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segunda-feira, 9 de outubro de 2023

A consertadora de corações


 

A última vez que a vi, já os candeeiros nos iluminavam os passos, numa ruazita secundária, eu, fora do carro, à espera de um não sei o quê, talvez à espera de mim mesmo, e continuo a aguardar, quando, antes de a ver, ouvi-a, as frases muito ritmadas, percebi que iria passar à minha frente, permaneci imóvel, olhei na direcção da sua voz, umas dezenas de metros mais abaixo, apercebeu-se de mim, por momentos, brevíssimos mesmo, no fundo, a Eternidade, olhou-me, o espanto inicial por ali me encontrar, as dúvidas de como reagir, tudo o seu olhar transpareceu, por fim, o orgulho assumiu o leme, lá seguiu caminho, rua abaixo, permaneci onde estava, embora pensar e sentir num turbilhão demasiado, nada de novo para mim, confesso ter gostado do espanto inicial por ali me encontrar, as dúvidas de como reagir, tudo o seu olhar transpareceu, nem vislumbres de indiferença, também ela não me era indiferente, bem longe disso, em tempos escrevi que não tenho jeito para despedidas, reafirmo-o, talvez pelos vazios derramados no horizonte, em verdade, não é uma arte que almeje: jeito para despedidas! Meses antes de candeeiros que nos iluminavam os passos, numa ruazita secundária, eu, fora do carro, à espera de um não sei o quê, talvez à espera de mim mesmo, e continuo a aguardar, de lhe ouvir a voz, perceber que iria passar à minha frente, de o orgulho assumir o leme, certa tarde ela, no meu carro, quase em desabafo, “Só me saem gajos com o coração lixado!”, retive, de imediato, a frase, nessa altura, de facto, era um gajo com o coração lixado, creio que sempre fui, e, de certa forma, vi nela uma possível consertadora de corações, só alguém com tal desígnio podia emitir uma frase assim, acredito, ainda hoje, que ela ignore o facto de a ter memorizado,  , “Só me saem gajos com o coração lixado!”, gostei do conteúdo (elegâncias de forma não são para aqui chamadas) e da espontaneidade com que a emitiu, por fim, vislumbrava uma possibilidade de conserto para tão vital órgão, e como precisava, uma das frases que ultimamente mais tenho repetido (“Vivemos tempos estranhos… Vivemos tempos estranhos…”) não tardaria a bater-me à porta, e, por acaso, não nutro peculiar júbilo por estar certo antes do tempo, muito pelo contrário, sinal de mau augúrio, assim foi neste caso e, infelizmente, em muitos outros, há muito escrevi, peço desculpa, hoje estou a citar-me muito, uma frase que ilustra os meus passos pelo aqui: “Para onde vou, levo-me comigo”; não gosto de teatralizações, de máscaras, maquinações e afins, como em tudo há vantagens e desvantagens, sem máscaras geramos amor ou ódio (eu também amo ou odeio – deste último lado está o politicamente correcto: a mais sublimada forma de tirania!), não há meia-medida, pois, um notório maniqueísmo, o ontem sempre tão no hoje, são os ditames desta apatetada sociedade, porém, o meu único juiz continua a ser o espelho, se gosto do seu reflexo, sim, gosto, e espero continuar nesta senda, há um imperativo nesta equação: jamais, jamais, abdicar do amor-próprio! Há quem lhe chame orgulho, estejam à-vontade para dar as denominações que bem entenderem, a verdade é que, no fim, só nos resta este desígnio para continuar nesta caminhada de rosto erguido, aqui fica o conselho, não sou muito pródigo neste particular, sempre considerei que cada um deve encontrar o seu caminho, claro que a consertadora de corações se revelou um logro, um pouco como aqueles botecos de bairro onde vamos por falta de opção momentânea, confesso, no entanto, que, como sempre, ali entrei sem máscaras, teatralizações e afins, apenas eu a levar-me comigo, embora, em certa medida, ela tivesse o arrojo de estancar uma hemorragia latente, esta é a verdade, por conseguinte, honra lhe seja feita neste aspecto, quem vê o mundo de uma enorme distância, com a nítida percepção de que este não é o seu lugar, possui necessariamente um coração lacerado, aqui começou o equívoco da consertadora de corações, um coração lixado, num boteco de bairro, resolve-se com uma curita, um coração deveras lacerado exige uma taumaturga das emoções, alguém que igualmente veja o mundo de uma enorme distância, com a nítida percepção de este não ser o seu lugar, aqui chegados, alguns podem questionar se me arrependo, não, é a resposta, porque, no fim, soube, a tempo, pegar no orgulho e restituí-lo ao meu peito, já que no meu rosto não havia máscaras, vivemos, em verdade, no meio de um baile-de-máscaras, uma das frases que ultimamente mais tenho repetido (“Vivemos tempos estranhos… Vivemos tempos estranhos…”), felizmente estou aquém de tais contextos, e, assim que o orgulho me foi restituído ao peito, sem quaisquer laivos de arrogância, fiz as contas, e, de imediato, compreendi quem saiu a perder, não é todos os dias que caminhamos ao lado alguém que vê o mundo de uma enorme distância, com a nítida percepção de que este não é o seu lugar, restam-lhe os ansiados corações lixados para aplicar umas curitas, pouco mais, nada de demorado que envolva a compreensão de não sermos daqui, custa muito depositar uma máscara, imaginemos todas: amor ou ódio, não há meia-medida, pois, um notório maniqueísmo, o ontem sempre tão no hoje, são os ditames desta apatetada sociedade, viver é cair – facto –, não deve haver lamentos nem contas, em verdade, no fim de tudo, basta um rosto levantado a vislumbrar o outro a caminhar rua abaixo, pouco mais, um coração deveras lacerado exige uma taumaturga das emoções, estas aliam o tempo à compreensão, talvez por felizmente saberem o logro de uma curita…

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