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domingo, 21 de agosto de 2022

Ouço, em mim, um cemitério de palavras


 

Denota-se-lhe uma passada, àquela hora de jantares e famílias, de quem se sabe não ser esperada. Sempre tempo para mais um cigarro, agora à porta do prédio, mas não entra (para quê?), ainda lhe falta o pão, assim retarda, por mais um pouco, a evidência da derrota, quantas vezes, quase como cartão-de-visita, anunciara, Sabe, eu tenho muitos amigos, perante isto, os outros fitavam-na entre a perplexidade e o espanto, ela insistia, Sabe, eu tenho muitos amigos, como resposta, ombros encolhiam-se e ela ficava a contemplar costas que se afastavam, mas, nesses tempos, sempre tinha com quem se sentar a uma mesa, a partilhar cafés e cigarros, hoje nem isso, apesar do esmero antes de sair de casa persistir, um livro debaixo do braço, volumoso o suficiente para captar olhares e suscitar admirações, de vez em quando, alguém mais incauto questiona-a acerca daquelas páginas, logo, ela assume uma expressão reflexiva e debita o que julga serem profundidades, o resto da indumentária também não é deixada ao acaso, percebe-se-lhe um latente antagonismo com o inverno da sua face, no passado, parecia filha da pressa, como se, de facto, a esperassem em múltiplos lugares simultaneamente, o passo também era outro, mais leve, mais decidido na sua representação, hoje o (seu) mundo outro, a filha no exterior (Quando partira?), primeiro, há alguns anos, juntara-se com um namorado, talvez o seu terceiro, que tinha uma loja de produtos para animais, ela grata pela saída da filha, mais espaço, sempre aquela competição velada, mãe/ filha, pelo olhar masculino da casa, marido/ pai, alugaram um apartamentozito relativamente perto, a filha encantada por trabalhar com animais, várias vezes o afirmou, de forma bem audível, o pai em silêncios, talvez já houvesse demasiado barulho à sua volta, os namoros da filha, as múltiplas amizades da mulher, era um lar já bastante movimentado, ela reticente com a escolha da filha, não apreciava o olhar rasteiro do rapaz, vária vezes avisou Minha filha, minha filha, ele vive do momento, nunca há-de pensar o amanhã, mas surdez e juventude viajam na mesma carruagem, uma tarde, as malas reentram em silêncio, a filha de óculos escuros elucidativos, afinal, os olhares do rapaz eram ainda mais subterrâneos que o vaticínio materno, quem se habitua a enjaular seres vivos, e a comercializá-los, dificilmente muda de perspectiva, de novo, por ali, vozes a elevarem-se, mãe e filha sempre em lados opostos, certa noite, ao regressar do café, luzes de alarme à porta do prédio, uma maca a ser transportada, o coração a sussurrar-lhe ao ouvido, ela a compreender, mas a optar pela surdez, o marido sempre com África, desde o regresso, virara costas ao sorrir, o frio, as gentes daqui, pequenas como os seus horizontes, os inúmeros trabalhos que fora coleccionando, nem todos desaprendem de mandar, a partir de certa altura, preferiu o passado, aí vivia, escudado por fotos,  discos, copos e memórias, mantinham-se à tona apenas com o ordenado dela, há dias em que a evidência nos atira contra uma parede, com uma frieza inclemente, talvez o inopinado regresso da filha, talvez os envelopes das contas amontoados na mesa de entrada, talvez um cansaço, jamais pronunciado, pelo facto de a mulher ter optado pela representação, talvez um excessivo frio exterior, hoje não revisitou memórias emolduradas, nem ouviu melodias quentes, não, hoje resolveu outra coisa, encontraram lamelas vazias ao lado de um copo outrora cheio, não chegou a conhecer o hospital, sim, a meio do caminho, abraçou outra viagem, a derradeira, ela nunca aceitou esta decisão, de certa forma, sentiu-se traída, como se uma derrota, a filha, neste particular, seguiu os passos do sentir materno, o embaraço presidiu aos gestos do adeus, contudo, só em surdina se ouviu falar de lamelas vazias ao lado de um copo outrora cheio, certa manhã, o calendário a relembrar os anos que passaram desde as luzes de alarme à porta do prédio, quando o coração lhe sussurrou ao ouvido, ela a compreender, mas a optar pela surdez, sobre a mesa-de-cabeceira, um envelope com uma paisagem suíça, era da filha, partira para lá com outro namorado, talvez o quarto, entra no café, àquela hora pouca gente, apenas duas ou três mesas ocupadas, pede o pão, enquanto aguarda, repara numa revista abandonada sobre uma mesa, a capa dividida por duas paisagens, uma de montanha a outra de savana, recebe o pão, já frio, entrega as moedas, preparava-se para sair, mas volta atrás, pega na revista, durante uma indefinição de tempo talvez a olhe, e, sem saber muito bem porquê, hoje, ao caminhar para casa, sentiu-se esperada.

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