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quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Uma omnipresente ausência

 


Há coisas que só se dizem quando o mundo já uma sombra imensa. Não posso afirmar que mo tenham dito directamente, pelo contrário, ouvi-o no acaso de uns passos com outro destino, o de cumprir com os imperativos da natureza, talvez julgassem que a casa já dormisse, daí o emergir de frases com a cor do silêncio, por um sono demasiado, não foi tanto a frase que me imobilizou a atenção, mas sim o tom que a iluminou, regra geral, o que nos detém, perante o abismo do que nos dizem, é a luz das palavras e não os caracteres que lhes dão corpo, foi minha mãe que a proferiu, assim que a sua voz se diluiu, uma porta fechou-se, quantas portas o futuro nos encerra, enquanto nós na vã efemeridade de aprisionar o presente, meu pai não replicou, lembro-me bem deste pormenor, quase os vislumbrava suspensos na luz difusa desta frase que se extinguia, quem sabe se demasiado cedo, como um ocaso invernal, mas tudo tem um tempo para se iluminar, e os passos da luz fariam o seu percurso até esta minha memória, e aí repousariam o tempo necessário… Certa tarde, regresso da faculdade mais cedo, e cruzo-me com o meu irmão, mais novo três anos, à entrada do prédio, vinha a sair na companhia da sua recente namorada, não me escapou o reflexo das luzes da entrada nos cabelos molhados de ambos, saíram de mão dada, em passos sem amanhã, sorri à vista daquela cadência, também já por ali andara, até que alguém se cansou, por acaso, não fui eu, outras vezes nos cruzámos, quando na rua, os cabelos molhados ora espelhavam a Primavera, ou resquícios do Inverno findo, sempre de mão dada, em passos sem amanhã, eu em sorrisos à vista daquela cadência, talvez por já lhe conhecer a distância do mundo, mas nem todos sorriem para o mesmo, sobretudo para dedos que se entrelaçam, certa tarde, uma voz fala-me dos cabelos molhados que reflectem luzes ao lado de meu irmão, sugere-me que já reflectiu luzes noutras companhias, opto por ignorar, acho que é o melhor para a maledicência, não lhe dar o alimento do verbo, tanto assim foi, que o diálogo entrou no crepúsculo, uns dias mais tarde, noutro contexto, uma outra voz chama-me a atenção dos cabelos molhados que reflectem luzes ao lado de meu irmão, de novo, sugere-me que já reflectiu luzes noutras companhias, de novo, opto por ignorar, sem o alimento do verbo, a conversa a extinguir-se, e a vida continuou o seu curso na infatigável sucessão dos dias, desde então, para encontrar meu irmão na sua singularidade, sem dedos entrelaçados ou reflexos de luzes a seu lado, só à noite no seu quarto, mesmo assim, teria de esperar que o telefone não tocasse, claro que nunca lhe falei das maledicências escutadas, apenas comprovei, pelo seu rosto e gestos, o deleite por aqueles passos sem amanhã, qual não foi o meu espanto, quando, certa tarde, à saída da faculdade, o deleite de meu irmão me aguardava, sem qualquer reflexo nos cabelos, e com aquela peculiar expressão que nos transmite vamos ter necessariamente uma conversa séria, desci os degraus, dirigi-me a ela, comprovei as minhas ilações prévias, perguntei-lhe se queria um café para serenar, agradeceu o convite, havia um perto da faculdade propício a diálogos sussurrados, dirigimo-nos a esse, aí chegados, ela tomou as rédeas da conversa, num claro contraste com as hesitações de há pouco, a questão financeira veio várias vezes à mesa, eu ainda aquém dos seus intentos, a certa altura, cansado de tantas divagações, sempre preferi faces desveladas, encosto-a à parede (Desculpa lá, mas o que é que pretendes ao certo?), percebi-lhe um agradecimento suspirado pela minha frontalidade, nesse ponto, falou-me de um atraso, da necessidade de o corrigir, eu a questionar o porquê de me vir falar, ela a argumentar que sou o irmão mais velho, eu a responder que sim, mas que não sou o autor, ela apela ao sentir e a uma ajuda financeira, nisto, ouço os passos da luz em mim, de repente, sentam-se e repousam sobre uma memória que, assim, me surge numa nitidez estival, o acaso de umas passadas, há muito, para cumprir os imperativos da natureza, o mundo já uma sombra imensa, meus pais conversam, de porta entreaberta, julgando-nos norteados pelo sonho, entretanto, minha mãe profere uma frase, como se a dissesse num beco que a devolve a suas mãos num vazio de destinos, relembro-a ali, naquele café, soletro cada sílaba, levanto-me, arrumo a cadeira, pouso as mãos sobre a mesa, sorrio e digo-lhe A natureza negou a paternidade ao meu irmão, talvez um dia, se ele quiser, as leis do homem lhe possibilitem, de imediato, virei-lhe costas e abandonei o café propício a diálogos sussurrados, enquanto caminhava, relembrei o tom que iluminou a frase de minha mãe, naquela noite, como se uma súplica, de facto, o que fazer desta verdade que jaz nas sombras de meu irmão…

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