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sexta-feira, 22 de julho de 2022

Não me perguntas o que eu tenho?


 

Hoje, não sei bem porquê, lembrei-me do Rofty, claro que todos sabem quem é o Rofty, se não souberem, nem vale a pena continuar a leitura, quem não se recorda do mítico cavalo do D´Artacão não me merece qualquer estima, mas de onde se me levantou a memória do Rofty? Chega àquele espaço ainda com a farda-do-trabalho, o necessário fato e gravata, devido à altura, as peúgas espreitam quase sempre o exterior, enfim, aqueles aspectos ternurentos que ninguém pode levar a mal, arrasta os pés como se recém-chegado de uma longuíssima e extenuante jornada, pousa o saco, com a muda, em cima do balcão e solta um longo e sonoro suspiro, havia que anunciar a sua entrada, puxa um banco com o pé e senta-se inclinado o suficiente para observar quem lá estava, um segundo e ainda mais longo suspiro, a mão pelo rosto, numa teatralidade excessiva, como se carregasse todos os males do mundo pelos ombritos-curtos, em verdade, havia sempre algo a ensombrar-lhe os passos, desta vez falou-se num desgosto amoroso, só aguardava um interlocutor desprevenido a quem pudesse despejar a dor maior que o atormentava , para o efeito bastava alguém ouvir os desesperados suspiros, os lancinantes passos arrastados, aquele olhar suplicante apoiado numa demasia oblíqua, a curiosidade vir ao de cima “Então, o que se passa?”, aí, sim, inspirava, a mão pelo rosto, e o verbo numa torrente para horas, pois, há vidas complicadas, não nos esqueçamos de que todo o Rofty tem o seu D´Artacão, o deste era uma antiga estrela de futebol que, aos fins-de-semana, ainda espalhava o perfume, em torneios ou jogos-amigáveis, da arte de bem-tratar a bola, ao nosso Rofty, pelo facto de ter nascido com duas tábuas no lugar de pés, restava-lhe a baliza, lugar quase sempre destinado aos gordos ou aos toscos, inseria-se obviamente nesta segunda categoria, dizem as más-línguas, tão antigas quanto o homem, que  motivo do seu divórcio fora precisamente esta obsessão, certezas não há, porém, alguns asseguram, já o nosso Rofty experienciara os alvores da paternidade, que, ao pedirem-lhe para ver fotografias dos filhos, ele prontamente pegava no telemóvel e: “Olha, isto foi no fim-de-semana! Nós a chegarmos ao pavilhão, olha, vê, aqui no aquecimento, eu a defender um remate do…” Claro, do seu D´Artacão – por razões óbvias, não vamos aqui expor o nome de uma lenda do nosso futebol – nestas linhas, ficará consagrado como o D´Artacão do nosso Rofty, de início, incautos, amigos e familiares ainda estranhavam, talvez tivessem ouvido mal, por conseguinte, voltavam à carga: “Pois, sim, sim… Mas mostra lá como estão os miúdos!”, neste ponto, com a emoção espelhada no olhar, quase em soluços, o nosso Rofty: “E ganhámos… Sabes, no fim, ainda defendi um penálti!!!” Com a mão dominada pelo sentir, oscilante, “Não queres ver as nossas fotos a sair do pavilhão?”, sinceramente, não se pode falar de obsessão, é um exagero, que mal tem um homem querer mostrar ao mundo os seus feitos dentro das quatro-linhas? Também se dizia em surdina, lá voltamos às más-línguas, tão antigas quanto o homem, que, na noite-de-núpcias, ele esperou a noiva com as luvas de guarda-redes postas, asseguram que lhe chegou a gritar: “Anda, anda… Atira-te a ver se eu não defendo!” Certezas não há, pois, as más-línguas, tão antigas quanto o homem, sofreu com a separação, pelo menos, aos fins-de-semana, durante duas horas, esquecia as arestas do amor, se ele gritasse: “Anda, anda… Atira-te a ver se eu não defendo!”, ninguém lhe viraria costas, um dos momentos mais sublimes da sua existência foi, como é óbvio, dentro das quatro-linhas, lançou directamente a bola para o seu D´Artacão que, com uma classe inata, e de primeira, fez golo, em êxtase saiu da baliza para o abraçar, mas nenhum cavaleiro quer ser abraçado por uma cavalgadura, ainda hoje, quando lhe perguntam pelas datas de aniversários dos filhos, é este dia que ele cita, que mal tem um homem querer mostrar ao mundo os seus feitos dentro das quatro-linhas? Se, por acaso, encontrarem alguém com a farda-do-trabalho, o necessário fato e gravata, devido à altura, as peúgas a espreitarem quase sempre o exterior, enfim, aqueles aspectos ternurentos que ninguém pode levar a mal, a arrastar os pés como se recém-chegado de uma longuíssima e extenuante jornada, a pousar o saco, com a muda, em cima do balcão e a soltar um longo e sonoro suspiro, não se esqueçam de lhe colocar a questão essencial: “Na noite de núpcias: defendeste ou não a bola?”


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