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domingo, 9 de julho de 2023

Quando todos merecem um tecto

 


A primeira vez que o vi, não me recordo se foi de manhã ou de tarde, apenas guardo na memória o céu cinzento e uns riscos nas vidraças provenientes das alturas, olhava eu para o fundo da rua, estávamos naquela época de luzes e concordância, tão raro neste lugar mais propício a sombras e costas voltadas, mas, dizia eu, olhava para o fundo da rua, ainda não chegara aos dez, apesar do peso dos sessenta, na tristeza do pensar, há tempo suficiente, afinal, talvez fosse de tarde, aguardava por um regresso, no fundo, todos aguardamos por algo, não fosse viver esperar, quando, num repente, o meu olhar me conduziu logo abaixo da janela, ali estava, encolhido, entre dois carros, como se orasse para que o esquecessem, mas, simultaneamente, o seu arfar inquieto indiciava uma procura de calor, talvez de compreensão, é sabido, no entanto, que esta habita sempre num porto ainda por atracar, esqueci-me do fundo da rua, do peso dos sessenta na tristeza do pensar, olhar e pensar em comunhão logo abaixo da janela, nunca, antes, o tinha visto por estes lados, de vez em quando, erguia a cabeça num nítido esforço à cautela dos ruídos que nasciam por todo o lado, para logo se recostar entre os dois carros, como se orasse para que o esquecessem, mas, simultaneamente, o seu arfar inquieto indiciava uma procura de calor, talvez de compreensão, e eu que também almejava o mesmo, daí o meu olhar pelo fundo da rua, numa espera, como se soubesse, já nessa altura, que a casa do meu olhar seria para sempre no fundo de uma qualquer rua, não sei bem como aconteceu, contudo, ele levantou os olhos à altura dos meus, ainda hoje desconfio que também ele esperava por alguma coisa no fundo de uma qualquer rua, talvez o meu pensar fizesse demasiado barulho, desci, era o que podia fazer, assim que saí para a rua, saudou-me da única forma lhe possível, porém, não saiu do seu lugar, entre os dois carros, como se providenciasse a noite, aproximei-me, estendi-lhe a mão, não havia dúvidas, éramos amigos de há muito, sentei-me ao lado e ficámos um bom bocado à conversa, falámos de esperar, tempo, e de fundos de rua, convenci-o a deslocar-se para debaixo de uma varanda, acedeu, é curioso, não me exigiu um porquê, limitou-se a seguir-me, providenciei-lhe uma ceia rápida, talvez demasiado rápida, de facto, estávamos na altura da aprendizagem do frio e as noites elucidavam-nos a distância das estrelas, trouxe-lhe um tapete velho de algures, agradeceu numa humildade espontânea e deitou-se, ainda conversámos um pouco, até que a voz de minha mãe ressoou por todo o quarteirão obrigando-me a regressar, nessa noite, falei-lhe do meu novo amigo que dormia sobre um tapete, debaixo de uma varanda do nosso prédio, aproveitei enquanto tratava da louça do jantar, era a melhor altura para atender aos meus desejos, sempre achei, não sei bem porquê, que, nessas alturas, ela queria que o tempo trocasse o andar pelo correr, percebi-lhe aquela peculiar atenção distraída às minhas palavras, isso sucedia quando ansiava que eu mudasse rapidamente de assunto, lembrei-lhe que estávamos na época de luzes e concordância, tão raro neste lugar mais propício a sombras e costas voltadas, mandou-me falar com o meu pai, lá fui para a sala, àquela hora, todo ele com aquele programa aborrecidíssimo em que só falavam e falavam, mas percebia-se logo que nada iam resolver, ou então apareciam pessoas a chorar, com cartazes, onde chamavam a atenção para a fome dos filhos, também havia gente com metralhadoras num país estrangeiro, no entanto, via-se logo que não eram de brincar, no dia seguinte, os rostos mudavam, porém, tudo se repetia, não sei porquê, mas sempre desconfiei que esse programa, a que o meu pai assistia com um quê de receio, estaria condenado àquele guião e apenas a mudar de rostos, repeti-lhe a história do meu novo amigo, que dormia sobre um tapete, debaixo de uma varanda do nosso prédio, por uns instantes, a sua atenção em mim, sempre que isso sucedia, sentia-me capaz de tocar sonhos, lembrei-lhe, igualmente, que estávamos na época de luzes e concordância, tão raro neste lugar mais propício a sombras e costas voltadas, enquanto lhe falava, reparei no reflexo tremeluzente, das luzes lá de casa, serpenteando árvore acima, no seu rosto, como se lhe ditassem compreensão, levantou-se, virou costas àquele condenado guião que apenas mudava de rostos, dirigiu-se para a porta, vestiu um casaco, perguntou-me se também queria ir, enquanto descíamos, pôs-me a mão sobre o ombro, e contou-me histórias de esperar, do tempo, e de olhar fundos de rua…

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