respirar, a meu lado, tinha, pelo menos, o dom de atenuar este e outros terrores com a idade da minha memória, é curioso, hoje encaro este solitário despertar como uma preciosidade, o tempo a oferecer-se para meu deleite, embora há muito a minha alma tenha anoitecido, permaneci, imóvel, a olhar o tecto, e uma verdade dolorosamente levantou-se (Já não o amo…), procurei contestá-la, questioná-la, contudo, reerguia-se (Já não o amo…), argumentei, talvez para me convencer, é uma fase, todos os casais passam por amanheceres e entardeceres, há-de passar, todavia, esta verdade olhou-me nos olhos (Já não o amo…). Não havia como fugir a este facto, foi-se-me enraizando, em pequenos nadas, a inclemente rotina, assassina de todo e qualquer vestígio de magia, até na memória consegue entrar e asfixiar ou empalidecer momentos que por aí respiravam, e esta realidade diante do meu pensar (Já não o amo…), levanta-se-me, não sei porquê, a imagem de meu pai, entrou numa história que não era sua, julgou que preencheria um vazio, mas ela estava cheia de memórias, não é possível lutar com um fantasma, demorou o seu tempo a inferir este facto, não se pode falar de soberba no seu caso, não, nada disso, talvez até, de início, fosse movido por compaixão, custava-lhe assistir ao anoitecer daquela beleza, minha mãe era muito bonita, mais do que eu, certa vez, íamos as duas na rua, era eu jovem, e ouvi um comentário que ainda hoje para aqui ecoa (“Não há nada mais triste que uma filha mais feia que a mãe”), sabia disso, não precisava de ouvi-lo, na altura talvez fosse o tom comiserado a atingir-me, como se me fosse colocado um estigma por um qualquer desígnio transcendente (“Não há nada mais triste que uma filha mais feia que a mãe”), o sujeito falou para quem o acompanhava, nem reparei se homem ou mulher, confesso que me retraí, há coisas que sabemos, contudo, para conseguirmos persistir na nossa caminhada, simplesmente não as queremos ver atiradas à cara, pois, as evidências ocultadas, o indivíduo não procurou ser ofensivo, creio que nem se apercebeu de eu ter ouvido (“Não há nada mais triste que uma filha mais feia que a mãe”), mas o tom, a anuência de quem o acompanhava, nem reparei se homem ou mulher, apenas me apercebi da anuência, desconheço se minha mãe ouvira, contudo, o seu papel, naquele contexto, jamais poderia ser o de ouvinte, ainda hoje se lhe percebe a beleza, anoitecida é um facto, mas perdura, há um encanto na tristeza, para os melancólicos, a sua beleza estaria no auge, como os fascinados pelo Outono, o último estertor antes do fim invernoso das coisas, a natureza que grita toda a sua dor antes do regresso, no fundo, meu pai caminhava simultaneamente pelos trilhos da atracção, pelo que percebi vinha de há anos, embora nunca ousasse aproximar-se, e da compaixão, como se um imperativo ético, foi tão pronta a sua disponibilidade que ela se deixou ir, por muito que se argumente em contrário, sobretudo com teorias de pacotilha, a verdade é que em qualquer relação há sempre alguém com o ascendente ou na luta pela sua posse, no caso dos meus pais o segundo cenário jamais se manifestou, foi sempre ele a correr atrás de uma sombra, de facto, casou e viveu com a ruína de uma mulher, não sei em que momento se terá apercebido de que jamais lhe entraria no peito, como terá sido doloroso, a desistência, a capitulação, o confronto com uma ilusão assente em anos e anos de um caminho a dois, embora o rosto dela sempre virado para o ontem, desconheço se ele se apercebia desta realidade ou se insistia em não ver, dois filhos, Natal ou férias rumávamos fatalmente para a aldeia, eu gostava mais dos meus avós maternos, apesar de os outros também se desdobrarem em atenções, mas há elos que se estabelecem, enquanto para aqui andamos, que escapam inteiramente à razão, o olhar, a melodia da voz, o indizível do gesto que nos procura compreender, a expressão compassiva que nos apazigua temores nocturnos, ali respirava lar, com os outros, não sei porquê, nunca me senti além de uma visita, foi uns dias antes do Natal, teria os meus seis anos, despertei com a voz de meu pai a gritar o nome de minha mãe, uma, outra vez, repetiu a terceira, até minha avó intervir, estavam no piso térreo da casa, ouvia as vozes, mas não as palavras, levanto-me, desço ao seu encontro, quando me viram, diminuíram as palavras ao nível de murmúrios, só de os olhar compreendi três factos: minha mãe saíra sem avisar ninguém; meu pai só agora se apercebera desse facto; minha avó procurava acalmá-lo; viu-me, mas disfarçou a minha chegada, estava tomado de um visível transtorno, minha avó incitava-o a sentar-se, tinha colocado uma malga de sopa à sua frente, o seu destino seria arrefecer, uma questão foi-me inteligível “Onde?”, seguiu-se-lhe um murmúrio, vira costas, sai da cozinha, passa por mim como se eu não existisse, minha avó vem ao meu encontro, coloca-me as mãos nos ombros, acompanhadas pelas necessárias frases de ocasião (“Olá minha querida! Nem nos tínhamos apercebido da tua chegada! Anda! Vem tomar o teu pequeno-almoço…”), não ousei perguntar por meu pai, quem sabe se, após tanta insistência, quase a roçar o desespero, minha avó capitulasse e, praticamente em confissão, revelasse o rito da filha, sempre que vinham à aldeia, pelo menos uma madrugada, antes de o sol se erguer e de o mundo despertar, ela encaminha-se para um certo ponto onde, há anos, tantos que parece noutra vida, uma estrada se pintara de escarlate, aí chegada, senta-se, coloca a palma da mão sobre o asfalto arrefecido pela madrugada, no ponto exacto onde ele caíra, pelo menos assim lhe ditava o sentir, não trazia consigo nenhum objecto para homenagear, qualquer símbolo, nem ia como se um rito, constituía um reencontro, o retomar de um diálogo no preciso ponto onde fora interrompido, o lugar da tragédia passou a ser, para ela, o mais importante da sua existência, daí procurasse ali estar numa altura onde ninguém os incomodasse, interrompesse, desviasse as atenções, sublinhe-se não ser o receio de a considerarem perturbada, longe, muito longe, disso, apenas não queria ser incomodada, ficava o necessário, talvez regressasse logo que um primeiro som pelo mundo, como se a luz não fosse digna de assistir ao seu reencontro, talvez por ter presenciado a desunião, ela regressa serena, tantas frases que traduziam sentimentos encontraram a voz, de si partiram rumo a um lugar de adeus, onde crê que ele a espera, sempre de madrugada, daí o calor naquele ponto  onde, há anos, tantos que parece numa outra vida, a estrada se pintara de escarlate, saiu para o mundo ainda arrefecido e a brisa da fria madrugada envolveu-o, por alguns instantes refreou a passada, mas prontamente recuperou o ímpeto, há momentos, de facto, decisivos na nossa biografia, reveladores se vivemos uma ilusão ou se há alguma substância na relação com as coisas, era por aqui que caminhava o seu pensar enquanto estugava a passada, no fundo, e colocando as coisas numa perspectiva bem mais singela, queria apenas comprovar quem ela amava, se ao que partira há muito, se a ele, a sua passada era proporcional à desconfiança, as coisas foram-se enraizando em si, comentários avulsos de vizinhos e amigos, alguns bem dolorosos, retinha-os apesar de exteriorizar uma expressão impassível (“Ela nunca irá amar ninguém como aquele. Sim, sem dúvida, era e será o grande amor da sua vida… Coitada, nunca mais foi a mesma! Até os olhos perderam brilho… Nasceram um para o outro! Triste vida esta! Partiu tão novo… Este jamais conseguirá fazê-la esquecer o outro! Nem em sonhos! Bem se esforça, desdobra-se em atenções, mas o olhar dela não mente. Amava o primeiro! Este é um mero paliativo. Nada mais. Apesar dos filhos e tudo… Creio que se, por acaso, num belo dia, o outro lhe batesse à porta e lhe pegasse na mão, ela sairia a correr e nunca mais voltava”), acredito que o cenário encontrado não divergiu muito do imaginado, nem ousou aproximar-se, uma voz parecia ditar-lhe “Não tens esse direito! Não tens esse direito! Que fazes aqui? Por acaso, foste convidado?”, porém, oculto por um muro, obstinou-se em assistir ao desenrolar das coisas, e espontaneamente uma questão nasceu-lhe “Se fosse eu a partir, reagiria assim?”, algures na dúvida jaz a verdade, de facto lá estava ela, sentada, com a palma da mão direita assente no asfalto arrefecido pela madrugada, de onde estava não conseguia vislumbrar-lhe a expressão, apenas a postura indiciava a dor de uma alma anoitecida, ficou esclarecido, quis regressar mas faltaram-lhe as forças, talvez fosse o ânimo, múltiplas vozes ressoaram por si, uma vez mais, a dar corpo àqueles maliciosos comentários, a sua vida afigurou-se-lhe uma mentira, o casamento, os dois filhos, o lar, os problemas quotidianos, no fim de contas, ela sempre debruçada para a varanda do passado, pareceu-lhe uma estranha, mesmo ao olhar, nem a voz lhe sabia, aquele vulto sentado na estrada, como se em oração, a palma da mão direita aberta a sentir o pulsar da terra, tudo ali lhe era novo, no fundo desconhecia a paisagem que ela contemplava da varanda debruçada para o passado, sabia de quem se tratava, claro, todavia ser-lhe-ia impossível conceber a dimensão do sentir, esse intraduzível que nos habita, território de gestos e não de palavras, ficou ainda mais um pouco a olhar aquela desconhecida, algures entre a autocomiseração e o masoquismo, de facto era uma desconhecida, nada por ali lhe era familiar, aquela figura curvada para a terra, a transparecer uma dor tão lancinante que culmina na palma da mão assente num lugar de adeus, apenas um recorte na madrugada, o episódio de uma biografia alheia, longe, tão longe, da que respira há muito a seu lado, ou talvez tão próxima, na realidade, ele sempre o soube: “Se fosse eu a partir, reagiria assim?”, algures na dúvida jaz a verdade, quando se apercebeu, já regressava, o mundo em silêncio, como a aparência de um lugar calmo, quanta dor ali, onde ela agora está, um local de partida, quantos gritos, pânico, vozes em dessintonia, sobressalto, correrias, lágrimas, homenagens, flores de memória, até quem evitasse ali passar, o que não deixa de adicionar movimento ao lugar, para, agora, apenas a palma de uma mão em contacto com a superfície adormecida pela madrugada, como se não houvesse um antes e depois, ser apenas mais um lugar sob o céu deste existir, em verdade, tudo vive na memória, essa é a nossa realidade, o mundo apenas uma extensão do pensar, quase uma revolta pela indiferença das coisas face à nossa dor, como se não importássemos, estes e outros pensamentos acompanharam-lhe os passos, quem sabe se para o distrair do essencial, divisara uma desconhecida, sabia-lhe a dor de há muito, contudo, desconhecia-lhe a dimensão, naquele instante da madrugada tudo se lhe tornou tão nítido, ele jamais poderia rivalizar, no  peito dela, com o que partiu, caminhavam, lado-a-lado, há tanto, porém, ela sempre de rosto virado para o ontem, esta revelação doeu-lhe de uma forma indizível, sentia-a na sua essência, o curioso é não constituir uma novidade, como se um objecto oculto lá por casa, embora se saiba onde está, caso precisemos, caminhou, um pouco ao acaso, cabisbaixo, enquanto lhe nascia uma questão (“E agora, como irá ser? Não me é possível fingir que tudo está bem! Não me apetece também confrontá-la e originar mais uma discussão estéril. Mas não posso continuar a viver assim. Com uma mulher que ama outro, que com ele sonha, alimenta-se de memórias, sempre que em casa dos pais, levanta-se, de madrugada, e sai rumo ao lugar onde há tanto ele… Se continuar pelo trilho da indiferença, há décadas que nele persisto, ela grata, nem sei se o percebe, continua debruçada para o ontem, pelo menos vejo-lhe um quase sorriso. Enquanto me afundo na certeza da minha insuficiência: jamais trarei esta mulher ao presente, quanto mais virar-lhe o rosto para o amanhã. Aqui chegado, neste ponto da caminhada, compreendo viver uma ilusão. Achei que seria o principal inquilino do seu peito, hoje nem sei se lá cheguei a entrar… Acabou-se a indiferença. Discutir agiliza a desvelar máscaras, recuperar memórias, levantar verdades, procurar refúgios, já nada disto interessa, só me resta o adeus… Mas os filhos… Não, depois do que há pouco vi, nem sequer lhe conseguiria tocar! Os filhos também viveram uma mentira, porém, eu fui o mais iludido, ou talvez não, acomodei-me, tudo pela presunção de me ser possível virar um rosto para o amanhã”), ela entrou no quarto já as estrelas em adeus ao mundo, da sua alma também há muito haviam partido, ouviu-a chegar, manteve-se impassível, fingiu dormir, enquanto ela se deitava a seu lado, sentiu,  pela primeira vez, um oceano a separá-los, não, não podia persistir naquela mentira, e o mais doloroso era, na sua geografia existencial, não haver um lugar onde assente a palma da mão para se consumar um reencontro, como isso lhe doía, tudo se centrou nela, nunca foi de olhar para o lado, de questionar “e se…?”, de sorrisos fáceis perante um rosto que lhe agradasse a vista, olha-se, nesta madrugada, ao espelho de si, de costas para ela, num aparente sono, compreende, em definitivo, a ilusão que tanto alimentou (“virar-lhe o rosto para o amanhã”), os pais dela sabiam, a filha, tão novinha, começava a compreender o rosto da mãe numa outra direcção, instintivamente chegou-se mais para o seu lado da cama, enquanto o pensar num galope crescente, apesar do aparente sono, dizemo-nos tão pouco, o mundo é tão ruidoso, mas todos caminhamos para o silêncio, vamo-nos calando, calando, calando, até se levantar a evidência: “Para quê gastar verbo? Não vale a pena! Nada vai mudar”, ela aquém destas suas inferências, nem se apercebeu de que ele se afastara ligeiramente para o seu lado, estava tomada pela dor, era o seu alimento, talvez a sua razão de viver, chegamos a um ponto desta caminhada e, para não nos apearmos do caminho, a necessidade de um vislumbre onde nos agarrarmos para assim continuar à superfície das coisas, ouviu-a respirar pausadamente, sinal de que o seu pensar também em galope, ou talvez o sentir, nela o sentir sobrepunha-se ao pensar, sempre assim foi, ele, dolorosamente, compreendia a dificuldade em adormecer, e como precisava de partir dali, para longe, para bem longe, daquele pausado respirar, nisto levanta-se-lhe, vinda sabe lá de onde, a imagem daquela vizinha, com um  penteado peculiar, sempre de cigarro na mão, a voz rouca típica dos ávidos consumidores do cilindro fumegante, viúva por duas vezes, tinha uma filha, algo distante, só a espaços visitava a mãe, era do primeiro casamento, paixão de juventude, juras de amor eternas, apenas um fogo-fátuo, no início só procuramos o nosso reflexo no outro, quanto mais superfície espelhar, maior será o nosso encantamento, já viviam juntos, ela no sexto ou sétimo mês de gravidez, regressava do trabalho, ele com dois rostos do passado lá em casa, ela por acaso nunca engraçou, aqueles denominados amigos, uma palavra tão rara, preciosa, que se utiliza com uma indigna facilidade, mas regressemos ao contexto, ela volta do trabalho, supostamente ele devia estar na faculdade, nesta fase quem sustentava a casa era ela, acabara o curso e logo arranjou trabalho, os passos da maturidade para o feminino vão quase sempre por atalhos, assim que abre a porta uma nuvem ao seu encontro e um aroma a delírios, um momento, muito fugaz, de desespero atravessou-lhe o ser, hesitou entre virar costas e enfrentar nuvens e delírios, optou por este último, nunca foi de amanhãs, deixou a porta aberta e correu para as janelas, havia que despovoar o espaço de delírios, outros regressos houve onde se confrontou com a nuvem de delírios, a faculdade tornou-se uma miragem, enquanto a filha ganhava espaço dentro de si, ela exigia chão, ele ansiava por nuvens e delírios, começou a familiarizar-se com o paradeiro da bolsa dela, quando os insaciáveis envelopes mensais aportavam lá por casa, ela compreendeu a fonte dos delírios, quando faltavam cerca de seis semanas para a filha ser apresentada ao mundo, agastada com mais uma subtracção, confrontou-o, negou prontamente, a assumpção da culpa requer que a dignidade não tenha partido por completo, não era o caso dele, voltou a negar, num repente ela compreende a sua vida como um imenso erro, quem escolheu para lhe acompanhar os passos, caminhava sozinha, uma vida dentro de si, tão pouco deste lado à sua espera, recrimina-o, a voz eleva-se, de repente, os olhos fecham-se-lhe, demora a compreender o porquê, até ser acometida de uma dor brutal adicionada a uma tontura, um esforço por equilíbrio, entretanto sente um líquido quente escorrer-lhe pela face esquerda, médio e anelar instintivamente ao seu encontro, no meio deste torvelinho ouve a sua voz muito ao longe, tão distante, como se procurasse acordá-la, estaria a sonhar ou num pesadelo? “Desculpa! Desculpa! Desculpa! Por favor, perdoa-me… Não queria… Não queria… De forma alguma…”, Médio e anelar pintados de escarlate, olhou perplexa os dedos, ainda no esforço do equilíbrio, procurou um espelho para compreender o sucedido, a face esquerda vermelha, à noite ficaria roxa e dilatada, era do ouvido que provinha o fio escarlate que lhe descia pela face, em incredulidade pelo sucedido, tudo compreendeu, ele continuava à sua volta a repetir incessantemente as mesmas frases, estranhou ouvi-lo tão ao longe, reuniu todo o desprezo possível num olhar que derramou para aquele doravante estranho, pegou no telefone, encostou-o ao  ouvido direito e chamou as autoridades, desde esse dia não mais partilharam tecto e mesa, em verdade, não o viu por muito mais tempo, certa tarde soube que partira numa nuvem de delírios em casa de um dos tais denominados amigos, para além da nuvem já havia outros utensílios à sua volta, tudo apontava para uma viagem sem regresso, talvez fosse melhor assim, embora lhe tenha deixado duas marcas indeléveis: deixara de ouvir o mundo do lado esquerdo, e uma mãozita dentro da sua para guiar pelos caminhos do mundo, mais tarde, bem mais tarde, já a filha, por sua vez, segurava uma mãozita dentro da sua para guiar pelos caminhos do mundo, quando o seu olhar começou em demoras num rosto que ia ganhando espaço no seu peito, estava numa fase da vida em que o amor apenas uma memória, e nada doce, criara a filha sozinha, apesar das ajudas dos avós de ambos os lados, os pais dele sempre solícitos, não obstante o indisfarçável traço de vergonha quando o olhar incidia no acessório que ela trazia na orelha esquerda, os avós maternos também presentes, embora ela zelosa de alguma privacidade, conheceram-se entre chávenas de café e jornais folheados nos fins-de-semana de bairro, um primeiro cumprimento respeitoso, através da anuência do rosto, a seguir um já verbalizado (“Bom-dia” ou “Boa-tarde”), depois (“Bom-dia” ou “Boa-tarde”, “Como está” ou “Como vai?”), até que (“Olhe, não se quer sentar? Assim não tomamos o café sozinhos”), na presença dele, desde a primeira vez, nunca procurou a madeixa que disfarçava o acessório que trazia na orelha esquerda, não sentia a necessidade de representar, como se ele fosse um lugar de repouso, onde simplesmente se limitasse a ser, sem máscaras, conversas de ocasião, esforços para povoar os inconvenientes silêncios, como se indiciassem derrota ou falência de algo, quando, de facto, é nesses momentos que mais nos dizemos, era divorciado, descobrira uma traição e imediatamente avançou com os papéis, não quis cenas, discussões, cobranças, ajustes-de-contas, nada de confusão, apenas que cada um seguisse com a sua vida, viveu esses momentos como se sob anestesia, sentiu-se longe, tão longe, do acontecer, ela ainda com efémeras tentativas de reconciliação, pelo menos não ousou atentar a inteligência dele proclamando inocência, foi com um colega de trabalho, descobriu, como quase sempre sucede, num dia em que lhe quis fazer uma surpresa, quando se transforma a aparente e natural ordem do acontecer muito vem à tona, foi o que aconteceu, não lhe ficou sequer com vestígios de raiva ou azedume, nem se pode falar de desilusão, apenas quis sair de cena, como se um filme que não lhe interessasse, assim foi, curioso o facto de ela não ter ficado com o colega de trabalho, terminaram pouco depois, a felicidade, muitas vezes, caminha muito próxima do perigo, alimenta-se da adrenalina, edificadora de sonhos e quimeras, quando extinta, tudo se desvanece, e tornaram-se mais dois estranhos, ele não se espantou com o desfecho, nem se regozijou com o facto, em verdade, ele e a mulher apenas viviam sob o mesmo tecto, há muito se perceberam estranhos a partilhar lençóis e mesa, porém não ousavam verbalizá-lo, casaram novos, fruto de uma paixão adolescente, ao olhar para trás, por muito esforço realizado, nem vislumbre de uma ténue centelha, esse facto doía-lhe, mais até do que a traição, daí a sua indiferença face ao rumo do acontecer, certa tarde ela liga-lhe de um novo número, prontamente atende, pediu-lhe para se encontrarem, queria, ao menos, conversar sobre  o sucedido, ele, a certa altura, já cansado de tanta insistência, disse-lhe “Não vale a pena. O que lá vai, lá vai… Não há nada para justificar. Se eu me sentisse magoado, talvez houvesse. Mas nem isso! São escolhas, opões, que tomamos. Talvez por nos revermos mais no espelho que um outro nos dá. São factos da vida. Tenhamos, ao menos, a dignidade de os assumir. Não vamos ficar amigos, espero que não fiquemos inimigos, houve um tempo, nesta vida, em que fomos tudo um para o outro, acabou-se… Resta a memória, não a estraguemos”, após um necessário silêncio, ela respondeu com um resignado “Está bem”, o facto de a casa ser alugada agilizou despedidas, cada um procurou, em sentidos opostos, uma casa mais apertada, também não havia filhos para subsistir uma ponte, após as assinaturas, só se reencontraram dez meses depois, dias antes do Natal, entre sacos, canções, prendas, cor, nas filas de caixa, não havia possibilidade de disfarce ou fuga, estavam de frente, ela cumprimentou com um sorriso, ele devolveu de igual forma, enquanto pensava aqui está uma perfeita estranha e, há tão pouco, partilhávamos cama e gemidos, nada lhe ocorreu para suprimir aquele incómodo silêncio, percebeu, pela artificialidade desmesurada do sorriso dela, que o seu pensar caminharia também por aqui, agradeceram, em silêncio, a cada um dos múltiplos passantes por lhes ocultarem o olhar, não se recorda se foi ela primeiro a ser atendida, na memória apenas o esforço de erguer a mão para acenar um adeus, desde aí, não mais se reencontraram, tanto muda no espaço do viver, aqui está uma perfeita estranha e, há tão pouco, partilhávamos cama e gemidos, pensou ele, sempre esta ilusão de uma permanência, para morrer uma ilusão tem de nascer uma certeza, encantou-o uma aura de desamparo que nela havia, como se o mundo lhe estivesse em dívida, gostou da elegância no trato e gestos, não foi difícil saber a génese do acessório na orelha esquerda, apesar do esforço da teimosa madeixa em ocultá-lo (o que é um bairro se não uma aldeia?), a dívida do mundo teria de ser liquidada, ao contemplá-la, na discrição de uma segura distância, pôde compreender-se com mais nitidez, o logro do seu casamento, consequência da recorrente precipitação na juventude, o porquê da sua indiferença quando tudo desmoronou, há muito olhava horizontes e não se apercebia, estava acomodado à sua circunstância, a felicidade vive longe, tão longínqua, de comodidades e de circunstâncias banais, aquela mulher emanava uma estranha familiaridade, como se lhe soubesse a voz e os meneios há muito, começou por tímidos cumprimentos (“Bom-dia” ou “Boa-tarde”), depois (“Bom-dia” ou “Boa-tarde”, “Como está” ou “Como vai?”), até que (“Olhe, não se quer sentar? Assim não tomamos o café sozinhos”), tinha razão, sabia-lhe a voz e os meneios há muito, mas tal não constituiu desapontamento, pelo contrário, afigurou-se-lhe um ansiado regresso ao lar, ela também sabia da sua ferida original (o que é um bairro se não uma aldeia?), o café prolongou-se ritmado pela serenidade do diálogo, aqui e ali alimentado pelas oportunas questões, já não tinham idade nem paciência para galanteios estéreis ou exibicionismos fúteis, à medida que se foram desvelando não houve surpresas, curioso, nem desilusões, ele publicitário, ela mediadora-imobiliária, ambos vendiam sonhos, porém, armazenavam desilusões, muito gosta a vida de se rir, bem alto, na nossa  cara, nunca se lembrou da madeixa para esconder o acessório da orelha esquerda, sinal de que não representava, limitava-se a ser, fascinava-o a espontaneidade dela, como se constituísse um recomeço, no fundo, um renascer, ao café seguiu-se outro, e mais outro, um almoço ao fim-de-semana, a aparente fragilidade dela encantava-o, já a sua força interior constituía, para ele, o necessário porto-de-abrigo, ela seduzida pela serenidade dos seus gestos e voz, tão importante para quem experienciara a dilacerante brutalidade humana, a singular capacidade, sempre com um atento sorriso, de bom-ouvinte, mais cafés, um jantar, ainda um almoço, até que já não conseguiam caminhar sós, ela chegou a confessar à mãe que encontrara o amor da sua vida, ninguém a conhece tão bem como ele, nunca falaram do acessório nem da sua génese, também não houve necessidade, só por uma vez “Sabes, às vezes gostava de ter um aparelho, no ouvido, para o desligar, assim que visse certos boçais”, ela riu-se com a espontaneidade da frase, promoveu  um almoço, em sua casa, para o apresentar à filha, genro e neta, no fundo, a sua família, fê-lo para oficializar a relação ou talvez ainda houvesse, em si, a menina receosa carente da aprovação exterior,  imperou a educação, por parte da filha, o genro mais caloroso, tal como a neta, próprio da infância, à educação respondeu com educação, ao calor devolveu calor, apenas e só, ela apreciou sobremaneira a sua postura, quando a filha, com a desculpa da menina, disse que tinha de ir embora, ela agradeceu em silêncio e puxou de um cigarro para descontrair, ele aproximou-se em lentos passos, retirou-lhe, com delicadeza, o cilindro fumegante de entre indicador e médio, disse-lhe ao ouvido “Isso faz-te mal. Quero-te a meu lado para o resto da vida”, nesse momento apercebeu-se de que já o amava, nunca houve sobreposição de vozes, portas a reflectir fúrias, passos em dessintonia, quando, certa manhã, talvez fosse fim-de-semana, implorou-lhe que não levantasse o estore,  uma dor-de-cabeça lancinante, decidira que as malas dela viriam para sua casa, após uma análise cuidadosa, acharam ser o mais viável, à educação da filha devolvia-se apenas educação, por conseguinte, assim ficou decidido, moravam a duas pracetas de distância, ela, como é natural, julgou que ele quisesse dormir um pouco mais, embora o tom, numa súplica arrastada, a deixasse de sobreaviso, virou-se para ele e, enquanto lhe passava carinhosamente os dedos nos cabelos, perguntou-lhe: “Estás bem? Dói-te alguma coisa?”, é  tão velho e sabido que pergunta e resposta nascem geminadas, saiu-lhe um lamento, “Dói-me muito… A cabeça… Mas mesmo muito… Deixa-me ficar assim mais uns minutos… A ver se passa!”, qualquer coisa dentro dela ficou alerta, pois, o tom, numa súplica arrastada, haveria outras dores-de-cabeça, igualmente lancinantes, noutros contextos, os habituais comprimidos, para estes cenários, desde aquela manhã revelaram-se infrutíferos, médico, exames, de novo médico, quando o seu olhar recaiu na TAC, não pôde disfarçar o traço de pânico, pegou no exame e disse-lhes, quase em surdina, que ia pedir uma segunda opinião, em verdade, pediu segunda, terceira e quarta, regressou com uma colega ao gabinete, achou mais prudente assim, infelizmente há notícias que têm de ser dadas no feminino, talvez pelo facto da morte ser uma mulher, ele e ela, ainda sentados, compreenderam há muito o horizonte nocturno, o anoitecer começou naquela manhã, as dores eram-lhe indescritíveis, ela também intuiu a chegada da noite, o tom, numa súplica arrastada, foi a médica quem, de facto, transmitiu o conteúdo daqueles papéis impressos com mais esquemas do que palavras, os dois de pé, talvez para transmitir um ar professoral, quando ambos, estarrecidos com as notícias,  precisavam de um ombro onde se amparar, apesar de ele se apoiar na mesa, era-lhe inconcebível transmitir prazos-de-validade a alguém, não seguira medicina para isto, pouco resta na memória de ambos deste dia, após o diagnóstico não se recordam de mais qualquer sílaba ali proferida pela médica, nem de saírem da clínica, nem de como chegaram a casa, como se ambos simultaneamente tivessem partido para bem longe e apenas os corpos aqui ficassem largados, Se quiserem ouvir uma segunda opinião, posso dar-vos o contacto de… Se quiserem ouvir uma segunda opinião, posso dar-vos o contacto de… “, esta frase regressou-lhes na manhã seguinte, após o anoitecer vespertino com as sílabas emitidas pela médica, não regressaram ao assunto, tudo foi debatido, entre eles, através de gestos e olhares, apenas e só, porém, declinaram mais opiniões, exames, consultas, passagens por clínicas ou hospitais, se o prazo-de-validade de um é conhecido, resolveram dar-lhe a devida dignidade, o problema da maioria é desconhecer o prazo-de-validade ou que se esgota a cada instante, a serenidade entre eles manteve-se, não houve alterações significativas ao dia-a-dia, iam ao café e davam os seus passeios de mão dada, ele gostava muito de parar no quiosque, num dos extremos da praceta, para ler os cabeçalhos e de discutir um pouco de bola, embora fossem de clubes rivais, às vezes, mediante o resultado, um deles lá ficava com um sorrisito amarelo, contingências próprias das paixões clubísticas, com o tempo, a medicação avolumou-se e, volta e meia, “Dói-me muito… A cabeça… Mas mesmo muito… Deixa-me ficar assim mais uns minutinhos… A ver se passa!”, numa dessas vezes, ela deteve-se diante de um espelho e pensou na ironia de tudo, enquanto dialogava, segundo a sua razão, com Deus, o seu olhar no acessório da orelha esquerda, as pegadas da vida pelo seu rosto, a gritante artificialidade da cor do cabelo, os ombros descaídos para a frente, a escassez de brilho no olhar do hoje, o pensar caminhou pela génese do acessório na orelha esquerda, relembrou o facto de a filha se ter colocado, desde muito cedo, na outra margem, como um veredicto de culpa impronunciável pela separação, nunca se lhe contou a génese do acessório na orelha esquerda, talvez julgasse  ser de nascença e por pudor não questionasse, o tempo de si consagrado à educação da filha, era o que lhe restava para se agarrar ao aqui, quando a filha prestes a terminar o liceu, faculdade à vista, sentiu necessidade de reforçar os laços ao aqui, ofereceram-lhe um gato, iniciativa de uma colega de trabalho, mais velha, solteirona, as conversas balizavam-se entre trabalho e culinária, sobretudo doces, ou trabalho e gatos, não gostava de cães, dizia que eram barulhentos e sujos, ao contrário dos gatos, além de uma inextinguível sede de atenção, não teria usado propriamente estas palavras, mas era a ideia que procurava transmitir, é comum senhoras nestas circunstâncias, com o Inverno da vida a bater-lhes à porta, valerem-se de tudo que lhes possa relembrar calor e vida, daí as suas redes-sociais espelharem a circunstância de uma solidão imensa maquilhada por infindáveis fotos do felino doméstico, ela recebeu o gato com um entusiasmo de menina de seis anos, gostou dessa sensação, parecia ter chegado de uma outra vida, de um ontem tão ontem, no fim, de facto, foi quem estava à sua espera no apartamento deserto, por ali só o som do vazio, pousou a chave no prato de cobre sobre a mesa-de-entrada, deixou-se cair no sofá da sala, não havia forças para mais, tantos gritos dentro de si enquanto, à sua volta, apenas o som do vazio, saltou para as costas do sofá, numa passada cautelosa desceu até se aninhar no seu colo, olhou-a numa tentativa de a confortar, porém sentia-se esmagada por uma dor que lhe anoiteceu a alma, nessa manhã, pelos interstícios do estore, percebia-se que a vida regressava ao mundo, o ar saturado do quarto branco, demasiado minimalista, das alturas o gotejar contínuo braço adentro, ela sentada na única cadeira, do lado da janela, de frente para a porta, próxima da cabeceira da cama, despertou sem motivo aparente, de mediato compreendeu a sua circunstância, pegou-lhe na mão, estava mais fria, mirou-lhe o rosto, não chamou ninguém, estava como sempre o conheceu, sereno, ostentava um sorriso, o rosto começou a diluir-se-lhe, as lágrimas irrompiam de si e precipitavam-se pela face, na presença dele, desde a primeira vez, nunca procurou a madeixa que disfarçava o acessório que trazia na orelha esquerda, não sentia a necessidade de representar, como se ele fosse um lugar de repouso, onde simplesmente se limitasse a ser, sem máscaras, conversas de ocasião, esforços para povoar os inconvenientes silêncios, como se indiciassem derrota ou falência de algo, quando, de facto, é nesses momentos que mais nos dizemos, lá fora a vida regressava ao mundo, daquele quarto partira, em verdade partiram duas, uma frase ela só  lamentou com a voz do seu pensar (“Nunca te disse que foste o amor da minha vida! Nunca te disse que foste o amor da minha vida! Nunca te disse que foste o amor da minha vida!”), o olhar persistia-se-lhe turvado, a alma derramava-se pela face sob a forma de sal líquido, entraram dois enfermeiros, veio mais gente pouco depois, não se lembra de mais nada desse dia, só regressou a si na manhã seguinte, de onde viera, a esta hora, a imagem daquela vizinha, com um  penteado peculiar, sempre de cigarro na mão, a voz rouca típica dos ávidos consumidores do cilindro fumegante, somos criaturas tão estranhas, pensou, ainda a vizinha, quando encontrou o amor, logo a vida a subtraí-lo, felizmente não enlouqueceu, o devir simultaneamente irónico e inclemente, como se um gozo cruel neste incessante jogo do dá e tira, um regozijo em contemplar o nosso desespero pela orfandade restituída, e se um sentido em tudo, aqui chegados, apenas um absurdo por este anoitecido deserto em volta, restavam-lhe o trabalho e o gato, a filha numa distância crescente, às vezes vamos buscar inspiração a vultos que nem sonham, a certa altura, serem o motivo de nos reerguermos para caminhar, a vida tem cada subtileza, certamente a vizinha nem se lembra da sua existência, ou se, em alguma ocasião, terá parado para pensá-lo, ignoramos demasiado e arrogamo-nos tão sabedores, ficou sublinhado, no fim,  que ambos encontraram o amor, quantos aquém de tal desígnio, ele pertence a estes malfadados, atingiu meio-século de existência, na melhor das hipóteses terá, pela frente, década e meia com um estado de saúde razoável, casado com uma mulher que sempre amou outro, aqui chegado, depois do que testemunhou esta madrugada, ninguém lhe consegue demover desta convicção, dois filhos, a vida surge-lhe como uma imensa mentira, curioso, ali deitado, ela a seu lado, recém-chegada de um encontro com o passado, no lugar que lhe esvaziou, quase por completo, o sentir, viu-se, de novo, um menino, o mundo parecia-lhe um lugar desmedido, tal a sua insuficiência para solucionar os problemas no caminho, como se, uma vez mais, o quarto às escuras, mil e um monstros o espreitassem e ele tivesse de puxar o cobertor até à cabeça para se sentir minimamente protegido, de certa forma, nunca deixámos de ser essa criança, muitos podem tê-la esquecido,  mas os monstros continuam à espreita no escuro, deixou cair a sua habitual deferência para com ela, algo tinha de mudar, em verdade receava que nem se apercebesse, porém, estava resoluto, decidiu também pedir aconselhamento profissional, quando se está perdido numa noite infinda qualquer porta se afigura lar, um pouco tacteante, em conversa com um colega de trabalho, que se lhe afigurava conhecedor da área, perguntou-lhe por alguém competente e com a devida sensibilidade humana, como sempre sucede nestes contextos (“É para um amigo. Está a passar por uma fase muito difícil… Excesso de trabalho, o casamento já conheceu melhores dias, enfim, sabes como é, o habitual destes estranhos dias que vivemos…”), prontamente deu-lhe logo um nome e o respectivo contacto, até estranhou, como se aguardasse pela pergunta, acrescentou (“Tenho a certeza de que o teu amigo irá gostar!”), pareceu-lhe irónica a frase, arrastada aquando do “teu amigo…”, ou talvez fosse a sua imaginação em galope, pois, aquelas coisas que sempre ficam suspensas no espaço entre o nós e os outros, procurou disfarçar qualquer vislumbre de embaraço, agradeceu e acrescentou (“Vou passar-lhe o contacto ainda hoje! Muito obrigado! Depois dou-te eco se ele gostou…”), a prontidão com que lhe lançou o nome e o respectivo contacto foi um reforço de confiança na sua decisão de procurar uma porta iluminada na infinda noite onde  se perdera, marcou para meio da semana, por volta da hora de almoço, ninguém lhe iria perguntar onde estava, viu-se numa rua ladeada de prédios altos, apesar da estrada larga, predominavam as sombras, a entrada do prédio passaria despercebida não fosse uma loja de motas mesmo ao lado, olhou com uma certa compaixão dois sujeitos, de meia-idade, o juízo já devia ter batido à porta, que olhavam, fascinados, para uma moto, propositadamente colocada no passeio para atrair as atenções dos passantes, a campainha do seu destino estava devidamente assinalada, tocou, a porta, de imediato, abriu-se, continuou a olhar os sujeitos à volta da mota, sempre ouvira falar na adrenalina de guiar uma viatura dessas, um vício que se enraíza, daí o fenómeno de culto, da loja provinha uma mescla de cheiros algures entre a borracha dos pneus, plásticos, gasolina, afigurou-se-lhe desagradável, talvez para os fiéis do culto fosse uma essência divina, antes de entrar deteve-se ainda a observá-los, crianças à volta de um ansiado brinquedo numa loja, enquanto subia os degraus, sucederam-lhe questões: “O que é amadurecer? Trocar as inocentes brincadeiras do ontem pelos perigos do hoje? Mostrar a todos que temos o brinquedo mais caro? Afirmar-nos, face ao outro, pelo espelho onde só nos encontramos?”, eram só dois andares, chegou rápido, desde há uns tempos empreendera em subir degraus, ouvira que é o melhor para o coração, a porta estava aberta, por educação anunciou batendo com os nós dos dedos, ouviu uma voz feminina amadurecida “Entre, entre…”, assim o fez, viu-se perante um corredor largo, percebia-se um indisfarçável rigor científico na decoração, nem faltava o clássico aquário, a suavidade dos tons das paredes também não lhe passou despercebida, sentiu-se confortável, apesar do indisfarçável rigor científico, sentada, atrás de um balcão, aguardava-o uma senhora forte, cordial, estaria perto dos sessenta, ou talvez já os tivesse dobrado, ele nunca se sentiu apto a vaticinar idades, manteve-se sentada, num tom baixo e arrastado, em consonância com a decoração, onde nem faltava o clássico aquário, questionou “Tem consulta com…?”, prontamente respondeu, sentiu-se incomodado com o pairar da questão, como se pudesse cair sobre si e fazê-lo desistir, por momentos vacilou, essa é a verdade, daí a sofreguidão da resposta, queria liquidar, desde já, todas as possíveis hesitações, se ali chegara, então teria de ir até ao fim, o tom baixo e arrastado fez-se, uma vez mais, ouvir “Só um bocadinho que já o chama…”, outro clássico, a espera, quase por hipnose o seu olhar no aquário, um fascínio inalterado desde a meninice, chegara a ter um, a estudar as diferenças, vantagens e desvantagens, de ter água quente ou fria, as espécies mais coloridas da quente, os  maiores  cuidados também, contudo, nunca conseguiu que o seu aquário se assemelhasse àquele, e não era por ser mais pequeno, até era de um tamanho bem razoável (cinquenta litros), a limpeza, arrumação, nitidez, tudo distante da sua experiência, como o tranquilizava fitar aquele universo líquido, o vai-e-vem contínuo os coloridos seres aquáticos, as suas incursões na exploração de rochas, plantas e do tradicional navio naufragado, regressava lentamente ao menino de ontem, quando uma voz, a seu lado, fê-lo voltar à sua circunstância, “Boa-Tarde! Podemos entrar, por aqui, se faz favor…”, demorou o necessário a regressar-se, de um menino sonhador a um adulto desencantado vai uma longa e nocturna jornada, de facto custou-lhe desviar a atenção daquele universo líquido, mas , se ali chegara, então teria de ir até ao fim, a voz proveio de um gabinete luminoso, o seu emissor estava sob a ombreira da porta, devolveu o cumprimento e para lá se dirigiu, apelidar de gabinete seria, em verdade, demasiado redutor, era um espaço de generosas dimensões, persistia a suavidade dos tons das paredes, sentiu-se confortável, apesar do indisfarçável rigor científico, o cenário de uma divisão caseira para ali transposto onde iria ser encenada uma peça, desta vez: a sua vida! Empatizou, de imediato, com o profissional, gostou desse aspecto, teria aproximadamente a sua idade, era baixo, frágil de compleição física, embora a um olhar mais atento não passasse despercebida uma batalha pela saúde, porém o seu olhar suplantava tudo, irradiava uma humanidade e compreensão das coisas há muito não vista, apontou-lhe o cadeirão, confortável, à sua frente, e questionou-o: “Então, o que o traz cá?”, a voz estava em sintonia com o olhar, provinha da alma, apreciou sobremaneira esta singularidade, logo ele que caminhava há tanto pelos trilhos da desconfiança, isso faz-nos esquecer o amanhã, não lhe passou despercebido o bloco-de-notas e a caneta, achou natural no contexto, bem que iria precisar desses  instrumentos para desenhar o percurso da sua existência, “Bom, sabe, temos um amigo comum, foi ele que me falou de si. Deu-me muito boas referências suas, e como estou numa encruzilhada…

- E que encruzilhada é essa?

- Não quer saber quem é esse amigo?

- Preferia que me falasse primeiro da encruzilhada onde se encontra.

- (Suspirou longamente, para se reencontrar e simultaneamente organizar ideias. Boa pergunta: de facto, que encruzilhada é essa? Como ali chegara? E agora, como converter isso em palavras, através de um fio narrativo plausível, para que um estranho a compreenda.) Bom, isso é complicado…

- Da minha parte, não se preocupe. O tempo é seu (Recostou-se ainda mais no cadeirão. Sentiu que lhe podia contar, quase, tudo. Que excelente sensação, diametralmente oposta à do dia-a-dia, em que nos escondemos cada vez mais, vamo-nos cavando, cavando, cavando, em busca de um refúgio onde não sejamos feridos, de repente percebemo-nos perdidos em nós, e do outro só o eco da voz, numa distância já intangível…)

- Pois… Compreendo… De facto, não sei por onde começar…

- Repito: o que o traz cá?

- Como já lhe disse, estou numa encruzilhada e preciso de ajuda… (Balbuciou as palavras e evitou o confronto visual, cruzou e descruzou as pernas, pelo menos duas vezes…)

- Muito bem. Até aí, já chegámos. E que encruzilhada é essa? (Enquanto construía a questão, inclinou-se ligeiramente para a frente, simultaneamente o olhar iluminou-se-lhe.)

- Se me devo ou não separar da minha mulher. (Soou a confissão de derrota. De resignação. Os ombros, ao mesmo tempo, descaíram-se-lhe para frente. O olhar não saía do chão!)

- E por que tem de fazer isso?

- É o que me resta! Pegar na pouca dignidade sobrante e partir…

- Continuo sem entender o porquê de tudo isso!

- A minha mulher já não me ama… Não, minto! Em verdade nunca me amou… É complicado! Teria de lhe explicar tudo desde o início…

- Mas não é para isso que aqui estamos? Quanto ao facto de a sua mulher não o amar, é você que o diz. Eu nada sei!

- Conhecemo-nos quase desde que nascemos. Éramos vizinhos numa aldeia, perto de Viseu. Andámos na mesma escola-primária. Sabe, desde que me lembro, sempre gostei dela… Mas ela acabou por namorar com outro! E depois sucedeu aquilo… (O olhar regressa-lhe aos sapatos.)

- Já percebi que lhe é doloroso falar de certas ocorrências do passado mais longínquo. Lá iremos, a seu tempo. Fale-me um pouco da sua circunstância presente, sei de si apenas que é casado, pretende separar-se porque, no seu entendimento, a sua mulher gosta de outro. Têm filhos? E como vai a sua vida profissional?

- Sou bibliotecário, funcionário da autarquia, detesto a minha profissão! Num certo momento da minha vida, não consigo especificar, creio que foi um lento e longo processo, perdi, por completo, o gosto pela leitura e pelos livros! Já não endeuso o objecto livro! Antes divinizava! Não havia semana que não lhes limpasse o pó lá em casa! Tinha, na minha biblioteca pessoal, perto de quatro mil livros! Alguns são autênticas raridades! Também não havia semana em que não comprasse, pelo menos, dois livros. Apesar de os ter no trabalho, poder trazê-los para ler em casa, eu preferia comprar. Sabe como é, percebê-lo meu, forma-se como que uma relação umbilical com o objecto, não perdia uma feira do livro, consultava diariamente o calendário dos livros-do-dia, se houvesse algum que me interessasse, lá ia eu adquiri-lo, cheguei a comprar livros repetidos, enfim… Com o tempo, foi-me afastando, afastando, afastando, até que se diluiu por completo esta paixão! Nem resquícios… Nada! Não sei se foi por não ter encontrado neles as respostas que procurava, se foi por ter escolhido viver, olhe, sei apenas que lhes virei as costas.

- Disse que não sabe se foi por não ter encontrado neles as respostas que procurava, certo? Respostas para que questões?

- São tantas… Já lhe dei a conhecer algumas. Se os livros me tivessem esclarecido, não estaria aqui consigo, não é verdade?

- É uma possibilidade. Ou talvez não lhe dessem a resposta que gostaria de ouvir. Esse risco também corre dentro destas paredes. Está ciente disso?

- Sabe, estou num ponto da minha existência em que já não corro mais riscos! Creio ser impossível a vida ferir-me mais! Casei-me com uma mulher para quem a vida cedo anoiteceu…

- O que quer dizer com essa imagem?

- Lembro-me tão bem, apesar da dor que me consome ao relembrar, ele e ela juntos, sempre em sorrisos, beijos, murmúrios, confidências, passos cadenciados, o amor reflectido no mínimo gesto, em cada olhar, parecia não haver força no mundo que os separasse, apesar deste contexto, os meus  olhos iluminavam-se à sua passagem ou quando o seu nome ecoava pelos ares, porém, é curioso, gostava de os ver juntos, como se uma harmonia nas coisas, sonhava, um dia, ser olhado daquela forma, agora que falo nisto, não sei se me apaixonei por ela ou se apenas queria estar no lugar dele, parecia bêbeda de amor, sim, é isso, não encontro melhor tradução dela a seu lado, e era recíproco, no fundo, todos, em silêncio, sonhamos com alguém a nosso lado bêbeda de amor, mas foi ele a ter essa fortuna, como o invejávamos, talvez, neste particular, eu me destacasse, tudo com a devida discrição, afinal, o meu  olhar iluminava-se à sua passagem ou quando o seu nome ecoava pelos ares, não me lembro quando o seu nome ecoou por todos os cantos do meu ser, é estranho, tinha uma intuição de que acabaríamos juntos, nunca pensei que fosse nestas circunstâncias, julgo que fosse Setembro, sim, era, iam para as vindimas ou vinham, não consigo precisar, ele cai do tractor, segundo ouvi na altura, calculou mal o tempo de salto, o crânio embateu no asfalto, uma das pernas desfeita pelas rodas, ambos cessaram ali as suas vidas, ele partiu, ela também, no seu lugar ficou uma velha que olha de uma janela da sua alma o ontem, nestes anos todos nunca lhe vi um riso espontâneo, completo, sempre tolhido, mesmo quando a vida lhe apresentou os filhos, uma alegria fragmentada, quando olhava o amanhã, logo uma sombra pelo rosto a relembrar-lhe que cedo anoitecera na sua vida, tão estranho, eu, incauto, achei-me capaz de lhe amanhecer definitivamente a existência, e acabei por anoitecer a minha, peço-lhe atenção para ver se me compreende, parece paradoxal, mas não é, eu percebi, cedo, que a maior parte do seu coração jazia com ele naquela estrada de Setembro, apesar disso, teimei, reencontrámo-nos, anos depois, num passeio da capital, perto da universidade, eu em Literatura, ela em Direito, ficam mesmo de frente, creio que sabe, o espanto dela ao ver-me, por momentos, fez-me pensar que ele fosse já um longínquo ontem na sua vida, eu, entretanto, assim que o meu olhar reconheceu a sua familiar silhueta, vi-me regressado ao momento  quando o seu nome ecoou por todos os cantos do meu ser, o minha expressão prontamente lhe sorriu, pela incredulidade de ali estar, perante mim, com um sorriso também de espanto por me ver, nessa tarde, na capital, de lhe perceber o traje-académico, os livros debaixo do braço (parecia ter encontrado o amanhã na sua vida), assim ficámos a olhar-nos, a percebermo-nos, não sei por quanto, talvez à espera da primeira frase que nos devolvesse a familiaridade de outrora, à nossa volta o vai-e-vem incessante dos transeuntes, nem se apercebiam daqueles dois rostos que se reencontravam e, numa ânsia crescente, aguardavam por uma salvífica frase que possibilitasse o diálogo, ainda seria Outono, um cheiro a castanhas-assadas pelo ar, um aroma a regresso, não acha? Foi por aqui, creio, que regressámos à familiaridade de outrora, fomos comprar castanhas, falámos de quem somos, mas sobretudo de quem fomos, ela estava em casa de uns tios, não sabia que tinha familiares na capital, eu contei-lhe do meu quartito alugado, das contingências da escassez de espaço para quem está acostumado a contemplar horizontes, talvez fosse falha minha não lhe reconhecer um omnipresente, embora ténue, traço de tristeza no rosto, o traje-académico, os livros debaixo do braço (parecia ter encontrado o amanhã na sua vida), o contexto, tudo parecia concorrer somente para o amanhã, porém, se um pouco mais de atenção, percebia-se-lhe saudade ao deliciar-se com as castanhas, mostrou-se compreensiva com a minha amargura pelo quartito e escassez de horizontes, combinámos um café para o fim-de-semana, foi assim que nos aproximámos, no fundo, ela foi a ponte entre os dois mundos, bússola do passado e anfitriã do futuro, eu desempenhei-lhe o mesmo papel, ambos precisávamos de não nos perdermos, há fases em que a vida acelera em demasia, o acontecer torna-se vertiginoso, muitos naufragam nesses instantes, daí a relevância de espelhos, para, pelo menos, sabermos como ali chegámos, confesso que o indelével traço de tristeza no seu rosto só lhe acentuava a beleza, como se clamasse ao mundo por amparo, de jovem sonhadora a mulher anoitecida, um instante e tornamo-nos outro, assim é este existir sob o céu, talvez o Inferno não seja um lugar tão longe, cumpri os cânones e perguntei-lhe se estava a gostar do curso, percebi-lhe uma distância crescente, como apreciei, os ombros encolheram-se e a voz saiu-lhe em esforço, afinal provinha de uma longa distância, entre si e o mundo, “Sim, não há muito a dizer, ainda me estou a adaptar a toda esta nova realidade… E tu?”, apreciei a questão, um indício de interesse, não me alonguei na resposta, limitei-me a “Sim, muito! Era o meu sonho: literatura! Há cadeiras mais chatas, mas, no geral, estou a gostar bastante. O alojamento é que enfim…”, ela riu-se com a expressão que desenhei, percebi que não ria por inteiro, como se tal acto lhe tivesse sido vedado.

- O que o levou a inferir tal? Que ela não ria por inteiro? Conhecia-a assim tão bem antes de…? (A pergunta foi-se arrastando, arrastando, para não chegar ao funesto momento, não lhe queria perder o sentido e simultaneamente apelava a uma resposta cortante, de forma a não procurar, em vão, palavras para traduzir uma dor maior.)

- Tem razão de ser a sua pergunta. Quando podemos afirmar convictamente que conhecemos o outro? Creio que nunca! Ainda por cima, relacionámo-nos já adultos. Mas se me perguntasse: o que denoto mais no outro? Aí responder-lhe-ia convictamente pequenos-nadas, no fundo, são o tudo! Como deve calcular, para mim, reencontrá-la foi como se a vida me apresentasse a sua mais doce face, até estranhei, confesso, desde miúdo, como já lhe disse, ela nunca me foi indiferente, mesmo quando o outro a seu lado, o olhar dela, apesar de numa direcção distinta, enleava-me, só minha mãe se apercebera…

- E como reagiu sua mãe?

- Não se manifestou.

- Então, como pode afirmar que ela sabia?

- Foi numa tarde de chuva, eu cheguei a casa a pingar dos pés à cabeça, mesmo antes de entrar, ainda na soleira da porta, minha mãe questionou-me pelo guarda-chuva, limitei-me a dizer-lhe a verdade, que tinha emprestado à… O seu olhar demorou-se pelo meu rosto, mais que o usual, li-lhe apenas compaixão, manteve-se em silêncio, não me pergunte se aprovou ou desaprovou, ainda hoje não lhe conseguia responder, agora posso afirmar-lhe convictamente que, nesse momento, soube quem norteava os passos do meu sentir.

- Preferia que a sua mãe tivesse verbalizado algo? Se aprovava? Se achava mal apaixonar-se por uma rapariga que já tinha namorado?

- E o que acharia você melhor?

- Como profissional ou se fosse filho?

- Como homem.

- Não lhe posso dar uma resposta unívoca. Embora, no meu entendimento, a sua mãe tenha revelado uma singular inteligência.

- É curioso, não imagina as vezes que regressei a essa tarde de chuva. Sobretudo nestes últimos tempos. Já reparou, só podemos viajar para o passado. Estranho, não é? O futuro é uma sombra por iluminar, por conseguinte, quando o presente se pinta de desilusão, só nos resta o passado, dois ou três momentos, pouco mais, esta tarde de chuva tem dignidade mais que suficiente para figurar em tão selecto grupo (dois ou três momentos), porquê? Pois, confesso que esperava por esta sua pergunta, como não a fez, calculo que aguarde, em silêncio, pela resposta, o dia começou luminoso, sob todos os sentidos, ele faltou à escola, ela numa orfandade desamparada, dava dó, reticente em se aproximar das raparigas, só lhe devolviam expressões de hostilidade e de inveja, afinal, era das poucas com namorado, e olhares sequiosos dos rapazes, ainda para mais ele faltou à escola, ela numa orfandade desamparada, foi sensata na opção do seu trilho para esse dia: o da discrição; escudou-se atrás de um livro durante os intervalos, desse modo deixou de transparecer a inicial orfandade desamparada, quando temos um livro aberto, há sempre uma multidão entre nós e o mundo, ninguém ousou aproximar-se, a meio da tarde, lembro-me tão bem, o quadro negro povoado de regras gramaticais, o céu lá fora a escurecer, escurecer, escurecer, como se a noite em urgências de chegar, de repente os céus sobre a Terra, como se Deus resolvesse limpar o mundo da sordidez dos homens, entreolhámo-nos, tal o ressoar vindo das alturas, em alguns rostos percebia-se temor, em quase todos espanto, mesmo a professora deteve-se, por momentos, a olhar, com o decorrer da tarde a precipitação adensou-se, o mundo anoitecera, quando a aula terminou, nem vislumbres da habitual corrida para o exterior, reinou a parcimónia, eu tinha um guarda-chuva lá guardado por insistência de minha mãe, fui buscá-lo, mesmo assim fiquei renitente em sair, reparo nela, ainda sentada na carteira, agora com o livro fechado, de olhar perdido, uma decisão nasce-me, vou ao seu encontro, teatralizo a maior naturalidade possível, pego no guarda-chuva (“Toma! Empresto-te.”), regressa, com lentidão, dos seus pensamentos, o seu olhar sobe à altura do meu, desce até ao guarda-chuva que lhe estendia, entretanto compõe uma madeixa descaída (“E tu? Como vais para casa? Não, não posso aceitar…”), obviamente menti, disse que me vinham buscar, percebi não ter acreditado numa sílaba, mas li-lhe admiração pelo meu gesto, assim acreditava eu, levantou-se e deu-me um beijo na face (“Muito obrigado! Amanhã devolvo sem falta.”), continuei a olhá-la, percebi que não havia, em mim, qualquer vestígio de força ou vontade de a deixar, apertou-me a mão para reforçar o agradecimento e partiu, diluiu-se sob a densa cortina de água, fiquei, da  janela, a observá-lá, como melodia apenas o ressoar líquido das alturas a embater no chão do mundo, nem ouvia o que os poucos colegas sobrantes na sala diziam, senti-me também um despojo, mas desde que ela partira, fui o único com quem, nessa tarde, trocou algumas palavras, e, claro, a quem deu um beijo, na face, pois, ainda assim um beijo, contudo, pareceu-me ler-lhe na expressão que, se não estivesse enamorada do outro, seria eu o eleito, poucos teriam o arrojo do meu gesto, ela admirou-o, é esta doce memória que preservo, como um tesouro juvenil muitíssimo bem escondido, num lugar de difícil acesso só por mim conhecido, olhei lá para fora, tudo ainda mais enegrecido, pareceu-me, não sei porquê, que a chuva recrudescera, pela segunda vez, nessa tarde, teria um gesto de arrojo ímpar, antes de correr para casa, desarmado face à intempérie, aproveitar uma distracção da professora, arrumava a sua mala também para sair, olhei a carteira dela, nesse momento um objecto morto, faltava quem o iluminasse, há uns instantes era o melhor lugar do mundo, se perguntassem como me sentia, confesso dificuldade na resposta, em verdade, nem feliz, nem descontente, senti-me estranho, como quem olha por uma janela uma tão ansiada paisagem, mas sempre da janela, algures por aí, se me faço entender, por fim, aproveitando as costas da professora, às voltas com a mala, corri rumo à noite do mundo, ouvi o meu nome gritado pelos restantes que esperavam uma solução de regresso, não imagina o bem que fez ao espírito sentir aquela ininterrupta chuva, parecia ter diluído definitivamente do meu horizonte a janela de há pouco, como lhe disse, foi numa tarde de chuva, eu cheguei a casa a pingar dos pés à cabeça, mesmo antes de entrar, ainda na soleira da porta, minha mãe questionou-me pelo guarda-chuva, limitei-me a dizer-lhe a verdade, que tinha emprestado à…

- Essa janela foi, de facto, diluída nessa tarde de chuva?

- O que acha?

- Sinceramente? Creio que tem passado a vida a olhar por uma janela. Repare: você acredita e aceita ser personagem-secundária do seu próprio casamento.

- Acha que estou errado?

- É natural que, devido à forma trágica como perdeu o namorado de juventude, a sua mulher encontre formas de homenageá-lo. E, permita-me, só indicia a dignidade do seu carácter, não concorda? Ou preferia estar casado com uma mulher que simplesmente passasse uma borracha no passado, como se não tivesse qualquer importância?

- Não se trata disso. Quer dizer, eu não me reporto apenas às incursões nocturnas, aquando das estadias em casa dos pais, há outros aspectos…

- Tais como?

- Não é fácil de explicar… Imagine uma casa para onde vá morar, porém, uma das divisões está irremediavelmente fechada, e não tem ou encontra a chave dessa porta. O tempo passa e subsiste fechada. Acha normal?

- Mas que outros aspectos contribuíram para a descoberta dessa porta?

- Há tanta coisa que compreendemos sem verbo. Não concorda?

- Não divaguemos, por favor. Regressemos à divisão fechada…

- Não me interprete mal. Longe de mim divagar. De facto, nunca fui capaz de lhe iluminar o rosto por completo, sempre uma sombra por lá, um indelével traço de tristeza, o sorriso nunca foi inteiro, como uma peça que, depois de partida, jamais se consegue reconstruir, confesso ter sido um tolo, juguei-me capaz de fazer esquecê-lo, pois, enganei-me, às vezes penso o que fiz de errado, reconstituo os meus actos e analiso o que podia ter sido diferente, porém, tudo regressa ao ponto-de-partida, nada mudaria…

- Quando se apercebeu disso? De que nada mudaria?

- Por incrível que pareça, foi cedo. Quando nos beijámos, pela primeira vez, percebi que era eu a ostentar a tal expressão de bêbedo-de-amor, enquanto ela baixava o olhar, por pudor, vergonha, remorsos, como se o traísse, em verdade, ela asfixiava-se em remorsos: sabe, parecia virar costas ao mundo, contemplar uma paisagem muito sua, e uma promessa de jamais deixar alguém aproximar-se… Não sei se me faço entender.

- Sim, perfeitamente. Mas o facto é que você se aproximou dessa paisagem. Tanto que a beijou e, mais tarde, veio a desposá-la.

- Discordo! Sei da sua existência, contudo, jamais a contemplei. Também não queria! Essa paisagem não fazia parte do meu caminho.

- Denoto-lhe incómodo e alguma dor nas palavras…

- Como não? O que faria no meu lugar?

- Não posso responder: eu não estou no seu lugar.

- Pois…

- Acha que a sua mulher, de facto, não o ama?

- Acho.

- De todo?

- Bom, como deve saber, chegamos a um momento da vida e, de repente, compreendemos que, afinal, sempre fomos conduzidos na sua quase invisível corrente. Por prepotência ou vaidade, proclamamos a ideia de um leme, talvez a maior ilusão da vida, controlarmos o destino, enfim, só os tolinhos persistem neste equívoco, cedo compreendi este facto. Perguntar-me-á quando? Simples, o seu coração anoitecera para a vida.

- Por que diz isso? Espere, deixe-me reformular a questão: acho que, cedo, se ancorou nessa ideia, e oferece uma enormíssima resistência em abandoná-la, não concorda? Há em si uma sedução pela tragicidade, uma incessante procura pela noite do mundo, por um sofrimento sem lágrimas…

- Não me tome por masoquista. Se me quer compreender, não tenho qualquer propensão para vítima.

- Se assim é, então por que se mantém neste casamento? Onde está a sua felicidade homem?

- Duas excelentes questões, de facto…

- Não me venha dizer que é por causa dos filhos…

- Não! Não sou hipócrita.

- Então, repito: por que se mantém neste casamento?

- Sinto, não sei porquê, uma certa responsabilidade por ela… Não sei de onde vem, mas aqui está…

- É a sua veia paternalista a falar. É comum a certos homens. Associada ao receio do fracasso: neste caso, como é óbvio, reporto-me ao casamento. Diga-me uma coisa: costuma olhar para outras mulheres? De uma outra forma: imagina a sua vida ao lado de outra mulher?

- Bom… Como sabe, eu provenho de um meio bastante conservador, ensinaram-me que o casamento é uma instituição sagrada, mas, na vida, há limites para tudo, e o casamento resulta de uma junção de esforços e vontades, nem me alongo ao sentir, de facto, até hoje, confesso não me ter colocado essa questão: a do divórcio: embora seja um cenário a considerar; obviamente que olho para outras mulheres, não sou tapado, todavia, confesso nunca ter imaginado viver ao lado de outra. Sempre foi o rosto dela a povoar-me o sentir, mesmo quando o outro a seu lado, estou-me a repetir, sabe, às vezes sinto-me mal por falar dele assim, afinal já partiu…

- Partiu mesmo?

- Belíssima questão! Pelos vistos, para ela não.

- Nem para si!

- Óbvio! Sou casado com ela!

- Ora aí está, homem! Aí reside a chave de tudo! Já se sentou com ela e falaram sobre isto?

- Suponho que não seja casado, certo?

- Errado! Sou e tenho um filho.

- Costuma falar de tudo com a sua mulher?

- A consulta não é minha, mas do senhor.

- Eu sei! Mas se respondesse, ajudar-me-ia bastante.

- Desculpe, não é o meu casamento que está em análise, mas sim o seu. Não percamos o foco. Se o ajuda, posso adiantar que, uma questão com essa delicadeza, já teria sido certamente abordada!

- No seu lugar, as minhas palavras não divergiriam muito…

- Acha que são só palavras?

- Não sei. Só conheço o profissional.

- Repito: uma questão com essa delicadeza, já teria sido certamente abordada!

- Sabe, acredito não haver casamentos ideais. Até porque a ideia depende do indivíduo, certo?

- Não sei! Diga-me você…

- Numa relação vamos construindo zonas de silêncio, compartimentos esconsos, onde não se entra, nem se fala… Talvez seja a única forma possível, numa vida a dois, para ressurgir um novo amanhecer. Com o tempo, compreendi que a direcção de um olhar diz tanto, sabia disto?

- Continue, continue…

- Ela, por exemplo, nunca se demorou muito pelo meu rosto, como se cometesse uma traição, desculpe se me estou a repetir, o olhar sempre num ponto indefinível do horizonte, pois, no ontem, no fundo, era aí que residia o seu sentir. E também o pensar. Ela parecia estar continuamente numa iminência de partir!

- Não se cansava desse estado de coisas?

- Claro que sim! A primeira vez, que lhe compreendi a lonjura do olhar, questionei-a. Ela respondeu: “Não é nada, não é nada, disparates…”, sorriu-me, mas foi traída por uma luminosa lágrima a descer-lhe pelo rosto, senti-me um cretino a invadir espaço-sagrado, diga-me: como podia edificar diálogo num terreno assim? Simplesmente compreendi não ser possível, lembre-se: eu conhecia a sua história! Para quê repisar o passado? Não, não podia fazê-lo! Só a ia magoar! Eu tinha de seguir noutra direcção! Resolvi apontar ao amanhã. Pois, talvez tenha sido o meu grande erro! A dada altura, compreendi que caminhava sozinho. Olhei para trás, e ela permanecia no mesmo lugar, sentada, a olhar um vazio…

- O que acha dela como mãe?

- Mais uma boa pergunta! Pois… É cumpridora, embora não seja particularmente ternurenta. Nunca foi de dar muito colo, por exemplo.

- Só isso? Dá-se melhor com um eles? Há cumplicidade? Acompanha-os em todas as actividades? Confidenciam-lhe coisas?

- Não, há uma certa distância, embora, repito, seja cumpridora. Não lhes falta com nada! Os nossos filhos também são reservados. Por exemplo: o nosso rapaz sempre com um livro! Nunca vi aquele rapaz, desde que aprendeu a ler, sem estar acompanhado de um livro!

- Que tipo de literatura?

- Em miúdo, andava pela banda-desenhada, mas rapidamente passou para a literatura juvenil: Verne, Swift, Dumas, Stevenson, Doyle, Salgari … Por volta dos quinze, dezasseis anos, vi-lhe o rosto velado por: Hemingway, Melville, Steinbeck, Proust, Duras, Woolf, depois seguiram-se os russos, durante meses a fio, Dostoiévski jantou connosco, depois, claro, lá veio Tolstói…

- Acha isso natural?

- Desculpe, antes livros que droga, não concorda?

- Claro que sim! Embora, atendendo ao seu relato, não deixem de ser duas vias de fuga.

- Bom, visto dessa forma, estamos rodeados de possibilidades de fuga. Embora, no caso da literatura, discorde de si. A literatura é sempre um encontro do “eu” com o “eu”. Estou a medir bem as palavras: não se trata de um reencontro, precisamente por não se saberem perdidos, daí falar de encontro: o “eu” perante si: a sua multiplicidade.

- É indubitavelmente um entusiasta da literatura! Com uma biblioteca digna de nota… Pois, falou-me em cerca de quatro mil livros!

- Sim, sem dúvida, construída ao longo dos anos. Uma das poucas coisas que me segurava ao aqui. Agora, perdi-lhe o gosto… Um pouco como aqueles amigos que, por este ou aquele motivo, deixamos de falar, por imperativos da educação, limitamo-nos a cumprimentar.

- Mas não estranha o rosto do seu filho constantemente velado por um livro?

- Como lhe disse, antes isso do que…

- Está, de novo, a fugir à questão. Deixe-me reelaborá-la:  de onde provém o gosto pela leitura do seu filho? Foi através de algum de vós? Alguém lhe fez uma lista de leituras? Ouvem a sua interpretação? Não julgue as minhas palavras como censura, longe disso, pelos dados fornecidos, penso que, num certo momento, o vosso filho se cansou de esperar por vocês.

 Como assim? Não compreendo…

- O vosso filho é detentor de uma inteligência muito acima da média, não pense que o digo para lhe agradar, por conseguinte, com o tempo compreendeu a vossa insularidade, cada um voltado para a sua própria dor, ainda esperou, durante algum tempo – não me pergunte quanto – que o olhassem, goradas aas expectativas, fez-se ao caminho, de certeza que com uma promessa: não regressar! Percebe, agora, o silêncio e o rosto velado por um livro? Ele foi para longe e não tenciona voltar. Os sinais estão permanentemente à nossa volta, nós é que insistimos em pintar a realidade com a cor dos nossos desejos.

- De facto, tinham-me dados boas referências suas…

- Isso é o que menos importa! Voltando a si e à sua mulher, considera satisfatória a vossa vida íntima?

- Percebo onde quer chegar.

- E onde é?

- Se, nesses momentos, a sinto inteira ali, certo?

- Afinal, o seu filho tem a quem sair…

- Pois… Recorda-se, há pouco, de ter dito que numa relação vamos construindo zonas de silêncio, compartimentos esconsos, onde não se entra, nem se fala?

- Perfeitamente.

- Parece que decidiu, de repente, abrir todas as portas, despejar todas as gavetas, arrancar até as cortinas…

- Considero o tempo e o dinheiro dos meus pacientes preciosos.

- Gostei que usasse o termo “paciente”. Detestaria que utilizasse “cliente”!

- Compreendo. Isto é um tratamento e não um negócio. Vê aqui algum relógio? Você só sai daqui, quando se sentir apto para tal. Não compreendo, de todo, como se trata a saúde mental ao cronómetro! Eu queria ser médico da alma-humana. Há coisa mais bela? Consertar as almas! Só é capaz de percorrer este sinuoso trilho quem esteja familiarizado com a dor: sobretudo a interior: sempre a mais dolorosa! Não pense que me acho mais que os outros, mas impus-me uma disciplina: jamais dizer ao paciente: “Temos de terminar aqui”, “Está na hora!”, “Volte para a semana!”, “Tenho já o próximo à espera…”; e, com tudo isto, o paciente vê-se devolvido à sua orfandade inicial, mais leve apenas na carteira, durante aquele escasso tempo sentiu-se aliviado, enquanto verbalizou a sua dor, na expectativa de ser compreendido, porém, no fim vê-se regressado ao ponto-de-partida. Não me propus vampirizar fraquezas alheias para encher os bolsos, sabe, se todos tivéssemos um bom-ouvinte, que nos desse conselhos sensatos, a minha classe profissional teria de arranjar outra forma de pôr o pão na mesa. Desculpe, mas, como vê, tenho muitas revoltas por aqui guardadas…

- Gostei muito das suas palavras! Não podia estar mais de acordo! Sinto-me um privilegiado. Bom, dizia eu que, de repente, decidiu abrir todas as portas, despejar todas as gavetas, arrancar até as cortinas… No início, atribuí à timidez, com o tempo compreendi que ela partia para bem longe. Não estranhei que já tivessem consumado o seu grande amor, falava-se disso por lá, entreportas, na aldeia…

 - Custou-lhe corroborar o facto?

- Sim, bastante. Como não? Repare: sempre o abismo entre a ideia e a realidade! Eu ouvira, em miúdo, como já lhe disse, conversas nesse sentido, mas depois do casamento, verificar… Foi-me difícil, confesso.

- Não lhe transpareceu nada, espero…

- Não, claro, não se preocupe. Até porque o fantasma já tinha presença que bastasse. Não seria eu a invocá-lo!

- Ela tinha prazer? Estou a perguntar ao seu “eu”, nunca ao fanfarrão que há em cada homem.

- Creio que sim… Mas com o tempo foi-se diluindo, diluindo, à medida que se foi afastando…

- Posso, então, concluir que, pelo menos, no início, fisicamente ela estava lá, certo?

- Creio que sim…

- Seja mais categórico, homem!

- Como deve calcular, por toda a nossa história, a minha cabeça estava num turbilhão de ideias…

- Pois, calculo. Agora inverto a questão: teve prazer?

- Coloca-me questões que eu nunca imaginei!

- Repito: considero o tempo e o dinheiro dos meus pacientes preciosos.

- Das primeiras vezes o suficiente, foi em crescendo.

- Nem por uma vez, a sentiu ali por inteiro?

- Ela fechava sempre os olhos… Mesmo quando a beijava. Como se pode, em momentos assim, pedir a uma mulher que abra os olhos?

- Tem toda a razão. Acha que conseguia trazer cá a sua mulher?

- Nunca foi minha.

- Neste ponto, discordo de si. Como tudo na vida, as relações amorosas nascem, crescem e morrem. Em algum momento, cada coração terá vacilado quando o outro a seu lado. O problema, muitas vezes, deriva do desencontro, ou seja, de os corações acelerarem em momentos distintos da relação: quando, de um lado, é o amanhecer, do outro já anoiteceu. Não sei se me faço compreender.

- Está a sugerir que, a dada altura, ela terá gostado de mim.

- Não duvide! Repare numa coisa: de todos os rapazes da aldeia, foi consigo que ela casou. Dir-me-á que foi o único com quem se reencontrou na universidade, por aí fora… Tudo bem! Mas é um facto! Para além disso, tiveram dois filhos! De certa forma, ela elegeu-o para esquecer a dor que trazia no peito. Agora, o êxito ou fracasso da vossa relação é uma responsabilidade de ambos. Concordo inteiramente que possa haver mais percentagem de um dos lados, contudo, o outro não se pode eximir da sua.

- Seguindo a sua linha de raciocínio, onde acha que falhei?

-  Diga-me você? Está cansado, desde que entrou, de repetir.

- Está a sugerir que fui eu quem mais “alimentou” o fantasma?

- Tem dúvidas?

- Acha mesmo depois de toda a narrativa?

- Sabe, libertarmo-nos do passado é uma ilusão. E uma ilusão colectiva. Todas aquelas frases motivacionais de pacotilha: “Rompa com seu passado”, “A felicidade é um lugar à frente”, “Aprenda a ser outro”: são apenas paliativos para sustentar uma ilusão. Diga-me com sinceridade: em alguma circunstância, do seu casamento, deixou de se sentir só?

- Como sabe que padeço de solidão?

- Deu-me todos os sinais. Há determinados indivíduos que nascem com essa marca: por muita companhia que tenham, há neles um sentir de orfandade. Desminta-me se estou enganado!

- Não, não está.

- Em verdade, você não se apaixonou por ela, encantou-se com a possibilidade de calar essa solidão que já vislumbrava em si. Com o tempo, o decorrer do casamento, confrontou-se com essa impossibilidade, então arranjou um subterfúgio: a dor! E aqui está, perante mim, agrilhoado à sua presente companheira: a dor construída ao longo da sua relação.

- Uma vez mais, olha-me como um masoquista. Deixe-me contar-lhe um episódio.

- Força! Sou todo ouvidos.

- Isto deve ter ocorrido, mais ou menos, num fim-de-semana de Junho, talvez fosse Domingo, aquelas primeiras idas à praia. Seria o nosso primeiro ano de casamento, de repente, descia sobre nós um silêncio tão difícil de romper, parecíamos inocentes presas na sua pérfida rede, à medida que o tempo passava, mais asfixiante se tornava o silêncio, parecia gritar-nos o logro do nosso casamento, olhava-a, contudo, ela impassível, parecia retirar satisfação desse asfixiante silêncio que nos gritava o logro do casamento, enfim, talvez fosse imaginação minha, como diz, o certo é que, com os anos, fomos perdendo assunto, estou-me a dispersar, desculpe, como estávamos na praia, lá me socorri da pergunta habitual: “Queres ir à água?” Lembro-me bem, estava deitada de bruços na toalha, vira-se para mim, repare: estava com a cara para o lado contrário, eu deitado de costas, até nisso não coincidíamos, “Não me apetece. Deve estar fria. Vai tu!”; apenas e só, como precisava de arrefecer o pensar, levantei-me e fui, era Junho, a água estava mesmo fria, nadei ainda um bocado, precisava de me abstrair, não gostava de entrar no território da autocomiseração, mas por aí caminhava, quando me apercebi do escuro em baixo, abrandei as braçadas, parei, e voltei-me para a praia, estava longe, as pessoas apenas pontos diminutos, alegrou-me não chegar um único barulho de lá, como estava ruidosa, gostava de contemplar todo o enquadramento a partir do mar, a distância das coisas, não sei porquê, suavizava-me o pensar, mas ali não me sentia só, como se uma parte regressada ao Todo, uma restaurada harmonia das coisas, estranha sensação, pôs-me a boiar, precisava de descansar dos pensamentos, deixar-me levar pelo natural fluir das coisas, ali não chegava qualquer som da terra dos homens, por momentos, abri os olhos, o azul das alturas, por aí deixei-me estar, há tanto não o contemplava, crescia em mim paz enquanto o pensar abrandava, abrandava, a distância das coisas, afinal tudo é irrelevante, vivemos incompreensivelmente na ilusão de uma eternidade, quantos vazios à nossa volta? Quantos deixaram de saber o amanhã? Somos incompreensões em movimento, deixei-me estar mais um pouco, algo me fez regressar, a corrente afastara-me ligeiramente, uma questão levantou-se-me (Por que não me levou de vez?), pelos vistos tinha amanhãs por ver, iniciei o regresso, nadei mais pausadamente, algo em mim indiciava contrariedade em voltar, sabia a infelicidade que me aguardava, a uns cinquenta, sessenta metros, fui logo cercado pela barulheira em volta, crianças, apitos, mergulhos, berros, o habitual de uma praia urbana desde há umas décadas, quando saí da água, para meu espanto, ela estava em pé, por momentos, brevíssimos, claro, pensei que, preocupada com a minha demora, viesse a saber onde estava, porém, via-a de costas a olhar para a areia, fui ao seu encontro, ladeei-a, pareceu assustar-se com a minha repentina aproximação, rapidamente quis sair de onde estava, deixei-me conduzir, como se achasse tudo natural, embora não me tivesse passado despercebido um movimento do seu pé direito, a ocultar algo que tão escrupulosamente ela compusera: o nome dele escrito através de conchas. Aqui chegados, continua com a mesma ideia?

- Confrontou-a com o facto?

- Não! Para quê? Originar uma discussão?

- Calculo que tenha sofrido esse episódio muito mais subterraneamente, certo? Diga-me uma coisa: alguma vez, em alguma circunstância, deixou de sentir solidão?

- Por que questiona isso?

- Responda, por favor.

- Talvez no início da nossa relação…

- E nestes últimos tempos mudou alguma coisa em relação a outras mulheres? Achou alguma interessante?

- Obviamente aprecio a beleza feminina. Embora conheça bem o abismo entre apreciar e sentir.

- Quer com isso dizer que o seu coração só conheceu um rosto?

- Há algum mal nisso?

- Alguém o afirmou?

- Mas questionou…

- E daí? Questionar é distinto de afirmar, certo?

- Desculpe, estou a ser hostil, mas faz-me entrar em zonas onde até eu me estranho, ou há muito estavam adormecidas. Sabe, de repente, coloca-me perante: “Quantos podia ter sido nesta vida?” É duro, muito duro, constatar as portas que estupidamente fechei! É inevitável olhar para trás e não me gritar: És tão BURRO!!! Como foste desperdiçar esta oportunidade, e aquela, mais a outra… Ecoa em mim, múltiplas vezes, o estrondo de cada uma dessas portas que se fechou… Podia ser tantos e sou esta ruína andante, enciumada de um morto! Acha normal?

- Diga-me você!

- Estou perdido… Cansado, muito cansado, mas também perdido… Desculpe uma vez mais, sabe, aqui, nesta divisão, olho a minha existência como se estivesse fora dela, não sei se me compreende, parece que, com a sua ajuda, estou a dissecá-la, escrutiná-la, quando daqui sair, volto a submergir no quotidiano, e toda esta conversa vai parecer um lugar lá bem longe… A evidência, por exemplo, de me sentir perdido, só terá reflexos na dor que, volta e meia, me anoitece o sentir. Não sei se me faço perceber…

- O que lhe dói mais: o ciúme do ex-namorado da sua mulher ou as portas que se fecharam?

- Não é bem ciúme…

- Não fuja da questão, por favor!

- O ciúme, claro.

- É natural, as portas constituíram apenas possibilidades, por conseguinte, jamais amenizam a sua inata solidão, enquanto, por algum tempo, a sua mulher foi capaz de o fazer. E, atendendo à sua biografia interior, é um feito digno de nota. Não consegue mesmo trazê-la? Sob qualquer pretexto?

- Não, não vale a pena. Já anoitece lá fora… Chegou a hora do regresso a casa ou lá o que isso signifique. Nunca senti tal coisa: casa, lar… Nem em miúdo, agora ainda menos. Se ainda não encontrei o meu lugar neste mundo, como posso regressar? Quando vi que ela, com o pé, disfarçava o nome dele escrito, na areia, através de conchas, cresceu-me uma fúria… Apeteceu-me virar-lhe costas, arrancar dali sozinho, nunca mais a ver, apenas e só. Porém, ali fiquei, tolhido e em silêncio, nem ousei estruturar uma frase sobre o que acabara de ver, melhor: de perceber; parte de mim quis fechar os olhos à evidência das coisas, como se não quisesse acreditar, como se acusasse o sentido da visão de impostor, alguém que procura, de todas as formas, desarmonizar a vida, já de si tão volátil, não, não lhe podia dar crédito, certamente tudo sucedeu no meu pensar, pois, já vejo coisas, continuo a dar substância ao fantasma, tenho de seguir em frente e deixar-me destas parvoíces, qual nome dele escrito, com conchas, na areia, disparates e efabulações do meu ciúme, ela está aqui, comigo, a meu lado, e sempre esta minha atracção, incompreensível, pelo desespero, pela noite da vida, se, de facto, ela desfez rapidamente a palavra com o pé, como a pude ler? Ora aí está: boa pergunta! A outra parte, contudo, insurgiu-se com uma irreprimível fúria, silêncio absoluto, jamais ousar dirigir-lhe novamente uma palavra, por fim, partir, para um qualquer lugar, desde que bem longe dela, filhos e o resto, depois logo se vê, ouvia tão nitidamente a voz em mim: “Pega nos restos de dignidade que por aí tens, reúne-os, faz a mala e desaparece imediatamente!” Quantas vezes a frase me ressoou? “Pega nos restos de dignidade que por aí tens, reúne-os, faz a mala e desaparece imediatamente!”

- A verdade é que ficou.

- Sim. Mas não conclua que esse lado ganhou.

- Eu nada concluo. Só me cinjo aos factos apresentados. Parece-me, de certa forma, que esses suas partes acabaram por se fundir, certo? Por outras palavras, recolheu de ambas os argumentos que se lhe afiguraram mais convenientes para a sua circunstância. Estou errado?

- Não!

- Bem me parecia. Diga-me uma coisa: qual de vocês é mais ligado à aldeia?

- Esse é um ponto muito interessante. Até, mais ou menos, aos quinze anos, eu nunca pensei em sair dali. Era o meu mundo! Posso dizer que fui feliz. E sabe porquê? Ainda não desaprendera o sonho. Foi só depois. Ela, pelo contrário, sempre tencionou sair. Era perceptível, pelo olhar, um certo desprezo pela pequenez das coisas, a ruralidade, os costumes, parecia viver com as malas-feitas. Atenção: isto enquanto namorava com ele. Embora, não sei porquê, ele parecesse gostar e muito daquela vida. Por muitos sonhos que, fora dali, ela lhe plantasse, a expressão de felicidade dele, ao contemplar cada recanto da aldeia, a alegria com que abraçava todas as actividades daquele mundo, enunciava que não via o futuro num lugar longe. Possivelmente seria motivo para uma forte divergência entre ambos. Quem sabe? Bom, o certo é que trocámos de posições radicalmente. A vida é irónica! Em miúdo, quando olhava os adultos, pensava que tinham todas as respostas do mundo, logo eu que nem uma para apresentar, cheios de certezas, convicções, aborrecidíssimos, falavam de coisas, às vezes com algum entusiasmo, que só me suscitavam compaixão, tal o bocejo, eles quase todos de calças e camisa, parecia um uniforme, elas de traje mais variado, embora um padrão-comum no arranjo da cabeleira, pareciam cimentadas, tal a solidez com que não se desarmavam face as intempéries, bom, estou novamente a divagar, como dizia, o certo é que trocámos de posições radicalmente, perguntar-me-á: quando tal sucedeu? É simples, após a morte dele. Ela sempre desejosa de regressar àquele pedaço de estrada, eu desesperado por olvidar quem ali fomos, é normal minguarmos com o tempo, já viu o peso que acumulamos? Neste momento, considero-me anestesiado face às ironias e agruras da vida, sabe porquê? Simplesmente cansei-me! Há quem viva numa permanente espera por um amanhã melhor, eu deixei de esperar, e não foi por cansaço, apenas me deparei com a sensatez. Depois de tanto, para quê a ilusão?

- Há quem lhe chame esperança.

- E há quem lhe chame tolice!

- Os seus pais ainda estão vivos?

- Curioso, agora que me pergunta isso, só lhe posso responder: Sim. Sim, os meus pais estão vivos, nunca partiram, continuo a vê-los, a ouvi-los –   sempre prontos a dar avisados conselhos –, a falar-lhes, e não são os únicos. Também os meus avós estão vivos, sucede o mesmo, e outros familiares, amigos… Nunca senti tanta proximidade da minha mãe como no dia do seu funeral. Desde o primeiro vislumbre matinal de luz até ao anoitecer, pensar e sentir irmanados pela sua imagem, uma semana depois concluí a impossibilidade de certos vultos, da nossa biografia, morrerem. Como não sou mentiroso, repito: Sim. Sim, os meus pais estão vivos.

- Os seus pais foram a favor do casamento?

- Houve divisão e muita discórdia! Sobretudo de minha mãe. Em verdade, desde miúdo, sabia que os meus olhos se iluminavam à sua passagem ou quando o seu nome ecoava pelos ares, porém, lá ia, volta e meia, avisando: “Tens de procurar noutro lado! O coração de uma mulher só conhece uma Primavera! Nunca queiras ser o seu Outono ou Inverno, mesmo o Verão é apenas uma Primavera de segunda…” As suas palavras vinham num tom simultaneamente apreensivo e preocupado, repare: deu-me este aviso ainda eles namoravam! Volta e meia, deixava no ar: “Já olhaste à tua volta? Na escola, na rua… Reparaste na quantidade de mulheres que há no mundo? Aquela tem namorado! Deixa de suspirar por ela!”, há uma fase da vida, ainda não compreendi muito bem o porquê, em que olhamos os nossos pais como seres abandonados pela razão, eu iniciava esse procedimento, questionava: Mas o que me interessam as outras? Por que hei-de olhar à minha volta, se só aquela me prende a atenção? E, em verdade, como eu gostava de suspirar por ela! Algo me dizia que acabaríamos juntos, há coisas muito estranhas, não acha?

- Sem qualquer dúvida!

- Deu-se o acidente…

- O que sentiu quando soube?

- Fiquei, de início, espantado, depois chocado…

- Demorou muito essa transição?

- Depende do ponto-de-vista, não é verdade?

- Diga-me o que acha!

- Creio que ocorreu no próprio dia do acidente.

- Previsível.

- Porquê?

- Você, ainda há pouco, afirmou saber que acabariam juntos…

-  Bom, mas isso foi uma premonição. Jamais previ aquele desfecho. Nem tão-pouco o desejei! Sabe que estive presente no funeral?

- Só me disse agora. E o que sentiu?

- Acabamos sempre emocionados por indução, mesmo não sendo próximos. O que não era o caso. Com o tempo, recalcamos essas memórias. Pelo menos, é o que tem felizmente sucedido comigo. O que não me interessa vai-se diluindo da memória. Subsiste apenas uma impressão do acontecimento, pouco mais. Ela ia amparada pela mãe, numa altivez ferida, se o meu olhar já se demorava nela, creio que, nesse momento, fiquei definitivamente apaixonado, havia no olhar dela, ao mesmo tempo, uma revolta e incompreensão pelas coisas do mundo, caminhava, mas percebia-se que o seu coração já não pulsava, pareceu-me uma rainha sem reino, todos que acorriam para a consolar, acabavam consolados, só desabou quando se encontrou com a mãe dele… Coitada da senhora! Pouco mais que uma ruína. Limitei-me a acompanhar os seus passos de uma segura distância, não ousei aproximar-me, havia muita dor em volta, as palavras evolavam-se perante a crueza dos factos, ouvi dizer que o pai dele ficou sozinho, durante algum tempo, na igreja, era devoto da Virgem, não sei se é verdade, há quem garanta que ele gritou para o altar: “Se gostaste de ver o teu Filho crucificado, eu não suportei ver o meu menino caído no asfalto”. Escusado será dizer que, nesse dia, mais um deixou cair a sua fé pelo chão do mundo, não será este lugar o verdadeiro cemitério da fé?

- Também perdeu a sua?

- Só perdemos o que é nosso.

- Quer dizer que não é um homem de fé?

- Sem dúvida. Mas não queria derivar a conversa para o terreno fideísta, teológico, há um ponto ao qual quero regressar. Não julgue que desejei este final para a relação deles! Ou que, de alguma forma, fiquei feliz com este desenlace.

- Ouviu-me a afirmar tal coisa?

- Não, mas tem rodeado essa questão ou é mentira?

- Os nossos desejos são um terreno onde a vontade galopa sem o freio da razão.

- Compreendo. Pois… Mas jamais desejei, nem no lado nocturno da minha alma, tal desenlace. Isto que fique bem sublinhado.

- Está assente.

- No dia do funeral, apercebi-me de algo tão singelo: cada um que ali está, a dado momento, observa como será o seu adeus pelos que ficam. Não estamos preparados para a morte, desde que nascemos, há toda uma aprendizagem para a maquilhar, e, de repente, irrompe com a sua frieza calculada e subtrai-nos um rosto, depois outro, mais outro, assim sucessivamente, uma coisa lhe garanto: ninguém ali estava preparado para aquela subtracção! Não voltei a presenciar tanta manifestação de dor. Só lhe dirigi, de novo, a palavra, quando nos reencontrámos na faculdade. Sublinho isto para que não haja dúvidas.

- Repito: está assente. Aqui chegados, o que pretende fazer?

- Esperava um conselho seu.

- A decisão é única e exclusivamente sua.

- Bem o sei. Tenho de partir. Não posso continuar a vê-la de rosto voltado para o ontem, embora longínquo, de há tão pouco, não construímos um lar, apenas um equívoco assente numa dor demasiada, lamento pelos nossos filhos, mas talvez assim despertem daquela letargia…

- Creio que, há muito, os vossos filhos despertaram. Apenas escolheram vias que vos são incompreensíveis.

- Somos assim tão limitados?

- Não tem de se ofender! Lembre-se de que é protagonista da história. Eu estou a vê-la de fora, logo observo melhor. O tempo traz a necessária distância das coisas, daí o seu carácter balsâmico.

- Ainda não me chegou qualquer bálsamo para as dores. Apenas estou cansado, muito cansado. Olho a minha vida como uma imensa mentira!

- Já lhe relevei aspectos bem reais!

- Não precisa de repetir.

- Não se preocupe, não o vou fazer. Com o decurso da conversa, acabei por ficar sem saber a posição do seu pai em relação ao vosso casamento.

- Não foi o único. Eu também nunca soube! Era extremamente reservado, só falava o essencial e apenas trivialidades. Quem não o conhecesse, julgá-lo-ia limitado intelectualmente. Mas não! Sabia que aprendeu a ler sozinho? Antes de entrar na escola-primária, já lia! E não foi minha mãe a contar-me, soube por uma prima. Lembro-me bem, certa tarde, eu agarrado a um livro, ele aproxima-se, de enxada às costas, pára a meu lado e diz: “Alguma vez leste, em algum lado, que se aprende muito a olhar os outros?” De início, espantou-me a sua voz tão próxima, a vivacidade da entoação, só depois comecei a decifrar a mensagem, por fim, respondi: “Não, por acaso, não…” ´Sorriu-me: “É compreensível. Os livros servem para distrair! Queres perceber a vida? Aprende a olhar os outros! Aí reside a verdadeira sabedoria. Daqui a pouco, anoitece, ao entardecer de hoje só poderás assistir por uma vez na tua vida. Nunca te esqueças também disto!” Retive estas suas frases, como vê, até hoje. Era sábio, meu pai. Creio que, a dada altura, compreendeu que para se fazer ouvir, tinha de falar cada vez menos. Assim, quando dissesse algo, todos se calavam imediatamente. Agora que coloca essa questão, ilumina-se-me o seu silêncio. Acredito que, bem vistas as coisas, tudo o que dissesse não surtiria qualquer efeito. Basta elencar minha mãe que tentou intervir. No caminho da vida há pontos onde impreterivelmente teremos de cair! Daí a vida ser a maior das escolas. Há pouco afirmou que o tempo traz a necessária compreensão das coisas, concordo em absoluto, sapiente destas subtilezas, meu pai preferiu manter-se à distância, não interveio de todo, percebeu que, no meu trajecto, era um dos pontos onde impreterivelmente teria de cair, ninguém podia alterar esse facto, o desespero materno ainda tentou, as suas palavras eram, no fundo, os seus braços estendidos e desesperados para me amparar da queda iminente, como terá sofrido, e como tentou, reconheço, alertar-me, agora que me lembro desses tempos, veio-me à memória uma frase de meu pai, afinal, também tentou alertar-me, não me recordo exactamente do contexto, foi após o nosso reencontro na universidade, já saíamos juntos, terá sido numa visita à aldeia, talvez lhes contasse do nosso reaproximar, eu estaria sentado, meu pai sei que estava de pé, sim, disso tenho a certeza, esperou que eu acabasse de falar, como se pensasse em voz-alta disse: “É tão importante aprender a ouvir a vida! Muitos dos nossos desejos resultam de um impronunciado não. Apesar de tudo, insistimos, insistimos e insistimos, e acabamos, sem saber, por abrir a porta para a noite da existência”, confesso que, na altura, não me fez muito sentido, mas agora… Está aqui tudo! Em três frases, sintetizou o meu futuro: corri para a infelicidade e abracei-a! Perguntou-me qual foi a posição do meu pai em relação ao nosso casamento, ora aí está: percebeu, desde o início, a altura da queda. Apesar dos anos de casamento, dos filhos, quando me olhava, acho que era só para verificar a sombra pelo meu rosto. Porém, ao longo dos tempos, sempre se mantiveram extremamente cordiais com ela. Afinal de contas, fui eu a pedi-la em casamento. Tenho de reconhecer que meu pai era sábio (“Alguma vez leste, em algum lado, que se aprende muito a olhar os outros?”), se me tivesse debruçado devidamente nesta sua frase, repare que encerra, em si mesma, um apelo ao descentrar de nós, a olhar o outro tal como é, sem os preconceitos erigidos pelo “eu”, difícil, sem dúvida, porém, se a tivesse interiorizado devidamente, jamais teria corrido atrás dela, quanto de si ficou, naquela estrada, ao lado dele nessa tarde? Hoje, mais do que nunca, como esta frase se impõe: “Alguma vez leste, em algum lado, que se aprende muito a olhar os outros?” Por algum motivo nos colocaram, nas mãos, um cárcere da alma! Olhar o outro tornou-se uma utopia! Não vivemos tempos estranhos, vivemos o terror de gente que se fecha na sua própria cela e atira para longe a chave libertadora, para ali fica, de costas para o mundo, nem sonha que “ao entardecer de hoje só poderá assistir por uma vez na vida”.

- Já esgotámos o nosso tempo…

- Nada disso! Eu já me esgotei há muito! Sabe o que mais me dói? Foi, em criança, acreditar que, com o tempo, viriam todas as respostas. Triste ilusão! Permaneço o mesmo miúdo assustado quando anoitece. Sinto sempre uma inquietude. Acontece-lhe o mesmo? Se olhar para trás, nada mudou em mim. Já reparou neste paradoxo: como é que um miúdo, assustado com o anoitecer, sonhou iluminar a face obscurecida de uma mulher?

 

ANOITECEU

  

O dia amanhecera cinzento, apesar do calendário anunciar luz e cor, estávamos em Abril, há tanto que ela não regressava às ruas da sua infância, a vida levara-a para Norte, por lá ficou durante as últimas décadas, olha estas paisagens do ontem com singular atenção, observando o que mudou de lugar, o que nasceu e morreu, a sensação de turista em terra estranha ocupava mais espaço que a de filha-pródiga regressada, de facto, à sua volta muito se alterara, maioritariamente para pior, como é apanágio de lugares onde a vileza está ao leme, mas centremo-nos nesta mulher regressada a lugares de outrora, olha a praia onde outra de si tanto vivera, procura-se mas não se encontra, nem em si ela perdura, a voz, pois, a voz, nem um eco, como se a de ontem falasse com uma outra voz, o sol anuncia-se, embora tímido, baixa os óculos-de-sol que lhe seguravam o cabelo, aproveita para divisar a praia, afigurou-se-lhe mais pequena, agora limitada a Leste e Oeste por molhes, a essência de um lugar perdura na memória, infância e juventude ali passadas, resolve descer até à areia, a escada, pois, vozes, rostos, risos, um vestido-branco, regressam-lhe a cada degrau, contudo, nem uma pegada sua ali vincada, foi precisamente aí que comemorou o seu décimo-oitavo aniversário, queria algo diferente, festejar na praia, à volta de uma fogueira, nunca apreciou lugares-comuns, correntes de modas ou de ideias, padrões-de-vida, em criança, quando lhe perguntavam quantos filhos desejava, laconicamente respondia que não queria ser mãe, causava impacto nos adultos, ficavam aturdidos com a prontidão da resposta, também pela convicção, esboçavam um semi-sorriso e agilizavam um virar de costas, tão diferente do irmão, mais reservado, por norma, o rosto escondido por um livro, uma brisa primaveril com resquícios de Inverno passeia-se-lhe pelo rosto, descalça-se, queria sentir a areia do ontem sob os pés, o contorno de um pescador no lado oposto da praia, reflectiu se, durante as últimas décadas, por algum momento, deixara de lá estar, caminha para o lugar onde julga se ter acendido a fogueira em homenagem aos seus dezoito-anos, decidira, umas semanas antes,  usar aquele vestido-branco, pretendia, nessa noite, entregar-se-lhe, moravam na mesma praceta, no repente de uma tarde, num acaso que talvez nunca o tivesse sido, percebem o tanto que têm para se dizer, ela três anos mais nova, regressavam a casa, ele vindo já da faculdade, ela do liceu, encontraram-se no autocarro, agradou-lhe a espontaneidade dela, contrastante com o hermetismo do irmão e com o seu carácter reservado, o interesse pelo curso, o porquê da escolha, permitiu-lhe soltar o verbo e assim admirar com mais serenidade o rosto dela, facilmente se demorava a vista a contemplá-lo, era bonita, muito diferente de gira ou engraçada, só se compreende o conceito à segunda ou terceira vez que admiramos algo, a beleza nunca é de primeira vista, daí o seu carácter subtil, talvez para se proteger das torpezas da realidade, morena, cabelo comprido, ligeiramente ondulado, uns inquietantes olhos-esverdeados, oscilavam entre uma esfuziante alegria e uma melancólica tristeza, de estatura normal, bem proporcionada, nada que sobressaísse, caminhava com discrição, não lhe passou despercebido esse pormenor, apreciou-o, ele falou-lhe de que Sábado estaria maré-vazia de manhã, ia à praia fazer umas recolhas para um trabalho da faculdade e convidou-a, ela parou a marcha, aproximou o rosto, sorriu-lhe, e disse que teria muito gosto, quando a deixou à porta do prédio, não lhe passou despercebido um vestígio de melancólica tristeza pelo olhar, intuitivamente compreendeu não ser pelo facto de se despedirem, sempre ali estivera, contrastava com a alegria esfuziante até então, era parte constituinte dela, no Sábado, eram dez da manhã, já andavam a contornar rochas destapadas pela baixa-mar, ele entusiasmava-se bastante a discorrer sobre as temáticas do seu curso, neste caso a sedimentação e outros efeitos do retraimento das águas, porém, estava cauteloso para não se tornar aborrecido, a expressão dela transparecia um interesse moderado, por fim, compreende que ela viera para estar a seu lado e não tanto por rochas destapadas pela maré-vazia, resolve colocar o trabalho de lado, pára de exibir os seus notórios conhecimentos geológicos, e centrar-se nela, no porquê daquela estranha oscilação de estados-de-espírito reflectidos no olhar, sentaram-se junto à linha-de-água, compreendeu-lhe gratidão e alívio por ser ela, agora, o centro da sua atenção, falaram-se, mais ela, sempre mais ela, percebeu-lhe uma visível necessidade de se comunicar, como se quase ninguém quisesse saber, em verdade, quem ela é, e já lhe tinham dito, em diversas ocasiões, ser um bom-ouvinte, uma qualidade rara, percebeu que ela habitava um lar de silêncios, não por acaso queria festejar o aniversário fora de casa, tentou, mas não conseguiu apreender com quem se dava melhor, se  pai ou mãe, logo as filhas que tendem para os pais, o irmão uma figura praticamente ausente das suas palavras, apenas caracterizado com “Lê muito!”, pouco mais, em tempos alguém levou um livro para a escola por saber que quando temos um livro aberto, há sempre uma multidão entre nós e o mundo, ele gostou da companhia dela, era mais inteligente do que aparentava, de repente, num acaso de palavras, compreendem partilhar a mesma paixão por quadros e pincéis, ela fica espantada, pensou que ele não fosse além das rochas, há momentos que definem o rumo de uma vida, se não tomarmos a devida atenção, evolam-se para sempre do horizonte, no seu lugar apenas dor e arrependimento, funestos companheiros de jornada, consciente disso, ela beija-o, de forma decidida, intensa, com esse beijo procurou sublinhar o relevante papel que lhe atribuía na sua vida, espantado, ainda estava aquém de tais inferências, permaneceu sentado, enquanto ela se levanta, olhou-a já com enlevo, algo mudara, ela “Vens aos meus anos?”, enquanto lhe estendia a mão para o ajudar a erguer-se, “Sim, claro”, a resposta saiu-lhe pronta, o sol iluminava cada contorno do rosto dela, o verde dos olhos assumia tons de coral, ainda  sentado compreendeu-se perdido naquele olhar, nasciam-lhe remorsos, um peso que lhe lançava a alma por terra, lá se levantou, talvez num canto de si esperasse que ela, de novo, mas houve apenas um afável diálogo no regresso, após deixá-la, reflectiu na familiaridade que espontaneamente se instalara entre eles, como se há muito se conhecessem, as estranhezas desta caminhada, reflectiu, porém, um rosto já norteava os passos do seu sentir, e fazia parte do seu carácter iluminar a essência de uma palavra, neste caso, fidelidade, note-se que foi ela a tomar a iniciativa de o beijar, ele ficou extasiado e perdido no universo esverdeado daquele olhar, era a rapariga mais bonita que já vira e mulher mais bela que viria a conhecer, enleado nos seus pensamentos foi para casa, todavia, resoluto num aspecto, o de cumprir com a sua palavra, à noite marcaria presença no aniversário dela, após o jantar dirigiu-se para a praia, seria também a sua primeira festa de anos numa praia, isto foi há umas décadas, uma altura em que os sonhos pareciam tangíveis para uma geração, por momentos, escassos de facto, talvez pensassem conseguir trazer o céu à terra, tolos, coitados, o céu jamais terá lugar na terra, de mãos nos bolsos, ainda embrulhado no seu pensar, um sentir de culpa crescente,  lá caminhou rumo à praia, viu um amigo que também fora convidado, não se espantou, eram todos praticamente vizinhos de rua, da escadaria de pedra, antes da areia, avistaram a fogueira, na sua imagética projectara uma fogueira maior, mais radiante e luminosa, encontrou umas chamas sofríveis que se contorciam dolorosamente ao capricho da brisa, olhou com desolação, desceram os degraus, aí havia sujeitos a partilhar cilindros- fumegantes, perceberam que também eram convidados, ele não apreciou este facto, antes de pisarem a areia, um vulto próximo da sofrível fogueira levanta-se e acena-lhes, pararam, a noite pareceu tornar-se dia, ele deu um passo atrás em espanto, ela continuava a acenar-lhes, há imagens que nos acompanham até ao último fechar de olhos, para ele, esta será uma das mais significativas, ela envergava um vestido-branco, não lhe perguntem se era cintado, se tinha folhos, se era de manga-curta, reteve apenas que ela envergava um vestido-branco, e assim a noite transformou-se no mais luminoso e primaveril dos dias, entreabriu os lábios de espanto, correu para ele e abraçou-o, o amigo aquém de tais conjecturas, certamente nem terá reparado na cor do vestido, prosseguiu a marcha para junto dos demais sentados à volta da sofrível fogueira, ele também a abraçou, o perfume deixou-o inebriado, “Estou tão feliz que tenhas vindo!”,  “Eu disse-te que vinha”, “Agora que chegaste, podiam todos ir embora…”, esta frase sussurrou-lhe ao ouvido, enquanto lhe dava a mão, uma certeza fez-se-lhe luz num repente, o branco do vestido era uma mensagem para si, demorou a reencontrar-se, a sofrível fogueira, os despojos nos degraus a partilhar cilindros-fumegantes, o vestido-branco, que trouxe o dia à noite, a correr na sua direcção, a abraçá-lo numa ansiedade crescente, o perfume  que o enfeitiçou, o peso do seu carácter a lançá-lo pelo chão do mundo, foram, de mãos dadas, na direcção do círculo à volta da sofrível fogueira, a cada passo nessa direcção mais ele se sentia a distanciar da outra”, pois, na presença desta, foi o vocábulo que lhe surgiu, a “outra”, talvez por isso se sentisse lançado por terra, enquanto caminhavam, ela aproximou os lábios e repetiu mais pausadamente “Agora que chegaste, podiam todos ir embora”, e acrescentou “Era a melhor prenda-de-anos que me podiam dar”, olhou-a e sorriu-lhe, apesar de ténue, a fogueira já se reflectia naqueles espelhos-esverdeados, dando-lhes uma coloração etérea, por momentos, ele deixou de sentir a areia sob os pés, sentiu-se de mão dada com uma divindade, o vestido-branco encandeava-o, de costas para o círculo da fogueira, pela segunda vez nesse dia, ela beijou-o, mais serenamente, como se desse tempo à memória para sorver cada instante, como se num gesto, de costas para o círculo da fogueira, proclamasse um desejo “Agora que chegaste, podiam todos ir embora”, ele procurava segurar a última luz do mundo, seria a única vez, na sua existência, em que vira o dia caminhar pela noite, e a “outra” uma realidade tão longínqua, próxima quase de uma ficção, tal o doce calor daquele beijo, foi uma voz vinda da sofrível fogueira a fazê-los regressar à circunstância “Então a… não veio?, a…, ainda há uns instantes uma realidade tão longínqua, próxima quase de uma ficção, agora ali, omnipresente entre os dois, deixou, num repente, de ser a outra, instintivamente lábios afastaram-se, braços descaíram, um passo atrás, olhos na direcção do círculo à volta da sofrível fogueira, perscrutando  fonte de tão inoportuna questão, que nada tinha de inocente, se um pouco mais de atenção às coisas, compreendíamos facilmente os momentos que, de facto, demarcam o rumo das nossas existências, em grande medida denominamo-los de “arrependimento”, e com esse irreversível carácter pejorativo acompanham-nos até à derradeira expiração, esse foi um deles, a longínqua “outra”, uma realidade próxima quase de uma ficção, subitamente materializava-se entre eles “Então a… não veio?, o vestido-branco anoitecera, a música subiu, alguém se levantara do círculo para dançar com ela, de forma apatetada e despropositada, ele retraiu-se e foi mais um adicionado ao sofrível circulo à volta da débil fogueira, como se um espelho do seu carácter por um desejo não pronunciado, “a outra”, no que restava da noite, pouco mais se falaram, os despojos dos cilindros-fumegantes acabaram por migrar para junto da fogueira, não era ambiente do seu agrado, quem admira a solidez das rochas não aprecia cilindros que se desvanecem com facilidade, no ar, em forma de halos, expirados por baforadas teatrais, regressou a casa na companhia do mesmo amigo, também não era apreciador de ambientes fumegantes, tentou despedir-se dela, mas estava rodeada de umas amigas que lhe cantavam os parabéns em total dessintonia, após a escada, olhou uma última vez para trás em busca do vestido-branco, não o encontrou, de facto anoitecera, a caminho de casa, uma frase murmurada docemente, por uns lábios tão próximos, regressou-lhe “Agora que chegaste, podiam todos ir embora”, e uma promessa de amanhecer a noite ficou por cumprir, possivelmente foi ali que ondularam as débeis chamas, sorri para a memória, não para a areia agora vazia, olha os degraus por onde ele, há tanto, que se afigura uma ficção, veio e regressou, recorda-se bem de ter acompanhado o seu lento regresso, indesejadamente viu-se cercada por umas histéricas que se puseram a cantar os parabéns à desgarrada, nem sabia como ali vieram parar, pelo menos não fora ela a convidá-las, não queria ser hostil, afinal era o seu aniversário, porém, ele afastava-se, ladeado pelo mesmo amigo, viu-os ao longe, já na escadaria de pedra,  decidira regressar, ainda pensou furar o círculo à sua volta e correr atrás dele, gritar o seu nome, contudo, permaneceu onde estava, com um sorriso esbatido no rosto, uma frase pairava, com a melodia da sua voz, ouviu-a “Agora que chegaste, podiam todos ir embora”, o seu olhar desceu até si, pois, o vestido-branco anoitecera, questionou se ele o compreendera, algo lhe dizia que sim, só as circunstâncias foram adversas, uns dias depois soube da namorada, não se melindrou, há muito que gravara uma frase da sua avó, “Minha filha, minha filha, nunca corras atrás: o que é teu, à tua mão virá ter”, e acrescentava: “Se não aconteceu, foi para o teu bem. Nunca te esqueças disto! Não forces o acontecer! Perderás três coisas: tempo, energia e dignidade. Há pior?”; assim sendo, aguardou que lhe viesse entregar a prenda, era cumpridor dos normativos sociais, achava enternecedor, e assim foi, quando a memória está ao leme de nós, o corpo fica abandonado à circunstância, porém, algo fê-la voltar de um tão ontem ao agora, o grito de uma gaivota, o riso de uma criança, um buzinar na estrada, uma onda estrepitante, ou apenas a fadiga de caminhar pelo que foi, o seu olhar no horizonte diante de si, pintado com os omnipresentes dois tons de azul, mais escuro, em baixo, e o claro, para as alturas, também pontificava o farol-ilha a demarcar o eterno amplexo entre rio e mar, como se não fossem um só, quase um familiar dos habitantes dali, o olhar sempre o procurava com avidez, para se assegurar de que tudo, no mundo, estaria no seu lugar, só quem por ali mora compreende estas linhas, olhou o relógio, já passavam uns minutos da hora marcada, ficava sempre bem a uma senhora chegar ligeiramente atrasada, pensou, mas ela nunca foi de etiquetas, ainda menos de jogos-sociais, dirigiu-se para o restaurante, ficava debruçado sobre a praia, do lado Leste, subiu a escadaria de pedra e foi pelo paredão, avistou-o ao longe, olhava o mar, a sua familiar silhueta que tanta confiança lhe inspirava, enquanto  caminhava ao seu encontro, pensou que seria capaz de lhe contar quase tudo, em verdade, nunca contamos tudo de nós, é uma impossibilidade estrutural, e pelo facto de maioritariamente procurarmos palavras para nos darmos a conhecer, o que é um erro grosseiro, é tão longa a distância entre o sentir e a palavra, jamais a palavra saberá distinguir o doce ou amargo de uma lágrima, quando se apercebeu da sua chegada, ele virou-se com um sorriso, os habituais óculos-escuros com uma fita à volta do pescoço, a típica pólo de manga-curta, não lhe passou despercebida a escolha do azul-escuro, talvez quisesse disfarçar o peso dos anos, contudo, houve um aspecto que a irritou sobremaneira, olhou-a e cumprimentou como se não se vissem desde ontem à noite, procurou disfarçar a irritação, mas não lhe era novidade a sua muralha inexpressiva, e era esse carácter de inacessibilidade que mais a incendiava, ele vira-a a aproximar-se desde a areia, aquele caminhar de turista curiosa, a olhar em volta como se não tivesse destino ou horário a cumprir, mantinha o mesmo estilo descontraído da juventude, ténis, calças-de-ganga, camisola, por instantes, as décadas diluíram-se do horizonte, como se, de facto, não tivessem decorrido tantos anos, ela não fosse casada, um filho e uma filha, mais velha, uma carreira ligada às artes manuais, ele com dois casamentos, consequentemente um divórcio, três filhos, seguiu carreira a levantar a história do solo, décadas e décadas a procurar as pegadas do homem pelo chão do mundo, foi dela a primeira frase da tarde, “Estás praticamente na mesma, tirando a barriga”, mantinha a mesma jovialidade na voz, inclinou ligeiramente o rosto enquanto falava, como sempre fazia, ele apreciou sobremaneira esse pormenor, parecia regressado a um lugar onde tanto fora feliz, de seguida cumprimentou-o, beijou-lhe as faces, olhou à volta e exclamou “Isto está tão diferente! Pelo menos, manteve-se o restaurante com a varanda sobre a praia”, acrescentou “E eu? Que dizes? Mudei muito?”, imperceptivelmente regressou à sua velha posição de ouvinte, quase um confessor, por instantes, as décadas diluíram-se do horizonte, como se, de facto, não tivessem decorrido trinta anos, tudo, no mundo, estava no seu lugar, inspirou antes de responder, queria fruir o momento em toda a sua plenitude, o dia luminoso, o mar sereno que apenas se vinha espreguiçar à areia, a familiaridade prontamente restabelecida entre eles, demorou-se pelo seu olhar enquanto procurava juntar palavras adequadas para a ocasião, há sempre uma característica, física ou de carácter, que nos surge ao ouvir um nome familiar, além da sua história, os olhos sempre o fascinaram, assim que a viu, procurou-os com receio de o brilho do ontem se  ter diluído, mas não, a esperança tonta, da adolescente ida, dera lugar a uma melancolia enigmática, da mulher do hoje, demorou-se naqueles espelhos esverdeados e desejou-a, pois, tudo, no mundo, estava no seu lugar, ela leu-lhe esse desejo, a mulher caminha sempre à frente do homem, tal facto não lhe passou despercebido, de certa forma ele preferiu assim, já não eram adolescentes, o tempo, agora, é um adversário, não um aliado, esta é uma das verdades da vida, à medida que o tempo se torna um adversário, caminhamos cada vez mais devagar, daí que nos ganhe sempre a corrida, sorriu-lhe e respondeu “Vamos entrar?”, ela conhecia o seu carácter frugal, não lhe esperava elogios, jamais os fizera, exprimia-os de uma outra forma, um olhar, um gesto, dizem sempre mais, apreciava esta sua característica, como se um porto de águas-verdadeiras, seguiu à frente, ele secundou-a, pediram uma mesa na esplanada, sobre a praia, enquanto a seguia, uma esperança diluíra-se, julgou que ela viesse ao seu encontro com o vestido-branco do décimo-oitavo aniversário, para materializar uma promessa por cumprir, afinal, não, percebeu que, neste momento, era o coração que estava ao leme de si, só ela tinha este condão, de o desorganizar por dentro, àquela hora de um dia de semana, o restaurante estaria com metade das mesas ocupadas, por conseguinte não lhes foi difícil encontrar uma mesa digna do seu reencontro, escolheram uma na parte exterior, na varanda sobre a praia, as mesas em volta vazias, para assim terem a necessária privacidade, antes de derrubar o tão desconfortável silêncio, olharam-se, talvez para se reconhecerem e se situarem nas biografias sempre tão demarcadas pelos rostos, ao contrário do expectável, foi ele a silenciar o silêncio “Estás a dar-te bem com os ares do Norte?”, não por acaso, uma questão, pois, a alimento do diálogo, “Creio que atingi a fase da resignação. De início, pensei que fosse enlouquecer. Nem imaginas! Após a infância e juventude aqui passadas, mudar-me lá para cima… Eu que nunca fui de depressões, até medicação tomei! Foi mau… Muito mau!”, parou e olhou o mar, como se recuperasse o fôlego ou precisasse de recuperar energia para prosseguir com a narrativa, ele viu-se regressado ao seu “eu” de ontem, fascinado pela sua honestidade desarmante, por aquele olhar que parece ler-lhe a alma, como um espelho onde se revê, sem máscaras, disfarces, artifícios, nada, apenas “eu diante de mim”, e isso tranquilizava-o, não corria em busca de aparências, mas estava para além do fascínio, tacteava já o enamoramento, de novo, o regresso a um lugar feliz, há coisa melhor? Enquanto ela falava, levantava-se o véu do ontem, e ambos imperceptivelmente, ou talvez não, regressavam-se, deixando à porta as malas do hoje, sentiu que ela precisava de incentivo, “Mas foi assim tão mau? O que aconteceu?”, pareceu grata pela pergunta, uma muleta em seu auxílio num momento de fragilidade, havia nitidamente muita dor recalcada, ameaçava desmoronar a qualquer instante, “Tanta coisa! Sabes, uma coisa, por exemplo, é ires lá acima passar um fim-de-semana. Dois dias: passeias, comes, divertes-te, até brincas com as diferenças culturais, mas sabes que tens o bilhete de volta, outra é, de repente, teres consciência de que terás de passar lá o resto da tua vida! Isso muda tudo! Foi perante esse cenário que me vi colocada naquela altura! Achas que foi fácil? Para uma miúda, que sempre aqui viveu, deparar-se com tal facto no final da juventude? Senti que entrava na fase adulta da minha vida de noite. Anoitecera à minha volta. Vi-me retirada, abruptamente, do meu grupo de amigos, aí ganhei consciência da efemeridade das relações, é crescente a facilidade com que se diz adeus, não achas? Tudo tão volátil. Sabes quando intuí isso? Na noite em que anunciei a minha partida, não te lembras? Acho que chegaste um pouco mais tarde dessa vez, estávamos à volta daquele poste luminoso, vocês, rapazes, em demonstrações ridículas de masculinidade, costumavam pôr-se aos pontapés para ver quem conseguia fundir a lâmpada, enfim, eu estava de pé, foi mesmo a seguir ao jantar, ainda não estávamos todos, isso incentivou-me a avançar com a notícia, assim o fiz, com a necessária teatralidade, e espantou-me que ninguém se tenha levantado para me abraçar! Não foram além dos lugares-comuns: A sério? Mas não há volta a dar? Que pena! Deixa, vens visitar-nos… Nesse momento, uma voz, muito minha, murmurou-me: É isto a vida. É isto a vida. Somos hoje o nada do amanhã. O que mais me doeu foi o facto de ninguém se ter levantado para me abraçar! Senti-me tão descartável, tão insignificante… Até que tu apareceste. Lembras-te do que me disseste quando te contei? Começaste, primeiro, muito discretamente, por nos afastares dos outros, percebeste logo, pela minha expressão, que era coisa séria, enquanto te contava, caminhaste para longe, por fim, a uma distância segura, puseste-me as mãos nos ombros e prometeste: Não haverá um dia em que não nos falemos! Não foram as palavras, nem a forma enérgica e decidida como as proferiste, não sei se foi a minha carência desmedida, as tuas mãos nos meus ombros, como se me segurasses do precipício, porém, foste vital num momento em que estava prestes a ruir, o único a dizer-me que, amanhã, eu poderia continuar a ser, para o bem ou para o mal não vislumbramos o papel que podemos desempenhar nas biografias alheias. Desde esse momento, abri-te as portas da minha vida, lembras-te da minha primeira carta?” Ele esboçou um sorriso nervoso, como se lhe fosse uma questão delicada, por fim, resignadamente confessou-lhe “Sim. E guardei a foto que mandaste. Lembras-te do que escreveste no verso?” Ela “A vida inteira para dizer uma palavra. Felizes aqueles que disseram a palavra”, silenciou-se e esperou pela reacção dele, enquanto lhe tacteava os pensamentos com o olhar, se houve frases que podiam alterar a geografia de uma existência, esta foi uma das tais, na altura ele ficou dividido, primeiro leu-lhe “Adeus”, “Perdeste-me…”, com o decorrer dos dias, a frase foi adquirindo outras significações, um pedido para se exprimir, chamá-la para junto de si, relembremos que a frase estava no verso de uma foto, sim, ele releu-a inúmeras vezes, tantas quanto se perdeu a contemplar a fotografia, foi tirada na cidade para onde fora viver, denotava-se-lhe aquela luz, com um carácter difuso, que ilumina pormenores, do lado esquerdo avistava-se um pouco daquela elegantíssima ponte, tinha um porte tão feminino, aquele imenso arco que a sustinha, tanto brado dera, na altura da sua construção, pelos quatro cantos do mundo, estava sentada, de perfil, na margem sul do rio, percebia-se-lhe o pensamento longe, muito longe, da sua circunstância, uma indelével sombra de tristeza no rosto, e o olhar melancólico a contemplar o ontem que se afastava, à espera de uma palavra que jamais ecoou, “Dizem que a juventude é a idade da palermice, do armário, da rebeldia, enfim, disparates! Enquanto na infância se sonha, na juventude pretende-se materializar esses sonhos, em adulto desaprende-se o sonho. É isto. Eu esperei que viesses atrás de mim, sabes? Que um dia batesses à porta para me levares contigo para qualquer lado. Iria contigo para onde quisesses, tens consciência disto? Durante meses, sempre que a campainha soava, tinha esperança de que fosses tu, acreditas? Quantas vezes sonhei com isso! E foram tempos tão difíceis! Eu que sempre amei o sol, de repente, vejo-me semanas a fio sem o ver, rodeada de estranhos em todos os sentidos, na língua, hábitos, costumes, referências, confesso não me ter esforçado muito para integrar naquela sociedade, não me dava qualquer espelho, além de, por si mesma, já ser hermética o suficiente, foi uma das formas que encontrei de te manter comigo, houve vezes em que não conseguia parar de rir quando vinham falar comigo, o sotaque e os provincianismos eram demais, havia palavras que desconhecia em absoluto, tinha de pedir que me esclarecessem o significado, já te dou alguns exemplos”, enquanto ela discorria memórias, ele reocupava o posto de ouvinte, por natureza era extrovertido, só em contextos adversos é que preferia o silêncio, uma aprendizagem da vida, porém, com ela tinha gosto nesse papel, deliciava-se a ouvi-la discorrer as suas vicissitudes, o elo de uma singular intimidade, ela derramava-lhe a alma, ele recolhia cada fragmento e guardava na memória, “Olhava o meu irmão  e questionava se ele se dera conta de que mudáramos de casa e de terra. Sempre escondido atrás de um livro. Assim é fácil encarar mudanças”, aqui ela enganava-se rotundamente, manter hábitos em contextos distintos é uma conquista singular, “Sabes que nunca fui de depressões, de me deixar ir abaixo com facilidade, porém, creio que, por volta do segundo mês lá em cima, entrei na mais profunda depressão. Aos fins-de-semana nem de casa saía, ficava fechada no quarto, às vezes deitava-me no chão sobre fragmentos de luz que as cortinas deixavam passar, como se quisesse relembrar-me de quem sou, compraram casa numa urbanização inacabada, era um corrupio de trolhas, barulho de enlouquecer, poeira, sujidade, enfim, o habitual de imundície inerente a esse contexto, menos vontade tinha de sair, parecia que estávamos cercados, já imaginaste? No prédio onde vivíamos, por exemplo, só o nosso apartamento era habitado, nos prédios em volta o cenário era igual, os trolhas supostamente procediam aos acabamentos dos passeios, da iluminação, canalizações, das casas por vender, tratavam dos arruamentos, por aí fora, foi horrível, parecíamos prisioneiros, controlavam as nossas saídas e entradas, sabiam os nossos horários, no início, ainda cumpríamos com a etiqueta social, neste aspecto, só o meu irmão destoava, sempre velado por um livro, nesta fase invejei-o, confesso, queria vida e não fugir dela, mas ali, à minha volta, também nada encontrava, só a ti contei isto, não é nada de especial, não é nenhum segredo, todavia, marcou-me tão negativamente, parecia que, de repente, a vida resolvera engolir-me numa noite sem amanhã, o céu, quase sempre, num cinzentismo asfixiante, nem vislumbre destes nossos azuis de Sul, nunca vi chover tanto, até aos Sábados éramos acordados por volta das sete da manhã pela trolharada, gritos, marteladas, a elegância habitual, contudo, a partir das dez, já não se ouviam, creio que era propositado, só podia ser, certa vez, penso que foi num Sábado de manhã, o meu pai abriu a porta da rua e atirou-a com a violência possível, fez-se um silêncio confrangedor por um minuto apenas, o verniz estalara, desde aí, sentimo-nos libertos de cumprir com a etiqueta sempre que nos cruzávamos com as criaturas, não houve mais cumprimentos, e aquele céu plúmbeo omnipresente fortalecia os nossos mais recalcados e obscuros temores, curioso, não me lembro de sorrir nesse período, e uma constante dor-de-cabeça, mais tarde, com os estudos, compreendi o que a falta de luz pode provocar num indivíduo, sobretudo a quem está habituado ao sol como companheiro, daí sorver cada resquício de luz derramada pelo soalho, foi dilacerante, às vezes penso no quanto de mim ali morreu, sair de um ambiente onde, desde que abria a porta de casa, tinha de me desfazer em cumprimentos, conhecia toda a gente, ali estavam os primeiros amigos, aqueles que, mesmo se deixarmos de falar ou nos afastarmos devido às contingências da vida, jamais o seu rosto se desvanecerá do horizonte, tinha tudo perto, café, super-mercado, papelaria, campo-de-jogos, mais distante, mas não tanto assim, praia, como eu gostava de praia, e ainda gosto, daquelas coisas que permanece intocável, lembras-te das nossas conversas na areia? Foi lá que trocámos as primeiras frases, no fundo, que nos conhecemos, tudo tão luminoso, e num ápice a minha alma anoitecera, há alturas que pedimos à vida para acelerar, cansados do tédio quotidiano, de repente, compreendemos o seu acelerar em demasia e deixamos de estar ao leme dos acontecimentos, somos ultrapassados pela voragem do desenrolar das coisas, de repente, ficamos reféns de uma questão: Como foi possível…? Não, não me foi nada fácil os primeiros tempos lá, por orgulho não te contava tudo nas cartas, curioso, agora que falo nisto, cartas… Parece que faço alusão a uma coisa de há séculos, quando, ainda há menos de duas décadas, era corrente o seu uso, e tinham outro encanto, não achas? Podia-se sentir o perfume do remetente, gravar um beijo no papel, ler saudade ou dor pela caligrafia, a ânsia de abrir o envelope, segurar o papel, decifrar o sentir por entre as linhas, enfim, uma carta é sempre um fragmento de múltiplas biografias, uma mensagem do hoje, numa dessas plataformas digitais, jamais terá o charme de um manuscrito guardado num envelope, por falar nisso, guardaste as que te enviei? Confirmou com uma anuência vertical, resolveu colocar-lhe uma questão que há tanto latejava em si: “Lembras-te daquele luar de Novembro? Nós sob o céu em prata e o mundo um lugar longe?” A questão saiu-lhe com uma indisfarçável avidez, denotava-se-lhe que há muito vivia em si, como se precisasse de uma confirmação, que ficou guardada para aquele momento, foram interrompidos pelo empregado-de-mesa, vinha saber dos pedidos, foi-lhe visível uma certa irritação, logo agora que estava prestes a ver silenciada a pergunta que há tanto o atormentava, há tanta questão que nos acompanha os passos, contudo, esquecemos o essencial: temos em nós todas as respostas. Preguiça, distracção, medo, cansaço, ansiedade, temor, preocupações, carências, são inúmeros os factores que nos toldam a descida ao “Eu”, embora intuísse que ela guardava esse momento entre os quatro ou cinco que valem a nossa passagem por este lado de cá do existir, “Se te dissesse o que tinhas vestido, acreditavas? E, claro, o que eu também vestia? Estava desesperada nessa noite. Mais uns segundos em casa, e asfixiava. Foi após o jantar, ia fazer uma semana que os meus pais só conversavam, entre si, o essencial. O casamento morrera, só faltava mesmo a cerimónia fúnebre. Pelo que percebia, a culpa estava mais do lado da minha mãe. Parece que nunca esquecera o primeiro namorado. Uma morte trágica! E o meu pai não se conformava por viver num lugar secundário do seu coração. Deve ser doloroso, de facto, após tanto tempo de vida marital, dois filhos, constatar que se tem reservado, no coração do outro, um lugar à sombra… Olhar em volta e, de repente, tudo se afigurar uma gigantesca mentira, se há batalha desleal é sempre com os mortos, um duelo votado ao malogro, o morto adiciona a ideia à saudade, há soma mais poderosa? O vivo maioritariamente já deixou de ser ideia e saudade também não costuma haver muitas, logo que hipóteses tem no confronto com aquele que partiu? Pois, quase nenhumas, creio que o pensar do meu pai passou muito do seu tempo a calcorrear estes trilhos, a certa altura, lá chegou a uma conclusão: a partir daqui só tinha duas possibilidades: o divórcio ou manter-se num casamento onde estaria sempre num lugar de sombra. E meu irmão? Passavam-se semanas que nem lhe via o rosto, nem lhe ouvia a voz, apenas a capa de um livro que se arrastava pelas diferentes divisões da casa, pelo menos a capa ia-se alterando, a troca de frases não ia além do básico, quer com os pais, quer comigo, de início achei que fosse um bloqueio, uma defesa para não enfrentar a realidade, só depois compreendi que foi a forma encontrada de se adaptar a um mundo de silêncios, dor, ressentimentos, equívocos… Preferiu dialogar com Escritores, foi sensato, cumpria as suas obrigações escolares e domésticas, sempre um livro debaixo do braço, creio que por ali procurava respostas para o aqui, desconheço se algum dia as encontrou, mas houve algo mais a empurrar o meu irmão para essa tão prematura insularidade, só mais tarde descobri, depois contar-te-ei, mas voltando a essa noite de Novembro, vi-me, ao jantar, confrontada com a nossa irreversível partida rumo a Norte, com aquela idade era viajar para o desconhecido, dezassete anos, já viste? Com dezassete anos a intensidade das coisas é tão distinta, reparaste na ironia desta frase? Há quem acredite nisto, de facto este mundo é o lugar perfeito para os idiotas! Se vamos falar de intensidades, eu continuo com dezassete anos. Se te disser o que ansiei por este nosso reencontro, acreditas?” Ajeitou-se na cadeira, evitou, por momentos, a intensidade esverdeada do seu olhar, optou pela tranquilidade azul do mar à sua volta, ao perceber que ele dispersava, resolveu retomar a narrativa, queria-o junto de si, senti-lo, nem que fosse na memória materializada em palavras, “Bom, saí em pranto para a rua, sabia que, nessa noite, estavas nos ensaios, não por acaso me encontraste, à porta, encostada ao muro branco daquela casa… Passei lá antes de vir, já não existe! No seu lugar, uma aberração estética. É mesmo um país de trolhas! Enfim… Mas não me interpretes mal, eu estava mesmo desesperada, vi-me diante de uma inevitabilidade, rumar a Norte, cortar todos os laços com a minha circunstância, só tu podias dar-me algum alento, apaziguar o meu desordenado sentir, às vezes falo como escrevo, hábitos antigos, sabes, assim que puseste um pé no passeio, o teu olhar encontrou-me, apesar da noite, de vires com os teus colegas do teatro, nunca te referi isto, mas sim, um pé no passeio e a tua atenção logo em mim, ignoraste-os por completo, atravessaste a estrada, nem olhaste por carros, abraçaste-me e ao ouvido murmuraste:  Então, o que aconteceu? Como se fôssemos íntimos há muito, como amei esse teu gesto, as tuas palavras genuinamente de preocupação (Então, o que aconteceu?), eu retribuí o abraço com uma intensidade proporcional ao meu sentir, assim ficaram as nossas sombras derramadas no passeio, estavas apreensivo, eu Podemos ir até à praia? Prontamente anuíste, durante a caminhada, enlevados pelo luar, contei-te, contei-te tudo, menos o essencial, que te amava, que usara, no meu aniversário, um vestido-branco para ser tua, que me fascinava o teu interesse pelas artes, tão diferente dos outros, a tua seriedade, já ciente dos objectivos – terminar o curso, trabalhar, constituir família –, enternecia-me o teu carácter prático, tão distinto de mim,  eu caminhava pelas nuvens, tu pelas pedras, viria a ser uma das tuas paixões, olhava-te como se fosses o meu oposto numa outra margem, chegados à praia, por aquele sinuoso trilho entre hortas e canaviais,  o que eu gostava mais era de atravessar a linha-de-comboio, sempre o ponto-alto do caminho para a praia, pela adrenalina, pelo facto de termos consciência do perigo, sermos, nesse momento, invadidos por histórias trágicas e de profundo horror, como se uma fronteira entre o aqui e o além, um passo em falso, um descuido, e estávamos do outro lado, quantas vezes não ficávamos absortos com o sibilar dos carris, anunciavam  a proximidade de um comboio, fascinava-me aquele sibilar, ainda hoje, fecho os olhos e aqui está, parecia dizer-me: Queres continuar por aqui ou partir de vez? No fundo, é a questão da minha vida, a que mais me ocupou”, de novo o empregado entre eles, ela forçada a interromper a narrativa, um desconforto pelo abrupto regresso ao presente, percebeu-lhe o mesmo pela expressão, ambos estavam lá atrás, numa noite de luar, a caminho desta praia, desta não, de uma outra, afinal, passaram décadas, eles eram outros, a praia também, e o luar de ontem ilumina sempre mais, hoje estão sob um pacífico sol primaveril, enquanto o empregado cumpre com as suas funções, permanecem em silêncio, pouco têm para dizer do hoje, o diálogo deles interrompera-se no ontem, os pratos servidos, o empregado felizmente diluíra-se do seu horizonte, mas uma história, a deles, suspendera-se, ela opta pela diplomacia, retoma a narrativa enquanto saboreia a refeição, afigurou-se-lhes o mais sensato, embora nenhum o verbalizasse,  “Descemos para a praia pelo lado Leste, aquela rampa ligeiramente em curva, ainda hoje lá passei, e vi as canas, engraçado que estão dispostas como na minha memória,  estava maré-vazia, lembras-te?”, olhou-o demoradamente, necessitava, para continuar, de uma confirmação de que também ele memorizara cada instante desse luar, quase lhe segurou a mão para ter a certeza, mas algo a refreou, talvez o facto de ele afirmar “Sim, ainda andámos um pouco, sentámo-nos, lado-a-lado,  perto da linha-de-água, pousaste a cabeça no meu ombro, e falaste-te…”,  sorriu com o olhar, não relembravam um momento, era algo de uma outra ordem, levantava-se em ambos uma certeza: haviam sido outros. Talvez os quisessem resgatar, daí, neste momento, estarem sentados, à mesa desta esplanada, com vista para uma praia outrora iluminada pelo luar, ela prosseguiu “Sabes, não encontro palavras para descrever essa madrugada, possivelmente seja uma insuficiência vocabular minha, não sei, mas se olhar para trás, é o momento mais vívido que logo se me levanta, daí a memória possuir esta dupla ambivalência: céu ou inferno; parecia estarmos numa ilha onde os problemas do mundo não chegavam, a lua ondulava diante de nós, um bailado líquido, parecia murmurar-nos sonhem, sonhem à-vontade, sim, são possíveis…, quase os tacteava, afinal, tinha a cabeça sobre o teu ombro, não sei porquê, pressentia a tua compreensão antes de falar, desde o primeiro momento, senti que tínhamos uma ligação, chorei-te a minha partida, os silêncios de casa, o pai a distanciar-se da nossa circunstância, uma mãe que, afinal, nunca lá esteve, um irmão velado por um livro, por fim, abraçaste-me, lembras-te?” De novo, olhou-o, como se precisasse de confirmação para prosseguir, viu nele uma expressão de anuência e um vislumbre de felicidade, compreendeu, para sua alegria, que, também para ele, esse seria um dos momentos mais vívidos ao olhar para trás, “Deu-me, não sei porquê, para falar das férias, a inevitável ida para casa dos avós maternos, como se nada mais houvesse, ali ficávamos, durante o Verão, entregues à nossa sorte, nesses momentos cresciam as minhas invejas do meu irmão, talvez nem se apercebesse da mudança de cenário, apesar das desmedidas atenções dos avós, eu sentia-me enlouquecer, sem uma ponte de diálogo, às vezes dava-me para sair pela aldeia, sentia-me a caminhar por outro planeta, nem um cordial sorriso eram capazes de devolver, apenas expressões de desconfiança e hostilidade, e os dias eram mais longos, tão mais longos, havia um rio por lá, lamacento, desengraçado, nessa altura, queria tanto ser adulta, estaria aí a resolução dos meus problemas, aqui chegada, para meu desencanto, compreendo que a essência deles permanece, nunca de mim partiram, com uma agravante, a esperança de os solucionar diluiu-se, antes ainda me habitava, agora… E tu sempre acabaste por casar com a… Ele foi lesto na resposta, como se lhe fosse apontada uma incómoda luz ao rosto numa viagem nocturna, anuiu, sintetizou o seu contexto, transpareceu que tudo bem, tinha mais um filho e um casamento que ela, filhos,  riram-se das ironias da vida, um riso vazio, as questões de fundo, entre eles, continuavam submersas, ao contrário das rochas prateadas de luar, pela maré-vazia, daquela madrugada de Novembro, se tudo estivesse tão bem assim, na sua vida, por que estaria aqui a almoçar com um rosto do passado? Haverá, de facto, rostos do passado? Se nos acompanham, são sempre faces do presente, ela intuiu que ainda tinha o seu lugar de destaque no peito dele, contudo, começava-se a esclarecer, no indizível do sentir, que não haveria prossecução entre eles, olharam-se, por momentos, já com uma saudade do que foram, a questão veio dele “Lembras-te de como acabou essa noite? Deixei-te à porta do teu prédio…”, ela interrompeu-o “Começou a cair uma chuva miudinha, mal deixámos a praia, querias pôr-me o teu casaco pelos ombros, sempre tão paternal, tão responsável, reparaste que, mal saímos da praia, o luar se desvaneceu? Pareceu-me simbólico, mas reparaste? De novo, aquele fascinante olhar esverdeado fixava-se-lhe, apesar dos anos de teatro, não conseguia disfarçar o sentir, respondeu um tímido e arrastado “Sim…”, ela parecia reviver cada instante dessa noite, agora com uma energia revigorada, “A chuva, o caminho, a tua preocupação, só me faziam rir, mas faltava algo, quando me deixaste a porta do prédio, seguro de cumprires o teu dever cavalheiresco, reparaste no cenário surreal em volta? A rua deserta, as luzes, dos candeeiros, alongavam-se num oblíquo líquido pela chuva, o único som do mundo eram as lágrimas das alturas a limpar a terra dos homens, pensei, juro-te, que, a partir dessa noite, iríamos caminhar juntos o resto do viver, abraçámo-nos num adeus, a chuva ensurdecia os sons do mundo, de novo, nessa noite, a sensação  de estarmos sós, de repente, foi tão súbito, partiste dos meus braços, pressenti uma culpa em ti, uma urgência de partida, lá foste, na tua passada leve, eu para ali fiquei, no desamparo de uma promessa por cumprir, como uma velha boneca de pano largada num passeio à chuva, nesse momento, não sei porquê, compreendi que te afastavas irreversivelmente de mim, fui para o meio da rua, apesar da chuva mais densa, numa desesperada esperança de que olhasses para trás, via-te a silhueta já com dificuldade,  antes de virares à direita, ao fundo da rua, resolveste olhar para trás, encontraste a melodia da chuva mais alta, os contornos líquidos das luzes mais oblíquos, e a minha silhueta, no meio da estrada, do alcatrão chovido emergia um ténue vapor, nesse momento, os nossos olhares tangeram-se, de certa forma compreendemos que jamais diríamos adeus, não me recordo por quanto nos olhámos, ali não havia espaço para o tempo, se me perguntassem pela chuva, respondia que não se interrompem sonhos, sei o ponto exacto da estrada onde fiquei a olhar-te, sei que sentiste o mesmo, não foi por acaso que olhaste para trás, também não fugias da chuva, tinhas medo de te perder em mim”, mãe e filha têm, na sua geografia de vida, relevantes pontos no asfalto, a mãe, pelo sangue, a filha, pelas lágrimas das alturas, ele ouviu, quase sem pestanejar, este último relato, espantou-se pelas impressões da memória coincidirem, respondeu-lhe “Verdade, se tivesse corrido para te abraçar, naquele momento, jamais te largaria. Trocava o mundo por ti!”, as palavras saíram-lhe com naturalidade, como se constatasse factos, ele que era tão púdico a exteriorizar sentimentos, a frase ainda a ocupava (“Trocava o mundo por ti!”), simultaneamente um sentir de regozijo e de mágoa (“Trocava o mundo por ti!”), uma questão quase se materializou na sua voz (“Então, por que não trocaste?”), disfarçou no possível de si, relembremos que ela era má actriz, contudo, deu o seu melhor para silenciar (“Então, por que não trocaste?”), muitas vezes o passado são as questões que não calámos, sempre que interrompemos a marcha para descansar e olhamos o caminho percorrido, lá estão suspensos estes pontos de interrogação, numa ameaça velada de nos perseguirem até ao último respirar, e (“Então, por que não trocaste?”) este foi prontamente adicionado, “A tua última imagem, dessa noite, foi um adeus acenado, eu no início da rua, tu no lado oposto, nem forças tinha para me mobilizar, não te queria perder do meu horizonte, eras, para mim, o lado bom da vida, não sei se me compreendes…”, ele agora com o mar, sopesava palavras, após o necessário “És feliz?”, ao contrário do expectável, não se surpreendeu com a questão, parecia aguardá-la, tal a naturalidade com que respondeu, o necessário tom analítico, “Felicidade… O que é isso? Alguém uma vez escreveu que a “Felicidade é retrospectiva, é a estação deixada para trás”, não podia estar mais de acordo, nunca mais encontrei felicidade similar à dessa madrugada contigo, o mundo parecia pertencer-nos, até a lua pousou nas águas para nos iluminar, curioso, nessa altura temi o amanhecer, agora é ao contrário, receio o anoitecer, como as coisas mudam no espaço do viver! Já te tinha contado? Uma angústia, um desespero calado sempre que anoitece, tudo me pesa, calculas que nunca partilhei isto com ninguém, pois, é a realidade, a maioria das mulheres que conheço aponta como momentos altos da sua existência: o casamento e o nascimento dos filhos, enfim, quando ouço estas respostas, silencio-me na minha incompreensão, concluí que a maternidade é um dom, não o possuo, confesso, já a minha mãe também, talvez por ter dado à luz filhos de um homem que não amava, creio que por aqui se iniciou o distanciamento do meu irmão, mães e filhos, pais e filhas, tudo se começa a delinear pela intensidade destes laços, as relações primeiras, de maior proximidade ou de total repulsa, imagina quando ele se apercebeu de que a mãe amava outro, que há tanto deixara este lado das coisas, só por este facto a sua existência, não, não é fácil, e o pior de tudo, lá em casa, era o silêncio, tanto grito silenciado, em verdade, nunca conheci um lar com tantos gritos calados, tudo sucedia numa artificialidade sem reparo, as refeições, diálogos, poucos, de facto, os essenciais, os serões, se o meu irmão velado pela capa de um livro, os meus pais refugiavam-se num écran, em vidas que não as suas, de forma a mitigar o seu equívoco, uma aura de resignação das expressões aos gestos, aos fins-de-semana cumpriam com os imperativos de sobrevivência e sociais, compras, café, missa, conversas de ocasião quando se cruzavam com vizinhos ou conhecidos, nunca andavam de mão-dada ou abraçados, foi um pormenor que retive, via isso noutros casais, jamais neles, em criança questionava-me,  na adolescência, a idade em que o mundo começa a perder a cor, coloquei-me as questões correctas, a partir daí facilmente obtive as respostas,  e compreendi a partida do meu irmão ao sabor de um livro, há uniões difíceis de perceber, mas é sempre mais complexa a compreensão da sua durabilidade, o caso dos meus pais é flagrante! Não leias, por favor, nas minhas palavras, quaisquer indícios de indulgência em relação ao meu pai, amou-a, soube do fantasma que ela alimentava há décadas, tentou combatê-lo, a dada altura desistiu, talvez por compreender que era uma batalha desigual, fechou-se em si, o grande problema foram os dois reféns do conflito: eu e o meu irmão; creio que, no caso dela, era um problema de outra ordem: a lealdade. Talvez sentisse que traía o seu amor com a entrada de outro homem na vida, mas as imposições sociais assim a condicionaram, no fundo, penso que ela quisesse prosseguir sozinha o seu caminho, constituir família seria um horizonte muito longínquo ou provavelmente, nos primeiros tempos, nem vislumbrasse tal hipótese, olhava-os numa passada tão distinta, ela parecia caminhar ao acaso, como se ao sabor da brisa, ele procurava acompanhar-lhe os passos, todavia era-lhe tão difícil, pois, com o tempo, cansou-se, foi mais ou menos no final da minha adolescência, certa noite, ouvi-o gritar com raiva: Eu tenho direito, pelo menos, a procurar a minha felicidade! Se não é aqui, será de certeza noutro lado! Não houve resposta, saiu e bateu a porta da rua furiosamente, começou aqui o seu gradual distanciamento dela, mantiveram-se juntos, mas sem substância, assim a realidade nos foi apresentada, há uns tempos, uma amiga disse-me que é preciso uma imensa força para se ser como o meu pai, claro que lhe apresentei as minhas objecções, para quê alimentar uma ilusão? Ainda para mais, constituir família com uma mulher que amava um falecido! Ela ouviu-me, impassível, e respondeu: Fugir é o mais fácil. O teu pai optou precisamente pelo oposto: permanecer e lutar pelo coração da tua mãe. Se perdeu ou não, já é outra história. Agora, ele fez a escolha mais difícil, e esse é um mérito que lhe tens de reconhecer. De repente, vemos as coisas numa perspectiva tão distinta, nunca havia pensado assim, embora as minhas convicções, em relação a este assunto, não tenham caído por terra, continuo a conotá-lo com a fraqueza, porém, essa imagem ficou um pouco mais esbatida, não sei se me faço compreender… Os momentos em família, aqueles onde, de facto, flui aquele sentir de pertença, olhando para trás, só me recordo de um, foi num Domingo, durante toda a semana meu pai só falava de irmos fazer um piquenique perto de uma ermida, num monte qualquer, teria os meus quinze ou dezasseis anos, o entusiasmo dele era tão contagiante que todos colaborámos, seria, se bem me lembro, finais de Setembro, prenúncio de fim, sempre fiquei nostálgica nessa altura do ano, uma saudade de algo ainda não chegado, saímos por volta das nove, lá em casa, aos fins-de-semana, não estávamos a pé antes das onze, como se, por acordar tarde, menos tempo tivéssemos de nos ver, quantas vezes pensei nesta hipótese, mas dizia eu que… Pois, sim, saímos às nove, para meu grande espanto, olho para o lado, já no carro, e meu irmão sem livro, contemplava o mundo amanhecido pela janela do seu lado, parecia também ele amanhecer para a vida, à frente, os meus pais falavam trivialidades como qualquer casal, não ousei interromper aquele típico quadro familiar, infelizmente tão invulgar aos nossos olhos, passámos por montes, vales, aldeias remotas, até que demos conta de uma longa e íngreme subida, num certo ponto, já nem alcatrão, apenas terra-batida, o carro resvalava, com dificuldade lá prosseguia, até que estacionámos, debaixo de umas árvores, meu pai prontamente avisou O resto do caminho tem de ser a pé! Cada um carregue alguma coisa, abrimos o porta-bagagens e cumprimos a ordem, mas foi um cumprir com gosto, até com ternura, como se alimentássemos a última hipótese de ainda sermos uma família, creio que todos tínhamos esta  noção, daí o rosto do meu irmão desvelado, nem estranhei, de início, claro, o espanto, com o tempo compreendi que ele estava determinado igualmente em dar o seu contributo para nos salvarmos, assim que saímos do carro, avistámos uma considerável elevação, era o que nos faltava caminhar, como na maioria dos cumes, a vegetação rareava, o denso bosque ficara mais abaixo, tal como o sol, questionei-me como meu pai soubera desta ermida e o porquê do seu interesse, mas algo de essencial se levantava (a última hipótese de ainda sermos uma família), subimos as dezenas de metros que faltavam, até ao cume, com leveza, depusemos os sacos no chão, porém, meu pai alertou logo que ali não podia ser, não íamos comer em frente à ermida, sem saber o porquê, prontamente pegámos, uma vez mais, nos sacos, minha mãe também com uma expressão de espanto, percebi  que, tal como nós, desconhecia onde estava o problema, como se os santos também não se alimentassem, enquanto os três se afastavam para o lugar designado por meu pai, eu fiquei a olhar a capela, uma construção rústica, humilde, pequena, a porta, com uma diminuta janela, de madeira humedecida por Invernos infindos, aproximei-me e olhei o interior, um altar despojado, num nicho a figura de um santo, desconhecia qual, o que me espantou foi a quantidade de velas acesas no interior, as diminutas chamas ondulantes, testemunhas de uma fé materializada num brilho que se inclina à menor das brisas, mas prontamente se reergue para os céus, numa abnegação só possível à luz, ali fiquei, siderada, a questionar a relevância daquele lugar, há coisas, na vida,  que só fazem sentido no momento, fora do contexto assumem  foros de absurdo, vou tentar ser breve neste ponto, como te disse, eles afastaram-se, só eu ali fiquei, à volta as nuvens pareciam descansar da sua incessante caminhada, de facto o sol estava mais abaixo, senti-me a única habitante na terra, ajoelhei-me, não sei se por gratidão de ali estar, se foi um imperativo de outra ordem, se pelo calor exalado do interior, se o perfume secular que ali se respirava, talvez por tudo, orei, apenas e só, nada quis pedir, nada quis agradecer, apenas rezei, como se retomasse um diálogo algures interrompido, não sei quanto tempo passou, abri os olhos e, à minha volta, tudo igual, as chamas inclinavam-se à menor das brisas, mas logo se reerguiam para as alturas, o santo  (Qual seria? Nunca cheguei a perguntar aos meus pais!), no seu nicho, vislumbrava os céus, porém, algo mudara em mim, perdera o tempo, compreendes? Perdi o tempo! Desde então, desaprendi o conceito de pressa, não sei se me faço perceber”, pousa, com lentidão, a mão sobre a dela e anui, ela reconfortada por ser compreendida, algo de essencial para todos, mas tão singular na vida, com renovada energia prosseguiu, “Levantei-me e abandonei a ermida, cá fora as nuvens adensavam-se, de novo a sensação de ser a única habitante do mundo, como se nascesse e morresse simultaneamente, caminhei rumo a um longínquo vestígio de luz, quando os encontrei, a típica toalha aos quadrados já estendida, todos sentados, olhei-os e compreendi uma estranheza, afinal, eu perdera o tempo, via-os tolhidos na sua circunstância, cada um em esforços hercúleos para equilibrar, o melhor possível, a presente máscara, sentei-me, ouvi meu pai levantar as memórias da sua meninice, as procissões, com os avós, àquele lugar, no cumprimento de promessas,  a avó era devota daquele santo, não sei porquê, dei comigo a olhar naquela direcção, nada via, as nuvens, pois, mas começava a visualizar o carácter supérfluo da palavra acaso, achei curioso a atenção do meu irmão às palavras que materializavam a memória do nosso pai, parecia que, sem o rosto velado por um livro, a carência de uma história mantinha-se para conseguir respirar, até minha mãe parecia ter virado costas à varanda do passado, ouvia, com ar enternecido, as memórias do marido, não sei se, ao mesmo tempo, iluminava as suas, não é assim tão simples virar costas ao passado, no fim, todos somos um ontem, o regresso decorreu leve e ligeiro, talvez pelo facto de um ter depositado a máscara, os restantes desvelaram-se um pouco também, não me recordo, com exactidão,  do momento onde percebemos que esta tarde fora apenas um fogo-fátuo nas nossas vidas, possivelmente quando chegámos a casa.” Nesta altura, esperavam pela sobremesa, sem saber muito bem porquê, uma voz insistia em lhe murmurar que, aquela mulher viera do Norte por algo mais, ele procurava soterrar, de todas as formas possíveis, tal possibilidade, apesar do tempo, ela continuava atraente, também não seria por uma questão ética, no fundo, ele receava perder-se, levantar todo o passado e  por aí naufragar, ela sorriu quando um casal se pôs de fato-de-banho para o sol, e não foi pelo facto de o calendário assinalar ainda Primavera, a sua memória recente é que se levantou, daí o seu sorriso, tão diferente da sua actual circunstância, de semanas e semanas sem vislumbre de luz, agora a ementa das sobremesas, esta interrupção foi bem-vinda, permitiu assimilar a narrativa, ordenar sentires e pensares, esta ordem não foi casual, o sentir antecede sempre o pensar, esta mulher percorrera mais de trezentos quilómetros para ali estar sentada, à sua frente, sem vestígios de teatralidade, desnudada até à alma, porém, ele decidiu que não se podia permitir dar o menor passo, sabia que ia ser engolido pelo passado, uma lembrança nasceu-lhe, certa tarde, há muito, pouco depois de terminar a faculdade, regressava a casa de comboio, ia à janela, e à vista da praia do luar, o seu lugar só na memória, tudo de novo em si, dela apenas sabia que rumara a Norte, nada mais, saiu da estação como um autómato, dirigiu-se para um destino conhecido, passou pela rua nocturna chovida, onde ela ficara, numa extremidade, a olhá-lo num desamparado adeus, e foi tocar à campainha do primeiro-esquerdo, no terceiro prédio à direita, da rua de cima, tocou com suavidade, deu um, não, deu dois passos atrás, aguardou um pouco, ia para tocar novamente, quando, de repente, uma indómita vontade de partir o dominou, virou costas e caminhou ligeiro, rua fora, antes que fosse reconhecido, era a casa da melhor amiga dela, da juventude, talvez soubesse do paradeiro, apesar da passada célere, ele recorda-se perfeitamente do quão se estranhou ao deparar-se com a porta do prédio, do arrependimento de ter tocado à campainha, da melhor amiga dela, de concluir que a única coisa sensata, desde que saíra do comboio, nessa tarde, fora virar costas àquela entrada e partir veloz para casa, porém, no meio deste torvelinho, uma questão substancial levantara-se-lhe: Quem me guiou os passos até ali? Pensou contar-lhe que, certa tarde, ao regressar da faculdade, foi engolido por saudades dela, olhou a praia do luar, não para lá da janela do comboio, mas no ontem ainda em si, após a estação, foi directo à casa da sua melhor amiga, claro que se lembrava do prédio, tocou, ao de leve, à campainha, porém, algo fê-lo recuar, não, não podia contar-lhe que se receava perder num olhar que reflectia as estrelas, nessa noite apaixonara-se por ela, uma das suas poucas certezas, o silêncio foi interrompido com a chegada das sobremesas, nesse entretanto, ele resolveu trazer presente ao diálogo, cansara-se do ontem, “E trouxeste os silêncios contigo?”, o olhar dela iluminou-se, parecia aguardar essa questão, denotava-se-lhe carência de diálogos assim, nele também, todavia, aprendera cedo a representar e construíra toda uma fortificação para proteger sentires, ela nem duas pedras juntara, tudo estava exposto num rosto desiludido, embora no olhar, se ativéssemos um pouco, ainda vestígios de estrelas reflectidas nas águas, há um aspecto que jamais esquecemos de quem connosco se cruza: como nos faz sentir! Na sua presença, ela limitava-se a ser, tão raro, tão precioso, representar cansa tanto, desvelar todas as máscaras: a ambição última de uma existência; a seu lado não representava a esposa meiga, a mão zelosa, a profissional criativa, a filha preocupada, a amiga paciente, nada, falava de sonhos por realizar e dos seus temores, caminhava, a seu lado, no vagar de quem não espera amanhãs, “Sim, claro. Fazem parte do meu eu. É estranho como a nossa relação com os filhos reflecte tanto da nossa com os pais, como se fosse um decalque, às vezes dou por mim a usar expressões inusuais que somente os meus pais utilizavam, é assustador, como se um ciclo reiniciasse sem sequer sermos ouvidos, sucede-te o mesmo?” Ele anuiu, nesse entretanto, reflectiu que ela comia pouco, como no ontem, apreciou este facto, achou elegante, resolveu mudar o rumo da conversa, “Dois jovens do Sul reencontram-se no Norte, casam, e por lá fazem a sua vida…”, ela ficou pensativa ao ouvir esta observação, interpretou-a como um desafio, com a devida dose de ironia, contudo, não recuou, “Pois, a vida é fértil em surpresas, quem diria, não é? Há alturas em que nada acontece, os dias sucedem-se numa modorra exasperante, de repente, as coisas aceleram, quase tudo foge ao nosso controle, só nos resta deixarmo-nos ir na corrente do acontecer, esta é a realidade, calculo que te lembres dele, certo?” Uma vez mais, respondeu com um movimento vertical da cabeça, embora só tivesse memórias esparsas, “Mantivemos contacto, como sabes, tiveste uma existência para dizer uma palavra, somente uma, optaste pelo silêncio, entretanto, eu e ele fomo-nos aproximando, aproximando, não sei se sabes, fez a tropa no Norte, aos fins-de-semana vinha visitar-me, era como um sol para mim, o espelho de uma outra vida, como se de uma anterior reencarnação,  que julgava perdida, atirada para um sótão quase inacessível, cheguei a questionar-me da sua veracidade, esse facto talvez tenha sido o pior, foi muito difícil, conforme já te relatei, naquela altura foi a minha salvação, se ele não aparecesse na minha vida, acho que teria enlouquecido, olhava-o e simultaneamente via-me na minha outra existência a Sul, fazia-me tão bem, fomo-nos aproximando, aproximando, ele é diferente de ti, mais falador, mais prático, distante dos teus horizontes artísticos e dos meus, a solidão adensa-se quando quem, adormece e acorda a nosso lado, está aquém dos desígnios que nos norteiam os passos debaixo deste céu, mas havia outras facetas que me enterneciam, e bem sabes como precisava de uma âncora, tantas vezes que achei ser incapaz de me sobreviver, houve momentos muito duros, muito duros mesmo, olhava à minha volta em casa e não vislumbrava possibilidades de diálogo, cheguei ao ponto de pensar que o lugar, usualmente denominado de casa, se assemelhava a uma sala-de-espera, cada um voltado para si mesmo, numa opacidade segura, aguarda, com ansiedade, a sua vez de sair dali, mas não fiques com uma ideia errada, tanto o meu pai como a minha mãe eram extremamente afáveis e delicados no trato connosco, o problema era a dor imensa que os assombrava, uma dor anterior a nós, pressentida no rosto e gestos, extensível a cada canto da casa, como se ali tivesse caído uma maldição, que nos levava a asfixiar sentires, não sei  se me faço compreender, sabes, muito cedo comecei a caminhar pela intuição, talvez por viver num lar de silêncios, nunca assisti a uma dialogante troca de ideias dos meus pais,  jamais os vi de mão dada, sorrir então… Compreendi que há uma aprendizagem do sorriso, longa, difícil, muito difícil, creio que ambos cederam neste processo, eu, por exemplo, não sei sorrir, somente aprendi a disfarçar tristezas”, uma certeza ganhava espaço nele, esta mulher jamais ser-lhe-á indiferente, por momentos, pensou levantar-se, pegar-lhe na mão, pagar a conta, partir com ela rumo a um lugar onde só os dois, porém, talvez não tivesse forças para regressar à sua circunstância, continuou perdido naquele verde que lhe espelhava possibilidades idas, talvez uma das maiores amarguras do existir: trilhos ansiados, mas, por circunstâncias várias, abandonados, uma questão saiu-lhe espontaneamente: “E os filhos vieram logo?”, ela parecia aguardar a pergunta, tal a indiferença ao ouvi-la, agora,  à frente de cada um, a chávena de café, antes de responder, pegou na colher e rodou lentamente, por fim, “Calma! Antes ainda nos casámos. Uma cerimónia simples, discreta, embora a inevitabilidade da igreja, sabes como é, quando há avós por perto, o roteiro passa obrigatoriamente por um altar, foi dos dias mais dolorosos da minha existência, acordei e logo a tua imagem preenchia-me pensar e sentir, somos seres tão estranhos, até entrar na igreja e vê-lo lá à minha espera, tive esperança de que fosses tu, como se cumpríssemos o nosso destino, mas não, era ele, até esmoreci à entrada da igreja, ia pela mão do meu pai, conforme preconizado pelo rito religioso, creio que não lhe passou despercebido o meu afrouxar, ou talvez uma simples ilusão minha, cada passo rumo ao altar, não sei porquê, a imagem de cordeiro-sacrificial em mim, procurei apoio no olhar de meu pai, contudo, o seu semblante expressava orgulho de dever cumprido, engraçado, nunca ouvi esta singela questão da parte dos meus pais: “Estás feliz?” Nem são necessárias muitas palavras para a construir (“Estás feliz?”), mas a verdade é que nunca a colocaram, percebi que jamais o fariam, restava teatro e cumprir ritos, pouco mais, durante toda a cerimónia não lhe fitei por uma vez o rosto, não consegui, como sabes, sempre ambicionei casar-me daquela forma, igreja, vestido, convidados, porém, não com aquele homem, parecia cumprir um guião escrito por mim, mas não com o actor desejado, a vida é estranha, não achas? Nessa noite, seria a de núpcias, claro, dormimos já na nossa casa, só no dia seguinte partíamos de lua-de-mel, ele caiu de bêbedo na cama, eu fiquei, num cadeirão da sala, a olhar de frente a noite da minha vida, há muito que, quando sucedem aquelas perguntas corriqueiras “Como estás? O que fazes? Como vão as coisas? Trabalhas em quê?”, diante de mim apenas a imagem de uma noite imensa que tudo engole, de onde jamais regressarei, pensava nisto e rodava, rodava, rodava, incessantemente, a aliança no anelar-esquerdo, nesse momento, tomei uma decisão: ia derretê-la. Um dia talvez te diga e mostre que forma lhe dei, por ora retém a minha decisão dessa noite, a de núpcias, retirei a aliança e coloquei-a numa gaveta, senti leveza, constituía, de facto, um fardo demasiado, simbolizava um caminho que jamais quis trilhar, aquele momento na vida onde compreendemos que jamais estivemos ao leme do acontecer, há quem lhe chame maturidade, eu prefiro desilusão, melhor ainda: anoitecer. Não ficaste curioso com a minha criação a partir do ouro derretido? Ele imaginou, mas optou pelo silêncio, concluiu que ficaram lá atrás, numa noite enluarada de Novembro, eram outros, logo irrecuperáveis, olhou a praia iluminada pelo sol, e a praia outra, nem vestígios dos fios de prata do luar daquele Novembro ido, inquietou-se no lugar, queria partir, mas a educação, não lhe permitia verbalizar que eram outros, irrecuperáveis, achou o discurso dela desconexo, paradoxal, vago, no fundo, aquela mulher emergiu do  passado para se materializar num presente onde não tem lugar, sentia agora o desconforto da cadeira, tinha de partir, sem indelicadezas, mal-entendidos, azedumes, mas, sim, a sua hora chegara, a sua circunstância subitamente ganhava terreno,  quase como se lhe lê-se os pensamentos, ela “Com o tempo, lá chegaram os filhos. Engraçado, tive dois, como os meus pais. Só os géneros mudaram na ordem de chegada. Foi tão curioso quando ela nasceu, só me lembro de berrar pela epidural, pouco mais, depois das dores, depositaram-ma, a meu lado, na cama, crescemos a ouvir máximas como: “O momento mais sublime da minha existência. Vi a perfeição. Naquele instante, a minha vida mudou por completo. Assim que o olhei, tudo deixou de ter importância”; enfim, podia continuar o resto da tarde a elencar máximas semelhantes, a minha verdade é que não senti nada de similar, depositaram-me a bebé algum tempo após o parto, não consigo precisar quanto, eu estava extenuada e cheia de dores, olhei para aquele pequeno ser, enrugado, avermelhado, e nada senti, esta é a realidade, apenas estranheza, nem o senti como meu, as tais máximas atravessaram-me o espírito como sentenças da minha imperfeição, como se o meu sentir fosse um pecado, mas quando o sentir pode ser pecado? Uma enfermeira aproxima-se e logo “Não lhe vai pegar? Ou precisa que a ajude?”, optei pelo politicamente correcto, como sabes das coisas que mais abomino nesta existência, “Agradeço, mas estou cansada, demasiado cansada…”, nem retorquiu, afastou-se prontamente, continuei a olhar aquele diminuto ser, a meu lado, avermelhado, enrugado, dava-me a sensação de um idoso encolhido, nem ousei tocar-lhe, tive receio de magoar, tal a pequenez, pelo menos não tive espectadores, já não foi mau, de outra forma começavam os juízos-de-valor, inclementes, vorazes, sentenciadores, depois veio a tortura de amamentar, doloroso, eu sem a mínima aptidão, felizmente o meu organismo reflectiu o meu sentir, e não era uma fonte de alimento abundante, as enfermeiras, à minha volta, sempre com indicações, a forma de ter no colo, de alimentar, vestir, despir, dar o banho, eu numa estranheza alienante, como se assistisse a tudo de uma lonjura onde os ecos dali quase inaudíveis, acredito que foi esse factor a salvar-me da loucura, para ele, a paternidade constituía mais uma obrigatória etapa do percurso, como o baptismo, primeira-comunhão, casamento, sorria para todos, tirou a imperativa fotografia, no quarto-do-hospital, com a bebé ao colo, também com os pais a ladearem-no, os meus também apareceram, depois, menos efusivos, nada de fotos, a minha mãe abeirou-se da cama, passou-me a mão, com a espontaneidade habitual, pelos cabelos, perguntou-me, quase num murmúrio, o que precisava, se estava tudo bem, o meu pai três ou quatro passos atrás, na sua habitual discrição, acenava-me, respondia, de forma automática, às questões da minha mãe, contudo, a atenção centrava-se no meu pai, creio ter sido único a compreender a minha lonjura, onde os ecos dali quase inaudíveis, volta e meia acenava-me, eu correspondia, mas falámo-nos tanto  nesses instantes, foi com quem mais comuniquei, a vida é estranha, de repente olho meu pai e percebo-lhe apenas compreensão, afinal, éramos habitantes das lonjuras, os seus três ou quatro passos atrás constituíam um oceano de distância, permitia-lhe que os ecos da circunstância quase inaudíveis, ambos adoptámos a mesma estratégia de sobrevivência, quando ele insistiu para que os meus pais cumprissem mais uma obrigatória etapa do percurso, a fotografia, com a bebé, no quarto-do-hospital, orgulhei-me da sua irrepreensível e educada recusa, alegaram higiene, fragilidade da bebé, necessidade de descanso, haver tempo para fotografias, ele nem tentou replicar, apenas uma resignada anuência, meu pai limitou-se a ser, minha mãe, uma vez mais, subira a um palco, só se lhe salvou a espontaneidade habitual com que me passou a mão pelos cabelos, o resto denotava-se-lhe o esforço, não me passou despercebido o facto, enquanto ali esteve, de  nunca ter olhado para a bebé, não sei se meu pai olhou, da lonjura é difícil captar a direcção do olhar, acredito que sim, apesar de tudo, ele rodeava-me de cuidados, nada lhe tenho a apontar, só o facto de estar no teu lugar, embora, em verdade, o tenhas declinado, está na hora de irmos, certo? Simultaneamente com a questão, ela pega na carteira que depositara numa cadeira vaga, ele permanece, imóvel, a observá-la, após esta última narrativa, havia uma questão que não o largava, tinha de a silenciar: “Se percebeste não possuir o dom da maternidade, porquê, então, outro filho?” De certa forma, ela apreciou a pergunta, sinal de atenção às suas palavras, remexeu na carteira, ia puxar de um cigarro, mas lembrou-se de que ele não era fumador nem apreciava quem o fizesse, ficou-se pela intenção, afinal, também ela representava, a mãe não era a única, “A primeira ilusão a diluir-se, na vida, é a de estarmos ao leme do acontecer. Não concordas?”, ele prontamente anuiu, “A arrogância da juventude deve-se tão-só a esta ilusão. O amadurecimento começa precisamente com a compreensão de que jamais visualizámos sequer o leme, quanto mais colocar-lhe as mãos, sabes bem que a maternidade não entrava nos meus planos, e ainda não reflectira se detinha ou não esse dom, nem sabia que era uma vocação, eu via o futuro contigo a meu lado, iluminados por um luar reflectido nas águas, se me perguntassem na altura, esta seria a minha resposta acerca da ideia de futuro, de repente, o facto de os meus se mudarem, eu sem possibilidade de escolha, a sucessão vertiginosa de acontecimentos, lá está, apenas a compreensão de que jamais visualizámos sequer o leme, quanto mais colocar-lhe as mãos, sucessão vertiginosa de…, sempre a necessidade de arranjarmos eufemismos para os factos da vida, nunca compreendi a razão, de repente, estou casada com um homem que respeito, mas pelo qual nunca me apaixonei, mais um pouco, tenho o primeiro filho, lembro-me tão bem, terá sido no início de tarde de um dia de semana, após demasiado choro, ela adormecera, eu incrédula com o silêncio restituído, vou até à janela, chovia abundantemente, acalmava-me contemplar a chuva por uma janela, acreditava no seu duplo carácter purificador, era água e provinha das alturas, ele estaria no trabalho, nesse  momento, do vidro olhei-me, mas, num segundo olhar, passado o espanto inicial de me ver, reparei na tristeza, na resignação de levar uma existência jamais ambicionada, a imagem do vidro perguntou-me pelos sonhos, onde estavam, os ombros espontaneamente encolheram-se-me, detive-me com mais atenção na imagem do vidro, era “eu” do ontem a colocar-me as questões, não tinha respostas para lhe oferecer,  ainda balbuciei “Afinal, nunca estamos ao leme das coisas…”,  como resposta, um lamento, “Isso já sei há muito! Mas nem trouxeste contigo um vestígio de sonho? Como aguentas?”, só me restou fechar os olhos e baixar a cabeça, a pergunta não me abandonava, “Pois, como aguento? Como aguento?”, sinal de não encontrar uma resposta que a silencie, de facto, “Como aguento?”, concluí que ainda vestígios de sonhos em mim, se assim não fosse, qual a razão de estarmos hoje, aqui, a almoçar, com vista para a praia do ontem? Achou a justificação evasiva, verbalizou o pensar em voz-alta, “Até aí compreendo. Mas como um segundo filho?!”, algures entre a interrogação e o espanto, não estamos a falar de adolescentes, uma mulher feita afirma não possuir o dom da maternidade, olha o “eu” do passado que lhe pergunta pelos sonhos, e, entretanto, um segundo filho? Ela acaba por retirar um cigarro da carteira e acendê-lo, a expressão dele não se alterou, ainda entre a interrogação e o espanto, “Acho que nada percebeste do que te disse. Essa pergunta não tem razão de ser. Porquê um segundo filho? É tão simples, quando pensamos demasiado em despedidas, a vida vai enleando, enleando, enleando, como se nos desse oxigénio, para continuarmos atidos ao lado de cá das coisas, percebeste? São as distracções! Quantos, no final de cada dia, pensam: valeu a pena? Que pegada deixarei, deste hoje findo, para o amanhã que já se anuncia pela janela? De certa forma, constituíste a probabilidade de uma outra vida, uma existência alternativa, a minha não chegava, precisava de respirar, agarrei-me à probabilidade de nós como se uma âncora, para não me deixar ir na corrente do desvario, quantas vezes não pensei em… O mais insuportável eram os fins-de-semana, ou íamos a casa dos pais dele ou, claro, vinham eles à nossa, foi de propósito que disse “pais dele”, jamais usei o termo “sogros”, há coisas que não se me colam à pele, até simpatizo com eles, ele humilde, apesar de fala-barato, mas inofensivo, hostil a tudo que seja do Sul, sabes como é lá em cima, ela dedicada aos filhos, embora lhes reconheça os defeitos, o que é um excelente aspecto em qualquer mãe, são três,  casei-me com o filho do meio, foi o primeiro a casar, de certa forma, acho que a desmesurada atenção concedida se deve a remorsos, talvez por ser filho do meio, não centrava tanto as atenções paternas, o mais velho desbrava caminhos, logo requer constante vigília, com o mais novo, a família demora na compreensão de que já não é mais bebé, isso acontece por volta dos doze anos, até lá só falta mantê-lo a dormir num berço, daí que o do meio seja onde a luz da atenção menos recaia, não lhes li surpresa quando souberam do casamento, compreenderam que, em algum lugar, a luz da atenção teria de recair primeiramente nele, neste ponto, perceberam a sua falha, a corrida pelo tempo aos fins-de-semana, a todos os detalhes, até na forma como me acolheram, sem a menor reserva, o esmero pelos netos, a acuidade em manter a nossa despensa cheia, tudo consequência de uma culpa impronunciada, enfim… Todas as famílias têm os seus ensurdecedores silêncios, não é verdade? A minha casa e as suas sombras, queres melhor exemplo? Apreciei o zelo dos pais dele, de certa forma, preenchiam alguns dos vazios que há tanto me habitavam. Como te disse há pouco, a vida vai enleando, enleando, enleando, como se nos desse oxigénio, de repente, olhas à tua volta:  casa, trabalho, marido, dois filhos, e pensas: Onde estou eu? Em que momento do caminho deixei de sonhar? Antes até sonhava com a minha morte, lembras-te de que era um dos meus temas preferidos? Tu ouvias-me, agora que falo nisso, tenho de te confessar que realmente foste o único a ouvir-me, falo, como é óbvio, no sentido da compreensão, sentia que, a ti, tudo podia dizer, é estranho… Assim que os nossos olhos se encontraram, uma confiança e familiaridade vindas não sei de onde, só contigo senti isto, sei que sentiste o mesmo, já nos conhecíamos, não é verdade? Ele sentiu, de novo, o aroma do passado abraçá-lo, num repente, estava lá, bastou fechar, por um pouco, os olhos e ouvir apenas a melodia da sua voz, as décadas diluíram-se, e tudo o que trouxeram e fatalmente levaram, sentiu-se a renascer, essa é uma das seduções do passado, regressar para corrigir a existência rumo ao “que poderia ter sido”, por outras palavras, aos sonhos largados pelo caminho, “Faz-se tarde…”, assim que pronuncia a frase, logo se arrepende, e suspende-a,  “Faz-se tarde…”,  é  possível ter pensado em voz-alta, de facto estavam ali há muito, ela concordou, com o olhar procurou o empregado para a conta, antes, porém, ele “Ainda pensas… Na morte?”, ela parecia aguardar a questão, quase sorriu, os lábios distenderam-se ligeiramente, uma vez mais, o pensar em voz-alta acaba por traí-lo, mas esse tema aportara recentemente ao terreno das ideias, entretanto, a interpor-se novamente, entre eles, o inoportuno empregado, a expressão de um certo gozo, parecia compreender o confrangedor silêncio que a sua presença trazia à mesa, não obstante este facto, desta vez os seus gestos eram céleres, a tarde já ia avançada, a sua hora de saída teria chegado, conta,  factura sim ou não, uma pergunta só do emissor, ele prontamente assume as expensas, apesar da férrea resistência dela, porém, tudo em vão, jamais a sua educação permitiria outro desfecho à mesa, de novo o vai-e-vem do empregado pelo multibanco, por fim, o débito, e o adeus àquele horizonte povoado por um inoportuno esvoaçar, agora eles pensavam despedidas, o mar alaranjava-se, mas uma questão suspensa “Ainda pensas… Na morte?”, “Respondo-te com uma pergunta: Algum dia deixei de pensar? Notou-se-lhe um indisfarçável espanto pela resposta dela, procurou manter a habitual fleumática postura, “Queres saber se voltei a tentar? Escusas de olhar para os meus pulsos, as pulseiras têm várias utilidades, há formas mais limpas de nos despedirmos. Caminhar por aqui, com esta ideia em nós, é o mesmo que viajar de comboio, não paramos de contemplar a paisagem pela janela, e talvez a próxima estação seja a nossa, este é o resumo mais fidedigno da minha vida, em verdade, nunca me senti daqui, desculpa, mas regresso àquele nosso luar de ontem,  para mim será sempre de ontem, não gosto de dizer do passado ou de há tanto, ontem é o que eu sinto, nesse momento, foi como se o comboio entrasse num túnel,  tudo se turvasse à minha volta, nada me distraía pelas janelas, e eu tivesse de olhar para a frente, nesse momento só vislumbro o teu rosto, fizeste-me esquecer tudo, a viagem, a estação onde sairia, a janela, se dependesse da minha vontade, tu e eu jamais teríamos regressado daquela praia.  Como te disse, há formas mais limpas de nos despedirmos, após aquela que presenciaste, a primeira, ainda cá, salvaste-me a vida sem te aperceberes, tentei por mais duas vezes lá”, discorria sobre esta temática com naturalidade, como se analisasse uma dor-de-cabeça, nem vislumbres de arrependimento, mágoa, nada, contudo, há um aspecto que não é de somenos, ser ele o seu interlocutor, “Ambas após o casamento, curioso, não é? Agora que penso nisso, parece que não me dou bem com o facto de estar ancorada, foi numa sexta-feira à noite, pois, a angústia antes do fim-de-semana, por dentro estava tão desarrumada, estávamos na sala, o écran, pois, o écran, o véu fora do rosto onde todos nos escondemos, nesse  aspecto, e noutros também, a cultura árabe é mais honesta, o véu está sobre a face, no Ocidente o véu está a metros do rosto e tem a capacidade de ocultar milhões simultaneamente, enfim, ali se sublimam frustrações, agruras, misérias, neste momento perguntas-te: o que estaríamos nós a sublimar, nessa véspera de fim-de-semana, ocultos por aquele véu, rectangular, a metros da face? Pois, os silêncios que tanto gritam, os silêncios onde os equívocos se depositam, no nosso caso, ali chegados, a consciência de que, afinal, éramos apenas dois estranhos a partilhar tecto, mesa e infelizmente dois filhos, estranhos não deviam gerar filhos, falo por experiência própria, não olhava um pai e uma mãe, olhava dois mundos distintos, a ironia maior foi ter calcorreado exactamente o mesmo trilho que os meus pais, eu que tanto os critiquei, cheguei a questionar o porquê de não se divorciarem, a razão dos filhos, jurei que o meu lar seria o oposto àquele mundo de mágoas e silêncios, de repente, olho à minha volta nesse serão, véspera de fim-de-semana, e compreendo-me uma derrotada, um logro total, como havia sido possível cumprir escrupulosamente e sem hesitações os malogrados passos dos meus pais rumo à infelicidade? Ele num sofá, eu no outro, como te disse há pouco, por dentro estava tão desarrumada, teria passado uma hora, não me lembro se filme ou série, contabilizei uma hora por uma razão, para mim tão fundamental, uma hora e não trocáramos uma só palavra! Comecei a olhá-lo numa crescente distância, proporcional à assumpção do equívoco, já te aconteceu, de repente, olhar para o lado e questionares-te: Como cheguei aqui? Isso sucede quando olhamos tudo com a estranheza de primeira vez, foi assim que encarei as coisas nesse serão: Como cheguei aqui? Ele estaria prestes a adormecer, recorrente, complicado era encontrar uma série ou filme que ambos víssemos, nem aí coincidíamos, reparei que a calvície acentuara-se, embora não estivesse mais gordo, não me recordo se iria à caça no dia seguinte, nos últimos anos juntara-se a um grupo de conhecidos com o mesmo gosto: matar criaturas indefesas; inicialmente apresentei-lhe as minhas objecções, mas fi-lo como se visse alguém, de fora, a cometer um disparate, a verdade é que não o sentia meu, ao pé dele, pensar e sentir jamais se harmonizaram, nunca senti ciúmes dele, acreditas? Tal como minha mãe em relação ao meu pai, triste, não é? Termos o mesmo fado! Sei o que estás a pensar, uma vez chegaste a abordar essa questão, não é nada de complexo, pelo contrário, é muito simples, com o tempo, as coisas tornam-se mecânicas, é uma vantagem, têm dia e hora certos, tens algum prazer em lavar os dentes? Talvez o regresso do bom-hálito, é a melhor imagem que te posso oferecer para compreenderes o meu sentir em relação a isso, uma ressalva: apesar de tudo, ele era carinhoso; do seu lado talvez houvesse algum sentir, do meu apenas a mecânica do acto e o prazer daí vindo, pouco mais, como dizia, nessa véspera de fim-de-semana, ele prestes a ressonar, no sofá ao lado, o filme ou série apenas mais um passatempo para estupidificar gente, a dada altura perdi a conta aos que deixei a meio, levanto-me, vou até à cozinha, abro a gaveta dos medicamentos, com tempo e dedicação aprendi alguma coisa sobre químicos, esvazio duas lamelas de caixas distintas, engulo tudo com um grande copo de água, apresso-me a ir para o quarto antes que caia, felizmente a porta aberta, quatro ou cinco passos até à cama, foram extremamente penosos, o mundo, nesse momento, já uma imensa vertigem, mal me segurava, tudo à minha volta rodava numa crescente velocidade, cama, mesas-de-cabeceira, o candeeiro do tecto vi-o, pelo menos, passar três vezes à minha frente, as cortinas da janela também, antes de me deixar cair na cama, se me perguntassem de que lado estava, não sabia o que responder, senti-me a suar, ofegante, e entrei na noite da minha alma… Regressei-me num quarto com uma brancura cegante, uma dor excruciante, proveniente do braço-direito, despertou-me por inteiro, compreendi rapidamente a minha circunstância hospitalar, um sentir de vergonha caiu sobre mim, não pela tentativa, mas pelo falhanço, mais um, revelei ser incompetente em realizar o acto mais vital da minha existência, não receei enfrentá-los, já não era uma principiante, sabia que o temor estava do lado deles, afinal eles é que não reuniram motivos suficientes para me manter na margem de cá, não me iludi, tudo obedeceria a um guião há muito gizado, entrariam titubeantes no quarto, preencheriam o comprometedor silêncio com sucessivas questões vazias (Então, como estás? Já despertaste? Que grande susto! Estás melhor? Mais uns dias, e já estás em casa!), ninguém ousará verbalizar a questão essencial: Por que o fizeste? Pois, como disse, tudo obedeceria a um guião há muito gizado, assim foi, denotei-lhes uma expressão algures entre o espanto e o terror, contrastante com o sentir de derrota, dos meus pais, aquando da primeira vez, percebi que não estavam, de todo, à espera de um acontecimento destes, ressalvo que os meus sogros me vieram visitar ao hospital, de resto ali estiveram ele e os miúdos,  desta vez nem os meus pais, talvez se tivessem cansado, é possível, não podia censurá-los, limitaram-se a telefonar, não atendi ou mandei dizer que dormia, compreendi o anoitecer pela janela, ele sentado na cadeira, ao lado da cama, velava-me, embora o olhasse, fingi continuar adormecida, inclinado para a frente, absorto com o rectângulo do hoje, persisti a olhá-lo e pensei: nunca irás colocar a questão (Por que o fizeste?), ser-te-á impossível sequer formulá-la (Por que o fizeste?), às vezes pergunto-me se a colocaste para ti mesmo, de repente, os nossos olhares encontram-se, fui apanhada desprevenida, reparo que ele não sorri por, afinal, estar acordada e a olhá-lo em silêncio, nem sequer revelou espanto, logo começou com os imperativos do contexto (Estás melhor?  Dói-te alguma coisa? Queres que chame alguém?), pensei: preciso tanto de uma coisa, só de uma, que me perguntes: Por que o fizeste? Jamais o iria fazer, compreendi a lonjura que nos separava, irrecuperável, daí a uns dias, sempre tão pouco, estaria de regresso a um lar jamais meu, aos objectos quotidianos, a uma rotina nunca desejada, como se me engolisse, e nem uma palavra me foi permitido para afastá-la, nada, ele, os filhos, os dias de semana na sua sequência extenuada, indistintos, monocórdicos, sensaborões, depois os fins-de-semana, a minha travessia do deserto, eu a defrontar o tempo, creio que o maior combate da minha existência, ora em luta para que acelere, ora o inverso, a agarrá-lo no possível de mim, para que não fuja, contudo, escapa-se-me sempre, nem sequer olha para trás, nem vislumbres de remorsos ou arrependimento pela sua passagem, continua, inabalável, a sua marcha, como se nada ocorresse à sua volta, seria bom que alguém, por uma vez, lhe interrompesse a caminhada, para lhe perguntar pelos remorsos, agora que falo nisto, acho que ele nunca me olhou os estigmas nos pulsos, nem sequer sei se tem deles conhecimento, enfim, chega-se a um ponto da existência que nem olhamos para trás, nem vislumbres de remorsos ou arrependimento, continuamos, inabaláveis, a nossa marcha, tal como o tempo, há quem lhe chame sobrevivência, recordo que ele apostou muito no casamento, foi quase o seu salvo-conduto para fugir da influência familiar, do facto de ser filho-do-meio, e foi o primeiro, dos três irmãos, a dar esse passo, no Norte o casamento ainda é uma instituição respeitada, já te falei desse dia? Não? Pois, devia ter começado por aí, foi em finais de Julho, um daqueles dias que, só de levantar na memória, começamos a suar, uma luz em demasia sobre as coisas, propício a tudo menos a um matrimónio, enfim, apesar desse fortíssimo óbice, havia um sentir generalizado de alegria, sim, foi um dia bom, claro que noventa por cento dos convidados eram do lado dele, família praticamente toda, amigos, colegas de trabalho, vizinhos, da minha parte apenas pais, irmão (acreditas que, até nesse momento, levou disfarçadamente um livro….)  e avós maternos, a azáfama era tanta que esta assimetria ter-se-á diluído, depois a lua-de-mel, fomos para umas termas, no Luso, na primeira noite nada fizemos, ele caiu bêbedo e extenuado, ainda do copo-de-água, na cama, como já te disse, ao ver aquele despojo ressonante, nasceu-me a decisão de derreter a aliança, não me perguntaste ainda que forma lhe dei, agradeci o facto da sua capitulação, pelo menos tinha toda uma madrugada para me pensar, deixo o cadeirão e deito-me do meu lado, nesse momento compreendi que entrava na noite da minha vida, nada lhe tinha a apontar, pelo contrário, esmerava-se em atenções, o casamento, para ele, tinha de resultar, talvez por ser filho do meio não centrasse tanto as atenções paternas, mas aqui começou a compreensão de minha mãe, queres pior fado? Sabes aquele sentir quando o mundo se torna um lugar longe? Como naquele luar na praia? Pois, jamais senti algo similar com ele, tudo muito estático, ordenado, pensado, o dia-a-dia foi-me engolindo, engolindo, até que precisei de respirar… Foi aí que… Ainda olhas horizontes?”, ele prontamente anuiu, “Como me foi difícil a transição lá para cima. Sou do Sul! Para mim, horizonte é isto: uma imensidão azul a apontar-nos o Infinito! Lá em cima, as serranias sucedem-se e espartilham-nos a vista. Haverá quem apresente infindos argumentos contrários, mas é esta a minha sensibilidade. Além de que este é um horizonte em permanente mudança, como se uma promessa velada da vida de que os nossos desejos serão saciados, ao contrário das serras, estáticas, omnipresentes, lá sinto-me esmagada, nem vislumbres de erguer um sonho… Lembras-te de partilharmos horizontes? É tão raro, no espaço do viver, encontrarmos quem olhe na mesma direcção. Quando nos perdemos?” Neste ponto, capitulou, ele levanta-se da mesa, vai ao encontro dela, baixa-se, dá-lhe a mão, no seu habitual timbre baixo, mas seguro, diz-lhe: “Anda, vamos caminhar um pouco e aproveitar o que resta de sol. Estás tão anoitecida…”, ela levantou o rosto, apenas um espelho de tristeza, nada de lágrimas, nem vestígios de resignação ou derrota, levantaram-se ao mesmo tempo e saíram, havia um prenúncio de Verão pelo ar, o dia parecia alongar-se numa expectativa da sua chegada, caminharam pelo paredão rumo a Oeste, imperceptivelmente ambos careciam de luz, foi ela a retomar a palavra, compreendeu que jamais regressariam daquela noite, de luar, na praia, todos temos um tempo e um lugar na vida, o deles foi esse, apenas na memória permanece, espaço tão volátil, onde se constroem e apagam narrativas, paradoxalmente pátria do “Eu”, lastro da identidade, a ânsia de trazer o passado ao presente, tão perigoso, pode feri-lo ou matá-lo, aquele paredão agora alaranjado era a última estação, se vinha disposta a tudo, deixar a sua circunstância por ele, entregar-se, oferecer-lhe a luz que ainda reside em si, uma vez mais, trazer o passado ao presente, compreendeu que jamais regressariam daquela noite, daí o espelho de tristeza, “Se me apressar ainda apanho o comboio das dezanove e trinta…”, percebeu o desfecho, possivelmente também ele avistou a última estação, um definitivo adeus, “Partes assim? Não nos voltamos a ver?”, de certa forma, sentiu o respirar mais compassado, o encerrar de um capítulo, mas subsistia a ânsia por mais uma frase, uma interrogação, a subsequente resposta, a hesitação antes do inclemente e definitivo fechar de uma porta, um horizonte que se dilui, logo remetido para a memória, espaço tão volátil, onde se constroem e apagam narrativas, “Não me parece. Acho que já não fazemos bem um ao outro. Que perdure quem fomos… É sempre o melhor! Pelo menos, persistimos enquanto Ideia. Não, não precisas de me acompanhar, sozinha vim, sozinha regressarei.” Despediu-se, conforme educação, com um beijo em cada face, antes de lhe virar costas, talvez por ironia, tenha dito “Saúde!”, a típica forma como ele se despedia, não disfarçou o riso, neste ponto, ficou reflexivo, há tanto que não ria assim, como ela o conhecia! Mas o respirar alongava-se, de mãos nos bolsos tomou o caminho do lar, reflectia que só respondera com riso à ironia dela, nada verbalizara, nem um gesto de adeus conseguiu esboçar, apenas um riso, pela surpresa da ironia ou por compreender que a felicidade tem múltiplas moradas… Cada um seguiu o seu caminho, se por acaso olhassem para trás, assistiam aos primeiros vestígios de luar sobre um lugar do ontem e simultaneamente de há tão pouco.

Quando deu por si, a paisagem anoitecida, com o seu quê de surrealismo, através da janela do comboio rumo a Norte, agora a vida, na sua desdenhosa ironia, levava-a para longe dele, subitamente a imagem da mãe, acompanhada de uma indulgente compreensão, pois, a vida, na sua desdenhosa ironia, parecia ter-lhe seguido os passos, e tanto a censurou, de si para si, sobretudo na juventude, não lhe era concebível o facto de a mãe, casada com o pai, amar um fantasma, os silêncios ensurdecedores daquela casa, os risos artificiais aquando os aniversários ou outras festividades, a omnipresente sombra no rosto do pai, parecia revoltar-se a qualquer momento e gritar ao mundo: “Como foi possível ter aceitado este existir?” E a mãe, a dor demasiada de uma perda, quanto de si não partira também, naquela dolorosa estrada de Setembro, com ele? Vidas de segunda opção, assim compreenderam a sua circunstância, e, em verdade, a mãe nunca procurou maquilhar este facto, agora chegou a sua vez de legar essa dor aos filhos, “Vidas de segunda opção”, como atenuante ser melhor actriz que a mãe, apenas e só, que mágoa imensa ao reconhecer a mesmíssima falha, poder haver dias, semanas, em que os dias decorrem sobre a superfície das coisas, porém, num repente deste existir, sobretudo ao anoitecer, ela olha-se com essa falha fundamental, como se vazia interiormente, quase lhe permitia levitar para longe da sua circunstância,  demorou a compreendê-la, o necessário de cada um, só com ele a seu lado tudo se harmonizava, não por acaso ela falar o décuplo dele, a carência de preencher uma falha, era o seu ouvinte de eleição, o único que a compreendia, no fundo, uma escolha do sentir, o comboio não ia cheio, agradeceu, sobretudo hoje, por não ir ninguém ao lado, intuiu que se despedira definitivamente dele, do passado, nem no pensar seria conveniente regressar-lhe, o comboio fazia, neste momento, uma longa curva, olhou pela janela o vislumbre possível de Sul, ainda, por lá, uns escassos vestígios alaranjados, o último adeus do dia ao mundo, ela dizia adeus ao ontem, estava resoluta a enfrentar a sua circunstância, talvez lhe faltasse a aprendizagem do essencial: gratidão pelo que tem; sabia, no entanto, que, tarde ou cedo, o vazio regressar-lhe-ia, afinal, nunca partira,   estava à sua espera, dissimulado, num gesto, numa palavra, ao anoitecer, no silêncio, nos braços do marido, numa melodia, antes de adormecer, de certa forma, ela sabia que todos os seus esforços estão destinados ao malogro, o vazio habita em si, no caso da mãe, foi a vida que o alojou,  o compasso do comboio inspirava a reflexão, agora, diante de si, a imagem do pai, de todos, acabou por ser o mais afortunado, casou com a mulher que amava, lutou até à exaustão por ela, a vida deu-lhe essa possibilidade, ele não a declinou, essa é uma responsabilidade sua, a mãe, pelo contrário, viu-se despojada de si tão prematuramente, afinal, “eram um”, nem houve apelo à luta, nada, desde então, a sua alma anoitecera, desaprendera o riso, talvez , por cobardia, não o tenha acompanhado, e, agora, ela ciente de uma fundamental falha para a felicidade, o pai lutou enquanto achou possível conquistá-la, ela e a mãe viam-na apenas nos escassos vestígios alaranjados do ontem, o irmão, perante tanta dor, usou a estratégia da mãe, num dia de escola ido, velar o rosto com a capa de um livro, permitir assim que o pensar viaje para longe, muito longe, da circundante dor, não há melhor indício da sua compreensão da realidade, como é óbvio, tornou-se céptico face à felicidade, achava que a dor provinha da sua busca exaustiva, por conseguinte, preferia sentar-se com um livro e esperar que ela o encontre, se não acontecer, tudo continuará como até então, juntou-se com uma colega de faculdade, nada de filhos, receou os silêncios acumulados em si, mais tarde separaram-se, ela queria ir ao encontro da vida e não o inverso, desde o início, ele parecia esperar este desfecho, tirou jornalismo, profissionalmente assumiu uma postura antagónica, abraça todos os projectos possíveis, alugara um estúdio nos subúrbios, mas não se fique com a ideia de se ter refugiado no trabalho, como tantos quando tudo se diluiu à sua volta, desde quando o trabalho enquanto Sentido? Se estruturalmente não fomos feitos para trabalhar? Renegar a própria essência! Quão perdido se pode estar! Neste momento vive sozinho, não é verdade, vive com os seus livros, quando temos um livro aberto, há sempre uma multidão entre nós e o mundo, visita os pais quando o convidam, telefona à irmã somente aquando do aniversário, ou talvez envie mensagem de parabéns, com os anos foi-se calando para o mundo, preferia a palavra escrita, dizia sempre mais, considerava ele, a oralidade esconde-se nos gestos, entoação, trejeitos, modas, do emissor e respectivo contexto, enquanto a escrita está despojada de tudo, daí sobreviver ao tempo, apesar do rosto sempre velado pela capa de um livro, para ela, o irmão é o familiar mais próximo, só se apercebeu disso pouco antes do seu casamento, a casa numa azáfama com os preparativos, vestido, alianças, convidados, copo-de-água, telefonemas e mais telefonemas, igreja, padre, documentos e mais documentos, padrinhos da noiva, padrinhos do noivo, ela acabara de pousar o telefone, na sala, suspirava, ele a um canto, sempre com um livro a velar-lhe o rosto, entretanto, pousa o livro, levanta-se e pergunta-lhe pausadamente “Tens a certeza?” Dessa vez, foi ela que desejou velar o rosto, compreendeu que persistia na fuga de si mesma, o casamento era mais um pretexto, longa ia essa colecção, mas havia algo de “definitivo” no “Sim” proferido diante de um altar, por englobar, pelo menos, outra existência, fora as vindouras, “Tens a certeza?”, quantas vezes esta questão lhe regressaria? Demasiadas, pois, a serenidade do irmão, no meio daquele caos, a sageza da questão (“Tens a certeza?”), era, afinal, quem melhor a conhecia, parecia sempre tão alheado de tudo, a ilusão da capa de um livro, pois, respondeu um sumido “Não”, olhou-o com espanto e simultaneamente gratidão, embora soubesse não haver retorno,  o compasso do comboio inspira a reflexão, onde já vai o seu pensar, a janela agora anoitecida reflecte somente o seu vazio, curioso jamais conseguir contemplar o seu rosto, por norma só vemos o nosso sentir de então, o dela reflecte um crescente vazio, que o anoitecer só amplifica, partiu disposta a reescrever a sua história, regressa consciente de que tudo não poderia ser de outra forma, os pensamentos sucediam-se-lhe vertiginosamente, não seria a primeira vez que receava a loucura, embora o louco saiba onde mora a felicidade, no vidro anoitecido olha o seu vazio, de ontem, de agora, de amanhã, a sua falha fundamental, sente-a até à dor física, nada a mitigou, marido, filhos, a sua arte, nada, quem se apercebe destas singularidades jamais consegue construir um sorriso inteiro, à medida que se aproximava do Norte, despertou em si a compreensão pela mãe, por muito que lhe doa (“Vidas de segunda opção”), a mesma estranheza no olhar quando os filhos diante de si (“Vidas de segunda opção”), no final de cada dia, tudo em corrida para o lar, ela, nesses momentos, à volta com um móvel, ou peça de joalharia, também se depara com muitos relógios que viraram costas ao tempo, esmera-se ainda mais, como se, antes de o dia findar, quisesse deixar algo reconstruído para o amanhã, mas longe, muito longe, de lhe preencher a falha fundamental, no fundo, todos para aqui andamos em busca de preencher vazios, mas poucos têm consciência desta realidade: política, religião, sexo, desporto, moda, vaidade, paixões, jogo, droga, família, viagens, arte, estudo, tudo serve para ocultar o essencial vazio que nos habita. Quando encontramos alguém, regra geral, a primeira questão é: “Então, o que tens feito?” Só lhe faltava acrescentar: “… para preencher os teus vazios?” Consciente desta realidade, começou a olhar à sua volta com indulgência, embora, em si, a dor não atenuasse, de novo o seu rosto a iluminar o vidro anoitecido, a mãe, o pai, e o irmão por lá também, agora surgem-lhe o marido, a filha, o filho, a colega e sócia da loja de restauro, os sogros, alguns familiares do lado do marido, ele, pois, foi o último a aparecer, embora manifestamente o mais nítido, tantos rostos diante de si, no vidro anoitecido da carruagem, porém, um sobressai, ainda há tão pouco à sua frente, agora parece que foi noutra vida, muda a circunstância e parecemos ser outros, triste ilusão, de um canto da memória levanta-se um sonho recorrente, um lugar de partidas e chegadas (estação de comboios, aeroporto, cais de embarque…), ela espera por alguém, os passageiros saem individualmente, o primeiro é sujeito bem-parecido, ao seu encontro vai uma rapariga nova, abraçam-se num sem amanhã, ela fica, de onde está, a vê-los, não com inveja, mas com uma profunda dor, talvez pelo espelhar do seu vazio, a seguir uma mulher mais idosa, parte ao seu encontro um cavalheiro da mesma faixa-etária, estende-lhe um frondoso ramo-de-flores, com um vívido sorriso ela recebe-o, de seguida abraçam-se numa intraduzível ternura, o terceiro passageiro é um jovem, olha para as dezenas que ali estão à espera em busca de rostos conhecidos, entretanto, um casal grita o seu nome, corre para eles, devem ser os pais, zelo e saudades pontuam o reencontro, à sua volta cresce o vazio, ela persiste, um a um os passageiros vão saindo, lágrimas, risos-nervosos, longos beijos, abraços, paixão, saudade, ternura, felicidade, tanta emoção se derrama num lugar de despedida e reencontro, por fim, ela sozinha a olhar um vazio, quantas vezes lhe regressou este sonho? Em verdade, o sonho nunca lhe regressou, pois nunca de si partira, só espera o abrir de uma porta para, mais uma vez, lhe gritar uma dor tão sua. Sorri para o amanhã, há quanto tal não acontecia? O lento esvoaçar das cortinas pela manhã traz-lhe alguma serenidade.

Pedro de Sá

(02/03/22)