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sábado, 4 de março de 2023

Deitado na cama a olhar para o tecto

 


Vi-os, pela primeira vez, numa tarde de sol, do quarto que alugara, num segundo andar, naquela travessa da cidade, não sei porquê, mas sustive-me perante um quadro familiar a céu aberto, ela ladeada dos filhos, um em cada mão, a rapariga aí pelos dez, o rapaz mais novo dois ou três anos, é curioso, pareciam familiarizados com o trajecto, a sua vista fresca não se detinha em lateralidades, pelo contrário, seguiam o compasso materno numa devoção incondicional, percebi-lhe, apesar do segundo andar, do passo ligeiro, uma nuvem a caminhar pela face, até que uma esquina os subtraiu do possível que eu já não olho, fiquei suspenso do há pouco, havia nela qualquer coisa que me fazia lembrar de mim, e os miúdos, passos de meninice guiados por uma nuvem sobre uma face, há coisas que não pedem licença para entrar na nossa atenção, geralmente é o que nos falta, apesar do sol na rua convidar a mundos, persisto na compreensão de uma nuvem que se detém sobre uma face, regresso ao leito de onde me levantara não há assim tanto, de novo, a ideia de que havia nela qualquer coisa que me fazia lembrar de mim, olho-me em vez de olhar, é o mais frequente, mas nós sempre na desatenção de nos fugirmos, eu a remar pelo inverso, a procurar a memória que ela me despertara, talvez aí chegado aporte na compreensão de qualquer coisa, voltei a vê-los uns dias depois, uma vez mais, numa tarde de sol, do quarto que alugara, num segundo andar, naquela travessa da cidade, peguei no casaco e desci, porém, assim que um pé no passeio, nem vestígios de um quadro familiar a céu aberto, à minha volta apenas passos anónimos, nada mais, soube, mais tarde, a génese daquela nuvem que insistia em caminhar por uma face, há sempre uma voz à procura de um ouvido atento, nem tive de ir assim tão longe, bastou-me a minha senhoria, pródiga em enredos de paredes alheias, talvez julgue que, desse modo, silencie os seus, em verdade, uma prática cansada, certo dia, uma jovem que trabalhava como criada numa pensão, percebeu amanhãs diferentes quando se cruzou, na escada, com um jovem embarcadiço, de sotaque espanholado, ele também não ficou indiferente aquela candura que aprendia a soletrar amor, começaram por um gelado na praça, uma matiné num Domingo, o primeiro aproximar de lábios, dias depois, ela a acompanhá-lo ao porto, a assistir esmagada à sua partida, ele a sossegá-la, oito semanas passam rápido, para ela, soaram a eternidade, num Sábado de manhã, uma hora antes do previsto, já ela contemplava o zénite marítimo, nem se apercebeu do lento regresso do cargueiro, de o procurar com avidez no meio daquela rudeza que suspirava por terra, de correr para ele, de o abraçar, daquele sotaque espanholado lhe segredar que a amava, de facto, os amanhãs seriam irremediavelmente diferentes, quando regressou a si, estava no quarto que ele geralmente ocupava na pensão, as portadas semi-fechadas conferiam uma recatada luminosidade, conheceram-se por inteiro nessa tarde, já suspiros ecoavam pelo quarto e ela em lágrimas ao destino no pânico de o perder, muitas vezes regressou ela ao cais, o único sal que conheceu advinha-lhe do sentir e desenhava-se-lhe no rosto, até que, muito tempo depois, numa tarde, no meio daquela rudeza que suspirava por terra, ele a não aparecer, ela gritou, gritou, e gritou o seu nome, como eco, no fim de tudo, apenas o marulhar das águas e o aviso salgado das gaivotas, ela ladeada dos filhos, um em cada mão, a rapariga aí pelos seis, o rapaz mais novo dois ou três anos, a olhar as luzes da cidade numa forma líquida, diante de si, o cais, agora, já deserto, antes de regressar, ainda perguntou na portaria por uma carta, um recado, percebeu, pela expressão do homem, atrás dos vidros, que aquela era uma pergunta, por aqueles lados, extenuada, o sujeito limitou-se a um movimento horizontal do rosto acompanhado por um longo suspiro, à vista daqueles rostos que a ladeavam, cedo se lhes apresentou a noite, claro que, findo o relato, a minha senhoria procurou saber do meu interesse, esquivei-me como pude, posso apenas adiantar que, neste momento, ela vem ao meu encontro, ladeada dos filhos, um em cada mão, a rapariga aí pelos doze, o rapaz mais novo dois ou três anos, cada um já escreve o seu nome com o meu apelido, aguardo-os à entrada da nossa casa, numa vila do interior, é verdade, escolhemos um lugar onde não houvesse cais, o aviso salgado das gaivotas, e onde nuvens não caminhem pela face.

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