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domingo, 14 de agosto de 2022

Quando os sonhos não cabem em mim


 

Quando realmente irei acordar? Talvez não hoje. O despertador, aquele som sempre numa demasia ritmada, os pontos vermelhos a piscar, num vermelho ostensivo devido à escuridão do quarto, a procura da tecla do silêncio, por fim o indicador a encontrá-la, de novo, paz, a cabeça, uma vez mais, apoiada, como se um retorno, ainda bem, talvez assim os problemas flutuem por mais um pouco, dela, neste momento, apenas o ombro, mesmo assim, opta por cobri-lo, não dera pelo despertador, tal como em todas as manhãs pretéritas, valia-se da paciente insistência dele, para assim correr pelo pão diário, ele tinha gosto nisso, afinal, só a reencontrava, como sempre em cada regresso, sob a fluorescência da cozinha, entre o fogão do jantar e a porta aberta da máquina da roupa, numa demonstração de ubiquidade digna de qualquer ilustre taumaturgo, ele, da porta, assistia num fascínio mudo àquela multiplicidade de gestos, que brotavam de uma harmonia inata ao continente feminino, sempre a margem e o fascínio, levanta-se, o ombro na mesma posição, embora tapado, após o café, que bebia sempre naquela chávena amarelada, com uma lasca na pega, duas torradas, a manteiga derretida que lhe acabava em cascata nos dedos, regressa ao ombro adormecido, palavras sussurradas, uma mão sai do lençol para lhe passear pelo rosto, de seguida, o autocarro, sempre aquele instante do arranque, a relembrá-lo da importância de um amparo (talvez de um ombro), à sua volta, apenas vestígios de sono, não de sonhos, ele sempre em estranhezas, afinal, quantos sonhos enterrara em si? A marcha a prosseguir enquanto o espaço, em redor, se subtrai numa cadência de vaga tumultuosa, os pés procuram firmar a sua individualidade, como árvore em floresta, mas a corrente a arrastá-lo, assim que a paragem (talvez a sua?) imobiliza o autocarro, até que desce os degraus, em esforços de equilíbrio, a manhã ainda não se erguera, e um gesto, cansado e multiplicado, num absurdo diário, a confirmar a sua entrada, na testemunha de um cartão, dirige-se ao seu cacifo, aí deposita os pertences da sua outra vida, veste uma bata ainda azul, ilhas de óleo em vários pontos a manifestar um arquipélago de labor, caminha para o seu lugar, já é um outro, uma parte daquele tentacular todo, ao seu lado, mais batas azuis, com iguais arquipélagos, ouve frases de golos e penáltis, mas sempre aquém destas temáticas, a manhã em passos de idoso, enquanto o cansaço em galope por ele (quantas vezes já levara a mão à testa?), de vez em quando, à sua frente, a casa da aldeia, o aroma a frutos da brisa do entardecer, o olhar a correr pelo possível do horizonte, o som do ontem murmurado entre as ramagens, contudo, um estrépito metálico fá-lo regressar à sua circunstância, aos arquipélagos, à mão pela testa, a passos de idoso e a galopes indesejados, a discussões circulares por apitos e mais penáltis, o som de uma sirene fá-los baixar os braços, passa pelo cacifo, retira de lá o possível de um almoço, e vai sentar-se debaixo do enorme castanheiro, duas sandes, uma de ovo e outra de presunto, opta por comer primeiro a de presunto, recosta-se no tronco, como sempre fazia, mastiga devagar, talvez assim se multiplique qualquer coisa, e, na mesma proporção, se subtraia a necessidade, de novo, à sua frente, talvez murmurado pelas ramagens, talvez desenterrado de si, a casa da aldeia, o aroma a frutos da brisa do entardecer, o olhar a correr pelo possível do horizonte, caminha na sua direcção, agora, nem vestígios de mãos pela testa, de arquipélagos, de passos de idoso ou de galopes indesejados, tudo já com a distância, à espera que a maré da madrugada venha recolher, de repente, a três passos da porta, pára, sim, é verdade, pareceu-lhe ver um ombro a passear por uma das janelas.


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