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sábado, 25 de março de 2023

Cambaleio entre duas ideias

 



Só me apercebi das pedras da calçada, quando o tempo me relembrou o seu excesso, e eu ali, a subir e a descer a rua, há demasiado, resolvo parar à porta do prédio dela, a luz das escadas acesa, talvez alguém vá sair, seria tão bom se o seu rosto, assim nem teria o esforço da campainha, esperar por uma esperança de diálogo, mas não, uma velhota com destino marcado no supermercado mais próximo, munida de um saco de plástico numa mão, há que ser precavido, hoje até os sacos vazios já pesam, na outra, a carteira tão leve que não custa erguê-la à altura do peito, a porta fecha-se após o seu terceiro ou quarto passo, lá vai, passeio fora, só me resta premir um botão pelo seu rosto, há dois dias, a esta mesma hora, ainda me faltavam uns metros para a sua porta, já ela corria ao meu encontro com um rosto solar, dois dias e o mundo outro, como é difícil acreditar que tudo não foi uma ilusão (porém, se o fosse, como aqui teria chegado?), aproximo-me, de novo a luz acesa, também uma luz em mim, a porta abre-se, um cavalheiro com o seu cão, algo se me obscurece, fico a vê-los, ambos naquela passada de quem vê as coisas da varanda de si, não quer dizer que se tenha cansado, mas já as viu de suficientemente perto para se cansar com perguntas ou espantos, de costas parecem dialogar, é possível, talvez o façam na linguagem do olhar, pelo menos aí a mentira ainda não encontrou uma porta de entrada, é curioso, há entre eles uma compreensão de anuências, isto só sucede quando as ideias jorram da mesma fonte, assim que dono e cão se diluem na tarde da cidade, avanço para a campainha, mas o gesto sustém-se numa dúvida que se me abriu, recuo um passo, imperceptivelmente levo o indicador direito aos lábios, relembro a tarde de ontem, já não a via há um par de anos, sempre o acaso, queixamo-nos da monotonia, mas assim que a vida nos apresenta uma esquina, corremos desenfreadamente pela familiaridade, regresso ao meu indicador e à tarde de ontem, foi ela que me chamou, a sua voz surgiu-me sem o peso daqueles cinco ou seis anos, assim que os imperativos do social ruíram, uma mesa de café, confidências, falou-me com desassombro do desemprego, das portas onde bate e sempre, como resposta, o eco dos seus desejos, vive com alguém, disse-me isto com aquela peculiar expressão de comprometimento, não sei porquê, mas gostei de a rever, era pior se a indiferença pelo seu rosto, achei-a mais magra, compreendi que pouco mudara, no fundo, o que muda é a direcção do nosso olhar, o resto é apenas tarefa do tempo, continuava indefinidamente a rodar a colher na chávena após o pacote de açúcar, antigamente chamava-lhe a atenção, ontem deliciei-me a olhá-la, ali, diante de mim, uma memória que se levantou no meu caminho, quando me apercebi do calendário, já a minha mão se passeava pelos seus cabelos, ela não a afastou, percebi-lhe o cansaço de tanto ouvir os próprios ecos depois de bater às portas, quase lhe senti gratidão por lhe dedicar aquele meu tempo, acabei por acompanhá-la à paragem mais próxima, ambos sentimos que o autocarro estava próximo, sem a mesa de café diante de nós, a relembrar insularidades, um pudor embaraçado não nos permitiu falar de amanhãs, apesar disso, e não sei bem porquê, talvez enlevado pela doçura  daquela memória, de uma colher indefinidamente a rodar a chávena após o pacote de açúcar, aproximei o meu rosto até que os nossos lábios se tocassem, ela não recuou, palavra de honra, sabiam a café, a uma colher que rodava indefinidamente e a uma memória que se levantou no caminho, regressámos à nossa circunstância com um chiar de travões acompanhado de passos apressados que descem ao mesmo tempo que outros hesitantes sobem, despediu-se, com palavras de ocasião, de um futuro feliz, até um dia destes, não as retive, fiquei com aquele seu gesto de puxar o cabelo para trás da orelha, tudo ali de novo e tudo, uma vez mais, a ofuscar-se, diante de mim ficou apenas uma paragem vazia, percebi que perdera qualquer coisa, pelo menos, preservei o sabor a café nos lábios, soube, ainda nesse dia, que um olhar actual não compreendera a minha deferência para memórias que se levantam no caminho, tentei demonstrar a impossibilidade de uma memória ir além disso, mas argumentava com portas onde  se bate e, como resposta, sempre o eco dos nossos desejos, não sei se deva insistir, foi esta dúvida que me fez recuar um passo, ou talvez dois, entretanto, a velhota regressa, agora com a carteira ainda mais leve, tanto que não custa erguê-la à altura do peito, no saco apenas duas ou três coisas, a fome já não se sacia, apenas se engana, fico a vê-la entrar, continuo indeciso, entre a imagem de alguém que corre ao meu encontro com um rosto solar e o eco desse desejo, também de regresso, agora, o dono e o cão, naquela passada de quem vê as coisas da varanda de si, sempre num diálogo de olhares, passam por mim, entram, a porta fecha-se, e, confesso, pareceu-me ouvir uma colher rodar indefinidamente na chávena após o pacote de açúcar enquanto uma mão, num peculiar gesto, puxa o cabelo para trás da orelha...

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