Livros

Livros

terça-feira, 23 de abril de 2024

Onde o ar se torna mais leve que o pensar…

 


Do que eu ali mais gostava, era de ir à varanda e me esquecer de tudo a olhar o mar, até de me esquecer, ouvir aquele rumor líquido, incessante, como se nos chamasse para um abraço sempre final, eu limitava-me a fechar os olhos, a ouvir aquele apelo, e sonhava-me, quando me chamavam, para a refeição, arrumar algo, ou qualquer outra coisa, aquele rumor líquido seguia-me os passos casa adentro, sabê-lo ali, à distância de uma varanda, era-me suficiente, ainda me lembro, quando, certa noite, estávamos os quatro à mesa, o jantar quase findo, e o meu pai Este Sábado, vamos ver a nossa futura casa, pelo jeito da minha mãe pousar os talheres, percebi-lhe a surpresa e a indignação, pediu, em voz baixa e pausada, que eu e a minha irmã fôssemos para o quarto e fechássemos a porta, não precisou de repetir, levantámo-nos de imediato e cumprimos a ordem, deitei-me na cama a pensar o amanhã de então, a minha irmã, três anos mais velha, foi para a secretária debruçar-se sobre os livros, sempre assim foi, ela debruçada sobre os livros, eu deitada a olhar sonhos, pouco falávamos, apenas o essencial de partilharmos lar e família, não podíamos ser mais distantes, ou talvez tudo fosse uma perspectiva de então, no fundo, cada um busca o sonho como sabe, ouvimos frases gritadas, mais por parte de minha mãe, de facto, meu pai nunca gostou de gritos, provenientes da cozinha, Agora, vais ver casas e nem dizes nada? Mas que brincadeira é esta? Quem tu pensas que és? Por acaso, és só tu a ganhar? E, já agora, quem te disse que eu quero sair daqui? Que dizes? Que eu sempre me queixei da pequenez desta casa? E da poluição do centro da cidade? Fica tu sabendo, que já me habituei. E quem vive com pouco, a isso se habitua. Sonhos?! Pelo amor de Deus, homem, ainda não cresceste? Os sonhos são para quem tem tempo para dormir. E, há muito, que eu deixei de ter tempo para tal. Esquece isso! Não, não vou ver casa nenhuma! E não se fala mais nisso… O quê? Pensa mas é em juntar dinheiro, não tarda nada a nossa mais velha está na faculdade… E vai precisar que lhe compremos os livros. Mal ou bem, esta casa até fica mais perto dos nossos empregos e das faculdades. A velhice… A olhar o mar… Pelos vistos, agora deste em poeta! Só me faltava mais esta… Voltamos aos sonhos… Não, não me esqueci… Sabes, ando tão cansada… Acho que foi a última coisa que ouvi de minha mãe naquela noite, certo é que, Sábado à tarde, sentou-se, no carro, à frente, ao lado do meu pai, e foi ver a casa, era um prédio de três andares, em frente à praia, estava quase pronto a habitar, faltavam uns pormenores, no contexto de obras, falta sempre qualquer coisa, era uma tarde ensolarada, propícia a passeios, denotei cordialidade nos gestos de minha mãe, longe daquele azedume, demasiado céptico, da noite de gritos, há dois dias, na cozinha, a sala e um dos quartos eram voltados a Oeste, dali em diante, só o mar, assim que assomámos à varanda, eu, pelo menos, deixei de ouvir o vendedor, creio que minha mãe também, em mim entrava aquele rumor marítimo para jamais me abandonar, se me perguntarem pelos passos de minha irmã, nessa tarde, confesso que não me lembro, em mim, apenas o eco de um rumor líquido, quem o sabe ouvir, guarda-o na alma, foi o que meu pai fez, como o compreendo, após a visita, os gestos de minha mãe mais serenos, a voz, um fiozito de anuências, percebi que, à sua maneira, redescobrira o apelo do sonho, demorou o seu tempo, que se me afigurou sempre excessivo, mas mudámo-nos, fomos dos primeiros a habitar o prédio, o meu pai escolheu o último andar, como não podia deixar de ser, do que eu ali mais gostava, era de ir à varanda e me esquecer de tudo a olhar o mar, até de me esquecer, ouvir aquele rumor líquido, incessante, como se nos chamasse para um abraço sempre final, creio que ele também, o centro da cidade ficava a cerca de trinta minutos de camioneta, rapidamente nos habituámos a este trajecto, até gostávamos, regressar a casa, ir para a varanda, e ouvir aquele cântico imemorial, qualquer agrura do dia era logo relativizada, como se um mero objecto fora do lugar, certa manhã, percebemos movimentação no terreno livre ao lado do nosso prédio, quando demos conta, tínhamos um prédio ao lado, em verdade, nem nos importámos muito, ao lado não nos subtraíam, em nada, a vista daquele rumor líquido incessante, até vimos a coisa pelo lado positivo, mais gente, mais iluminação, logo mais segurança, e o vendedor, ainda na primeira visita, assegurara que… O tempo passou, de facto, tudo passa menos o tempo, que continua até um dia, que sempre nos apanha desprevenidos no quotidiano a que chamamos mundo, minha irmã estava no terceiro ano da faculdade, em letras, começava a perceber-lhe a fonte dos sonhos, pois é, cada um tem a sua forma de os buscar, eu indecisa quanto ao curso a seguir, sempre gostei de contemplar amanhãs deitada, meu pai, nesse dia, regressava a casa com uma certeza impressa num papel, minha mãe, à entrada do prédio, com uma derrota impronunciada, via movimentações no terreno em frente, sim, o que fica a Oeste, desde então, todas as noites após o jantar, os meus pais permaneciam na varanda, sentados lado a lado, de porta fechada, a ouvir aquele imemorial cântico líquido, afinal, ao contrário do que proferira naquela noite, minha mãe redescobriu o tempo do sonho, nunca mais se elevaram vozes em nossa casa, demorei o necessário até perceber que meu pai amarelecia ao mesmo tempo que se elevava aquela derrota cinzenta diante de nós, certa noite, uma ambulância teve de o vir buscar, não conseguia disfarçar mais, minha mãe pôs-nos ao corrente da certeza impressa que ele trouxera, há uns tempos, para casa, eu e minha irmã questionámos e questionámos o teor daquelas análises, tudo em vão, há veredictos que nascem demasiado frios, este foi um deles, no dia em que concluíram o terceiro piso da derrota cinzenta diante de nós, meu pai partiu, só minha mãe estava com ele, de mão dada, ouvi as enfermeiras dizer que a viram abrir a janela, sentar-se, e olhar para os lados lá do mar…

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.