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domingo, 8 de outubro de 2023

Grandezas à janela, misérias num desvão empoeirado

 


Àquela hora, a cidade ostenta o rosto de sonhos escondidos, como se a vida tivesse partido para outras paragens, a luz do aqui a ocultar a chama longínqua dos tremeluzentes e dourados suspensos pontos nocturnos, era uma noite de Setembro, no ar um prenúncio de que as sombras se iriam demorar na despedida, no entanto, aqui e ali, uns faróis a trazer substância às coisas, acompanhados daquele eco mecânico que parece caminhar sempre na lonjura, contudo, nesse mesmo instante, ele aporta num lugar de excesso de luzes, se, nesse preciso instante, qualquer um de nós ali estivesse, e se, por um acaso qualquer, detivesse nos seus passos, percebia-lhe a familiaridade, de há muito, com aquele cenário, imobilizou a viatura num recôndito lugar improvisado atrás de uma palmeira, a cerca de oitenta metros da entrada, dirigiu-se, de imediato, para lá, nem se apercebeu da quietude à sua volta, daquela hora que nos contempla com um rosto de sonhos escondidos, como se a vida tivesse partido para outras paragens, nem interiorizou que, naquele momento, a luz do aqui oculta a chama longínqua dos tremeluzentes e dourados suspensos pontos nocturnos, nada disso fazia parte da geografia do seu pensar, o seu olhar fixado na porta, os seus acelerados passos para lá dirigidos, assim que transpôs a entrada, virou à direita, o destino a três ou quatro dezenas de metros, também lhe passou ao lado a expressão cúmplice e acrimoniosa dos porteiros ao verem-no entrar, a vida, por ali, obedecia a outros ponteiros, como se fosse meio-dia numa qualquer praça central de uma cidade de assinalável dimensão, e, apesar do abraço de há muito da noite, nos rostos nem vislumbre daquela resignada cedência ao cansaço de ser, pelo contrário, à sua volta apenas rostos sequiosos, a mesma expressão por si ostentada, encostou-se a um canto na discrição do possível, retirou a carteira do bolso interior do casaco, recontou as possibilidades, como se de munições se tratasse antes da batalha, e avançou, começou logo pela máquina que o ocupava há um trimestre, sempre o necessário aquecimento para o desafio de facto, ali esteve bem mais de uma hora, nunca questionou o porquê de, nos primeiros contactos, ter somado algum pecúlio, desde então, uma espiral derrotista alimentada, curiosamente, não por uma esperança de mitigar perdas, mas sim por uma outra coisa, bem mais antiga, quase infantil, aquele tempo em que não estamos inteiros no mundo, como se caminhássemos com um pé no aqui e outro no lá, só nessa altura é que nos aproximamos de um abismo com um espanto inocente onde o terror não encontra uma janela por onde entrar, e não olhamos um precipício, mas uma nuvem passeante que quase tangemos, de uma outra forma, só se apercebe do abismo quem já caiu (E como este é um mundo de quedas!), por ali, ele desaprendia o cair em voos fugazes, sempre com um preço, aparentes quedas ilusórias para logo se reerguer sob um custo sempre plural, àquela mesma hora, sentada numa teimosa cadeira oscilante, uma mulher com o filho nos braços, procura adormecê-lo, ela, neste momento, também com um pé no aqui e outro no lá, aquele tempo em que não estamos inteiros no mundo, um seio ainda de fora depois de se cumprir, a criança parece ter reencontrado os trilhos do sono, a mulher tacteia por forças para se levantar, enquanto isso, olha a cama à sua frente, vazia, fria, mas desarrumada, o seu olhar turvado de preocupação, frases ressoam nos cantos de si, Não comeces com coisas. Quanto é que já lá ganhei? Não me venhas enumerar o que já perdi! Porque eu recupero isso facilmente! Dá-me uns dias… Não te admito isso! Não estou nada viciado! E não… Nem voltes a repetir isso! Não nos vou levar à miséria! Por acaso, passas fome? Frases curtas, herméticas, sem azo a réplica, em cima de uma mesa-de-cabeceira avoluma-se um molho considerável de cartas, também por aí o seu turvado olhar deambulou, o dele também, do atraso na prestação da casa ao saldo ultrapassado no cartão de crédito, a insistência do telefone à hora de jantar, sabia que a sogra andava preocupada, que ele chegava a inventar doenças para que a mãe... Mas, o que mais lhe doía, era o facto de o compreender, como se no lugar dele a sua volição fosse similar, sempre um pé no aqui e outro no lá, aquele tempo em que não estamos inteiros no mundo (e isto há quanto?), entretanto, ele deixa a máquina e encaminha-se para a outra sala, todos os olhares numa espiral sobre uma mesa, tantos que caem (E como este é um mundo de quedas!) para tão poucos que se erguem, uma vez mais leva a mão ao bolso interior do casaco, pensou àquela hora encontrar mais, talvez se tenha demorado pela máquina, e avança, se, nesse preciso instante, qualquer um de nós ali estivesse, e se, por um acaso qualquer, detivesse no seu olhar, percebia-lhe o fascínio hipnótico por aquela espiral sobre a mesa, a aproximação do abismo, enquanto isso, ela devolve o filho, já adormecido, àquele diminuto leito infantil, tapa-o com um esmero só possível a uma mãe, por um tempo sem tempo detém-se absorta a olhá-lo, felizmente para ela o pensar em tréguas, àquela hora, a cidade ostenta o rosto de sonhos escondidos, como se a vida tivesse partido para outras paragens, uns olham filhos adormecidos, outros perdem-se em espirais sobre mesas, cair, levantar, tudo acontece sob a chama longínqua dos tremeluzentes e dourados suspensos pontos nocturnos…

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