Livros

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domingo, 12 de maio de 2024

Álbum de família

 


Tu lembras-te de quando nós dois, pela tardinha, deitados, confessávamos sonhos? Os meus caminhavam pelo mundo, com um passo seguro, os teus, hoje acho graça, na altura comecei em preocupações, acho que nem a este mundo pertenciam, vivias uma fantasia, mas quem te podia censurar? Estavas na altura das fantasias, eu deixava-te falar, às vezes, com uma indulgência de silêncio e anuências, os meus dedos no labirinto dos teus cabelos, tu perdido nessas ilusões de amanhãs sonhados, quando a saudade de mim te fazia regressar ao aqui, sempre me interroguei, passa-nos tanta coisa pela cabeça, não é verdade? Às vezes, penso que nos dizemos tão pouco, que acabamos por falar sempre do mesmo, mas, já me lembro, pois, dizia eu, que sempre me interroguei quem sentia mais amor pelo outro, como se isso fosse mensurável, não é? Porém, era povoada por pensamentos assim, nada podia fazer, olhava-te em busca de uma resposta, e ficava confortada por compreender a beleza da questão (sempre me interroguei quem sentia mais amor pelo outro?), quando te contava os meus sonhos, com vistas de rés-do-chão, percebia-te algum desalento, talvez desilusão mesmo, contudo, que podia fazer? Sonhava em terminar o curso, um emprego estável, casa, filhos, fins-de-semana de pipocas e cinema em família, por vezes, levar os filhos a visitar os avós, rever os álbuns de fotos de família, não sei porquê, mas sempre achei importante que os mais novos percebessem que os mais velhos já foram outros, e nem sempre neve sobre as suas cabeças, quando terminava, tu olhavas-me atomizado, como se te acabasse de relatar um hediondo pesadelo, abraçavas-me, parecias querer proteger-me de mim mesma, de certa forma, tinhas razão, os teus sonhos passavam pelo cinema, carreira desportiva, ir para a América, o que é isso comparado com uma vista de rés-do-chão, terminar o curso, um emprego estável, casa, filhos, fins-de-semana de pipocas e cinema em família, por vezes, levar os filhos a visitar os avós, de facto, eu estava errada, de sonhos percebias tu, e eras honesto na tua confissão, eu não falava de sonhos, mas de vida, do que queria para amanhã, e hoje, quando olho para trás, que saudade de quando nós dois, pela tardinha, deitados, confessávamos sonhos, os lençóis encapelados pela tormenta do nosso sentir, o calor ainda em nós e a toda à nossa volta, a respiração que tardava em se harmonizar, o estore, para baixo, a filtrar a tarde lá fora, como se nós, ali, habitássemos na ilha última das nossas coisas, quando me olhavas, depois de, nada dizias, não era preciso, e tu sabia-lo, nesses segundos, de novo, em mim, aquela extenuada questão (sempre me interroguei quem sentia mais amor pelo outro?), à tua maneira, conseguiste pegar-me na mão, e de forma decidida, como sempre o foste, ensinar-me as alturas do sonho, afinal, é preciso tão pouco, basta um estore, para baixo, a filtrar a tarde lá fora, e eis a nossa ilha criada, rodeada pelos lençóis encapelados do nosso sentir, há uns tempos, já não me lembro a que propósito, tínhamos ido, com os miúdos, visitar os avós, rever os álbuns de fotos de família, percebes com certeza, e o teu nome surgiu, assim, do nada, nem me lembro de que assunto se falava, desculpa, fui incorrecta, o teu nome nunca pode surgir do nada, tu foste-me o tudo, e quando a vida te venceu, no teu caso, e é uma crença muito minha, não foi a morte que te levou, foi o excesso de vida, há pessoas para quem existir não basta, tu és uma delas, como estava a dizer, o teu nome surgiu e, logo em mim, a tua voz, o meu nome melodiado com aquele teu jeito, a minha mão pela tua, logo eu a sentir-me única, a habitar, de novo, na ilha última das nossas coisas, desculpa-me se te desiludi, sabes que nunca me ajeitei muito a sair deste rés-do-chão, e deixaste-me tão perdida, já foi há tanto, percebi-lhe incómodo aquando do teu nome, não, não penses nisso, é um bom homem, também um habitante dos pisos térreos, deu-me dois filhos, sim, terminei o curso, arranjei um emprego estável, casa, ele gosta de fins-de-semana de pipocas e cinema em família, por vezes, como hoje, levamos os filhos a visitar os avós, sinto-me constrangida a falar nisso, não queria, mas tu devias saber, melhor que ninguém,  que o coração de uma mulher só tem uma Primavera, e se soubesses que saudade de quando nós dois, pela tardinha, deitados, confessávamos sonhos, os lençóis encapelados pela tormenta do nosso sentir, o calor ainda em nós e a toda à nossa volta, a respiração que tardava em se harmonizar, o estore, para baixo, a filtrar a tarde lá fora, nunca mais, na minha vida, um estore, para baixo, a filtrar a tarde lá fora, nunca mais, já agora, antes que os meus dedos se percam, de vez, no labirinto dos teus cabelos, diz-me uma coisa: quem sente mais amor pelo outro?

domingo, 5 de maio de 2024

Há quanto não sei o azul do céu?

 


Se eu esperava outra coisa de ti? O que é que te parece? Vieste com falinhas mansas, ao início, falavas disto e daquilo, reparei, não penses que isso me passou em branco, não penses isso, que só te enganas a ti, na pausa forçada antes de falares, mau sinal, muito mau sinal, isto cá para nós, filtravas palavras ou pensamentos? Provavelmente, os dois, eu bem sabia que evitavas aquele vocabulário com aroma a matrecos e tremoços, no qual eras tão fértil, de pensamentos também não se podia esperar grandes elucubrações, por isso, ative-me à esperança, de, pelo menos, haver sinceridade, achei graça quando, logo ao início, naquele teu jeito desajeitado, a convidares-me para um copo, logo a mim, que nunca me haviam convidado para um copo, geralmente era para um café, eu, claro, até por fruto da educação, declinei, com uma desculpa sustentável, o teu primeiro arrojo, porém, com o olhar convidei-te a uma segunda tentativa, não o percebeste, confesso que apreciei essa tua genuína inabilidade nos meandros labirínticos do ser feminino, a segunda vez que lá fui, é verdade, digo-to sem pejo, o carro não tinha nada, a história do barulho do motor, quando acelerava, foi a desculpa que se me afigurou mais sustentável para te rever, mesmo assim, e pelo interesse que demonstraste logo que o capô subiu, acho que caíste, eu enternecida a olhar-te compenetrado nas tuas funções, com aquele orgulho de quem está ciente do seu dever, naquele momento, fosses um cirurgião, um militar, um desportista, o teu semblante seria o mesmo, por fim, arriscaste “Pois é… Pois é… Isto vai levar mais tempo… Sabe, temos de desmontar aqui umas peças…”, eu já não ouvi mais, sustive-te o olhar à espera de que tu, agora, arriscasses um “Não quer, por acaso, neste entretanto, ir ali comigo beber um copo?”, claro que nada disseste, não sei como, mas o ir beber um copo concretizou-se, às vezes focamo-nos tanto no objectivo, que nos esquecemos de como lá chegámos, e, na maior parte dos casos, isso é o principal: a memória do caminho; estava naquela fase, confesso, em que aguentava tudo menos estar sozinha, percebes isso, não é? Doeu-me tanto, ainda recordo aquela tarde como se há pouco, e já lá vão uns bons anos, eu a chegar a casa, mais cedo que o habitual, não aguentava mais uma dor de cabeça que não me largava, era uma tarde de Maio com um calor de Julho, a pousar as chaves na mesinha de entrada, ouço uns sons familiares mas simultaneamente estranhos, talvez por provirem de um outro, uma parte de mim percebe de imediato enquanto outra me empurrava para a fonte das onomatopeias ofegantes numa teimosa incredulidade, era uma casa pequena, juntáramo-nos há pouco, é compreensível que, nessa fase, não ambicionássemos a mais, só queríamos um tecto para respirar juntos, falávamos de filhos como se falássemos de reencarnações futuras, mas, como dizia, cedi à teimosa incredulidade, nem precisei de abrir a porta do quarto, estava escancarada, roupa pelo chão, nem o estore tiveram o cuidado de descer, isto foi uma coisa que me chocou, não sei porquê, como se o meu pensar encalhasse neste pormenor, é que ainda não tínhamos comprado cortinas e varão para o quarto, e sempre que estávamos juntos, durante o dia, até partia dele esse cuidado, “Vamos baixar um pouco estore. Os vizinhos do prédio daqui da frente ainda nos veem…”, sempre tão cauteloso, quase púdico, e depois… É isso, percebes, não é? Encalhei nesse pormenor, nem o estore tiveram o cuidado de descer, o resto, vomitou-se-me do pensar, claro que perceberam a minha presença, saí logo, é curioso, ao contrário dos filmes, ele não correu atrás de mim a gritar o meu nome, acho, até, que permaneceram no quarto por algum tempo a avaliar os estragos, deparei-me com a única e habitual opção nestes casos, cheguei à rua dos meus pais ao mesmo tempo que a camioneta do lixo, uma bela metáfora para a minha vida, pensei, confesso que fiz de propósito para chegar depois do jantar, não quis sermões, nem recapitular histórias antigas, ainda me lembro de meu pai a dizer, quando o conheceu, “Não gosto de indivíduos com aperto de mão frouxo! Ouve-me bem! É mau indício! São dissimulados…”, e, claro, iniciava um incessante debitar de inferências, felizmente, nessa noite, só se limitou a baixar o jornal para me saudar, percebeu-me a mala na mão, mas nada disse, acho que ruminou qualquer coisa para si, apenas e só, eu procurei agradecer com os olhos, creio que percebeu, nos dias seguintes, claro, ele procurou falar-me através de todas as formas possíveis do hoje, achei graça que, em todas, empregava o ”falar civilizadamente”, quando, da última vez que o vi, só emitia onomatopeias ofegantes, e nem o estore tiveram o cuidado de descer, felizmente, conseguimos vender a casa por um preço justo, o resto, já sabes, achei que, se te apresentasse ao meu pai, ele iria gostar de um aperto de mão viril, e eu, que nunca me dei bem comigo própria, a passar cada vez mais tempo na minha companhia, isto não podia estar a correr pior, mas, não sei se te recordas, sempre te sublinhei a minha educação, e quando, depois do copo, a tua mão marota, num gritante contraste com a tua genuína inabilidade nos meandros labirínticos do ser feminino, a avaliar-me as nádegas numa total descontextualização, de repente, diante de mim, a imagem de um estore levantado numa tarde de Maio com um calor de Julho, nesse momento, em que deixei definitivamente a tua mão pendurada a olhar o passeio, percebi que teria de fazer as pazes comigo própria, afinal, teria de passar mais tempo na minha companhia, se aprender a fazer isto, talvez aí, é possível que sim, talvez não tenha de regressar à rua dos meus pais ao mesmo tempo que a camioneta do lixo.